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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Vanessa Roberta Massambani Ruthes CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz Prof.ª Tathyane Lucas Simão Prof. Ivan Tesck Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Revisão Pedagógica: Bárbara Pricila Franz Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2017 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 231.044 R974t Ruthes, Vanessa Roberta Massambani Teologia moral e ética / Vanessa Roberta Massambani Ruthes. Indaial: UNIASSELVI, 2017. 138 p. : il. ISBN 978-85-69910-77-0 1.Teologia. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Vanessa Roberta Massambani Ruthes Doutoranda em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Possui Mestrado em Teologia pela mesma Instituição. Possui Especialização em Bioética pela PUCPR; Especialização em Espiritualidade pela Faculdade Vicentina e Especialização Princípios Educacionais pela PUCPR. Possui Aperfeiçoamento em Ética de la investigación con seres humanos pela UNESCO; e Aperfeiçoamento em Ensino de Filosofia pela UFPR. Licenciada em Filosofia e Pedagogia. Atua como professora e gestora tanto na Iniciativa Privada, quanto no Setor Público. É consultora e palestrante. Possui livros publicados na área de Teologia e Filosofia, como também vários artigos em periódicos científicos e em jornais de circulação. Sumário APRESENTAÇÃO .......................................................................... 01 CAPÍTULO 1 Introdução à Ética Cristã .......................................................... 09 CAPÍTULO 2 História da Moral Cristã ............................................................ 53 CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 4 A Moral Revelada e a Moral Renovada .................................... 79 A Lei Moral ................................................................................. 105 APRESENTAÇÃO O presente livro “Teologia Moral e Ética”, tem por objetivo apresentar a temática de Teologia Moral e Ética de forma clara, objetiva e didática, buscando proporcionar uma reflexão mais ampla sobre os temas abordados. Nesta perspectiva, a partir de grupos temáticos, diferentes assuntos foram abordados. No primeiro capítulo, intitulado a “Introdução à Ética Cristã”, é realizada a diferenciação conceitual entre ética e moral. A partir desta, analisa-se a relação existente entre as dimensões do agir moral, correlacionando as dimensões deste agir moral com os fundamentos bíblicos. No segundo capítulo a “História da Moral Cristã”, analisamos de que forma a construção teórica da moral cristã foi sendo realizada. Para tanto, buscamos comparar as teorias morais com as diferentes mentalidades dos tempos históricos, e por fim procuramos compreender o desenvolvimento das diferentes percepções da moral cristã na história. No terceiro capítulo “A Moral Revelada e a Moral Renovada”, diferenciamos estes duas concepções de moral, demonstrando seus fundamentos e a forma como foram engendradas. Também analisamos a estrutura do decálogo e como este é influenciado pela moral revelada. Por fim buscamos identificar os principais desafios da moral renovada na reflexão ética atual. No quarto capítulo “A Lei Moral”, analisamos a forma como a lei natural é utilizada para pressupor conceitos e doutrinas da moral cristã. Procuramos compreender como esta lei influencia até os dias atuais a constituição da moral cristã, e por fim apresentamos quais são as bases conceituais que fundamentam a lei natural. Como você pode perceber, caro(a) pós-graduando(a), as análises propostas por esta obra pretendem auxilia-lo a ampliar seu conhecimento e reflexão sobre a Moral e a Ética a partir de uma perspectiva teológica. Boa leitura! CAPÍTULO 1 Introdução à Ética Cristã A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Conhecer a diferença entre os conceitos de ética e moral. � Identificar as diferentes dimensões do agir moral. � Conhecer os fundamentos bíblicos da ética cristã. � Analisar a relação existente entre as dimensões do agir moral. � Correlacionar as dimensões do agir moral com os fundamentos bíblicos. 10 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA 11 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Contextualização Estudar a teologia moral e a ética é um esforço que precisamos empreender para entendermos as atitudes e disposições morais no nosso cotidiano. Uma ação moral implica consequências e, por conseguinte, responsabilidades. Desta maneira, para estudar a ética e a moral cristã precisamos começar por nos dedicar ao conhecimento das Escrituras e dos textos produzidos a partir delas. Deixamos claro aqui que moral e religião não são sinônimos. Embora a religião contenha uma conduta moral, elas se distinguem por vários motivos. O principal é que não precisamos de religião para estruturar uma moral, mas não existe nenhuma religião sem código moral ou ético. Vamos caminhar juntos nesta discussão muito importante para nossas vidas e nossa construção do conhecimento humano. Vamos descobrir um pouco mais sobre ética e moral cristã durante este curso. Conceito de Ética e Moral A ética e a moral podem ser entendidas como muito próximas. Faremos uma distinção neste texto que é eminentemente didático e serve para fins acadêmicos e de organização de material. No dia a dia utilizamos a palavra ética para indicar aquilo que consideraríamos correto. Por exemplo, quando designamos uma pessoa como ética, estamos concordando com suas atitudes e seus valores. Entretanto, a ética enquanto conceito é muito mais ampla. A ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta. Tradicionalmente, ela é entendida como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. Mas também chamamos de ética a própria vida, quando conforme aos costumes considerados corretos. A ética pode ser o estudo das ações ou dos costumes, e pode ser a própria realização de um tipo de comportamento. Enquanto uma reflexão científica, que tipo de ciência seria a ética? 12 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA As questões da ética nos aparecem a cada dia. [...] logo poderíamos nos perguntar se, num país capitalista, o princípio do lucro poderia ou deveria situar-se acima ou abaixo das leis da ética. E em épocas mais difíceis, muitas vezes nos perguntamos se uma lei injusta de um Estado autoritário precisa ou não ser obedecida. E quando nós temos um “problema de consciência”, quando estamos com um “sentimento de culpa”, coisa que ocorre a todos, não se torna importante saber se este sentimento corresponde de fato a uma culpa real? Cabe à reflexão ética perguntar se o homem pode realmente ser culpado, ou se o que existe é apenas um sentimento de um mal- estar sem fundamento. E as artes também levantam problemas para a ética. Por exemplo: o poder de sedução, de encantamento, da música, pode (ou deve) ser usado para condicionar o comportamento das pessoas? E o mandamento evangélico do amor aos inimigos é válido como uma obrigação ética para todos? E quando, lendo um romance de Dostoievski, encontramos um personagem como Ivan, de Os Irmãos Karamazov, afirmando que “se Deus nãoexiste tudo é permitido”, devemos então concluir que isso é uma proposta de Tratando de normas de comportamentos, deveria chamar-se uma ciência normativa. Tratando de costumes, pareceria uma ciência descritiva. Ou seria uma ciência de tipo mais especulativo, que tratasse, por exemplo, da questão fundamental da liberdade? Fonte: Valls (2005, p. 7). A moral definiremos como um conjunto de regras que nos foram transmitidas e que sob nenhuma hipótese mudam com um debate ou a vontade de um indivíduo. O exemplo típico disto é o mandamento “Não matarás”, ele em nenhum momento mudou em toda a história da teologia moral. Mesmo que sempre apareçam pessoas que o transgridam de modo a produzir grande sofrimento ao tirar a vida das outras pessoas. A ética, por sua vez, pode ser debatida e discutida, entendida como o hábito de um povo, ou de um grupo de pessoas, ela sempre pode ser deliberada e renovada na medida da qualidade dos debates decorrentes. Embora pareça muito diferente da moral, no cotidiano é muito difícil distinguir a prática moral da ética. Por isso sugerimos que a moral seja pensada como algo a ser cumprido sem necessária discussão, e a ética como algo a ser refletido. 13 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 abolição da ética? Os problemas que acabamos de mencionar implicam todos alguma relação com outras disciplinas teóricas e práticas, mas são todos problemas específicos da ética. Fonte: Valls (2005, p. 9). Podemos dizer de outro modo o que entendemos acerca de moral e ética: a moral é um modo de conduta, um mandamento, uma forma de se comportar. É dela que seguimos certa quantidade de valores e regras que nos foram passadas de outras gerações que nos precederam. No que tange aos costumes, Valls (1994) defende que estes surgem a partir das práticas e relações existentes nas diferentes sociedades e tempos históricos. O processo de teorização da moral, fundamentada na reflexão ética, é posterior. Quanto às grandes teorizações, há documentos importantíssimos pelo menos desde os gregos antigos, há uns dois mil e quinhentos anos. Mas é importante então lembrar que as grandes teorias éticas gregas também traziam a marca do tipo de organização social daquela sociedade. Tais reflexões não deixavam de brotar de uma certa experiência de um povo, e, num certo sentido, até de uma classe social. Tais enraizamentos sociais não desvalorizam as reflexões mais aprofundadas, mas sem dúvida ajudam a compreender a distância entre as doutrinas éticas escritas pelos filósofos, de um lado, e os costumes reais do povo e das diferentes classes, por outro lado, tanto no Egito quanto na Grécia, na Índia, em Roma ou na Judeia. Em certos casos, só chegaremos a descobrir qual a ética vigente numa ou noutra sociedade através de documentos não escritos ou mesmo não filosóficos (pinturas, esculturas, tragédias e comédias, formulações jurídicas, como as do Direito Romano, a políticas, como as leis de Esparta ou Atenas, livros de medicina, relatórios históricos de expedições guerreiras e até os livros penitenciais dos bispos medievais). Fonte: Valls (2005, p. 11-12). 14 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Aquilo que chamamos de moral é um conjunto de regras cuja mutabilidade é muito difícil, sempre permanece e se perpetua por muito tempo. Mas podemos entender um conjunto de regras morais de diferentes modos a partir de um processo de concordância axiológica. Assim, se defendermos uma determinada moral, somos capazes de nos portar de tal modo. Se queremos mudar regras morais é porque ou pertencemos a outro grupo moral, ou estamos inseridos em um processo de crise de valores que nos faz questionar as normas às quais estamos submetidos. Desta maneira, percebemos a complementariedade existente entre a ética e a moral, pois a discussão e o debate sobre os valores, condutas e comportamentos só são viáveis a partir de um referencial, de um conjunto de normas com as quais se concorde ou discorde. Axiológica: está relacionado com a axiologia, que indica o valor que algo possui ou tem. Há diferentes formas de abordagem utilizadas pela moral e pela ética. Podemos falar de uma moral ou ética legalista, personalista, cientificista ou, ainda, uma moralizante. A primeira diz respeito ao cumprimento estrito da lei e nada mais, em outras palavras: siga os mandamentos e pronto. A segunda é a personalista, tudo gira em torno da pessoa humana e nada escapa a esta dinâmica. Já a terceira, chamada de cientificista, é aquela que se fundamenta em princípios da ciência, querendo mensurar a lei moral e conferir a ela credibilidade da ciência. A quarta, que denominamos de moralizante, quer proporcionar um exemplo a ser seguido, um testemunho. De acordo com Moser (1996), há uma estreita ligação entre moral e ética. Segundo o pensador brasileiro, a moral e a ética possuem duas fontes: uma que é inteiramente religiosa e a outra que é filosófica. Ambas têm o papel de proporcionar a construção dos hábitos e da configuração de um sentido. Segundo Moser (1996), a moral e a ética precisam uma da outra para poderem melhorar mutuamente. Além disso, para o pensador, precisamos de moral para orientar nossa conduta segundo os ancestrais, e de ética para debater os problemas atuais e mais emergentes. Uma moral ou ética legalista, personalista, cientificista ou, ainda, uma moralizante. 15 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Não seria exagerado dizer que o esforço de teorização no campo da ética se debate com o problema da variação dos costumes. E os grandes pensadores éticos sempre buscaram formulações que explicassem, a partir de alguns princípios mais universais, tanto a igualdade do gênero humano no que há de mais fundamental, quanto as próprias variações. Uma boa teoria ética deveria atender à pretensão de universalidade, ainda que simultaneamente capaz de explicar as variações de comportamento, características das diferentes formações culturais e históricas. Dois nomes merecem ser logo citados, como estrelas de primeira grandeza desse firmamento: o grego antigo Sócrates (470-399 a.C.) e o alemão prussiano Kant (1724-1804). Fonte: Valls (2005, p. 16). Como uma avaliação acerca dos costumes, para reprová-los ou aceitá-los, a moral corresponde a algo de constitutivo da sociedade. Efetivamente, não se pode imaginar a vida social sem a presença de regras de conduta a que se devam cingir seus protagonistas. Contudo, o processo segundo o qual essa esfera da cultura ganha autonomia e vem a ser considerada sem referenciais religiosos, ou de outra índole, é de muito difícil reconstituição. Mas ambas, ética e moral, precisam de outros indivíduos para poderem constituir um sentido e uma determinada condição de organização social e de hábitos. Ressaltamos que existem dois grandes momentos de configuração da moral no Ocidente. O primeiro é proveniente da cultura judaico-cristã, com o estabelecimento do decálogo e sua posterior reinterpretação feita por meio do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. O segundo momento é caracterizado pelas questões lógicas e a presença de uma relação racional com a elaboração ética das filosofias gregas e do pensamento dele resultante. Mas ambas, ética e moral, precisam de outros indivíduos para poderem constituir um sentido e uma determinada condição de organização social e de hábitos. 16 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Presumivelmente, os códigos de que se tem notícia ou foram preservados correspondem a fenômeno tardio. Antes de atingir esses estágios avançados de sistematização, deve ter-se efetivado esforço inimaginável na linha da fixação de normas que contribuíssem para a coesão e a sobrevivência dos agrupamentos humanos. Além de tardios, os códigos são precedidos de larga tradição oral. Assim, a partir mesmo do texto fundamental para a cultura ocidental que é o Deuteronômio de Moisés, sabe-se que só assumiu a forma que nos foitransmitida no século V antes de Cristo, muitas centúrias após a morte daquele a quem é atribuída sua autoria. No mesmo ciclo, são conhecidas outras codificações, consagradoras de tradições culturais diversas. Afora tais dificuldades, a moralidade revestiu-se de feição perfeitamente diferenciada entre o Ocidente e o Oriente, registrando as teorizações sobre a moral nos países do Oriente grandes avanços em relação ao Ocidente, facultando elucidação mais precisa de diversos problemas teóricos. Esse tipo de moralidade aparece associado à religião e, do ponto de vista em que nos colocamos, o momento inicial mais destacado é representado pelo texto bíblico denominado Deuteronômio (palavra que provém da tradução grega da Bíblia e significa “a segunda lei”). O Deuteronômio, por sua vez, é parte do Pentateuco (coleção dos cinco livros de Moisés). Na Bíblia, Moisés apresenta o Decálogo ou Dez Mandamentos da Lei de Deus, que na cultura ocidental viria a constituir-se no ponto de partida para a elaboração da moralidade, uma das dimensões essenciais do homem, ao lado da religiosidade, da política, do direito etc. Na tradição cristã, o texto fundamental em que se retoma a pregação de Moisés é o Sermão da Montanha, no primeiro dos evangelhos que abrem o Novo Testamento: Evangelho segundo São Mateus. Os evangelhos correspondem a uma espécie de compilação do que se contava acerca de Cristo. A primeira seria devida ao Apóstolo Mateus, em Jerusalém, que a teria escrito em arameu (língua do povo que vivia em Aram, denominação da Síria antiga), não se tendo conservado o seu texto. A versão que figura na Bíblia é a tradução grega, efetivada por volta do ano 70 de nossa era. A Bíblia contém outras três compilações de tais eventos, denominadas Evangelhos segundo São Marcos, São Lucas e São João [...]. 17 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 O segundo momento do processo de constituição da moral ocidental é representado pela meditação grega. Enquanto na tradição judaica, incorporada ao Velho Testamento, a moral é ensinada como sendo constituída de preceitos sugeridos diretamente pela divindade, o pensamento grego está voltado para a delimitação das esferas da vida humana. Nessa busca é que iria esbarrar com o problema. Os gregos chamariam ética à elaboração teórica que se dirige à conceituação da moralidade. Na Grécia, a reflexão autônoma acerca do comportamento moral do homem tem uma história muito rica, se bem que os estudiosos do tema destaquem as contribuições de Sócrates (470/399 a.C.) e Platão (438/348 a.C.). Contudo, Aristóteles (384/322 a.C.) é o autêntico fundador da disciplina filosófica a que se deu o nome de ética, tendo ademais formulado os principais de seus problemas teóricos. A busca do conceito de ética, na meditação grega, obedece a dois esquemas fundamentais: sua dissociação do conceito de política; e identificação da ética seja com a sabedoria, com a virtude ou com o prazer. Fonte: Paim, Prota e Rodriguez (s.d., p. 3). É na cultura humana que se organiza a moral e seus aspectos de entendimento dos nossos costumes. É na sistematização cultural que se desenvolve o problema da moral como costume, como hábito de um determinado grupo de pessoas. Neste aspecto, a moral não é igual a cultura, é exercida dentro de uma determinada cultura. Segundo a perspectiva da tradição judaico-cristã que fundamenta a teologia, somos seres feitos à imagem e semelhança de Deus e por isso somos descritos no livro da criação como seres capazes de entender o que o Criador quer de nós. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus e por isso temos obrigações morais com relação ao nosso criador. Quando o homem e Deus se unem em uma aliança do povo eleito e começam uma relação de cunho moral e de fé é que podemos notar a diversidade das atitudes possíveis em nossa existência. Em muitos momentos o ser humano procurou se afastar da vontade do Criador e tentou se colocar como um ser autônomo e independente. Contudo, em todos estes momentos acabou por retornar aos dilemas morais de sempre. 18 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Em sua infinita bondade, Deus não nos abandonou, ele continuou a seguir os nossos passos e confirmar a sua vontade de nos levar para junto dele. Por mais paradoxal que possa parecer, toda vez que nos afastamos dele, Ele nos procurou e apresentou sua proposta de salvação. Nas discussões acerca da moral e da ética cristã estes dilemas sempre estão presentes, sendo pauta de estudos da Teologia Moral, que é uma forma de leitura do comportamento humano a partir da ótica da religiosidade. Atividade de Estudos: 1) Como vimos, a Ética e a Moral são disciplinas cujas reflexões têm como ponto de partida e objeto de estudo o agir humano. Nós vivemos hoje em uma sociedade na qual as relações são cada dia mais complexas e o agir humano, por consequência, também o é. Assim, leia o fragmento do artigo: Teologia moral, bioética e cultura da morte, de José Antônio Tafaretti, e a partir dele identifique um dilema moral que vivenciamos na sociedade atual. “Vivemos num contexto social cujos paradigmas estão se transfor mando rapidamente”. Schockenhoff (2010, p. 369) afirma que atualmente “temos um universo policêntrico que é definido pela falta de um princípio estrutural dominante e por uma pluralidade de perspectivas que gozam de igual posição”. Essa cultura policêntrica, que caracteriza o comporta mento de pessoas e instituições, tem gerado situações sociais, culturais e religiosas que manifestam um estado de crise. Essa é uma crise econô- mica global que tem, evidentemente, suas incidências sobre a vida moral de pessoas ou de grupos. A crise atual é estrutural e formal (OLIVEIRA, 1993). Estrutural porque afeta a vida das instituições (família, escola, igreja, polícia etc.) e formal porque tem colocado em xeque-mate o papel dos agentes morais como indivíduos dotados de comportamento ético. Não se trata de uma crise passageira, mas de um processo permanente, deixando atônitos todos os envolvidos. É necessário estarmos atentos e nos prepararmos para enfrentá-la. Estamos todos indignados! O caráter cético ou niilista da sociedade de massa não é difícil de ser compreendido. O mundo dos shopping centers, das vitrines coloridas, a sensação de vazio 19 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 ao fazermos uma compra têm produzido uma cultura do nada. Um nada que se expressa na indiferença e apatia de muitos brasileiros (TRASFERETTI, 2007). Crescemos tecno logicamente, é verdade, mas estamos cada vez mais empobrecidos como pessoas humanas. Mediocridade e banalidades reinam em nossas rela ções. O sorriso fácil estampado no rosto de milhões de brasileiros beira a mentira ontológica que se consome entre um hambúrguer e outro. Como recuperar a saúde pessoal? Como curar a alma do sofrimento e da frag mentação banal? Os males dos homens contemporâneos estão em livros, revistas, periódicos, jornais e televisão. Para Bauman (1997), é possível observar que o mal-estar na atual civilização está associado a um estilo de vida que conduz as pessoas à ausência de si mesmas. De acordo com Vidal (2003), a Teologia Moral é uma ciência prática que procura ajudar as pessoas no discernimento no momento das escolhas morais. Fazemos escolhas morais todos os dias de muitos modos, mas como fazer boas escolhas morais vivendo num país eminentemente corrupto? Do ponto de vista moral, estamos viven do momentos complexos no Brasil e no mundo. A violência não tem fim! É comum encontrarmos pessoas que não sabem discernir entre o ato moral “correto” e o “incorreto”. Justiça e injustiça são valores que se perderam no tempo, criando confusão na sociedade. Muitos vivem como folhas balança das pelo vento, não têm raízes. Pessoas assim são levadas pelo consumismo e se perdem neste emaranhado de nomes e cores disformes, pior ainda: na sociedade pós-moderna o poder social sobre as pessoas aumentou.Somos vítimas de um mundo dominado pelo marketing. O mercado com o seu de sejo insaciável de lucro e molda o comportamento de todos” Fonte: Trasferetti (2013, p. 149-150). _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ 20 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Os Sujeitos do agir Moral O agir moral, por si, não pode ser compreendido senão em relação ao sujeito que promove a ação. Segundo Pighin (2005), no passado era realizada uma dissociação tendo em vista uma preocupação em definir o que era ou não lícito ser realizado a partir de comportamentos isolados. Entretanto, como vimos na seção anterior, a moral é um conjunto de costumes estabelecidos e como tal fundamenta o agir humano, e este só pode ser entendido, pela reflexão ética, em suas ocasiões particulares. “A partir de uma perspectiva teológica, existem basicamente dois sujeitos do agir moral: o ser humano e a sociedade” (PIGHIN, 2005, p. 133). Criado por Deus à sua imagem e semelhança e chamado à corresponsabilidade junto à criação, o ser humano é dotado de características que o diferenciam dos demais seres criados e que propiciam a esse a ação moral. A primeira característica é a autoconsciência, a capacidade de compreender sua própria identidade, tendo em vista a percepção dos seus processos psíquicos de autocompreensão. A segunda característica é a racionalidade, a capacidade de pensar de forma abstrata a realidade que o cerca. Esta abstração permite a ele a elaboração de conceitos e sentidos que irão fundamentar a forma como este irá expressar seus juízos de valor. Estes juízos são a base de toda a ação moral e de sua posterior reflexão. A terceira característica é a capacidade de autodeterminação a partir da forma como ele conceitua e atribui sentido à realidade, o ser humano tem a possibilidade de estabelecer escolhas e decidir entre várias alternativas possíveis. Contudo, não podemos cair no reducionismo de afirmar que o ser humano, enquanto sujeito moral, é definido somente a partir destas três características. Elas são as fundamentais, mas questões relacionadas à afetividade, à sexualidade, às relações de poder, dentre tantas outras, também são importantes no processo de ação moral. Outro ponto fundamental para definirmos o sujeito do agir moral é a questão da heteronomia e da autonomia. “A partir de uma perspectiva teológica, existem basicamente dois sujeitos do agir moral: o ser humano e a sociedade” (PIGHIN, 2005, p. 133). 21 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 O moralista Bruno Fábio Pighin nos alerta que a compreensão da sociedade como sujeito do agir moral é recente. E esta deve-se às seguintes circunstâncias: “O sujeito do agir moral, para muitos séculos de história do cristianismo, foi considerado apenas a pessoa individual enquanto responsável pelos seus atos. Isso aconteceu em razão de uma visão individualista. No século XX, em particular, amadureceu, ao invés, uma visão mais atenta à sociedade, graças também às contribuições de diversas disciplinas, como a sociologia, a estatística, as ciências políticas e econômicas. Todavia, alguns movimentos ideológicos, como o comunismo marxista e a contestação global que explodiu em 1968, contribuíram cada qual ao seu modo para chamar a atenção sobre a sociedade como artífice de moralidade”. (PIGHIN, 2005, p. 140). Por heteronomia compreendemos a dependência da vontade em relação à faculdade do desejo. Por autonomia entendemos a independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo. Assim, a pessoa heterônoma é aquela que tem uma postura passiva frente à moral. Ela se permite influenciar e dominar por seus impulsos internos, circunstâncias, pela sorte, pelo medo, pela vontade alheia, sem exercer, por meio de sua consciência, suas escolhas de forma livre. Já a pessoa autônoma é aquela que tem uma postura ativa, que se fundamenta em uma forma equilibrada de controle das pulsões internas e no posicionamento, a partir dos seus valores, frente à realidade que o cerca, de forma responsável, livre e independente. No que diz respeito à concepção de sociedade como um sujeito do agir moral, é importante salientarmos que tal visão não tem como objetivo diminuir a centralidade da pessoa no desenvolvimento da ação moral. Mas reconhecer a existência de “sujeitos morais que transcendem a identidade individual e que se qualificam como sociais, econômicos, políticos, educacionais”, e que a partir de uma determinada ideologia têm atividades e finalidades imbuídas de senso moral (PIGHIN, 2005, p. 140). 22 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Assim, quando nos referimos à sociedade, estamos designando agregações de pessoas que têm a possibilidade “de colocar em ato decisões e operações que tendem a alcançar objetivos” em torno de valores e finalidades em comum (PIGHIN, 2005, p. 141). Alguns exemplos que podemos dar são: associações de moradores, empresas, partidos políticos, organizações não governamentais, comunidades religiosas, entre outras. Como vimos, os dois sujeitos da ação moral, o ser humano e a sociedade (agregação de pessoas), possuem características de ação diferenciadas, mas, ao mesmo tempo, níveis de responsabilidade semelhantes perante suas práticas. Em especial, quando nos referimos à atuação moral de diferentes organismos da sociedade, encontramos uma grande e vasta seara de exemplos de como, de forma autônoma e a partir de valores específicos, pode-se dedicar à promoção ou defesa de uma causa. Dentre estes grupos está a Organização não governamental Anistia Internacional, que desde 1961 realiza campanhas e ações para o reconhecimento, a promoção e a defesa, em nível nacional e internacional, dos direitos humanos. Assim, buscando ampliar sua compreensão sobre o papel da sociedade no processo do agir moral, acesse o site: <https://anistia. org.br> e procure nos documentos publicados o Informe Anual intitulado: O estado dos direitos humanos no mundo. Leia a seção que aborda os direitos humanos no Brasil. Se você quiser conhecer outras organizações civis que desenvolvem um agir moral sistematizado, damos como sugestão os seguintes sites: • Cruz Vermelha Internacional: <https://www.icrc.org/pt>. • Médicos sem fronteiras: <http://www.msf.org.br/>. • Cáritas Internacional: <http://www.caritas.org/>. https://anistia.org.br https://anistia.org.br https://www.icrc.org/pt http://www.msf.org.br/ http://www.caritas.org/ 23 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Na perceptiva teológica, o agir moral tem sua origem na narração da criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Esta se fundamenta em seis características básicas: 1. A racionalidade, isto é, a capacidade e a obrigação que o humano tem de conhecer e de compreender o mundo criado. 2. A liberdade, que implica a capacidade e o dever de decidir e a responsabilidade que a pessoa tem pelas decisões tomadas (Gn 2). 3. Uma posição de comando, porém de modo algum absoluto, e sim sob o domínio de Deus. 4. A capacidade de agir em conformidade com Aquele do qual a pessoa humana é imagem, ou seja, de imitar Deus. 5. A dignidade de ser uma pessoa, um ser ‘relacional’, capaz de ter relações pessoais com Deus e com os outros seres humanos (Gn 2). 6. A busca da santidade da vida humana (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 8). Observamos que estas características da existência humana configuram o seu modo moral de ver e se relacionar com este mundo à sua volta. Contudo, cada uma destas características citadas traz uma série de implicações morais. Dentre estas, podemos citar: 1) O conhecimento e o discernimentofazem parte do dom de Deus. O ser humano é capaz e, como criatura, está obrigado a indagar o projeto de Deus e a procurar discernir a vontade divina para poder agir com justiça. 2) Por causa da liberdade que lhe é dada, o ser humano é chamado ao discernimento moral, à escolha, à decisão. Em Gn 3,22, depois do pecado de Adão e a sua sanção, Deus diz: “Eis que o homem se tornou como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal”. O texto é difícil de explicar. Por um lado, tudo indica que a afirmação tem um sentido irônico, porque mediante as próprias forças, apesar da proibição, o homem procurou apoderar-se do fruto e não esperou que Deus lhe desse no tempo oportuno. De outro lado, o significado da árvore do conhecimento total – assim se deve entender a expressão bíblica ‘conhecer o bem e o mal’ – não se limita a uma perspectiva moral, mas significa também o conhecimento dos resultados bons e maus, isto é, do futuro e do destino: isso compreende o domínio do tempo, que é competência exclusiva de Deus. Quanto à liberdade moral dada ao ser humano, ela não se reduz a uma simples autorregulamentação e autodeterminação, uma vez que o ponto de referência não é o eu nem o tu, mas o próprio Deus. 24 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA 3) A posição de comando confiada ao ser humano implica responsabilidade, empenho de gestão e administração. Também ao homem compete a tarefa de formar de modo “criativo” o mundo feito por Deus. Ele deve aceitar essa responsabilidade, também porque a criação não deve ser conservada num estado determinado, mas está desenvolvendo-se, e o homem, como ser que une em si mesmo natureza e cultura, encontra-se junto a toda a criação. 4) Essa responsabilidade deve ser exercitada de um modo sábio e benévolo, imitando o domínio do próprio Deus sobre a sua criação. Os homens podem conquistar a natureza e explorar as amplidões do espaço. Os extraordinários progressos científicos e tecnológicos do nosso tempo podem ser considerados como realizações da tarefa dada pelo Criador à humanidade, a qual, entretanto, deve respeitar os limites fixados pelo Criador. Caso contrário, a Terra torna-se lugar de exploração indevida, que pode destruir o delicado equilíbrio e a harmonia da natureza. Seria certamente ingênuo pensar que possamos encontrar a solução da atual crise ecológica no Salmo 8; ele, porém, entendido no contexto de toda a teologia da criação em Israel, questiona praxes hodiernas e exige um novo sentido de responsabilidade pela Terra. Deus, a humanidade e o mundo criado estão conexos entre si e por isso também teologia, antropologia e ecologia. Sem o reconhecimento do direito de Deus em relação a nós e em relação ao mundo, o domínio degenera facilmente em dominação desenfreada e em exploração que conduzem ao desastre ecológico. 5) A dignidade que as pessoas possuem como seres relacionais convida-as e as obriga a procurarem e viverem um relacionamento com Deus a quem devem tudo; fundamental para o relacionamento com Deus é a gratidão (cf. o parágrafo seguinte, n. 12, baseado nos salmos). Isso também implica entre as pessoas uma dinâmica das relações de responsabilidade comum, de respeito ao outro e uma contínua busca de equilíbrio, não somente entre os sexos, mas também entre a pessoa e a comunidade (entre valores individuais e sociais). 6) A santidade da vida humana requer um respeito e tutela totalmente abrangentes, e veta o derramamento do sangue humano, “porque à imagem de Deus ele fez o ser humano” (Gn 9,6). Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 11). 25 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Liberdade e a Responsabilidade no Agir Moral A questão da liberdade é um tema central para a reflexão ética, tendo em vista que ela é que pressupõe a possibilidade da ação moral. O ser humano só pode ser considerado como um sujeito do agir moral se suas atitudes partirem de uma escolha livre. Neste ponto poderíamos questionar: o que é a liberdade? Contudo, tal questão não possui uma resposta única e nem simples. A liberdade é um conceito complexo que diversos pensadores, de diferentes tempos históricos, buscaram compreender. A partir de suas reflexões, podemos esquematicamente afirmar que existem basicamente três formas de entender a liberdade em relação ao agir moral: 1) Como autocausalidade, ou autodeterminação, afirmam a possibilidade da existência da liberdade por meio da escolha realizada de forma autônoma. 2) Há aqueles que defendem o determinismo, não acreditam na possibilidade de um agir moral livre, tendo em vista os condicionamentos presentes na realidade. 3) Por fim, alguns afirmam que a vivência da liberdade só é possível por meio de um processo de complementariedade entre as duas visões anteriores. Os condicionamentos, ou seja, aquilo que impõe limites à liberdade, podem ser classificados de duas formas, como estruturais e acidentais. Os condicionamentos estruturais são aqueles relacionados à estrutura biológica da pessoa (incluindo processos bioquímicos e psíquicos) e às suas relações socioculturais. Os condicionamentos acidentais, por sua vez, podem ser de caráter transitório ou permanente, e estão associados a situações particulares de cada pessoa, como doenças e acesso à informação. Fonte: Pighin (2005, p. 147). 26 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA A concepção de liberdade entendida como autocausalidade ou autodeterminação é “incompatível com qualquer determinação externa ao sujeito” (VAZQUEZ, 2005, p. 120). Fundamenta-se na noção de que a vontade humana tem a plena possibilidade de determinar a si mesma, sem ser influenciada por condicionantes externos. O sujeito dá a si mesmo os significados e os motivos nos quais seu agir moral se fundamenta. Isto não significa a negação dos condicionantes externos, mas a afirmação da autonomia da vontade frente a estes. Contemporaneamente, ao defender esta visão de liberdade, Jean Paul Sartre enfatiza as escolhas que o ser humano faz perante a realidade devem estar pautadas na vontade humana. Lutar ou resignar, continuar ou parar são atitudes movidas interiormente e não determinadas por circunstâncias apresentadas pelo mundo que nos cerca. Por este motivo é que Sartre afirma que “o homem está condenado a ser livre”, pois “uma vez que foi lançado no mundo é responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 1973, p. 12). Leia o texto no qual Sartre fundamenta esta compreensão da liberdade: “Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, consequentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o 27 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra osinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada instante”. Aqueles que defendem o determinismo entendem que tudo na realidade concreta está submetido a uma ordem natural que dá a si mesma suas leis, regras e normas. Assim, sendo o ser humano parte da natureza, ele estaria submetido a estas. Neste ponto, poderíamos afirmar que para o determinismo não há a possibilidade de liberdade na ação, tendo em vista que os condicionamentos externos são um impeditivo para o exercício dela. Mas é necessário compreender que para estes pensadores esta ordem natural não é apenas externa, mas também interna. A pessoa, como parte integrante da realidade concreta do mundo, também está submetida a esta ordem e ela é que interiormente rege as ações humanas. A liberdade, nesta perspectiva, não é entendida como uma livre escolha da pessoa, mas é a necessidade de agir em concordância com sua natureza e o ordenamento que possui. Por fim, há ainda os que defendem a vivência da liberdade como um processo de complementariedade entre as duas visões anteriormente apresentadas. Para ser livre não é uma concepção abstrata, que se pressupõe apenas no trabalho da consciência que busca doar sentido à realidade e a partir deste sentido realizar suas escolhas. Mas, também a liberdade não está relacionada apenas à factibilidade do mundo que nos impõe condicionamentos. Merleau-Ponty nos alerta que essa dualidade entre a concepção abstrata e a factível da liberdade produz uma cisão na própria compreensão do ser humano. Para ele, a liberdade reside exatamente a partir da complementação entre consciência e natureza, entre mundo interior e exterior: “A verdade não habita apenas no homem interior, ou antes, não existe homem interior, o homem está no mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6). A liberdade, nesta perspectiva, não é entendida como uma livre escolha da pessoa, mas é a necessidade de agir em concordância com sua natureza e o ordenamento que possui. 28 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Atividade de Estudos: 1) Como vimos, a liberdade é a condição essencial para o agir moral. Mas, por si, a liberdade é uma realidade complexa. O texto a seguir, do pensador Merleau-Ponty, reflete sobre a complexidade da liberdade frente à moral e ao proceder humano. Assim, após a leitura e reflexão do texto, explique o paradoxo existente entre a liberdade e os determinismos da vida humana. “O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no mundo. O mundo está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. Sob o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua. Em particular, mesmo nossas iniciativas, mesmo as situações que escolhemos, uma vez assumidas, nos conduzem como que por benevolência. A generalidade do “papel” e da situação vem em auxílio da decisão e, nesta troca entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte da situação” e a “parte da liberdade”. Torturam um homem para fazê-lo falar. Se ele se recusa a dar os nomes e os endereços que querem arrancar- lhe, não é por uma decisão solitária e sem apoios; ele ainda se sente com seus camaradas e, engajado ainda na luta comum, está como que incapaz de falar; ou então, há meses ou anos, ele afrontou esta provação em pensamento e apostou toda a sua vida nela; ou enfim, ultrapassando-a, ele quer provar aquilo que sempre pensou e disse da liberdade. Esses motivos não anulam a liberdade, mas pelo menos fazem com que ela não esteja sem escoras no ser. Finalmente, não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus camaradas ou com aqueles que ele ama e sob cujo olhar ele vive. [...]. E sem dúvida é o indivíduo, em sua prisão, quem revivifica a cada dia esses fantasmas, eles lhe restituem a força que ele lhes deu, mas, reciprocamente, se ele se envolveu nesta ação, se ele ligou a estes camaradas ou aderiu a esta moral, é porque a situação histórica, os camaradas, o mundo ao seu redor, parecem esperar dele aquela conduta. Assim, poderíamos continuar sem fim a 29 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 análise. Escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe. A escolha que fazemos de nossa vida sempre tem lugar sobre a base de um certo dado. Minha liberdade pode desviar minha vida de sua direção espontânea, mas por uma série de deslizamentos, primeiramente esposando-a, e não por alguma criação absoluta. Todas as explicações de minha conduta por meu passado, meu temperamento, meu ambiente são, portanto, verdadeiras, sob a condição de que os consideremos não como contribuições separáveis, mas como momentos de meu ser total do qual é-me permitido explicar o sentido em diferentes direções, sem que alguma vez se possa dizer se sou eu quem lhes dá seu sentido ou se o recebo deles. Sou uma estrutura psicológica e histórica. Com a existência recebi uma maneira de existir, um estilo. Todos os meus pensamentos e minhas ações estão em relação com esta estrutura, e mesmo o pensamento de um filósofo não é senão uma maneira de explicitar seu poder sobre o mundo, aquilo que ele é. E, todavia, sou livre, não a despeito ou aquém dessas motivações, mas por seu meio, pois esta vida significante, esta certa significação da natureza e da história que sou eu, não limita meu acesso ao mundo, ao contrário, ela é meu meio de comunicar-me com ele. É sendo sem restrições nem reservas aquilo que sou presentemente que tenho oportunidade de progredir, é vivendo meu tempo que posso compreender os outros tempos, é me entranhando no presente e no mundo, assumindo resolutamente aquilo que sou por acaso, querendo aquilo que quero, fazendo aquilo que faço que posso ir além. Só posso deixar a liberdade escapar se procuro ultrapassar minha situação natural e social recusando-me a em primeiro lugar assumi-la, em vez de, através dela, encontrar o mundo natural e humano”. Fonte: Merleau-Ponty (1999, p. 608-611). ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 30 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA No que diz respeito à noção cristã de liberdade, é preciso esclarecer que ela não se fundamenta em nenhuma das visões aqui apresentadas. Ela é entendida a partir de um ponto de vista soteriológico, ou seja, por meio da salvação oferecida por Deus aos seres humanos na pessoa de Cristo. É Nele que a pessoa encontra seus sentidos e valores e é chamada a viver de forma responsável em busca da santidade. Quem desenvolveu uma vasta apreciação sobre o tema da liberdade foi São Paulo, em suas epístolas. Para ele, a existência cristã nada mais é que uma vida de profunda experiência da liberdade. O cristão liberto por Jesus, não apenas das amarras do pecado e da morte, mas também da escravidão da lei, é chamado a viver uma vida em Cristo, que tem como pilares a busca da santidade e o serviço à justiça (Rm 6, 18-23). Neste sentido, a liberdade não pode ser confundida com autodeterminação a partir da qual o homem estabelece o que é lícito ou não fazer. A liberdade não pode se tornar, segundo São Paulo, argumento para viver segundo a carne e segundo os vícios (Rm 6, 15). “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma. Os alimentos são para o ventre e o ventrepara os alimentos, e Deus destruirá aqueles e este. Mas o corpo não é para a fornicação e, sim, para o Senhor, e o Senhor é para o corpo” (1 Cor. 6, 12-13). Esta noção, própria da teologia paulina, influenciou demasiadamente Santo Agostinho. Este, a partir das noções de liberdade e livre-arbítrio, salienta que o ser humano tem a possibilidade de realizar suas escolhas. Estas o levarão a realizar atitudes boas (segundo a vontade de Deus) ou más (que divergem da vontade de Deus). Contudo, a pessoa somente será livre à medida que suas escolhas forem afastando ela do mal, proveniente do pecado, e se aproximando de Deus por meio da vivência da graça (TOMASEVICIUS, 2006, p. 1084). 31 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 O livre-arbítrio deve ser entendido como a possibilidade que o ser humano tem de livre escolha (entre o bem e o mal). Já a liberdade é aquela condição de escolha na qual o ser humano vivencia a presença e o dom da graça de Deus. A graça deve ser entendida como fruto da misericórdia de Deus e que possibilita a força necessária para a vivência do bem. Razão prática, como a capacidade humana de pensar e raciocinar tendo em vista que está voltada para o agir. Assim, na concepção cristã a liberdade não é vista como um fim em si mesma e nem tendo um valor absoluto, mas sua vivência tem um duplo objetivo: a promoção da caridade (1 Cor. 9, 19) e da justiça (Rm 6, 18) a partir dos princípios do Evangelho. Consciência Moral Nas diferentes circunstâncias que a vida apresenta somos impelidos a fazer escolhas. Estas devem estar fundamentadas em um agir autônomo, livre e responsável. Para que isto seja possível, fazemos uso da consciência moral. Mas como podemos definir a consciência moral? Para respondermos tal questão, é necessário compreender a estrutura racional do agir humano. Habermas (1989) afirma que o homem pode fazer três usos diferentes da razão prática: o uso pragmático, o uso ético e o uso moral (HABERMAS, 1989, p. 5), todavia o que determina a ação, em cada um dos três casos, é a motivação mais fundamental ou o interesse que impulsiona. Uso pragmático, o uso ético e o uso moral. 32 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA O primeiro tipo de uso define o agir orientado através de fins, do resultado que se deseja obter. Esse tem como princípio a eficácia e procura sanar a necessidade de um indivíduo, ou um grupo pequeno inserido em uma coletividade. O uso ético da razão prática é aquele que busca o que é considerado bom para toda uma sociedade, as ações visam ao bem-estar de todos. Contudo, tal uso não estabelece uma ruptura com a visão individualista e egocêntrica, pois “a vida boa para mim toca também às formas de vida que nos são comuns” (HABERMAS, 1989, p. 9). Assim, a vida boa é definida pelo grupo social ao qual o indivíduo pertence, trata-se de um ideal coletivo ancorado na tradição, ao qual é necessário integrar-se. O terceiro tipo de uso é o moral, que está em contraposição aos dois anteriores, pois é movido pela pergunta: será que determinada realidade é moralmente certa? Rompe-se com as tradições e com os valores e surge a pergunta se determinada ação é justa. É um tipo de atitude que busca horizontes de expectativas diferentes, pois analisa a situação posta procurando discernir o que é justo e benéfico. Assim, podemos afirmar que a consciência moral é a estrutura a partir da qual as relações humanas se estabelecem. Ela está relacionada: • A um processo avaliativo das atitudes humanas; • À tomada de decisão frente às situações que a vida nos apresenta, e; • À responsabilidade sobre as consequências de nossas ações. Entretanto, esta estrutura própria da consciência moral não é algo inato, mas vai sendo desenvolvido pelo ser humano. Segundo Pighin (2005), este processo de elaboração ocorre a partir de três dinamismos psicossociais. O primeiro deles é a identificação, por meio da qual a pessoa se reconhece como um ser capaz de fazer avaliações, julgamentos e escolhas frente às diferentes conjunturas que a vida apresenta. Por meio deste dinamismo é que o sujeito pode estabelecer um processo de rejeição das avaliações e ações que não estejam relacionadas a si mesmo, a suas escolhas autônomas, mas que tenham sido tomadas ou impostas por outrem. Estas duas dinâmicas proporcionam a idealização, ou seja, a capacidade de distinguir entre o seu estado de vida atual e o que é chamado a realizar por meio de suas escolhas pessoais. 33 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Um dos pensadores que ao estudar o processo de desenvolvimento cognitivo da criança nos ajuda a compreender também o de consciência moral é Piaget (1896-1980). Segundo ele, a criança possui quatro fases de desenvolvimento: o sensório-motor (de 0 a 2 anos de idade), o pré-operatório (de 2 a 7 anos de idade), de operações concretas (de 7 a 12 anos) e o de operações formais (a partir dos 12 anos). Em cada um destes estágios encontramos a presença dos três dinamismos sociais. Assim, a partir da proposta de Piaget (2012), podemos afirmar que a con- sciência moral é desenvolvida por meio de quatro fases: 1) Anomia: neste período as escolhas morais estão diretamente ligadas ao comportamento pulsional do que lhe dá prazer ou causa desconforto. 2) Heteronomia: fase em que acontece o acolhimento paulatino das normas morais, sem ainda um processo de questionamento do mesmo. A pessoa sabe que a transgressão da norma moral irá acarretar uma punição e que a conformidade de sua vida com a mesma pode lhe proporcionar benefícios. 3) Socionomia: o comportamento da pessoa se caracteriza a partir da pertença dela a um determinado grupo social, representado principalmente pela família. O estabelecimento de normas específicas auxilia na percepção de que a moral não está relacionada apenas às ações individuais, mas também coletivas. 4) Autonomia: é o período em que as convicções morais que foram sendo desenvolvidas são assumidas pelo indivíduo, tornando-se próprias. Suas ações e escolhas estarão fundamentadas em suas próprias convicções e vividas de maneira coerente. É importante salientar que este esquema proposto por Piaget (2012) se refere a um processo ideal de formação da consciência moral. Muitas vezes, as pessoas, mesmo adultas, ainda permanecem em estado de heteronomia moral, ou seja, suas ações e escolhas expressam apenas a mera obediência às normas morais. 34 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Um exemplo clássico de dilema moral foi o famoso caso dos sobreviventes de um acidente aéreo em 1972 nos Andes. Estes, para sobreviverem às condições inóspitas da região onde estavam, tiveram que optar por comer a carne humana de seus amigos mortos que estavam enterrados na neve. Com a transgressão moral da antropofagia, eles conseguiram que um número de pessoas sobrevivesse até encontrar ajuda 69 dias após o acidente. Caso você queira conhecer detalhes do exemplo dado, acesse o site: <http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/ aviao-caiu-nos-andes-sobreviventes-precisaram-comer-os-mortos- em-1972-11124788>. Os dilemas morais não proporcionam a relativização da moral, mas demonstram a cada um de nós a importância do processo de discernimento frente às circunstâncias. Aristóteles afirmava que para isto era necessário ao homem o desenvolvimento da virtude. A virtude era definida em termos de uma escolha prudente em uma situação concreta – na qual sempre permanecia o meio entre dois extremos, o equilíbrio entre os contrários (TARNAS, 2000, p. 83). A esta sabedoria prática Aristóteles dava o nome de phrônesis. É importante salientar que a partir da vivência autônoma da consciência moral, a pessoa tem a possibilidade de identificar os conflitos existentes entre as circunstâncias que se apresentam e as normas morais. É a partir do exercício autônomo que a pessoa identifica aquilo que denominamos dilemas morais. Estes podem ser entendidos, segundo Moser (1996),como situações particulares que, em busca de evitar um mal ou solucionar um impasse, acabamos flexibilizando ou transgredindo uma norma moral. http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/aviao-caiu-nos-andes-sobreviventes-precisaram-comer-os-mortos-em-1972-11124788 http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/aviao-caiu-nos-andes-sobreviventes-precisaram-comer-os-mortos-em-1972-11124788 http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/aviao-caiu-nos-andes-sobreviventes-precisaram-comer-os-mortos-em-1972-11124788 35 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Phrônesis: “disposição prática acompanhada de uma razão veraz, em torno do que é bem e mal para o homem” (ARISTÓTELES, 1992, VI, 1140 b). A phrônesis ajudaria o ser humano para que ele direcione seu agir para os verdadeiros fins, no sentido de apontar os meios mais saudáveis para alcançá-los. Assim, por meio da phrônesis, ou seja, de uma capacidade de integrar o conhecimento com a vivência cotidiana, a pessoa se torna capaz de refletir sobre o dia a dia, e encontrar o justo meio nas ações. Sendo este o processo de reflexão da consciência moral: de compreender seus valores e começar a detectar o que seria justo. Atividade de Estudos: 1) A partir do que refletimos sobre a formação da consciência moral e ainda sobre sua importância frente aos dilemas morais, leia o fragmento do texto: O retorno do estágio 6, de Lawrence Kohlberg, e identifique o motivo pelo qual o autor apresenta o diálogo como fundamental para a resolução dos dilemas morais. O dilema apresenta uma situação na qual há três pessoas em um bote e com quase nenhuma chance de sobrevivência a não ser que uma dessas pessoas saia dele. As três pessoas são o capitão, que é quem sabe navegar, um homem forte e jovem e um velho fraco com o ombro quebrado e que não pode remar eficientemente. Nenhum deles quer saltar do bote espontaneamente. Parece haver três escolhas neste dilema. A primeira é uma solução utilitária extrema, baseada na chance de salvar mais vidas. Essa solução exige que o capitão mande o velho saltar do bote. A segunda solução, que pode ser considerada mais justa, seria tirar a sorte para ver quem deve pular. A terceira solução é aquela na qual ninguém pula do bote, caso em que há uma grande probabilidade de todos virem a morrer. Em resposta a esse dilema, o juiz D. diz: Penso que eles realmente deveriam ter tirado a sorte. Esse método, pelo menos, seria consistente com minha convicção de igualdade entre os 36 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA seres humanos. Nenhuma vida é melhor que a outra e não há razão no mundo para dois tirarem a vida de outro. E o motivo é exatamente o mesmo a que venho me referindo, isto é, o respeito pela dignidade da vida humana. [...] O juiz D. resolve o dilema do bote salva-vidas com o princípio de respeito pelas pessoas manifestado na opção de tirar a sorte. No entanto, ele não interpreta esse princípio como a obrigatoriedade de obter a concordância por meio do diálogo. [...]. Ao contrário, a concepção de Joana de respeito pelas pessoas a leva a procurar o acordo por meio do diálogo a ponto de manter o diálogo, na situação do bote salva-vidas, embora, nessas condições, fique muito ameaçada a probabilidade de sobrevivência de todos. [...] – como ela afirma – acho que nessa situação é difícil acreditar que ninguém tomaria a decisão de pular do barco, mas se não o fizerem, todos irão morrer. Quero dizer que os três estão na situação juntos, devendo haver uma decisão cooperativa ou nada. Enquanto afirmamos que a disposição de entrar em diálogo é uma parte necessária do ponto de vista moral, também questionamos se o compromisso de Joana com a busca de acordo por meio do diálogo até que todos morram seria a solução moralmente mais correta ao dilema. [...] Frankena relaciona claramente a necessidade de diálogo com o ponto de vista moral. Entretanto, também está consciente do fato de que o diálogo pode ser interrompido. Neste caso, Frankena afirma que o pensador moral maduro não exige um consenso real, mas um consenso ideal. Como ele diz: ‘Aqui entra a autonomia do agente moral – ele deve adotar o ponto de vista moral exigindo um consenso eventual com outros que fazem o mesmo, porém ele próprio deve julgar (mesma que se engane)’. Fonte: Kohlberg (2002, p. 108-112). ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 37 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Os Fundamentos Bíblicos da Moral Cristã Ao abordarmos a questão da moral nas Sagradas Escrituras, é importante salientar alguns aspectos basilares. A moral deve ser entendida não apenas como um conjunto de normas e regras, mas a partir do princípio da revelação de Deus ao ser humano, pois, biblicamente, os dois princípios fundantes do discurso sobre a moral são: a criação e a aliança. A primeira como aquela que propicia o dom da vida, e a segunda que oferece uma relação íntima do ser humano com Deus. “O Deus da Bíblia não revela antes de tudo um código, mas “a si mesmo” no seu mistério e “o mistério da sua vontade” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 4). No coração da Primeira Aliança, o “caminho” designa ao mesmo tempo um percurso de êxodo (o evento libertador primordial) e um conteúdo didático, a Torá. No coração da Nova Aliança, Jesus diz de si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Condensa, portanto, na sua pessoa e na sua missão, toda a dinâmica libertadora de Deus e também, em certo sentido, toda a moral, concebida teologicamente como dom de Deus, isto é, caminho para chegar à vida eterna, à intimidade total com Ele. Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 5). Nesta perspectiva é que podemos falar de uma moral revelada, pois a lei moral presente nas Escrituras é parte deste processo de revelação e se constitui um caminho por meio do qual a criatura se aproxima do Criador. Nesta perspectiva, ao pensarmos o conteúdo moral apresentado na Sagrada Escritura, temos que ter o cuidado necessário para não o segmentar. Os dois testamentos narram a história da revelação. 38 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA A partir destes pressupostos, vamos nos aproximar das Escrituras buscando compreender a moral como um caminho para o relacionamento com Deus. Pois, “relação entre dom divino e resposta humana, entre ação antecedente de Deus e tarefa do homem, é determinante para a Bíblia e para a moral nela revelada” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 7). Assim, ao falarmos da moral no Antigo Testamento, temos que ter em mente, em linhas gerais, que o homem justo é aquele que tem e cultiva uma relação de Aliança e que caminha junto a Deus. O homem injusto e pecador, por sua vez, é considerado como aquele que rompe esta Aliança buscando, a partir da livre escolha, fundamentar suas ações. Isto é verificável a partir da descrição dos diferentes personagens veterotestamentários. Adão e Eva, por exemplo, ao desobedecerem a Deus e romperem a aliança que havia sido firmada, desviam seu caminho do caminho divino (Gn. 3, 8). Abraão é considerado como um homem justo, tendo em vista que abandona sua terra e assume o caminho que Deus lhe mostra rumo à terra prometida (Gn. 12,1). Contudo, nos diferentes conjuntos de escritos do Antigo Testamento, encontramos diferentes formas de abordagem do tema da moral: fundamentada na lei, nos livros proféticos e nos livros sapienciais. No que diz respeito à primeira abordagem, a da lei, presente nos escritos do Pentateuco e dos Livros Históricos, podemos salientar as seguintes características: o contexto é o da Aliança de Deus com seu povo. O conteúdo moral possui formulaçõesum pouco diferentes nos diversos livros, tendo principalmente como influência o estilo de vida dos diferentes povos. Geralmente, este conteúdo é expresso em caráter de proibição, e estas não se limitam a prescrições exteriores, mas principalmente estão relacionadas à dimensão interior do homem. Para Pighin (2005, p. 93), estas características dão à conduta moral pressuposta na lei alguns significados essenciais: • A moral é entendida como dom de Deus para alcançar a salvação; • A vida moral é uma resposta do humano à ação salvífica de Deus; • Entendida como empenho social, a moral é que norteia a vida do povo de Israel frente à vivência da aliança; • A moral é compreendida como uma escolha de liberdade para o homem e para a comunidade; • A moral é realizada como obediência a Deus e não como uma imposição exterior abstrata; Vamos nos aproximar das Escrituras buscando compreender a moral como um caminho para o relacionamento com Deus. 39 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 • A moral tem um valor histórico, aberto à possibilidade de modificação, mas sempre no respeito à fidelidade a Deus na história. Atividade de Estudos: 1) Observando as características da moral fundamentadas na lei, compreendemos que esta não se baseia em simples cumprimento de preceitos, mas, de forma mais ampla, a lei é entendida como um caminho que conduz a Deus. Assim, leia o fragmento do documento Bíblia e Moral, da Pontifícia Comissão Bíblica, e aponte como o texto destaca a importância da Aliança para a vida do povo. De que maneira expressou Israel, na sua literatura sagrada, essa aliança única entre o povo e Deus, esse Deus que desde o início o acompanha, o liberta, se dá a ele e o recolhe? Das alianças humanas à aliança teológica Num dado momento, difícil de determinar com exatidão, um conceito interpretativo maior (abrangente) impôs-se aos teólogos de Israel: a noção de aliança. O tema tornou-se tão importante que determinou, desde o início, ao menos retrospectivamente, a concepção das relações entre Deus e o seu povo privilegiado. De fato, no relato bíblico, o evento histórico fundamental e fundador é quase imediatamente seguido por uma conclusão de aliança: “no terceiro mês depois da saída do Egito” (Ex 19,1), respectivamente símbolo de um tempo divino e símbolo de um início. Isso quer dizer: o evento fundamental e fundador inclui, no seu alcance meta-histórico, a estipulação da aliança no Sinai a tal ponto que, da perspectiva de uma teologia bíblica diacrônica, o evento primordial será descrito nos termos de êxodo-e-aliança. Além disso, esse conceito interpretativo, que vem aplicado aos eventos da saída do Egito, estende-se retrospectivamente ao passado em forma de etiologia. De fato, encontra-se no Gênesis. A ideia da aliança é utilizada para descrever o relacionamento entre o SENHOR Deus e Abraão, o antepassado (Gn 15; 17). 40 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Antes, num passado ainda mais longínquo e misterioso, entre o SENHOR Deus e os seres vivos que sobreviveram ao dilúvio no “tempo” de Noé, o patriarca (Gn 9, 8-17). No antigo Próximo e Médio Oriente as alianças entre contraentes humanos existiam em forma de tratados, convenções, contratos, matrimônios, e até em pactos de amizade. E deuses protetores funcionavam como testemunhas e fiadores no processo da estipulação dessas alianças humanas. Também a Bíblia recorda alianças desse gênero. Porém, até prova em contrário – e nenhum documento arqueológico até agora encontrado torna inválida essa constatação – a transposição teológica da ideia da aliança é uma originalidade bíblica: só aí se encontra o conceito de uma aliança propriamente dita entre um contraente divino e um ou mais contraentes humanos. A aliança entre contraentes desiguais É certo que Israel, nas origens, não podia sequer sonhar em exprimir a sua relação privilegiada com Deus, o Totalmente Outro, o Transcendente, o Onipotente, segundo um esquema de igualdade, horizontal: Deus ↔ Israel No momento em que se introduziu a ideia teológica da aliança, espontaneamente se pôde pensar só nas alianças entre contraentes desiguais, bem conhecidas na praxe diplomática e jurídica do antigo Próximo Oriente extrabíblico: os famosos tratados de vassalagem É difícil excluir completamente o influxo da ideologia política da vassalagem como ponto concreto de referência para a compreensão da aliança teológica. A intuição de um contraente divino que toma e preserva a iniciativa de um termo ao outro do processo da aliança constitui a perspectiva de fundo de quase todos os textos maiores da aliança no Antigo Testamento. Deus ↕ Israel 41 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 ‘Nesse tipo de relacionamento entre os contraentes, o soberano empenha-se para com o vassalo e empenha o vassalo para consigo. Noutras palavras, ele obriga-se para com o vassalo do mesmo modo como obriga o vassalo de sua parte. No processo das estipulações da aliança, Ele é o único que se exprime: o vassalo, nessa etapa, permanece calado. Esse duplo movimento exprime-se, em campo teológico, através de dois termos principais: a Graça (o SENHOR empenha-se a si mesmo) e a Lei (o SENHOR empenha o povo que se torna sua “propriedade”: Ex 19,5-6). Nessa moldura teológica, a graça pode ser definida como o dom (incondicionado, em certos textos) que Deus faz de si mesmo. E a Lei, como o dom que Deus faz à coletividade, de um meio, uma via, um “caminho” ético-cultual que permite ao ser humano entrar e permanecer “em situação de aliança. Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 7). _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ Nesta perspectiva da Aliança se insere a questão dos dez mandamentos. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, em seu parágrafo 2067, “os dez mandamentos enunciam as exigências do amor de Deus e do próximo. Os três primeiros referem-se mais ao amor de Deus: os outros sete, ao amor do próximo”. Contudo, apesar desta diferenciação, não podemos tomar o decálogo como proposições separadas umas das outras. Há uma unidade indissociável na qual cada um dos mandamentos se completa e se esclarece mutuamente (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1999, p. 2069). 42 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA O Decálogo compreende-se, antes de mais nada, no contexto do Êxodo que é o grande acontecimento libertador de Deus, no centro da Antiga Aliança. Quer sejam formulados como preceitos negativos ou interdições, quer como mandamentos positivos (por exemplo: “Honra teu pai e tua mãe”), as “dez palavras” indicam as condições duma vida liberta da escravidão do pecado. Fonte: Catecismo da Igreja Católica (1999, p. 2057). A abordagem moral realizada nos livros proféticos, por sua vez, não traz elementos novos à compreensão àquela feita por meio da lei. Mas, como portadores da mensagem de Deus, os profetas acabam por incidir na conduta moral do povo. Isto ocorre em situações de correção de conduta. Entre os temas tratados encontramos a defesa do culto a Deus não apenas como uma obrigação moral, mas uma celebração da própria vida da pessoa. A necessidade da vivência dos deveres sociais, como o apoio aos mais fracos e vulneráveis. Mas, principalmente, a recusa de uma obediência formalista e exterior aos preceitos da lei, ressaltando principalmente a necessidade de uma interiorização destes preceitos, impedindouma vivência meramente imperativa e promovendo uma vivência responsável. A abordagem moral realizada nos livros proféticos. O justo comportamento moral é um tema fundamental em todos os profetas, mas não o tratam jamais por si mesmo nem de modo sistemático. Eles ocupam-se da ética sempre em relação com o fato de que Deus conduz Israel através da história. [...] Sobre a base da presença de Deus na história de Israel, os profetas confrontaram o povo com o seu efetivo modo de viver, que estava em plena contradição com a “Lei” de Deus. Essa regra divina para a conduta de Israel continha toda sorte de normas e costumes, provenientes da jurisdição tribal e local, das tradições familiares, do ensinamento sacerdotal e da instrução sapiencial. A pregação moral dos profetas põe o acento sobre o conceito social de ‘justiça’. Os profetas confrontaram a sociedade israelita com esse modelo humano e divino em todos os aspectos. Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 36-37). 43 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 Por fim, a abordagem moral realizada nos Livros Sapienciais difere das anteriores, pois seu conteúdo pode ser considerado como amplo, abordando diversos aspectos da vida e a necessidade do cultivo da modéstia e da sabedoria. Por este motivo, encontramos em poucas passagens uma reflexão fundamentada no interdito, sua estrutura argumentativa proporciona o oferecimento de conselhos, e o estabelecimento de máximas que promovem a deliberação sobre os aspectos da existência. Em especial, nos Salmos percebemos uma abordagem da condição humana como uma criatura que busca a Deus ou por Ele é buscado, denotando a fragilidade da existência e a necessidade humana do Criador. A abordagem moral realizada nos Livros Sapienciais. O Criador assinalou uma posição especial ao ser humano. Não obstante a fragilidade e a caducidade humanas, o salmista afirma com assombro: “Contudo, tu o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste. Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés (Sl 8, 6-7). “Glória” e “honra” são atributos do rei: mediante eles vem atribuída ao ser humano uma posição régia na criação de Deus. Esse “status” torna o ser humano próximo de Deus, o qual é sobremaneira caracterizado por “glória” e “honra” (cf. Sl 29,1: Sl 104, 1), e o coloca, ao homem, acima do restante da criação. Chama-o a governar sobre o mundo criado, mas com responsabilidade e de modo sábio e benévolo, características do reino do próprio Criador. Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 9). Outra característica importante é que a estrutura narrativa não fundamenta sua argumentação primeiramente na Palavra de Deus, mas nas circunstâncias próprias da vida, do bom senso e buscando gerar uma avaliação sobre a viabilidade das ações. Isto tem como objetivo a busca de uma vida equilibrada, a partir do relacionamento com Deus que proporciona a realização do ser humano. 44 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA Escopo dos livros sapienciais é ensinar o justo comportamento às pessoas. Por isso, constituem uma manifestação importante da ética bíblica. Alguns são mais determinados pela experiência humana (por exemplo, o livro dos Provérbios) e pela reflexão sobre a condição humana, constituindo um nexo precioso com a sabedoria de outros povos, enquanto outros se encontram num relacionamento mais estreito com a Aliança e com a Torá. Ao primeiro grupo pertence o livro de Coélet; ao segundo, o livro do Sirácida. Destes dois livros nos ocupamos a título de exemplo. Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 39). No Novo Testamento, as questões relativas à moral continuam a ser entendidas a partir do relacionamento do humano com o divino. Contudo, a partir da pessoa de Jesus, de sua vida e pregação, os ensinamentos morais passam por um processo de reinterpretação. Antes de abordarmos especificamente este assunto, é importante pontuar que o Jesus histórico conformava sua vida e existência às normativas próprias da sociedade judaica. Era assíduo frequentador da sinagoga, realizava várias peregrinações a Jerusalém, salientava a importância da vivência dos mandamentos como caminho para se encontrar a vida eterna. Entretanto, em várias passagens dos Evangelhos sinóticos encontramos Jesus com um comportamento moral que não apenas contrariava a Lei, mas apresentava uma nova perspectiva para a vivência dessa. Um dos pontos mais polêmicos eram atividades de Jesus no dia de sábado, considerado pelos judeus como dia sagrado e no qual nenhuma atividade deveria ser realizada. Mas em diversas passagens encontramos os doentes sendo curados e a palavra anunciada. Os Evangelhos sinóticos são os de Mateus, Marcos e Lucas, que possuem em comum uma certa cronologia da vida, pregação, morte e ressureição de Jesus. 45 Introdução à Ética Cristã Capítulo 1 “Ele estava ensinando numa das sinagogas, no sábado. E havia ali uma mulher que tinha um espírito de fraqueza havia 18 anos; ela estava encurvada e não conseguia de modo algum se endireitar. Quando a viu, Jesus lhe dirigiu a palavra, dizendo: “Mulher, você está livre da sua fraqueza”. E ele pôs as mãos sobre ela, e ela se endireitou instantaneamente e começou a glorificar a Deus. Em vista disso, porém, o presidente da sinagoga, indignado porque Jesus havia feito a cura no sábado, disse à multidão: “Há seis dias em que se deve trabalhar; portanto, venham nesses dias e sejam curados, e não no dia de sábado”. O Senhor, porém, respondeu-lhe: “Hipócritas! Cada um de vocês, no sábado, não desata o seu touro ou o seu jumento da baia e o leva para beber água? Não deveria esta mulher, que é filha de Abraão e a quem Satanás manteve presa por 18 anos, ser libertada dessa prisão no dia de sábado?” Quando ele disse isso, todos os seus opositores ficaram envergonhados” (Lc. 13, 10-17). “E dizia-lhes: o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; e para dizer tudo, o Filho do homem é senhor também do sábado” (Mc. 2, 27-28). Nesta perspectiva Jesus apresenta uma nova perspectiva moral, que não se fundamenta na negação da antiga Lei, ou na formação de um novo estatuto normativo, mas, sim, dar-lhes seu pleno cumprimento (Mt. 5, 17). Em especial, no Evangelho de Mateus encontramos várias ocasiões nas quais Jesus se posicionava frente à lei de Moisés buscando dar-lhe uma nova interpretação. Dentre estas, em especial, vamos abordar a que Jesus trata do tema do divórcio. É importante salientarmos que na lei mosaica o divórcio é permitido (Dt. 24, 1). Quando interpelado pelos fariseus sobre se tal atitude é lícita, Jesus se opõe firmemente a tal prática, afirmando que ela foi permitida por Moisés por causa da dureza do coração humano. E evocando a narração da criação, ele salienta que esta prática nem sempre foi assim. 46 TEOLOGIA MORAL E ÉTICA “Após esses discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para a Judeia, além do Jordão. Uma grande multidão o seguiu e ele curou seus doentes. Os fariseus vieram perguntar-lhe para pô-lo à prova: É permitido a um homem rejeitar sua mulher por um motivo qualquer? Respondeu-lhes Jesus: Não lestes que o Criador, no começo, fez o homem e a mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne? Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu. Disseram-lhe eles: Por que, então, Moisés ordenou dar um documento de divórcio à mulher, ao rejeitá-la? Jesus respondeu- lhes: É por causa da dureza de vosso coração que Moisés havia tolerado o repúdio das mulheres; mas no começo não foi assim. Ora, eu vos declaro que todo aquele que rejeita sua mulher, exceto no caso de matrimônio falso, e desposa uma outra, comete adultério. E aquele que desposa uma mulher rejeitada, comete também adultério” (Mt. 19, 1-9). Nesta perspectiva, percebemos que a proposta moral contida
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