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Os Sofrimentos emocionais agravados e o diagnóstico “borderline” Estagiário: Bruna Sales Souto ● A psicopatologia e suas questões A palavra “diagnóstico” significa capacidade de distinguir, de discernir, em psicopatologia, essa palavra refere-se à identificação da existência de sofrimentos mentais, transtornos e patologias psíquicas vividas pelos seres humanos. Sabe-se que o “normal” é um critério de validação social que representa consenso de alguns grupos em determinados posicionamentos sociais, assim, no sistema social, econômicos e ideológicos que vivemos, os critérios de normas sociais e de comportamento parecem bastar para qualificar uma pessoa como saudável ou disfuncional. Na Gestalt-terapia a clínica e o sentido existencial devem ser pensados em concordância, afinal, essa abordagem é fenomenológica e existencial, e portanto vemos o indivíduo como um ser singular, não buscando uma normatização e sim uma individualização do ser baseada na existência humana. Porém, a sociedade continua se baseando no antigo binômio saúde-doença, e assim, se veem aprisionados de modo irremediável à normatização das emoções, dessa forma, os profissionais da psicologia são colocados, a partir dessa ideia, em uma posição de “consertar” o que está “errado”. Em busca de sair dessa posição, a Gestalt-terapia busca dar um sentido mais coerente aos diagnósticos psicopatológicos, relacionando-os com as vivências que promovem sofrimento mais intenso na relação com o meio, aqui denominados de “sofrimentos emocionais agravados”. Estes, são situações do campo e não algo que pertence apenas a uma pessoa, ou um grupo de pessoas, ou a uma categoria. Quando eles se manifestam, a pessoa (figura), expõe as ocorrências vividas em sua interação com o meio (fundo). Assim, observando o fluxo figura-fundo, colocamos a perspectiva de uma pré-diferença. ● Violência no campo como geradora das interrupções de contato Na infância os adultos fazem por nós o que mais tarde teremos de fazer, pois dependemos destes para satisfazer todas as nossas necessidades, e essas são funções as quais afetam o campo. Quando a criança tem uma necessidade, ela a comunica ao meio da maneira que é capaz, se o cuidador não a escuta ela terá de buscar outras formas de comunicar ao meio sua necessidade para que seja atendida, assim, exite uma figura em processo de expansão e uma situação que o meio coloca como impedimento ao seu fechamento, causando uma interrupção de contato, denominada situação de emergência. As situações de emergência podem ser entendidas como a transformação do fluxo espontâneo em um fluxo adaptado às situações de impedimento que o meio impõe à criança, dessa forma, quando há uma situação de emergência, o organismo recorre a um repertório de proteção, denominado função de segurança. Assim, o organismo aliena sua parte na fronteira de contato para lidar com a emergência imposta pelo meio, fazendo com que o indivíduo entre em conflito consigo direcionando a energia para a contenção do que é necessário ao organismo e não para a sua satisfação. Com o excitamento contido, não conseguimos dispor dele para lidar com novas situações, podendo a formação figura-fundo ficar danificada nas situações de campo posteriores. A retirada, pelo meio, das possibilidades de fechamento de necessidades reais de uma pessoa constitui uma modalidade de violência, seja ela exercida de forma consciente ou não. A violência, em geral, existe em duas formas: a declarada, ou explícita, ligada principalmente às ações infligidas ao corpo físico; e a velada, ligada às ações que se referem aos afetos. Tanto uma quanto a outra agem na desconstrução do humano e assumem os mais variados formatos, (des) organizando o fundo que sustenta nossas ações no mundo; essas são vivências que também trazemos em nossa história - a qual vai qualificar nossa existência. Quando os cuidadores não respeitam a singularidade e a forma de ser da criança, exigindo que seja diferente, um ato de violência acontece, pois lhe retiram a possibilidade de se reconhecer como é. Se ela não é confirmada nos seus sentimentos, como confiará em si mesma e no mundo que a rodeia? Ainda há a violência oriunda de abusos físicos e sexuais, na qual o violentador utiliza sua força e seu poder para subjugar a criança à sua própria desorganização, deixando marcas tão profundas que lhe é negada a possibilidade de se sentir capaz de ser digna de amor. As feridas desses atos violentos são experimentadas como uma enfermidade da alma, tornando a criança desnuda, vencida, carente de dignidade e de valor. ● Sofrimentos emocionais agravados em Gestalt-Terapia. A Neurose pode ser entendida como a interrupção da função ego do self e a psicose como a interrupção da função id do self. Sua forma intermediária denomina-se transtornos pela psiquiatria, ou sofrimentos emocionais agravados. Estes compõem um caminho intermediário entre a neurose e a psicose. Um organismo preserva-se somente pelo crescimento. A autopreservação e o crescimento são pólos, porque é somente o que se preserva que pode crescer pela assimilação e é somente o que continuamente assimila a novidade que pode se preservar e não degenerar. A preservação e o crescimento são pólos indissociáveis à manutenção do que é denominado sistema self de contato no campo, portanto, na neurose, existe a impossibilidade de ocorrer a formação de uma figura gerada da experiência no aqui e agora. Além disso, no fluxo figura-fundo, a figura é uma adaptação pela vivência da ansiedade em vez do acolhimento do excitamento, portanto, não existe ajustamento criativo e sim uma adaptação ao processo de campo, já que o organismo não pode satisfazer suas necessidades genuínas no meio. Esse processo acarreta um ciclo repetitivo e, dessa forma, as vivências serão de ansiedade, medo e frustração, gerando uma insatisfação continuada na forma de estar no mundo, até que o novo possa ser vivido e novamente assimilado, atualizando e reorganizando o fundo de vivências anteriores. O fluxo é adaptado a uma figura advinda do meio, e não a uma figura aderente à necessidade originária que estava em curso. Já na psicose, trata-se da aniquilação da concretude da experiência. A concretude da experiência se refere ao fluxo dos processos de formação e fechamento de Gestalten e que a função id é a que disponibiliza a espontaneidade no fundo a partir das experiências decorrentes da assimilação do contato. Se, na interrupção da função id, a organização da situação ficou impossibilitada, o fluxo figura-fundo torna-se “inconsciente”, parece não haver sustentação na emergência das figuras que sejam inteligíveis, pelo menos para o meio. Assim, as vivências relacionais na psicose se tornam incompreensíveis, já que suas formas peculiares não atendem a um processo de compartilhamento no meio. Assim, com a interrupção dos fechamentos sem a assimilação de figuras vividas, o fundo parece conter uma construção que difere dos significados compartilhadoscom o meio, além disso, as figuras que aparecem não fazem sentido na situação em curso. Com relação aos sofrimentos emocionais agravados, consideramos que eles são uma forma de interrupção de contato estabelecida a partir de um modo fixo no repertório do fluxo figura-fundo que se repete. Quando o excitamento no campo é mobilizado, parece acionar um “mesmo” fundo, que faz emergir a “mesma” figura, acarretando as “mesmas” defesas avolumadas na relação com o meio. Com isso há um grande impedimento de que novas Gestalten sejam criadas para atualizar as existentes, exacerbando ainda mais a “mesma” forma. Isso pode vir a ocorrer devido vivências de impossibilidade relacionais que ocorrem no campo em processos continuados de impedimento que forjaram um escudo que precisou ser fixado para a sobrevivência; assim, a fixidez acaba se tornando a única forma de se relacionar com o meio. Diferentemente da cristalização na neurose, compreendemos que a repetição nos sofrimentos emocionais agravados ocorre de forma exacerbada. E mais: existe um “ponto relacional” desencadeador de um fundo específico que, quando tocado, faz emergir uma figura fixa, promovendo uma excessiva refutação à situação do aqui e agora. Esse “ponto relacional” refere-se à singularidade da historicidade de cada pessoa, porém percebemos que a forma de se defender dele é precisamente o que torna tais sofrimentos semelhantes. Na prática clínica, quando existe procura precoce de tratamento há uma maior flexibilização na fixidez, caso o meio onde a pessoa está inserida também flexibilize novas formas de percepção e relacionamento interpessoal, pode haver a retomada do fluxo figura-fundo. Constata-se que as histórias de vida das pessoas com sofrimentos emocionais agravados foram marcadas por opressão e violência emocional, física e/ou sexual em etapas muito precoces. A utilização constante de defesas torna-se imprescindível à sua integridade. Portanto, o significado que é possível dar às situações vividas é de que sempre há um perigo a ser combatido. As vivências de campo passam a ser “filtradas” pelas repetições necessárias à sobrevivência e as defesas avolumam-se e acabam por reverberar em todas as dimensões significativas da experiência. Essa dor fixada é a que será mobilizada em detrimento das outras sensações existentes. Em consequência, a figura se destaca desse fundo será a saída da dor. Aí está estabelecida a fixidez no fluxo interrompido figura-fundo, ou seja, fundo fixo- dor; figura fixa - saída da dor. Ou atacamos o meio, ou a si mesmo, ou fugimos do meio, ou de si mesmo. E como a necessidade de relacionar-se com o mundo continua em curso, quer se queira ou não, existirá um grande descompasso entre estar inserido no meio e a necessidade de se defender dele. ● Vivências de uma pessoa com sofrimentos emocionais agravados com diagnóstico borderline Borderline → pacientes que não se enquadram nem nas neuroses nem nas psicoses. As pessoas que padecem desse tipo de sofrimento parecem carecer se “pele emocional”, ou seja, a qualquer toque, a dor emocional e a reação imediata são extremas. Dessa forma, pela enorme sensibilidade e impossibilidade de cuidar de si, existe a busca de um “cuidador” constante. Seu comportamento é passivo diante do que precisa realizar, porém extremamente ativo para que o outro faça em seu lugar, e que este outro seja perfeito, o que acarreta uma decepção continuada, acionando suas defesas agressivas. Essa é a posição de uma criança perante o mundo; na realidade, esses pacientes são crianças no corpo de adultos. Pela instabilidade emocional que parece tocar todas as esferas de sua vida, a convivência com eles é delicada: o tempo todo parecemos “pisar em ovos”. A instabilidade, a impulsividade a grande inconstância emocional que chegam ao campo provocam inúmeras dificuldades e tensões. O estabelecimento de limites de forma firme e afetiva torna-se imprescindível, pois os limites são testados o tempo todo; só assim é possível a percepção de que a diferenciação não torna inviável uma relação. Nesses momentos, a relação terapêutica é fundamental para promover apoio e estabilidade; sobretudo em situações de crise extrema, é necessário centrar-se na concretude as ocorrências que são trazidas à terapia, discriminando as ações efetuadas, os sentimentos que não podem ser tolerados e suas consequencias reais e imaginadas. É necessário disponibilizar suporte para atravessar as crises sem que haja danos irreparáveis, pois talvez algum ato cometido, mesmo sem a séria intenção de cometer suicídio, acabe atingindo esse propósito. Também é importante ressaltar que nos sofrimentos emocionais agravados o trabalho com a rede de apoio básica torna-se fundamental, pois é necessário que haja suporte fora da relação terapêutica. ● Alguns aspectos importantes para o psicoterapeuta 1. É fundamental estar aware de si, pois o cliente é um “radar” de emoções; 2. ter disponibilidade para confrontar seus “piores” sentimentos, que sem dúvida estarão presentes nos atendimentos; 3. ter limites claros e presentes; 4. disponibilizar-se para uma relação que permita que o cliente se reconheça e seja apreciado como uma pessoa digna de afeto, mesmo com todas as dificuldades que traz para a relação; 5. dar permissão ao cliente para separar-se e diferenciar-se com a finalidade de reativar seu processo de crescimento; 6. auxiliá-lo a criar novos comportamentos nos momentos mais significativos de dor e desespero; 7. ter firmeza para trabalhar com e na rede de apoio básica do cliente, apesar das dificuldades que se apresentam; 8. é necessário dispor de afeto, firmeza e uma alta dose de paciência. Darmo-nos conta de que fomos/somos violentados pode evitar que entremos no lugar de violentadores ao projetar no outro um lugar a que ele precisa chegar, de querer tirá-lo de suas dores tentando modificá-las ou retirá-las.
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