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FABIANA MARION SPENGLER GILMAR ANTONIO BEDIN (Organizadores) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO Rembrandt. Meditar Filosofal. c. 1631. Óleo sobre madeira. Louvre, Paris, França. ISBN 978-85-86265-54-9 Multideia Editora Ltda. Alameda Princesa Izabel, 2.215 80730-080 Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 editorial@multideiaeditora.com.br Conselho Editorial Coordenação editorial e revisão: Fátima Beghetto Projeto gráfico e capa: Sônia Maria Borba Spengler, Fabiana Marion (org.) S747 Acesso à justiça, direitos humanos & mediação [recurso eletrônico] / organização de Fabiana Marion Spengler, Gilmar Antonio Bedin – Curitiba: Multideia, 2013. 260p.; 23cm ISBN 978-85-86265-54-9 (VERSÃO ELETRÔNICA) 1. Acesso à justiça. 2. Direitos humanos. I. Bedin, Gilmar Antonio (org.). II. Título. CDD 340.1(22.ed) CDU 340 É de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos. Autorizamos a reprodução dos conceitos aqui emitidos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98. CPI-BRASIL. Catalogação na fonte Marli Marlene M. da Costa (Unisc) André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED) FABIANA MARION SPENGLER GILMAR ANTONIO BEDIN (Organizadores) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO Curitiba 2013 Doglas Cesar Lucas Fabiana Marion Spengler Gabriel de Lima Bedin Gilmar Antonio Bedin Giuseppe Ricotta Luciane Moessa de Souza Mauro Gaglietti Nuria Belloso Martín Sidney Guerra Colaboradores AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (financia- mento através do Edital AOE Chamada MCTI/ CNPq/FINEP nº 06/2012 – Apoio à Realização de Eventos – ARC – LINHA 1) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul – Fapergs (financiamento mediante o Auxílio à Organização de Evento Científico, Tecnológico, Artístico e Cultural – AOE) que possibilitaram a realização do I Seminário Internacional de Acesso à Justiça, Direitos Humanos e Mediação, bem como a publicação dos textos lá debatidos, na forma do presente livro. Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o por- teiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O ho- mem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não.” Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro não se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos portei- ros. De sala para sala, porém, existem porteiros, cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro”. O homem do campo não esperava tais dificulda- des: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um ban- quinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e can- sa o porteiro com os seus pedidos. Muitas vezes, o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios. Pergunta-lhe a respeito da sua terra e de muitas outras coisas, mas são per- guntas indiferentes, como as que costumam fazer os grandes senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado para a via- gem com muitas coisas, lança mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas sempre dizendo: “Eu só aceito para você não achar que deixou de fazer alguma coisa”. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta o acaso in- feliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o portei- ro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está escurecendo em volta ou se apenas os olhos o enganam. Contudo, agora reconhece no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tem- po de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem. “O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é insaciável.” “Todos aspiram à lei”, diz o homem. “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”. (“O Processo” – Franz Kafka) PREFÁCIO A crise das instituições, especialmente do Judiciário1, é a praga do Estado contemporâneo2. A obstrução das vias de acesso à justiça, problema cada vez mais crescente nos países da América Latina e na Europa, promove um distanciamento cada vez maior entre o Poder Judiciário e a popu- lação. Em diferentes países, a crise do Estado-jurisdição se fortale- ce com uma instituição burocrática e lenta, desacreditada pelo povo e que representa na verdade um convite à demanda, potencializando os conflitos. O marcante crescimento do acesso à justiça, que evoluiu con- juntamente com a passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno, permitiu que diferentes grupos sociais buscassem meios eficazes de tutela para a solução dos seus conflitos. Naquela época em que prevalecia como máxima dominante o laissez faire, todas as pessoas eram formalmente presumidas iguais e os me- canismos de acesso à justiça eram criados sem preocupação com sua eficiência prática ou efetiva. Assim, partindo da ideia de egalité, um dos marcos da Revo- lução Francesa, o Estado não deveria intervir nas disputas, perma- necendo passivo em relação à incapacidade que muitas pessoas têm de utilizar plenamente a Justiça. Esse procedimento adotado para a 1 “[...] se, dentre outras virtudes aproximou-se o jurisdicionado e o cliente dos serviços jurisdicionais do Judiciário, nem por isso o princípio do acesso ao Judiciário deve ser sobrevalorizado de tal forma que inviabilize a própria prestação jurisdicional”. (TAVARES, André Ramos. Tratado da arguição de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 300) 2 PINHO, Humberto Dalla Bernadina de; PAUMGARTTEN, Michele. A experiência íta- lo-brasileira no uso da mediação em resposta à crise do monopólio estatal de re- solução de conflitos e a garantia do acesso à justiça. Revista Eletrônica de Direito Processual Civil, v. VIII, p. 443-471, jul./dez. 2011. Humberto Dalla 10 solução dos litígios repercutia a filosofia essencialmente individua- lista dos direitos refletida nas “declarações de direitos”, típicas dos séculos XVIII e XIX e que assumiram a partir do século XX, um cará- ter mais coletivo. O modelo democrático moderno que se afirmou como decor- rência da renovação do “pacto social”reclamada pela filosofia política desde o século XVII, partia do estado de natureza de Locke, para justi- ficar um Estado de poderes limitados3. E, na visão liberal nascente, o conflito ocorreria sempre entre indivíduos e sempre para reivindicar direitos, de uns sobre os outros; a lei abstrata apresentar-se-ia como o parâmetro da solução deste conflito, aplicada por um juiz imparcial, e se após o julgamento hou- vesse resistência num ameaçador desafio à sociedade, o ato poderia ser reprimido, com uso inclusive da força. Verdade que a composição justa dos conflitos vem se tornando cada vez mais complexa, pois além do crescente demandismo repre- sentado pelas lides individuais, cuja solução se resume a resolver a pendência na dicotomia vencedor-vencido, a crise na prestação juris- dicional se mostra mais evidente na solução dos megaconflitos que hoje se expandem pela sociedade massificada e competitiva, mostran- do-se a solução adjudicada não raro, deficiente. Em ambos os casos, a pretensa solução se resume a resolver apenas a crise jurídica, deixando em aberto as pressupostas crises de outra natureza, as quais, por não terem sido conjuntamente dirimidas, a tendência é que retornem num momento futuro, porventura até re- crudescidas. O crescente acesso à justiça para a solução de conflitos de inte- resse em áreas socialmente impactantes evidencia que o termo juris- dição não pode mais se restringir ao clássico dizer o Direito, ou seja, não basta a garantia do acesso à justiça, mas à essa liberdade pública deve-se agregar o direito a um provimento jurisdicional idôneo a pro- duzir os efeitos práticos a que ele se preordena. Nesse contexto, a obsessiva produção de normas, muitas vezes de escassa eficiência, que é símbolo de vários ordenamentos, acaba 3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os conflitos como processo de mudança social, 2000. p. 220. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 11 abrindo uma fenda abissal entre o mundo do dever ser e o mundo efe- tivo e real do ser. E cada vez mais se inova a legislação processual e mais con- trovérsias entre os operadores jurídicos surgem, retardando o trâmi- te dos processos acumulados nos Tribunais, que, associado à falta de recursos humanos e materiais, à cultura judiciarista que resiste aos meios alternativos de resolução de conflitos, e à ineficiência das ins- tâncias administrativas em equacionar os conflitos que surgem em nossa sociedade, fazendo com que eles acabem judicializados, criam o ambiente propício para a crise que se avista, motivando um incremen- to na litigiosidade sem que o Estado tenha condições para atendê-la, ou tentando fazê-lo, responde a destempo ou de forma inconsistente. Como bem observado por Boaventura de Sousa Santos, Maria Manuel Leitão Marques e João Pedroso4, o problema do excesso legis- lativo reflete a tendência de cada povo ao posicionar suas escolhas para resolver os conflitos por meios autocompositivos ou através da adjudicação. No Brasil, embora o acesso à justiça figure entre os direitos e garantias fundamentais, é mister um reexame da expressão para que o instituto não seja minimizado à mera oferta generalizada e incondi- cionada do serviço judiciário estatal5. A cultura demandista que se instalou na sociedade brasileira, por conta de uma leitura irreal da garantia constitucional do aces- so à justiça que tanto se buscou nos últimos trinta anos, permitiu com essa oferta o desaguadouro geral e indiscriminado no Judiciário 4 “Se em certas sociedades os indivíduos e as organizações mostram uma clara prefe- rência por soluções consensuais dos litígios ou de todo modo obtidas fora do campo judicial, noutras a opção por litigar é tomada facilmente. [...] Os Estados Unidos fo- ram considerados como tendo a mais elevada propensão a litigar, configurando uma ‘sociedade litigiosa’, como lhe chamou Lieberman (1981). [...] Avançaram-se então várias razões que alimentariam tal cultura litigiosa, desde a existência de um número excessivo de advogados até o enfraquecimento dos laços comunitários e dos com- promissos de honra na gestão da vida coletiva. Segundo alguns, a propensão a litigar estaria a resultar numa enorme drenagem de recursos econômicos que de outra ma- neira poderiam ser afetos a tarefas do desenvolvimento.” (SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 30, fev. 1996, p. 48) 5 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 58. professor2 Realce Humberto Dalla 12 de toda e qualquer pretensão resistida ou insatisfeita, obrigando-o a albergar desavenças que beiram o capricho dos litigantes, como as controvérsias de mínima expressão pecuniária ou nenhuma com- plexidade jurídica, que não justificam a judicialização, podendo ser resolvidas por outros meios, perante outras instâncias, fora e além do aparato estatal. Nesse passo, para nós, o melhor modelo é aquele que admoesta as partes a procurar a solução consensual, com todas as suas forças, antes de ingressar com a demanda judicial. Não parece ser ideal a so- lução que preconiza apenas um sistema de mediação incidental muito bem aparelhado, eis que já terá havido a movimentação da máquina judiciária, quando em muitos dos casos, isto poderia ter sido evitado. Por outro lado, não concordamos com a ideia de uma mediação ou conciliação obrigatória. É da essência desses procedimentos a vo- luntariedade. Essa característica não pode ser jamais comprometida, mesmo que sob o argumento de que se trata de uma forma de educar o povo e implementar uma nova forma de política pública. Somos de opinião que as partes deveriam ter a obrigação de demonstrar ao Juízo que tentaram, de alguma forma, buscar uma so- lução consensual para o conflito. Estamos pregando aqui uma ampliação no conceito processual de interesse em agir, acolhendo a ideia da adequação, dentro do bi- nômio necessidade-utilidade, como forma de racionalizar a prestação jurisdicional e evitar a procura desnecessária pelo Poder Judiciário. Poderíamos até dizer que se trata de uma interpretação neo- constitucional do interesse em agir, que adequa essa condição ao regular exercício do direito de ação às novas concepções do Estado Democrático de Direito. Entretanto, esta é apenas uma das facetas desta visão. A ou- tra, e talvez a mais importante, seja a consciência do próprio Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não con- duz, obrigatoriamente, à intervenção em todo e qualquer conflito. Tal visão pode levar a uma dificuldade de sintonia com o princí- pio da indelegabilidade da jurisdição, na esteira de que o juiz não pode se eximir de sua função de julgar, ou seja, se um cidadão bate às portas professor2 Realce professor2 Realce professor2 Realce professor2 Realce professor2 Realce professor2 Realce ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 13 do Poder Judiciário, seu acesso não pode ser negado ou dificultado, conforme preceitua o artigo 5º, inciso XXXV, da Carta de 1988. O que deve ser esclarecido é que o fato de um jurisdicionado solicitar a prestação estatal não significa que o Poder Judiciário deva sempre e necessariamente ofertar uma resposta de índole impositi- va, limitando-se a aplicar a lei ao caso concreto. Pode ser que o juiz entenda que aquelas partes precisem ser submetidas a uma instância conciliatória, pacificadora, antes de uma decisão técnica6. E isto fica muito claro no Projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro, na medida em que o artigo 118 confere uma série de poderes ao juiz, sobretudo no que se refere à direção do processo, mencionando expressamente a adequação e a flexibilização mitigada enquanto instrumentos para se alcançar a efetividade. Nesse passo, é evidente que a maior preocupação do juiz será com a efetiva pacificaçãodaquele litígio, e não apenas, com a prolação de uma sentença, como forma de resposta técnico-jurídica à provoca- ção do jurisdicionado. Não custa lembrar, como nos indica Eligio Resta7, que a con- ciliação tem o poder de “desmanchar” a lide, resultado este que na maioria dos casos não é alcançado com a intervenção forçada do Poder Judiciário. É importante deixar clara essa nova dimensão do Poder Judi- ciário, aparentemente minimalista numa interpretação superficial, mas que na verdade revela toda a grandeza desta nobre função do Estado. Nessa perspectiva, efetividade não significa ocupar espaços e agir sempre, mas intervir se e quando necessário, como ultima ratio e com o intuito de reequilibrar as relações sociais, envolvendo os cida- dãos no processo de tomada de decisão e resolução do conflito. 6 Já há alguns anos temos insistido na necessidade de ampliação dos horizontes da so- lução de conflitos. A propósito: PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mecanismos de Solução Alternativa de Conflitos: algumas considerações introdutórias. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, Oliveira Rocha, v. 17, p. 9-14, 2004; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mediação: a redescoberta de um velho aliado na solu- ção de conflitos. In: PRADO, Geraldo (Org.). Acesso à Justiça: efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 105-124. 7 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Trad. Sandra Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 119. professor2 Realce professor2 Realce Humberto Dalla 14 É relevante também registrar a opinião de Luis Alberto Warat8, para quem o objetivo da mediação não seria o acordo, mas a mudança das pessoas e seus sentimentos. Somente desta forma seria possível transformar e redimensionar o conflito. Essa ideia parte da premissa de que os conflitos nunca desapa- recem por completo; apenas se transformam e necessitam de geren- ciamento e monitoramento a fim de que sejam mantidos sob controle9. Muitas vezes, esse controle significa, na prática, garantir que o canal de comunicação fique sempre aberto, e conscientizar as partes sobre a importância da preservação do vínculo que as une10. 8 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. v. 1, p. 31. 9 “No entanto, por que não cabe ao Poder Judiciário ‘eliminar’ e sim ‘decidir’ conflitos sociais? O fato de que o Judiciário tem como “função fundamental” a decisão de con- flitos não quer dizer que a sua função seja a eliminação de conflitos. Assim, o con- flito social representa um antagonismo estrutural entre elementos de uma relação social que, embora antagônicos, são estruturalmente vinculados – aliás, o “vínculo” é condição sine qua non do conflito. Portanto, se os elementos não são estruturalmen- te ligados, também não podem ser conflituosos ou divergentes. Nesse contexto, as funções (competências) do Poder Judiciário fixam-se nos limites de sua capacidade para absorver e decidir conflitos, ultrapassando os próprios limites estruturais das relações sociais. Não compete ao Poder Judiciário eliminar vínculos existentes entre os elementos – ou unidades – da relação social. A ele caberá, mediante suas deci- sões, interpretar diversificadamente esse vínculos, podendo, inclusive, dar-lhes uma nova dimensão jurídica (no sentido jurisprudencial). Não lhe ‘compete’ dissolvê-los (no sentido de eliminá-los), porque estaria suprimindo a sua própria fonte ou im- pedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhes determinados inputs (demandas).” (SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. Mediação enquanto po- lítica pública: a teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2010. p. 24. Disponível em: <http://www.unisc.br/por tal/pt/editora/e-books/95/media- cao-enquanto-politica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html>. Acesso em: 12. nov. 2012) 10 “Outras três palavras provenientes do prefixo med possuem sua importância apon- tada por Eligio Resta. O autor explica que entre dois valores extremos, mas opostos e conflitantes, a relação escalonada oferece resultados diversos: a média, a moda e a mediana. Nesse contexto, a média pressupõe a separação e a divisibilidade, porém, exclui a conjunção, como recorda a notória decisão do juízo salomônico. A média re- solve o conflito, porém, o faz cortando, interrompendo cada comunicação e excluindo passado e futuro: é o que faz o juízo quando decide com base numa escolha fria e con- tábil”. (SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. Mediação enquan- to política pública: a teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2010. p. 40. Disponível em: <http://www.unisc.br/portal/pt/editora/e-books/95/ mediacao-enquanto-politica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html>. Acesso em: 12. nov. 2012) professor2 Realce ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 15 Ademais, como referido, a mediação não deve ser utilizada na generalidade dos casos. Tal conduta equivocada levaria a uma falsa esperança, em mais uma forma de solução de conflitos que não tem o condão de se desincumbir satisfatoriamente de certos tipos de litígios. Daí a importância, frise-se, de ser instituído um mecanismo prévio para a tentativa da solução negociada dos conflitos, ainda que não necessariamente a mediação. É preciso, pois, a adoção de uma política de racionalização na prestação jurisdicional. Se desde o início fica claro que o cerne da con- trovérsia não é jurídico, ou seja, não está relacionado à aplicação de uma regra jurídica, de nada adianta iniciar a relação processual, para então sobrestá-la em busca de uma solução consensual. Isto leva ao desnecessário movimento da máquina judicial, custa dinheiro aos co- fres públicos, sobrecarrega juízes, promotores e defensores e não traz qualquer consequência benéfica. É mister amadurecer, diante da realidade brasileira, formas eficazes de fazer essa filtragem de modo a obter uma solução que se mostre equilibrada entre os princípios do acesso à justiça e da duração razoável do processo. Já nos encaminhando para o fim deste breve texto, e ciente de que as matérias aqui suscitadas abrem caminho para tantos outros questionamentos, gostaríamos de ressaltar que a mediação é um ex- traordinário instrumento que possibilita a compreensão do conflito a partir da participação efetiva dos envolvidos, destacando, no entanto, que o movimento europeu, em especial o italiano, deve servir de mode- lo para as mudanças processuais que estão prestes a se operar no Brasil. Parece-nos que ao longo da (recente) tradição democrática brasileira, talvez até mesmo como uma expressão da mea culpa do Estado, sabedor de seu fracasso ao atender às necessidades mais bási- cas da população, forjou-se a ideia de que o Poder Judiciário deve ter uma posição paternalista em relação ao jurisdicionado. O cidadão procura o juiz, despeja seu problema e fica aguardan- do impacientemente, reclamando e praguejando caso a solução demo- re ou se não vem do jeito que ele deseja. Defendemos que as partes devem ser envolvidas de forma mais direta na solução dos conflitos, e a mediação contribuirá, em muito, para isso. professor2 Realce professor2 Realce Humberto Dalla 16 A implementação dessas ideias permitirá um enorme avanço no processo de desenvolvimento social do povo brasileiro e, ao mesmo tempo, levará à intensificação de uma preocupação que hoje já ocupa a mente dos juristas. Refiro-me à necessidade de se pensar um sistema que, ao mes- mo tempo em que permite e incentiva o uso da mediação, preserva e viabiliza todas as garantias constitucionais deste procedimento, tor- nando-se verdadeiramente equivalente ao processo judicial, enquan- to forma legítima de solução de conflitos no Estado Democrático de Direito. Enfim, o desafio de agora em diante não é mais o de inserir a mediação no ordenamento brasileiro ou no italiano, mas sim justificar constitucionalmente esse meio alternativo, e principalmente preser- var e resgatarsua natureza com as premissas especialmente lançadas pelo direito fraterno na importante contribuição do jurista italiano Eligio Resta ao direito contemporâneo, permitindo que o anseio de trinta anos por um efetivo acesso à justiça não se reverta definitiva- mente numa grave crise do Estado-jurisdição, enfrentada por países de diferentes continentes, que periga não se reverter se a questão do monopólio judicial para a solução dos conflitos não for enfrentada com a seriedade e imparcialidade que o tema requer. Rio de Janeiro, 07 de novembro de 2012. Humberto Dalla Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro Doutor. Prof. Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ Professor Assistente da Universidade Estácio de Sá SUMÁRIO Capítulo I OS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA INTERNACIONAL ......................... 0019 Sidney Guerra Capítulo II DESAFIOS DA JURISDIÇÃO NA SOCIEDADE GLOBAL: Apontamentos sobre um novo cenário para o Direito e o papel dos Direitos Humanos ....................................................................................................... 0045 Doglas Cesar Lucas Gilmar Antonio Bedin Capítulo III POLITICHE DI SICUREZZA, TOLLERANZA ZERO E DIRITTI UMANI. UNA LETTURA SOCIOLOGICA ............................................................................... 0065 Giuseppe Ricotta Capítulo IV O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA COMO CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: garantias no âmbito nacional e internacional ................................................................................................................. 0091 Gabriel de Lima Bedin Fabiana Marion Spengler Capítulo V EL ACCESO A LA JUSTICIA COMO DERECHO FUNDAMENTAL: la mediación en la Unión Europea como instrumento de acceso a la justicia ..................................................................... 0111 Nuria Belloso Martín Capítulo VI A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO CULTURA DA ECOLOGIA POLÍTICA ................................................................................................. 0167 Mauro Gaglietti Capítulo VII MEDIAÇÃO DE CONFLITOS E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL .......................................................................................................... 0203 Luciane Moessa de Souza professor2 Realce OS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA INTERNACIONAL Sidney Guerra Pós-Doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Pós- -Doutor pelo Programa Avançado em Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutor e Mestre em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Mestrado da Universidade Católica de Petrópolis. Advogado no Rio de Janeiro. Contato: sidneyguerra@terra.com.br. 1 Considerações gerais Após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial1, durante a qual o mundo teve a oportunidade de assistir a uma série de barbáries envolvendo milhares de pessoas, sentiu-se a necessidade da criação de mecanismos que pudessem garantir proteção aos seres humanos2. A 1 Browlie lembra que “os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e a preocupação em prevenir a repetição de catástrofes associadas às políticas internas das Potências do Eixo levaram a uma preocupação crescente pela proteção jurídica e social dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais. Um pioneiro notável neste campo foi Hersch Lauterpacht, que salientou a necessidade de uma Declaração Internacional dos Direitos do Homem. As disposições da Carta das Nações Unidas fornecem tam- bém uma base dinâmica para o desenvolvimento do direito. [...] Inevitavelmente, esta transportou para o foro internacional as ideologias e conceitos de liberdade dos vá- rios Estados dominantes, tendo as diferenças ideológicas entre socialismo e capita- lismo, influenciando os debates.” (BROWLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 587) 2 Vide, a propósito, o magistério de TALAVERA, Fabián Novak; MOYANO, Luis Garcia. Derecho internacional público. Perú: Fondo Editorial de la PUC, 2002. Tomo II, v. II, p. 262: “Sin embargo, los derechos humanos seguirían siendo una preocupación exclusiva del Derecho Interno de los Estados hasta bien entrado el siglo XX, momento a partir del cual empezarían a surgir las primeras convenciones internacionales destinadas a pro- hibir determinadas prácticas odiosas contra el ser humanos. Luego de ello – con la crea- ción de la Organización de las Naciones Unidas en los años cuarenta y de determinadas Organizaciones regionales –, la preocupación internacional por los derechos humanos se iría incrementando, hasta llegar a establecer un conjunto de reglas y principios de Ca pít ulo I Sidney Guerra20 partir daí floresce uma terminologia no Direito Internacional, relacio- nando-o aos Direitos Humanos3: o Direito Internacional dos Direitos Humanos4. O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra e seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderia ser prevenida se um efetivo siste- ma de proteção internacional dos direitos humanos já existisse, o que motivou o surgimento da Organização das Nações Unidas, em 19455. Assim, os direitos da pessoa humana ganharam extrema re- levância, consagrando-se internacionalmente, e surgindo como res- posta às atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, espe- cialmente aos crimes praticados nos campos de concentração da Alemanha nazista6. protección del ser humano de alcance universal, que conforman lo que hoy se conoce como el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.” 3 “A proteção internacional dos direitos humanos constitui um dos traços mais mar- cantes não só do Direito Internacional convencional moderno como também, num plano mais vasto, da evolução do Direito Internacional contemporâneo. E se é certo que muitas convenções se dirigem diretamente aos Estados, outras há que confe- rem direitos diretamente aos indivíduos. A primeira via – a via da mera proteção diplomática – vai sendo cada vez mais abandonada na medida em que se pretende de fato tornar mais eficaz o Direito Internacional dos Direitos Humanos, acima de tudo porque ela se revela inoperante na defesa do indivíduo contra o próprio Estado a que ele pertence e que constitui o seu principal adversário potencial.” (PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto. Manual de direito internacional público. 3. ed. Lisboa: Almedina, 2002. p. 392) 4 Este estudo foi contemplado no livro intitulado Direito internacional dos direitos hu- manos, de Sidney Guerra (São Paulo: Saraiva, 2011), cuja leitura é recomendada para melhor compreensão do tema. 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 140. 6 “O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, a pertinência à determinada raça – a raça pura ariana. O século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio con- cebido como projeto político e industrial. No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a recons- trução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do ra- zoável. [...] Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós- Guerra deveria significar a sua reconstrução.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 131-132) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 21 Indubitavelmente, a Segunda Guerra havia deixado um rastro incomensurável de destruição e afronta aos valores mais essenciais do ser humano. Por conseguinte, no pós-guerra, o foco passa para os es- tudos dos direitos humanos,nos quais a análise da dignidade humana ganha relevo no âmbito internacional, consolidando a ideia de limi- tação da soberania nacional7 e reconhecendo que os indivíduos pos- suem direitos inerentes à sua existência que devem ser protegidos8. Antes das mudanças perpetradas na sociedade internacional por conta da Segunda Grande Guerra Mundial, a pessoa humana era relegada a um plano inferior, e por isso mesmo apenas os Estados eram considerados sujeitos de direito internacional. Todavia, no pós-guerra relevantes mudanças ocorreram em razão de os Direitos Humanos te- rem sido internacionalizados, a começar pela criação da ONU9. A Organização das Nações Unidas tem atuação voltada para a manutenção da paz e para a segurança internacional, bem como para a valorização e a proteção da pessoa humana. Evidencia-se que para alcançar esses propósitos fundamentais, a ONU deva adotar os seguin- tes princípios: a) a Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros; b) todos os membros deverão 7 Na mesma direção MACHADO, Jónatas E. M. Direito internacional: do para- digma clássico ao pós 11 de setembro. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 363: “Tradicionalmente entendia-se que a sua tutela (direitos humanos) era uma ques- tão de natureza doméstica, integrando a reserva de soberania estatal. Atualmente, a ordem internacional reclama valor transnacional fundamental a universalidade dos direitos do ser humano, afirmando a existência de deveres correspectivos de proteção por parte dos Estados e da comunidade internacional globalmente consi- derada. A promoção e o respeito dos direitos humanos são reconhecidos por uma opinio juris global como uma obrigação erga omnes, sendo algumas normas neste domínio reconhecidas como jus cogens.” 8 GUERRA, Sidney. Temas emergentes de direitos humanos. Rio de Janeiro: FDC, 2006. 9 Em interessante abordagem, Jónatas Machado afirma que “os direitos humanos têm relevo estruturante e conformador na arquitetura institucional das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas refere-se a eles, na linha do juscontratualismo liberal, como constituindo uma dimensão da cooperação entre os Estados e uma questão de inte- resse geral da comunidade internacional. Do mesmo modo, afirma-se que os mesmos se reconduzem ao objeto da competência da ONU. Igualmente digno de nota é o fato de a sua proteção internacional ser considerada uma condição para a manutenção da paz. No entanto, esta visão não resultou na sua imediata elevação à qualidade de nor- mas fundamentais da ordem jurídica internacional.” (MACHADO, Jónatas E. M. Direito internacional: do paradigma clássico ao pós 11 de setembro. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 366) Sidney Guerra22 cumprir de boa-fé as obrigações assumidas de acordo com a Carta; c) todos os membros deverão resolver suas controvérsias por meios pacíficos, de modo a não ameaçar a paz, a segurança e a justiça inter- nacionais; d) todos os membros deverão evitar o uso da força contra a integridade territorial ou independência política do Estado; e) todos os Membros devem dar assistência em qualquer ação patrocinada pela ONU; f) para assegurar a paz e a segurança internacional a ONU fará com que todos os Estados, mesmo os não membros, ajam de acordo com os princípios contidos na Carta; g) nenhum dispositivo da Carta autoriza a ONU a intervir em assuntos que dependam essencialmente de jurisdição interna de qualquer Estado. De fato, os direitos humanos ganham força sob a égide da Organização das Nações Unidas10, onde foram produzidos vários tra- tados internacionais para a proteção dos referidos direitos11. A come- çar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, pela produção normativa do Pacto de Direitos Civis e Políticos e do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção sobre discriminação ra- cial; a Convenção sobre os direitos da mulher; a Convenção sobre a tortura; a Convenção sob os direitos da criança etc.12. Essa “codificação” internacional em matéria de direitos huma- nos ocorre principalmente pelo fato do próprio Estado ser o maior violador desses direitos. Assim é que se inicia a denominada fase le- gislativa dos direitos humanos, sob a batuta das Nações Unidas, com a elaboração de um quadro normativo extenso que procura efetiva- mente vincular a Organização Internacional aos seus propósitos, bem como a certas disposições contidas em seu ato de criação. 10 “Construído aos poucos, desde a assinatura da Carta de São Francisco, em 1945, o sis- tema de proteção aos direitos humanos das Nações Unidas difere substancialmente dos sistemas regionais na composição, na forma de operação, no embasamento jurí- dico, e no tipo de resultados perseguidos.” (ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 73) 11 Tive a oportunidade de apresentar estudos relativos ao tema, como, por exemplo, em Curso de direito internacional público. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; Direitos Humanos na ordem jurídica internacional e reflexos para a ordem constitucio- nal brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; Direitos humanos: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002 etc. 12 Nesse propósito, vide GUERRA, Sidney. Tratados e convenções internacionais. Rio e Janeiro: Freitas Bastos, 2006. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 23 A proteção internacional dos direitos humanos defere, no sistema onusiano, um status e um standard diferenciados para o in- divíduo. Isto é, apresenta um sistema de proteção à pessoa humana, seja nacional ou estrangeira, diplomata ou não, um núcleo de direitos insuscetíveis de serem derrogados em qualquer tempo, condição ou lugar. Inaugura-se, portanto, uma doutrina em que os instrumentos de proteção dos direitos do indivíduo levam em consideração o reco- nhecimento, de âmbito universal, da dignidade da pessoa humana. É a partir desse reconhecimento que se estabelecem medidas de con- tenção e de abusos que são praticados especialmente pelos próprios Estados. Frise-se, por oportuno, que a proteção internacional da pessoa humana não faz distinção à nacionalidade ou país de origem de uma pessoa, isto é, o sistema internacional não procura proteger apenas os que possuem proteção diplomática ou determinada categoria de pes- soas ou nacionais e sim todos indiscriminadamente. Sendo assim, este artigo pretende pretende expor aspectos gerais sobre a proteção dos direitos humanos no sistema onusiano, abordando a fase legislativa e a fase de proteção, para que, por fim, possam ser traçados alguns entraves e desafios sistema internacional. 2 a fase legislativa da proteção internaCional dos direitos humanos no sistema onusiano O sistema de proteção internacional dos direitos humanos no âmbito da Organização das Nações Unidas caracteriza-se como um sistema de cooperação intergovernamental que tem por objetivo a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana13. Esse sistema foi 13 Sobre o tema relativo à proteção dos direitos humanos, a Organização das Nações Unidas proclama: “Uno de los grandes logros de las Naciones Unidas ha sido la creación de un conjunto global de instrumentos de derechos humanos – un código universal de derechos humanos protegidos internacionalmente – al cual se pueden suscribir todas las naciones y al cual pueden aspirar todos los pueblos. La Organización no solo ha de- finido una amplia gama de derechos reconocidos internacionalmente, como derechos económicos, sociales, culturales, políticos y civiles, sino también ha establecido meca- nismos para promoverlos y protegerlos y para ayudar a los gobiernos a que cumplan sus obligaciones.” (ONU. ABC de las Naciones Unidas. New York: Publicación de las Naciones Unidas, 2004. p. 295) Sidney Guerra24 inaugurado no ano de 1945, com a criação da referida Organização Internacional, quando fica evidente que o sistema acaba por conver- gir para a proteção dos direitos humanos.Além de ter consagrado a proteção internacional dos direitos humanos como princípios funda- mentais de seu texto normativo, a Carta da ONU também deixou explí- cito que a proteção dos direitos humanos é um meio importante para assegurar a paz. Mas foi no dia 10 de dezembro de 1948 que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem com 48 votos a favor e nenhum contrário14. A Declaração de Direitos de 1948 apresenta uma dinâmica uni- versalista em matéria de direitos humanos ao estabelecer que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que pos- suem capacidade para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de qualquer espécie, raça, sexo, cor, língua, opinião política ou qual- quer outra natureza, origem nacional, social, riqueza, nascimento ou qualquer outra limitação de soberania15. As disposições da Declaração dividem-se em três grandes gru- pos: a) disposições relativas aos fundamentos filosóficos; b) princí- pios gerais; c) direitos substantivos, sendo considerado um documen- to extremamente importante por ter concebido de forma pioneira a 14 “Ese conjunto de instrumentos jurídicos se basa en la Carta de las Naciones Unidas y en la Declaración Universal de Derechos Humanos, aprobadas por la Asamblea General en 1945 y 1948, respectivamente. Desde entonces, las Naciones Unidas han ampliado gradualmente la legislación de derechos humanos para abarcar normas concretas re- lativas a mujer, los niños, las personas con discapacidad, las minorías, los trabajadores migrantes y otros grupos vulnerables, que ahora poseen derechos que los protegen de prácticas discriminatorias frecuentes desde hacía largo tiempo en muchas sociedades.” (ONU. ABC de las Naciones Unidas. New York: Publicación de las Naciones Unidas, 2004. p. 295) 15 Dinh, Daillier e Pellet lembram que, “como todas as declarações de direitos contidas nas constituições nacionais após a Segunda Grande Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra os direitos civis e políticos tradicionais e os direitos econômicos e sociais e constitui uma síntese entre a concepção liberal oci- dental e a concepção socialista: apesar de não terem ficado inteiramente satisfeitos com as cedências feitas – sobretudo pelo mutismo da declaração sobre os direitos dos povos – os países do Leste abstiveram-se voluntariamente na votação final para não a mancharem com votos hostis.” (DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 675) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 25 previsão de vários direitos da pessoa humana no plano internacional, embora tenha recebido severas críticas, especialmente em razão de não ser um documento internacional que vincule o Estado em seu cumprimento. Isso porque foi adotada por uma resolução das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral. Por outro lado, o documento demonstra claramente a inten- ção da sociedade internacional em conceber normas universais que fossem contrárias às práticas de aviltamento da dignidade humana. Corroborando o entendimento, Salcedo16, valendo-se de manifestação da Corte Internacional de Justiça datada de 1980, assevera que, mes- mo tendo sido concebida por uma resolução no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, não restam dúvidas de que a Declaração de 1948 se apresenta como uma higher law não podendo ser desprezada tal condição. A Corte Internacional de Justiça reconheceu o seu estatuto superior na sentença proferida em 24 de maio de 1980 sobre o pes- soal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã: “o fato de privar seres humanos abusivamente da liberdade e submetê-los, em condições penosas, a coação física é manifestamente incompatí- vel com os princípios da Carta das Nações Unidas e com os direitos fundamentais enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem”17. Sem embargo, a Declaração de Direitos de 1948 enuncia em seu artigo II que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e liberdades estabelecidas na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nasci- mento, ou qualquer outra condição.” Ela também estabelece a previ- são de direitos de diferentes categorias e que traduzem a grande preo- cupação com a dignidade da pessoa humana. Posteriormente surgem o Pacto de Direitos Civis e Políticos e também o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos no ano de 1966, que entram em vigência no ano de 1976, depois que 16 SALCEDO, Juan Antonio Carillo. Curso de derecho internacional público. Madrid: Tecnos, 1991. 17 Idem, p. 131. Sidney Guerra26 35 Estados ratificam os referidos Pactos18. Como se pode depreender da própria nomenclatura dos Pactos19, o primeiro versa sobre os di- reitos denominados de primeira geração (civis e políticos), isto é, são direitos contemplados para os indivíduos, ao passo que o segundo corresponde aos direitos de segunda geração, impondo uma série de atribuições aos Estados. Essa percepção deriva da própria natureza dos direitos de primeira geração que pressupõe atuação correspondente a uma abs- tenção (liberdade negativa), enquanto os direitos de segunda geração pressupõem a uma prestação (liberdade positiva). Frise-se, por opor- tuno, que, embora um Pacto contemple os direitos denominados de primeira geração e o outro os direitos denominados de segunda gera- ção, não há hierarquia entre os referidos direitos20. Assim, sobre o Pacto de Direitos Civis e Políticos, observa-se que há determinação para que os Estados-partes assumam o com- promisso de respeitar e assegurar a todos os indivíduos os direitos previstos no documento internacional, dentro do seu território e que 18 Jónatas Machado lembra que os Pactos de 1966 “têm como principal objetivo con- ferir força jurídica vinculativa aos direitos humanos, coisa que não sucedia com a Declaração Universal de Direitos Humanos.” (MACHADO, Jónatas E. M. Direito inter- nacional: do paradigma clássico ao pós 11 de setembro. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 369) 19 “[...] Após um trabalho exaustivo da Comissão de Direitos Humanos e do Terceiro Comitê da Assembleia Geral, este adotou, em 1966, dos Pactos e um Protocolo. [...] Os Pactos têm a força jurídica de tratados para os Estados que neles são partes e constituem uma codificação detalhada dos Diretos Humanos.” (BROWLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 595) 20 Vale trazer à colação, desde logo, as palavras de Vipajur: “All rights and freedoms are indivisible and interdependent. The UN system of human rights does not rank them in any hierarchy or any order of priority. Though we may classify rights in differ- ent categories, they are all complementary to each other. They are also inter-related. No set of rights has priority over the other. In fact, the ending of the Cold War and the ideological confrontations of East – West has meant that the thesis which has been around from the beginnings of the United Nations, that the rights are inter-related at the international level. Distinctions such as that between the immediate enforcement of civil and political rights and the progressive implementation of economic, social and cultural group is really “rights” while the other is not.” (VIPAJUR, Abdulrahim. The Universal Declaration of Human Rights – A Cornerstore of modern human rights regime. Perspectives on human rights. New Delhi: Manak Publications, 1999. p. 16) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 27 estejam sujeitos à sua jurisdição, sem que haja qualquer tipo de dis- criminação21. Do mesmo modo, os Estados se comprometem em criar legis- lações que possam dar efetividade aos direitos concebidos no Pacto, a saber: direito à vida;direito ao julgamento justo; direito à naciona- lidade; direito de não ser submetido à tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante; direito a não ser escravizado; direito à pri- vacidade; direito à liberdade; direito à segurança pessoal; liberdade de circulação; liberdade de pensamento; liberdade de consciência; li- berdade de religião; liberdade de expressão; liberdade de associação; direito de votar e de ser votado etc. Com efeito, o Pacto acima identificado, além de agasalhar o rol de direitos já contemplados na Declaração de Direitos de 1948, acaba por ampliá-lo com a inserção de novos direitos outrora não contem- plados. Nesse sentido, vale destacar os direitos insculpidos no artigo 11 (proíbe a detenção por dívidas contratuais); artigo 24 (direito ao nome e à nacionalidade para a criança); artigo 20 (vedação da propa- ganda de guerra e incitamento à intolerância étnica ou racial); artigo 27 (proteção à identidade cultural, religiosa e linguística) etc. Ainda em relação ao Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, evidencia-se que não autoriza nenhuma suspensão do direito à vida; proíbe a tortura, penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degra- dantes; proíbe a escravatura e a servidão e reconhece várias outras liberdades. Depreende-se, pois, que a vida e a dignidade da pessoa huma- na passam a ocupar lugar de destaque e privilegiado, fazendo com que ocorra uma “grande codificação” em matéria de direitos huma- nos. Não se pode olvidar do Protocolo Facultativo, que complementa o mecanismo de garantia e monitoramento da implementação dos 21 “[...] o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos é mais rigoroso na de- lineação dos direitos, mais forte na afirmação da obrigação e respeito pelos direitos consagrados e encontra-se mais bem apetrechado com meios de revisão e de fiscali- zação. [...] Esses direitos são definidos com a maior precisão possível e relacionam- -se com as questões clássicas da liberdade e segurança do indivíduo, da igualdade perante a lei, do julgamento justo e de outras questões semelhantes.” (BROWLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 596) Sidney Guerra28 dispositivos do Pacto de Direitos Civis e Políticos, ao permitir a apre- sentação de petições individuais ao Comitê pelas pessoas que são ví- timas de violações dos dispositivos constantes do citado documento internacional. Vale lembrar que a petição ou comunicação individual só será admitida se o Estado responsável pela violação dos direitos ti- ver ratificado o Pacto e o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, reconhecendo assim a competência do Comitê para tal. No que concerne ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os Estados-partes devem adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacional, nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no documento internacio- nal, a saber: remuneração justa; trabalho; educação; nível de vida que seja adequado; participação na vida cultural etc. Para alcançar os objetivos listados acima, o Pacto estabelece que os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus re- cursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da coopera- ção econômica internacional22. Fato curioso é que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos prevê uma série de direitos para o indivíduo, ao passo que o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consa- gra um rol de deveres aos Estados; ou seja, a ideia apresentada de liber- dades negativas (direitos de primeira geração) e de liberdades positivas (direitos de segunda geração) são observadas a partir da leitura dos referidos documentos internacionais, fazendo com que os primeiros se- jam considerados autoaplicáveis, e os segundos, programáticos. 22 Browlie lembra que “estas obrigações são do tipo programático e necessitam de ser promovidas pelo Estado, exceto no caso das disposições relativas aos sindicatos. Os direitos reconhecidos devem ser exercidos ao abrigo de uma garantia de não discri- minação, embora exista uma restrição no caso dos direitos econômicos reconhecidos no sentido de os países em vias de desenvolvimento poderem determinar em que medida garantem tais direitos aos não nacionais.” (BROWLIE, Ian. Princípios de direi- to internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 596) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 29 Com efeito, o vasto número de documentos internacionais que foram produzidos sob os auspícios da ONU em matéria de direitos humanos fez com que a dignidade da pessoa humana passasse a se inserir entre os principais interesses da sociedade internacional. Há, portanto, a visão de que esta última forme um todo e os seus interes- ses predominem sobre os dos Estados individualmente. Outra conse- quência relevante da internacionalização desses direitos está relacio- nada à soberania dos Estados, cuja noção vai sendo alterada de forma sistemática23, ou seja, os direitos humanos deixam de pertencer à ju- risdição doméstica ou ao domínio reservado dos Estados24. Desta forma, os direitos humanos que pertenciam ao domínio constitucional estão em uma migração contínua e progressiva (inter- nacionalização), que os estão elegendo e acomodando suas tensões em padrões primários supranacionais. Nota-se claramente que na busca incessante do reconheci- mento, desenvolvimento e realização dos maiores objetivos por par- te da pessoa humana e contra as violações que são perpetradas pe- los Estados e pelos particulares, o Direito Internacional dos Direitos Humanos têm-se mostrado instrumento vital para a uniformização, fortalecimento e implementação da dignidade da pessoa humana. 23 Em igual sentido, Flávia Piovesan: “Os Direitos Humanos se converteram em tema de legítimo interesse internacional, transcendente ao âmbito estritamente doméstico, o que implicou no reexame dos valores da soberania a autonomia absoluta do Estado. A universalização dos direitos humanos fez com que os Estados consentissem em sub- meter ao controle da comunidade internacional o que até então era de domínio reser- vado.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 175) 24 Quanto à ameaça da soberania dos Estados, afirmam Dinh, Daillier e Pellet: “A pro- teção internacional do indivíduo acarreta uma grave ameaça à soberania do Estado. Em razão da sua competência pessoal e da sua competência territorial, é a ele que compete o poder exclusivo de agir no que respeita aos indivíduos nacionais ou es- trangeiros que vivam sobre o seu território. Ora, é evidente que nenhum Estado re- conhece senão a sua própria legislação – ordinária e constitucional – que ignora os direitos individuais e não basta para constituir, só por si, uma proteção eficaz destes direitos. Por outro lado, os Estados reconhecem dificilmente a ideia de uma prote- ção internacional que jogaria em definitivo contra eles próprios. Nestas condições, é previsível que eles, na qualidade de legisladores internacionais, não aceitem sem reticências o estabelecimento de uma intervenção exterior neste domínio ainda que fosse a da comunidade internacional.” (DINH, Nguyen Quoc, DAILLIER, Patrick, PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. p. 673) Sidney Guerra30 Destarte, tal dignidade vem constituindo um verdadeiro va- lor na sociedade internacional, e deve, impreterivelmente, servir de orientação a qualquer interpretação do Direito Internacional Público, isto é, do direito que a regulamenta. O Direito Internacional dos Direitos Humanos afirma-se em nossos dias com inegável vigor; trata-se essencialmente de um direito de proteção, marcadopor uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos, e não dos Estados25. Desses topoi, solidifica-se o reconhecimento de que os Direitos Humanos permeiam todas as áreas da atividade humana e correspon- dem a um novo ethos de nossos tempos. A dignidade da pessoa humana passa a ser considerada como núcleo fundamentador do Direito Internacional dos Direitos Humanos (e também do direito interno), entendido como o conjunto de normas que estabelecem os direitos que os seres humanos possuem para o de- sempenho de sua personalidade, e determinam mecanismos de prote- ção a tais direitos. Impende assinalar que inúmeros mecanismos de proteção na ordem jurídica internacional foram criados a partir de então, tais como: sistema de relatórios, sistema de queixas e reclamações interestatais, o Conselho (antiga Comissão) de Direitos Humanos etc. A partir dessa grande mudança que ocorre no plano internacional é que o Estado pode ser responsabilizado por violação aos direitos humanos. A doutrina26 tem despendido estudos sobre a temática voltada à responsabilidade internacional do Estado em relação às violações 25 Na mesma direção é o posicionamento de Garcia-Meckled: “a form of public interna- tional law creating rights for individuals and duties for states, as well as domestic and international remedies for violation of rights and failure of duties. [...] Human rights provisions are those which give entitlements to individual persons, individually or in some cases collectively, to make legal claims before public authorities and where the legal support for these claims is said to respect these individuals, entitlements as hu- man persons.” (GARCIA-MECKLED, Saladin. The human rights ideal and international human rights law. The legalization of Human Rights. London: MPG, 2006. p. 14) 26 “Como decorrência do complexo sistema de obrigações internacionais assumidas pelos Estados (quer no âmbito regional, quer em dimensão global), não há como negar a importância do desenvolvimento de um mecanismo de responsabilidades internacional dos estados, que garanta coerção compatível com o dano gerado pelo descumprimento das obrigações assumidas. [...] Assim, ao se ampliar o mecanismo ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 31 dos direitos humanos27. Por isso, como já tive a oportunidade de assen- tar em outro estudo28, os Direitos Humanos passam a constituir objeto de ramo autônomo do Direito Internacional Público, com instrumen- tos, órgãos e procedimentos de aplicação próprios, caracterizando- -se essencialmente como direito de proteção. O Direito Internacional dos Direitos Humanos tem por objeto o estudo do conjunto de regras jurídicas internacionais (convencionais ou consuetudinárias) que re- conhecem aos indivíduos, sem discriminação, direitos e liberdades fundamentais que assegurem a dignidade da pessoa humana e que consagrem as respectivas garantias desses direitos. Visa, portanto, a proteção das pessoas através da atribuição direta e imediata de direi- tos aos indivíduos pelo Direito Internacional29; direitos esses que se pretendem também ver assegurados perante o próprio Estado. 3 a fase de proteção A Organização das Nações Unidas, ao ser criada no ano de 1945, inaugura um novo momento no campo das relações internacionais ao integrar o indivíduo como sujeito de direito internacional. Os direitos da pessoa humana passam a ser universalizados propiciando a criação de um verdadeiro “código internacional dos direitos humanos”. Como visto, a Organização das Nações Unidas se estabeleceu com a finalidade de preservar as futuras gerações do “flagelo da guer- de jurisdição internacional, criam-se condições efetivas para ver incidir a responsa- bilidade internacional, consistente na obrigação internacional de reparar a violação prévia de norma internacional.” (CAZETTA, Ubiratan. Direitos humanos e federalismo: o incidente de deslocamento de competência. São Paulo: Atlas, 2009. p. 18) 27 Assim, André de Carvalho Ramos sustentou: “A responsabilização internacional por vio- lação de direitos humanos estabelecida no âmbito da Organização das Nações Unidas é complexa e dividida em duas áreas: a área convencional, originada por acordos inter- nacionais, elaborados sob a égide da ONU, dos quais são signatários os Estados, e a área extraconvencional, originada de resoluções da Organização das Nações Unidas e seus órgãos, editadas a partir da interpretação da Carta da ONU e seus dispositivos relativos à proteção dos direitos humanos.” (RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 119) 28 GUERRA, Sidney. Direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 78-79. 29 MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 82. Sidney Guerra32 ra” e tem sua atuação voltada para a manutenção da paz e para a se- gurança internacional, bem como para a valorização e a proteção da pessoa humana. Assim, os direitos humanos ganharam uma Comissão que funcionava no âmbito do Conselho Econômico e Social: a Comissão de Direitos Humanos da ONU. A Comissão de Direitos Humanos pautou sua atuação no sen- tido de propor recomendações, elaboração de relatórios sobre a pro- teção dos direitos humanos, rechaçando, inclusive, toda forma de dis- criminação. Há quem afirme30 que a maior conquista da Comissão está no simples fato de ter passado a existir, sendo o primeiro organismo mun- dial com Estados com qualidade de membros focado exclusivamente em direitos humanos, transformando-se em organização de referên- cia para Estados e indivíduos, tanto para dar conselhos como para re- ceber reclamações. Seu poder investigativo trouxe à tona alguns dos mais terríveis abusos de direitos humanos no mundo e proporcionou o ímpeto necessário para que houvesse mudança. Encorajou governos a agir de forma a melhorar seu histórico de direitos humanos, em evi- dente esforço para evitar críticas por parte da Comissão. Entretanto, a atuação da Comissão sempre foi alvo de críticas31 no que concerne à seletividade e ao discurso excessivamente político adotado pelos seus membros no tratamento das questões pertinentes a direitos humanos, culminando em sua extinção e criação do Conselho de Direitos Humanos. 30 SHORT, Katherine. Da Comissão ao Conselho: a Organização das Nações Unidas conse- guiu ou não criar um organismo de direitos humanos confiável. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Rede Sur, v. 9, 2008, p. 169. 31 Na mesma direção seguem Hitters e Fappiano: “La Comisión de Derechos Humanos necesitaba, para algunos Estados, una revisión. Su amplia discrecionalidad política le permitía conocer de todo tipo de situaciones, pero carecía de medios de coerción para establecer un estándar mínimo de protección. Por otro lado, no se puede ignorar que, al ser la Comisión un órgano intergubernamental compuesto por representantes de los gobiernos de los Estados miembros, su acción se teñía en buena parte de motivaciones políticas y no sólo humanitarias. Su politización se manifestaba en la elección de sus miembros, al decidir que Estados serán investigados, o al adoptar sus decisiones ple- narias. Esta situación mermó su credibilidad y sustentó la crítica de su sobre discurso.” (HITTERS, Juan Carlos; FAPPIANO, Oscar L. Derecho internacional de los derechos hu- manos. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2007. p. 203) ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 33 Nesse sentido, em 15 de maio de 2006, é adotada a Resolução 60/251, que institui o Conselho de Direitos Humanos. O referido Conselho foi criado com a aprovação de 170 países, havendo 4 votos contra (Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau) e 3 abstenções (Venezuela, Iran e Belarus). Em princípio, o Conselho de Direitos Humanos possui a ca- racterística de órgão subsidiário da ONU. A Resolução 60/251 ainda elenca a universalidade, imparcialidade, objetividadee não seletivi- dade como princípios que norteiam os trabalhos do Conselho. Atribui também especial importância ao diálogo e cooperação internacionais como forma de viabilizar a proteção e fomento dos direitos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao desenvolvimento. O Conselho de Direitos Humanos surge com proposta ambicio- sa e inovadora, a começar pelo processo de eleição de seus membros e sua composição. Ao contrário da Comissão, a eleição é realizada dire- tamente pela Assembleia Geral por meio de votação secreta e maioria absoluta e não pelo ECOSOC, o que permite que todos os membros onusianos possam participar do processo de escolha dos integrantes do Conselho, em clara consonância com o princípio da universalidade. De outra banda, no processo eleitoral, deve ser levada em con- sideração a contribuição do candidato para a promoção e proteção dos direitos humanos. Além disso, é igualmente imprescindível que o Estado demonstre voluntária e publicamente seu compromisso por meio de documento que fundamente sua candidatura, deixando clara sua intenção. Ainda no mesmo dispositivo, a Resolução prevê a hipó- tese de suspensão de membro do Conselho que cometa violações sis- temáticas e significativas aos direitos humanos. No que concerne à composição, a Resolução estabelece que o Conselho é formado por 47 países, ao contrário da Comissão que previa 53 integrantes. A distribuição geográfica ocorre da seguinte forma: 13 países da África (eram 15 na Comissão); 13 países da Ásia (antigamente eram 12); 6 países do Leste Europeu (enquanto eram 5 na Comissão); 8 países da América Latina e Caribe (eram 11 na Comissão), e, finalmente, 7 países da Europa Ocidental e outros (antes eram 10). Sidney Guerra34 A diminuição do número de integrantes em relação à Comissão propiciou uma maior competitividade entre os países. Evidência disso foi a quantidade de candidatos designados em número superior ao de assentos disponíveis por todas as regiões, exceto a África. Fato igualmen- te curioso foi a candidatura de países com um histórico considerável de violações aos Direitos Humanos, como Sudão e Zimbábue. O mandato é de três anos, admitindo-se uma possível reeleição sucessiva, enquanto que na antiga Comissão não havia limites para reeleições consecutivas e não se vislumbrava a possibilidade de suspensão de mandato. Como se pode notar, os países africanos e asiáticos perfazem, juntos, aproximadamente 55% do total de integrantes do Conselho. Na Comissão, tal percentual girava em torno de 50%. Essa confortável maioria, além de evidenciar, por si só, a grande influência que esses países terão na aprovação de resoluções, também lhes permite parti- cipação mais ativa na elaboração da agenda e lhes confere maior peso no estabelecimento das prioridades traçadas pelo Conselho. Outro aspecto inovador e extremamente positivo diz respeito à frequência com que o Conselho se reúne ao longo do ano. Na antiga Comissão, era realizada uma única sessão ao ano, que tinha duração de seis semanas. No Conselho, a Resolução prevê três sessões anuais, com período não inferior a dez semanas. Além dessas três sessões, qualquer membro pode solicitar que seja realizada uma sessão es- pecial, mediante aprovação de um terço dos membros do Conselho. O aumento dessas sessões é extremamente profícuo para que sejam discutidas e adotadas medidas preventivas visando a evitar o recru- descimento de eventuais tensões que possam eclodir no cenário in- ternacional. A Resolução 5/1, que dispõe sobre a construção institucio- nal do Conselho de Direitos Humanos, fixa uma agenda muito mais concisa, mas não menos abrangente que a Comissão. Integram a agenda do Conselho: questões referentes à organização e procedi- mento; relatório anual do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos e do Secretário Geral; promoção e proteção dos direitos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e cultu- rais, incluindo o direito ao desenvolvimento; situações de Direitos Humanos que requerem atenção do Conselho; órgãos e mecanis- mos de Direitos Humanos; Revisão Periódica Universal; situação dos ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 35 Direitos Humanos na Palestina e outros territórios árabes ocupados; continuação e implementação da Declaração de Viena e do Programa de Ação; racismo, discriminação racial, xenofobia e formas relacio- nadas de intolerância, continuação e implementação da Declaração de Durban e do Programa de Ação; assistência técnica e reforço da capacidade institucional. O Conselho, por meio da Resolução 60/251, também chamou para si a responsabilidade de prosseguir com todos os mandatos, me- canismos, funções e responsabilidades da Comissão, visando manter um sistema de procedimentos especiais, de denúncia e de grupo de trabalhos. Contudo, um ano após a primeira sessão, o Conselho se com- prometeu a racionalizar e reforçar os procedimentos e mecanismos es- peciais. Nesse sentido, a Resolução 5/1 leva a cabo tal disposição. As revisões nos procedimentos especiais se iniciaram na sexta sessão e continuaram na sétima e oitava sessões do Conselho. Até ago- ra, todos os mandatos temáticos foram estendidos. Além disso, novos mandatos temáticos foram criados, um sobre as formas tipicamente contemporâneas de escravidão e outro sobre o acesso seguro à água potável e saneamento básico. No tocante aos procedimentos de denúncia (complaint proce- dures), a Resolução 5/1 permite que indivíduos e organizações possam trazer reclamações sobre violações para a apreciação do Conselho. Cria, também, dois Grupos de Trabalho distintos: o primeiro é o Grupo de Trabalho em Comunicações (Work Group on Communications), res- ponsável por examinar as denúncias com base nos critérios de ad- missibilidade previamente estabelecidos. Após análise, a denúncia é submetida ao Estado interessado para que este possa se manifestar a respeito das alegações sobre violações de direitos humanos levadas ao seu conhecimento. Não serão aceitas denúncias anônimas e com pouca fundamentação. O segundo é o Grupo de Trabalho em Situações (Work Group on Situations) que com base nas informações e recomen- dações fornecidas pelo Grupo de Trabalho em Comunicações, elabora relatório a ser submetido ao Conselho. Outra criação da Resolução 60/251 é o Comitê Consultivo (Advisory Committee), que substitui a antiga Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. Sua atribuição consiste em fornecer opiniões consultivas de experts ao Conselho, baseadas em estudo e Sidney Guerra36 pesquisa prévios. Contudo, suas atividades estão subordinadas à re- quisição do Conselho. Impende assinalar que as atividades desse grupo limitam-se à formulação de sugestões, não dispondo do poder de elaborar reso- luções ou decisões. Quanto ao método de trabalho adotado, o Comitê Consultivo permite que os Estados, instituições nacionais de Direitos Humanos, Organizações Não Governamentais e outras entidades da sociedade civil possam interagir. Esta abertura propiciada pela Resolução 5/1 à sociedade civil permite que esta auxilie o Comitê na elaboração de opiniões consultivas mais fidedignas, na medida em que constituem canal importante que aproximará o Comitê da realida- de dos países nos quais as ONGs atuam. O estabelecimento de um Fórum sobre questões envolvendo as minorias (Forum on minority issues) também constitui inovação do Conselho. O Fórum é uma plataforma para a promoção do diálogo e cooperação em temas que envolvam as minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas. Uma das maiores inovações do Conselho de Direitos Humanos é a adoção do Sistema de Revisão Periódica Universal (RPU) pela Resolução 60/251. A incorporação desse mecanismo objetiva sepul- tar a seletividade e os padrões duplos que maculavam o processo de revisão existente nos trabalhos da Comissão. Desta forma, todos os países eleitos deverão se submeter à RPU, como pré-requisitoindispensável à sua integração ao Conselho. Por meio desse mecanismo, é possível analisar o histórico de Direitos Humanos de todos os países, fato que não se verificava no órgão ante- cessor. No entanto, apesar dos objetivos “nobres” que motivaram sua criação, o mecanismo de Revisão Periódica Universal ainda padece de limitações, correndo o risco de cair na superficialidade. Isto porque se trata de um processo intergovernamental, no qual não se verifica a participação de especialistas independentes. Indubitavelmente, a substituição da Comissão pelo Conselho re- presenta a renovação de um compromisso que, ao longo dos anos, foi se desgastando em virtude de interesses políticos. Todavia, para que ocor- ra proteção mais efetiva dos direitos humanos, é imprescindível que os países-membros adotem nova postura no tratamento dessa questão. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 37 4 entraves e desafios: Considerações finais Muitas são as dificuldades para que ocorra a efetiva proteção aos direitos humanos no plano internacional. A doutrina32 tem apre- sentado um rol dos principais entraves do sistema consagrado no âmbito onusiano, sendo apresentadas as maiores críticas para: a) a definição do conceito de direitos humanos; b) um catálogo de direitos humanos; c) a identificação do conceito de cada direito; d) a menção dos mecanismos de implementação; e) os mecanismos de garantia destinados a assegurar a observância dos direitos humanos33. Em verdade, os problemas suscitados acima estão interligados. Como já tivemos a oportunidade de afirmar34, geralmente a expressão “direitos humanos” é empregada para denominar os direitos positiva- dos nos documentos internacionais, como também as exigências bá- sicas relacionadas com a dignidade, liberdade e igualdade de pessoa que não alcançaram estatuto jurídico positivo35. 32 MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 124. 33 Segundo Browlie, há duas fontes de fragilidade no sistema das Nações Unidas de proteção dos direitos humanos: “em primeiro lugar, a obrigação jurídica é geral na origem, tendo-se avançado no sentido de completar a Carta através da adoção de pactos que atribuem um conteúdo mais específico aos direitos protegidos e que apre- sentam processos coercivos mais sofisticados. Assim, embora seja duvidoso que os Estados possam ser chamados a responder por cada alegada violação das disposições bastante vagas da Carta, não pode haver grandes dúvidas sobre a existência de res- ponsabilidade nos termos da Carta a respeito de qualquer violação substancial des- tas disposições, especialmente quando está envolvido um grupo de pessoas ou um padrão de atividade. A segunda, é a ausência de uma definição precisa. Se a intenção dos redatores da Carta for respeitada, é evidente que o conceito de Direitos Humanos encerra no seu âmago uma certeza razoável. Além disso, em 1948, a Assembleia Geral adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos que é abrangente e que afetou, até certo ponto, o conteúdo do direito nacional, chegando a ser invocada pelos tri- bunais.” (BROWLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 593-594) 34 GUERRA, Sidney. Direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 205. 35 Para Sudre, os direitos humanos são entendidos como “les droits et facultés assurant la liberté et la dignité de la personne humaine et bénéficiant de garanties institutionel- les, n’ont été introduits que récemment dans le corpus international. Ce n’est qu’apres la Seconde Guerre mondiale et ses atrocités qu’émerge le Droit international des droits de l’homme avec la multiplication d’instruments internationaux énoncant les droits ga- rantis.” (SUDRE, Frederic. Droit européen et international des droits de l’homme. 8. ed. Paris: PUF, 2006. p. 13) Sidney Guerra38 Segundo Antonio-Enrique Pérez Luño, os direitos humanos formam um conjunto de faculdades e instituições que, em cada mo- mento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade, da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamen- te pelos ordenamentos jurídicos dos níveis nacional e internacional. Portanto, possuem não só caráter descritivo (direitos e liberdades re- conhecidos nas declarações e convenções internacionais), como tam- bém prescritivo (alcançam as exigências mais vinculadas ao sistema de necessidades humanas, e que, devendo ser objeto de positivação, ainda assim não foram consubstanciados)36. Guerra Martins também procurou dar sua contribuição ao afir- mar que as diferentes noções de direitos humanos surgiram inicial- mente como ideais que refletiam crescente conscientização contra a opressão ou a inadequada atuação por parte da autoridade estadual. Prima facie, assistiu-se a positivação em instrumentos jurídicos inter- nos e, posteriormente, essa positivação também ocorreu em nível in- ternacional. Cada tipo de direito humano constitui um determinado standard normativo e implica uma relação de Direito Público entre se- res humanos e autoridades públicas com vista a prosseguir os valores humanos fundamentais e a proteger as necessidades contra a interfe- rência dessas autoridades37. Os direitos humanos também se diferenciam, por sua vez, da ideia de direitos naturais, e não devem ser referidos como expressões correlatas. A pendência que geralmente acarreta a confusão concei- tual gira em torno dos fundamentos dos direitos humanos. A busca de um fundamento absoluto de validade empreendida pelos adeptos do jusnaturalismo é uma tarefa laboriosa, nem sempre possível de ser direcionada a um final, e, ainda que admitida a sua viabilidade, ques- tiona-se a validade deste empreendimento38. Essa busca de fundamento absoluto e irresistível, na visão de Norberto Bobbio, não tem sentido, porque as tentativas de conceituar 36 LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. 7. ed. Madrid: Tecnos, 1998. p. 46-47. 37 MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 83. 38 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 12. tir. Trad. Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 15 ss. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS & MEDIAÇÃO 39 “direitos do homem” revelaram-se tautológicas, na medida em que fa- zem alusão apenas ao estatuto almejado, mas sem mencionar seu con- teúdo, ou, mesmo quando tratam do conteúdo, o fazem com termos avaliativos, cuja interpretação é diversificada e está sujeita à ideologia do intérprete39. Mais um ponto obscuro na busca de um fundamento absolu- to é o apelo a valores últimos, nem sempre justificáveis e até mesmo antinômicos, exigindo uma concessão mútua para serem realizados40. Um terceiro fator prejudicial à noção de fundamento absoluto é que os direitos dos homens compõem uma classe sujeita a modifica- ções, isto é, são direitos historicamente relativos e formam uma classe heterogênea, incluindo pretensões diversas e até mesmo incompatí- veis, tornando insustentável a ideia de terem por base o mesmo fun- damento absoluto41. Ainda segundo Bobbio, os direitos do homem não atingiram níveis mais elevados de eficácia enquanto a argumentação girou em torno de um fundamento absoluto irresistível. Para ele, a questão do fundamento absoluto dos direitos do homem perdeu parte de sua re- levância porque, apesar da crise do fundamento, ainda assim foi pos- sível construir a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como documento que conta com legitimidade praticamente mundial, apesar de não haver consenso quanto ao que poderia ser considerado funda- mento absoluto de tais direitos. Desta forma, a questão central em relação aos direitos do ho- mem, em sua opinião42, passou a ser a busca pela eficácia, pois apenas mostrar que são desejáveis não equacionou o problema da sua realiza- ção. Mais do que encontrar o fundamento absoluto dos direitos huma- nos, o papel principal passou
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