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O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia – a teoria dos poderes implícitos do Conselho de Segurança e o Direito Penal Internacional 1 Nathan Christian Coelho Silvestre 2 RESUMO O presente artigo objetiva analisar os aspectos relativos ao estabelecimento de tribunais internacionais ad hoc, dando enfoque ao Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, de modo a viabilizar a compreensão do processo de jurisdicionalização e humanização do Direito Internacional, bem como o desenvolvimento da justiça penal internacional, à luz da doutrina dos poderes implícitos. Palavras-chave: Direito Internacional Público. Direito Internacional Penal. Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Mecanismo de solução de controvérsias. Organização das Nações Unidas. Conselho de Segurança das Nações Unidas. 1. INTRODUÇÃO A criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, contribuiu em alta magnitude para a formação de novos paradigmas do Direito Internacional (MENEZES, 2010). Nessa perspectiva, entre as fontes desse conjunto normativo, passaram a figurar não somente princípios gerais de Direito – assentados em valores de igualdade e justiça –, como também princípios que lhes são próprios, cuja consagração e sistematização vieram a ocorrer apenas na Carta de São Francisco (MENEZES, 2013), decorrentes das experiências e do amadurecimento da comunidade internacional em termos de perspectiva de um marco civilizacional. Restou superado, por conseguinte, o voluntarismo estatal ilimitado que permeou, por séculos, o Direito Internacional tradicional, legitimando a utilização da força e, por conseguinte, fomentando o “direito de guerra” (CANÇADO TRINDADE, 2006). As normas principiológicas, no plano internacional, são responsáveis pela orientação da produção normativa e da atuação dos Estados nas relações que estabelecem entre si. Emerge, como noção basilar do contemporâneo Direito Internacional, a solução pacífica das 1 Artigo apresentado na IV Mostra de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e publicado na revista Direito Internacional em Revista: Laboratórios & Estudos Preliminares, v. II, em abr. 2019. 2 Aluno de graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: nathan.silvestre@usp.br. mailto:nathan.silvestre@usp.br controvérsias, que se transmuta, de costume internacional, para princípio positivado, sob a concepção de que, na existência de qualquer litígio ou conflito de interesses entre os Estados, as partes devem renunciar à utilização de meios coercitivos, lançando mão, para a sua resolução, dos mecanismos pacíficos oferecidos, de modo a assegurar a paz, a segurança e justiça internacionais, sejam eles diplomáticos, políticos ou jurídicos (MENEZES, 2013). Todavia, dificuldades se instauram quando estabelecidas jurisdições – sobretudo ad hoc – pela ONU no plano internacional, observado o confronto que se estabelece entre, de um lado, a concepção soberanista dos Estados conjugada com o princípio do domínio reservado e, de outro, a interpretação expansiva das atribuições conferidas pela Carta de São Francisco aos seus órgãos. Nesse diapasão, a presente análise objetiva compreender (i) o processo de estabelecimento do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia como forma de resolução pacífica de conflitos, (ii) as razões que ensejaram a sua formação, (iii) a absorção da teoria dos poderes implícitos, pelo Conselho de Segurança, para a criação de Tribunais Internacionais ad hoc e (iv) sua contribuição para o Direito Internacional Penal. 2. A JURISDICIONALIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL Os mecanismos jurídicos constituem-se, ao lado dos mecanismos diplomáticos e políticos, como soluções pacíficas de controvérsias, distinguindo-se dos demais em função do caráter vinculativo de suas decisões, respaldadas em normas de Direito Internacional e proferidas por um Tribunal Internacional ou por árbitros. A atuação dos Tribunais Internacionais, portanto, reside em dirimir as controvérsias internacionais mediante pronúncia de normas do Direito Internacional, de forma que sua sentença caracteriza-se como obrigação normativa, cujo descumprimento redunda em um ilícito internacional. Ainda que, ab initio, de forma lenta e gradual, obstaculizados pela concepção soberanista absoluta dos Estados, os mecanismos jurisdicionais adquiriram espaço e relevância no âmbito internacional (MENEZES, 2013). A institucionalização de um tribunal de vocação universal ocorre em 1922, com a fundação da Corte Permanente de Justiça; entretanto, a jurisdicionalização do Direito Internacional seria observada apenas posteriormente, com a criação da Corte Internacional de Justiça, em 1945, no quadro das Nações Unidas. A partir desse momento, observa-se o advento de diversos organismos internacionais e tribunais especializados, responsável pela multiplicação das jurisdições internacionais, dada a insuficiência das já existentes para atender às demandas da contemporaneidade e a progressiva regionalização do Direito Internacional (MENEZES, 2013). Nesse cenário, observa-se a salvaguarda do ser humano como sujeito de Direito Internacional, que, doravante, ocupa a posição central no processo de desenvolvimento da humanidade e de seu marco civilizacional, em um movimento designado como a humanização do Direito Internacional (CANÇADO TRINDADE, 2006). 3. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLÁVIA (TPII), O CONSELHO DE SEGURANÇA E A “TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS” As graves violações aos direitos humanos ocorridas no século XX ensejaram o desenvolvimento de mecanismos institucionais de solução jurisdicional, proporcionando o assentamento dessa centralidade do ser humano no Direito Internacional. Outrossim, constata- se, em função desses eventos, a evolução da construção normativa do Direito Internacional Penal, cujas bases se estendem da formação do Tribunal de Nuremberg, em 1945, até o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, em 1998, perpassando pela criação de Tribunais Internacionais ad hoc pelo Conselho de Segurança, para Ruanda e para a antiga Iugoslávia (TPII) – objeto da análise em testilha. Em aspectos fáticos, o conflito na Iugoslávia irrompeu em 1991, como efeito da declaração de independência da Eslovênia, um dos seis países constituintes da República Socialista Federativa da Iugoslávia. No ano seguinte, após o boicote, promovido pelos sérvios bósnios, de um referendo em que 60% da população votaram afirmativamente à proposta de independência, as hostilidades atingiram seu ápice na Bósnia-Herzegovina. Um mês mais tarde, os sérvios bósnios, assistidos pelo Exército Popular Iugoslavo, passaram a reclamar diversos territórios para si; posteriormente, os sérvios croatas também se insurgiram perante o governo bósnio, resultando em um conflito tripartite. É nesse contexto que se verifica a constituição do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII): após reuniões de comissões de especialistas e juristas e conferências sobre segurança e cooperação na Europa, o Secretário-Geral da ONU, munido de diversos relatórios, reportou a situação ao Conselho de Segurança, que, após exame, declarou a incidência do artigo 39, do Capítulo VII, da Carta das Nações Unidas, ao identificar, na situação da Iugoslávia, uma concreta ameaça à paz e à segurança enquanto guerra internacional (POCAR, 2008). In verbis, dispõe o artigo 39 que “[o] Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurançainternacionais.”. Desde o século passado, em virtude das grandes crises humanitárias, o Conselho de Segurança tem aperfeiçoado seus mecanismos de atuação – e.g., mediante a criação de tribunais ad hoc – sob o discurso de primazia da resolução de controvérsias de efetiva e elevada periculosidade à paz e segurança internacionais e, por consectário, de supremacia da proteção dos direitos humanos, que se encontram em constante processo de expansão. Esse procedimento se estabelece em consonância com o que se convencionou designar como a teoria dos poderes implícitos do Conselho de Segurança, produto de uma interpretação flexível (SEUR, 1995) das disposições da Carta de São Francisco e do princípio da efetividade, por meio da qual se propugna a existência de determinadas competências subsidiárias do órgão, que, embora não atribuídas explicitamente, seriam inerentes às atividades por ele desempenhadas ou, ainda, dedutíveis dos poderes expressamente conferidos, apresentando-se como respaldo jurídico, por exemplo, da criação do TPII (SAROOSHI, 1998, p. 142). Nesse quesito, a discussão envolve os limites axiológicos em torno dos poderes implícitos: deve haver uma correlação clara com os poderes expressos e se circunscrever ao que deveras é necessário para o exercício das atribuições ostensivas, complementando-as (SKUBISZEWSKI, 1989). No entanto, tal tarefa afigura-se dificultosa de averiguar na prática do Direito Internacional e impõe cautela ao Conselho, para que não sejam constatadas arbitrariedades na adoção de medidas atinentes ao sistema global de proteção dos direitos humanos, sobretudo em decorrência da inobservância do princípio da igualdade entre os Estados em sua composição, afastando-se, pois, do exercício despótico, parcial e politizado da estrutura orgânica na condução das ações humanitárias. Formalmente estabelecida em 1993 pela Resolução 827 do Conselho de Segurança, após o reconhecimento, pelo mesmo órgão, da necessidade da implantação de um Tribunal Internacional para julgamento das “pessoas responsáveis por sérias violações ao Direito Humanitário Internacional cometidas no território da antiga Iugoslávia desde 1991” em sua Resolução 808 (NAÇÕES UNIDAS, 1993), a Corte notabilizou-se como instrumento jurídico de pressão da comunidade internacional sobre os militares das repúblicas da antiga Iugoslávia. Nesse sentido, a jurisdição do Tribunal, segundo seu Estatuto, prima sobre os ordenamentos nacionais e recai sobre as atrocidades cometidas no contexto das Guerras Iugoslavas (art. 1), sobretudo na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, sejam condutas ofensivas às disposições da Convenção de Genebra de 1949 (art. 2), sejam violações como crimes de guerra (art. 3), genocídio (art. 4) e crimes contra a humanidade (art. 5), praticados a partir de 1991, independentemente do status oficial de que gozava o agente, isto é, ainda que se referissem a crimes cometidos por chefes e funcionários de Estado ou de governo (CIECHANSKI, 1998). Os dispositivos mencionados englobam delitos aterradores, como a homicídio de milhares de civis, torturas, abusos sexuais em campos de detenção, experimentos com humanos, bombardeios, redução à escravidão, deportação, exterminação, entre outros variados comportamentos, que ensejaram a ação do Conselho de Segurança, em conformidade com o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. O último julgamento do Tribunal ocorreu em 29 de novembro de 2017, no caso Prlić et al., em que se analisava a apelação de seis militares e políticos bósnio-croatas, condenados em 2013 por assassinato, expulsão e perseguição de muçulmanos no contexto da Guerra da Bósnia. A sessão foi marcada pela ingestão de cianeto por parte de Slobodan Praljak, general do Exército Croata entre 1992 e 1995, ao ser pronunciada a manutenção de sua sentença de 20 anos de prisão por expulsão de muçulmanos. Formalmente, o Tribunal encerrou-se em 31 de dezembro de 2017, após o indiciamento de 161 indivíduos, dos quais 90 foram sentenciados, 19 absolvidos, 13 encaminhados a uma jurisdição nacional, 20 tiveram suas acusações retiradas, 17 foram declarados falecidos e 2 reconduzidos ao Mecanismo para os Tribunais Penais Internacionais. 4. CONCLUSÃO Desta análise, nota-se que o estabelecimento do Tribunal ad hoc em tela foi fator relevante para o desenvolvimento do Direito Internacional Penal, definindo as bases sobre as quais ele se erigiria, até a instalação do Tribunal Penal Internacional, de caráter permanente. A natureza jurídico-sociológica desempenhada pelo TPII assumiu elevada relevância no plano internacional, alterando o panorama do Direito Humanitário Internacional. Na perspectiva social, viabilizou a individualização da responsabilidade dos delitos cometidos, com a demonstração de que indivíduos de alto escalão não estão imunes à jurisdição do Direito Internacional, repelindo a rotulação da comunidade por tais fatos ao desconstruir a falsa percepção de que haveria uma responsabilidade coletiva pelas atrocidades, ao passo que incutiu, nas vítimas, algum sentimento de justiça. No viés jurídico, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia assentou os aspectos mais centrais da justiça penal internacional, tratando-se de instituto que corrobora a posição de seres humanos enquanto sujeitos de Direito Internacional e propicia, no âmbito global, um sistema de responsabilização de indivíduos diverso daquele que enseja a responsabilidade de Estados por crimes internacionais; assim, a imputabilidade pelas práticas delitivas de certo agente de um país não incidirá sobre o Estado, mas tão somente sobre o autor da conduta. Em remate, a atuação do Conselho de Segurança na instauração do Tribunal demonstrou a superação das alegações de competência exclusiva dos Estados – ou “domínio reservado” –, fundadas no princípio da soberania, permitindo a expansão da proteção dos direitos humanos e redundando na formação de sistema internacional de justiça penal, na medida em que comina sanções às práticas perpetradoras de violações do Direito Humanitário, ainda que em controvérsia doméstica, enquanto crimes internacionais. REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 109-118. CIECHÁNSKI, Jerzy. A Court That was Not to Judge – the UNInternational Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia. In: The Polish Quarterly of International Affairs, vol. 7. Warszawa: Polish Institute of International Affairs, 1998, pp. 111-136. GADKOWSKI, Andrzej. The doctrine of implied powers of international organization in the case law of international tribunals. In: Adam Mickiewicz University Law Review, vol. 6. Poznań: Uniwersytet im. Adama Mickiewicza: 2016, pp. 45-59. MENEZES, Wagner. Os princípios no Direito Internacional. In: MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de (org.). Desafios do Direito Internacional Contemporâneo. São Paulo: Funag, 2010, pp. 683-701. _______. Tribunais Internacionais – Jurisdição e Competência. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 100-156. NAÇÕES UNIDAS. Resolution 808. In: United Nations Documents, 1993. Disponível em: <https://undocs.org/S/RES/808(1993)>. Acesso em 09 dez. 2017. POCAR, Fausto. Statute of the International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia. In: United Nations Audiovisual Library of International Law, 2008. Disponível em: <http://legal.un.org/avl/ha/icty/icty.html>. Acesso em 09 dez. 2017. SAROOSHI, Danesh. The Powers of the United Nations International Criminal Tribunals. In: Max Planck Yearbook of United Nations Law 141. Heidelberg: Martinus Nijhoff, 1998, pp. 141-167. https://translate.googleusercontent.com/translate_c?depth=1&hl=pt-BR&ie=UTF8&prev=_t&rurl=translate.google.com&sl=auto&sp=nmt4&tl=pt-BR&u=https://pl.wikipedia.org/wiki/Pozna%25C5%2584&usg=ALkJrhgJYR0xedJ-z06yvLuBn85bTxcGNgSEUR, Serge. L’interprétation en droit international public. In: AMSELEK, Paul et al.. Interprétation et Droit. Bruxelles: 1995, pp. 155-163. SKUBISZEWSKI, Krzysztof. Implied Powers of International Organizations. In: International Law at a Time of Perplexity – Essays in Honour of Shabatai Rosenne. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1989. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLÁVIA. About the ICTY. In: International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia – United Nations. Disponível em: <http://www.icty.org/en/about>. Acesso em 09 dez. 2017.
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