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CURSO DE DOUTORAMENTO EM ARTES PERFORMATIVAS E DA IMAGEM EM MOVIMENTO / Ano Letivo [2018/2019] SEMINÁRIO PARA UMA ESCRITA INVENTIVA EM INVESTIGAÇÃO EM ARTES: MÉTODOS E PROCESSOS PROFESSOR: JORGE RAMOS DO Ó Atividade avaliativa Aluno: RÉGIS COSTA DE OLIVEIRA N° de aluno: 152380 [2019] ÍNDICE INTERFACES: diálogos e construções entre o autorretrato e a realidade aumentada 2 Diálogos entre a imagem e a tecnologia: breves apontamentos 2 O retrato e o autorretrato: registros de fantasmas 3 Da pintura à realidade aumentada 5 Interfaces: entre o autorretrato e a realidade aumentada 7 O porvir 11 Referências 11 2 INTERFACES: diálogos e construções entre o autorretrato e a realidade aumentada Diálogos entre a imagem e a tecnologia: breves apontamentos O filme 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, apresenta uma cena emblemática, o momento em que um hominídeo utiliza um osso como ferramenta e o lança ao ar para que, em um súbito corte, esse mesmo osso se transfigure em uma nave espacial. Essa cena não apenas sintetiza a nossa jornada e a relação que mantemos com a tecnologia, ela evidencia a dependência que estabelecemos com as ferramentas ao longo da história. Hoje, as ferramentas tecnológicas não limitam-se apenas à capacidade de otimizar e potencializar a ação humana empregada no trabalho, elas atuam como recursos de otimização dos sentidos e da capacidade cognitiva, criando uma aproximação crescente com o corpo. A presença dos gadgets como itens indispensáveis no nosso cotidiano, assemelhando-se a uma peça de vestuário obrigatória ou mesmo como uma extensão do corpo, exemplifica como a humanidade vem aprimorando a capacidade de delegar à tecnologia as funções sensório-perceptivas e motoras. O ato de ver, hoje, é em grande parte intermediado pelos ecrãs. Caso fosse possível reconstruir a cena do filme de Kubrick descrita acima, substituindo os exemplos de ferramentas apresentadas nos dois pontos extremos do lapso temporal por tecnologias empregadas para a criação e fruição de imagens, essa mesma linha do tempo teria os seus pontos extremos ocupados pelo pincel ancestral e pelo smartphone. Entre o pincel e o ecrã do smartphone, a humanidade desenvolveu diferentes tipos de ferramentas e técnicas para a criação de imagens; contudo, as dimensões estética e simbólica presentes nas imagens as retiram da condição de simples produto obtido pelo emprego de um conjunto de ferramentas e técnicas. As motivações que alimentaram o desejo para a criação de imagens e para o seu uso, partem das questões subjetivas e particulares para as questões pragmáticas e coletivas, perpassando por interesses religiosos, políticos, sociais e culturais. Ao retratar a si e o mundo a sua volta através das imagens, a humanidade expande o ato de ver, preservando olhares. Transforma a imagem em conhecimento e através dela, passa a conhecer-se. Enquanto representação (independente do aspecto figurativo ou abstrato) a imagem constitui-se da articulação do espaço, da cor, da linha e da forma. Ao se articularem, os diferentes componentes visuais passam a coexistir e a habitar um espaço, que por sua vez pode corresponder ao corpo da imagem. Uma coexistência antes perceptível aos olhos graças as características materiais do suporte utilizado. Hoje, com os processos de digitalização e virtualização, a imagem tem o seu corpo retirado do mundo tangível e relocado no mundo virtual. O simples ato de observá-las passou a exigir a intermediação de ferramentas tais como os ecrãs dos telemóveis, os óculos de realidade virtual ou os óculos de realidade mista. Como consequência do processo de diáspora da imagem para os ambientes virtuais, estas tornaram-se interativas, fator que atrai o interesse tanto daqueles que buscam a fruição imersiva das imagens, quanto daqueles que se interessam pelo processo de criação. A imagem virtual, assim como a imagem tangível, está ligada as necessidades do uso de um espaço e do emprego das regras de composição. Da mesma forma, a imagem virtual preserva consigo a dimensão do duplo e o poder de atuar como simulacro, encontrando na capacidade de registro mnemônico a sua própria vitalidade. As inovações tecnológicas apresentadas com o advento das realidades virtual, aumentada e mista alteram o processo de fruição, permitindo ao observador tanto a imersão quanto a interação com a imagem, fatores que fomentam o interesse quanto ao emprego de tais tecnologias nas poéticas visuais. Ao articular conteúdos visuais tangíveis e virtuais em 3 uma mesma imagem, com a tecnologia da realidade aumentada, gêneros tradicionais da pintura, como o retrato e o autorretrato podem ser redimensionados. Em tal processo, relações de aproximação e distanciamento podem ser traçadas (dimensões tangível e virtual da imagem; aparência e essência; tradição e inovação; perenidade e efemeridade), contudo, a imagem permanecerá como resultado dessa relação dialógica. Uma imagem tecnologizada, mas não muito distante e não muito diferente das imagens de Lascaux ou Altamira. O retrato e o autorretrato: registros de fantasmas A imagem é uma das manifestações mais concretas e duradouras do desejo humano de superar a ação oxidante do tempo. Atuando como um relicário de memórias, as imagens encerram em si o reflexo de realidades esmaecidas, captadas por olhares e materializadas por gestos que lançaram sobre diferentes tipos de suportes, as cores e formas necessárias para a configuração dessa estrutura refletida. Enquanto reflexo de uma natureza observável, a imagem traz consigo a dimensão do duplo. Sua existência, enquanto representação está diretamente relacionada ao que foi observado. Contudo, durante o seu processo embrionário, a imagem pouco a pouco vai distinguindo-se daquilo ao qual representa, tornando-se assim um recurso ilusório ou um simulacro. Tal fato pode ser observado em diferentes temas abordados pelas representações visuais, contudo o gênero retrato pode oferecer subsídios para o reconhecimento do poder mnemônico presente nas imagens. A possibilidade de ter a sua aparência (e para muitos a própria essência) eternizada através do retrato parece diminuir o efeito amedrontador do esquecimento imposto pela morte. Preservar a sua imagem, dotando-a dos mesmos traços físicos e possivelmente psicológicos, tem correspondido a mais antiga estratégia adotada pela humanidade para tentar vencer a morte. Por mais que um retrato ou um autorretrato corresponda apenas a um simulacro, a ilusão do corpo através da articulação técnica de um conjunto de elementos visuais, entre quem foi retratado e o observador, diferentes intervalos temporais podem ser traçados e em cada intervalo, como afirma Georges Didi-Huberman, sempre que alguém se posicionar diante da imagem, uma nova troca de olhares ocorrerá. Uma troca de olhares antes restrita ao espaço circunscrito do ateliê e a intimidade da relação estabelecida entre o modelo e o artista. Passado o momento da criação, a imagem evade-se do ateliê, peregrina e expõe-se, cria novas relações, estabelece novos olhares, sobrevive e em sua sobrevivência, carrega consigo não apenas o reflexo de alguém, um fantasma, mas marcas, ora profundas, ora superficiais, de uma época igualmente fantasmática. O gênero retrato reúne duas dimensões da imagem aparentemente antagônicas, mas que mantêm entre si uma atração: a presença e a ausência. O processo de criação do retrato articula tanto a manifestação da presença da pessoa retratada, de sua aparência, como é alimentado pelo temor que o retratado nutre pela ausência dessa mesma imagem. A pessoa retratada passa a dispor de um mecanismo capaz de subjugar a tirania do tempo (que teria por direito o poder de sepultara face de todo e qualquer indivíduo sob o manto do esquecimento). A relação entre o retrato (dimensão sensível) e a imagem que ele evoca (dimensão inteligível) é ancorada na esperança do retrato tornar visível e perpetuar a existência de um ser já ausente. Dessa forma, sendo o retrato uma imagem e, por conseguinte, um signo, este possui o poder de evocar à memória indivíduos ausentes. O artista, o sujeito que em suas mãos possuía a habilidade de dar a imagem o poder de superar o tempo e, por extensão, a pessoa que emprestava a própria imagem ao artista o mútuo sentimento de perenidade, passou a manifestar o mesmo desejo. Assim, a relação 4 entre presença e ausência que alicerçou o surgimento do gênero retrato contribuiu para o nascimento do gênero autorretrato. Para além de uma demonstração narcísica, o autorretrato foi a forma encontrada pelos artistas para se inserirem no conjunto de sua obra. As imagens por eles criadas se mesclariam com a sua própria imagem. Dessa forma, não apenas a sua técnica, as suas obras e o seu nome sobreviveriam a ação do tempo. Sua face, seus olhos, suas mãos empunhando a paleta e o pincel igualmente saboreariam a glória de subjugar o tempo e a morte, permitindo que séculos após a sua existência, seu rosto ainda fosse observado. Para os artistas que não vislumbraram a possibilidade de se autorretratarem, temos suas obras (em que outras pessoas, ironicamente, foram imortalizadas) e seu nome. Aos artistas que se autorretrataram, temos a intimidade de conhecer suas faces. Podemos mirá-los nos olhos e aperceber-lhes os sentimentos. Temos na presença física dos trabalhos a percepção do que está ausente, a maneira peculiar como o artista interpretou e representou a sua própria imagem. Antes do surgimento dos mecanismos para a captação da imagem através da luz, no século XIX, como o daguerreotipo e o cinematógrafo, cabia ao pintor, ao desenhista, ao escultor e ao gravador a tarefa de produzir imagens. Os fatores tempo e espaço eram determinantes durante o processo criativo, definindo quais gêneros artísticos poderiam ter maior ou menor importância (os temas religiosos durante a Idade Média ou os retratos do barroco holandês). Contudo, mesmo sobre a égide de uma instituição religiosa ou de um regime político, mesmo do ponto mais remoto da história da arte ocidental ao ponto mais recente, o retrato sempre ocupou uma posição de destaque, sendo encontrado ao longo da história e praticado por grande parte dos estilos ou períodos artísticos. De certa forma, a possibilidade da pessoa retratada ter uma imagem que a represente e que permaneça nesse mundo, superando a própria existência do indivíduo que ela retrata, parece ter alimentado o desejo pela produção desse gênero das artes visuais. Segundo Azara (2002), Os retratos mantêm algo mais que a lembrança esfumaçada do modelo. De algum modo, eles mantêm viva sua presença: conservam e protegem sua presença viva que se percebe sempre através de seu olhar iluminado. (...) Um bom retrato é inconfundível: manifesta os traços pessoais de um determinado indivíduo, traços que não querem dizer, curiosamente, que a imagem deva necessariamente parecer fisicamente ao modelo. Deve, antes de tudo, evocar o modelo espiritualmente, permitindo que ele se manifeste através da obra perante os sentidos do espectador. (AZARA, 2002, p. 13-14) Os séculos XIX e XX corresponderam a uma quebra de paradigmas no processo de criação e veiculação das imagens. Com as transformações tecnológicas, a imagem fotográfica e as novas formas de impressão gráfica permitiram a criação de processos mecânicos para a produção e/ou reprodução de imagens. A prática do retrato e do autorretrato foram diretamente afetadas pelo surgimento da fotografia. A imagem, no trajeto entre a observação e a criação, era agora intermediada por um dispositivo óptico (a lente da máquina coloca-se entre a paisagem e o olho; no lugar do pincel, uma chapa fotossensível registrava a imagem através da ação da luz). O retrato e por extensão o autorretrato, bem como outros gêneros da pintura, como a paisagem, foram prontamente apropriados pela fotografia, fazendo com que o desenho e a pintura buscassem formas para trabalhar tais gêneros distinguindo-os do realismo e objetividade característicos do 5 processo fotográfico. A solução encontrada pelas estéticas modernistas correspondeu à subversão dos cânones artísticos tradicionais. Da pintura à realidade aumentada Passados milênios, as técnicas empregadas para a confecção de imagens bem como os temas recorrentes dos trabalhos visuais acompanharam algumas transformações. Contudo, durante todo esse trajeto, a força vital da imagem permaneceu, fato que corrobora o quanto a humanidade demonstra possuir com esta uma relação de dependência. Ao longo de tão extensa jornada, a humanidade foi capaz de desenvolver diferentes tecnologias voltadas para a criação de imagens, contudo os séculos XIX, XX e os primeiros anos do século XXI presenciaram e presenciam transformações que impulsionam o processo de criação e veiculação de imagens, levando a novos paradigmas e a novos padrões de comportamento. Uma dessas transformações corresponde a necessidade crescente do uso do ecrã para intermediar a experiência visual (e por extensão o processo de fruição de imagens). Além do emprego de lentes para a apreciação visual, a imagem passou a habitar novas realidades, criadas a partir de hardwares e softwares empregados para as realidades virtual e aumentada. Essas duas ferramentas tecnológicas são hoje responsáveis por uma transformação na maneira como nos relacionamos com as imagens, e tal mudança explora e potencializa o que a imagem possui de simulacro. Enquanto recurso ilusório, a imagem, notadamente a bidimensional, sempre empregou diferentes estratégias para sugerir aos olhos determinados efeitos, como as ilusões de movimento, volume, profundidade e textura. Contudo, esses mesmos olhos que eram aparentemente ludibriados pela imagem eram igualmente alertados sobre a farsa ao se depararem com as fronteiras que separam (ou separavam) o universo representacional do universo real. As realidades virtual e aumentada, a partir de mecanismos tecnológicos distintos, somaram-se as tentativas anteriores para a diluição ou total destruição dessas fronteiras. Na realidade virtual, o observador é literalmente transportado para o universo da imagem, não tendo mais contato com o mundo a sua volta. Na realidade aumentada, a imagem é sobreposta ao mundo tangível, interagindo com este. Nos dois casos, a experiência de destruição da fronteira que separa a realidade representacional e ilusória da imagem do mundo circundante exige a intermediação através de recursos tecnológicos, como hardwares e softwares. O crescente interesse dos setores produtivos e artísticos pelos recursos das realidades virtual e aumentada parte principalmente da mudança paradigmática impulsionada pelas novas tecnologias, a possibilidade de interação com a imagem. Ao longo da história, muitas técnicas foram adotadas para reforçar o caráter ilusório da imagem. Sobreposição de formas para reforçar o efeito de movimento, contrastes cromáticos para sugerir volume, a perspectiva linear resultando no efeito de profundidade, os panoramas e a ilusão de um espaço imersivo, contudo em todos esses exemplos, entre a imagem e o observador era mantida uma respeitosa distância. Tocá-la corresponderia a uma profanação. Hoje, a imagem recatada, que se deixa ver mas não se deixa tocar, parece não adequar-se a uma época e a uma sociedade com o insaciável desejo de interação. Através dos recursos tecnológicos computacionais, a imagem é manipulada, animada e adaptada aos ambientes virtuais. A sua dimensão de simulacro é potencializada ao possibilitar ao observador que, além da simples manipulação ou interação, o espaçoda imagem seja habitado e explorado. A expressão “entrar no quadro”, até então empregada para designar uma experiência estética em que a obra envolvesse o observador e sua imaginação, hoje apresenta um sentido literal graças a realidade virtual. O observador pode entrar na imagem, habitá-la e vivenciá-la. A interação ocorre tanto com o espaço 6 presente na imagem, e toda a sua profundidade ilusória, quanto com os elementos visuais que integram essa mesma imagem, sendo esses elementos passíveis de interação. Ao “entrar na imagem”, o observador inicia a experiência da imersão, efeito explorado pelas diferentes plataformas que utilizam a tecnologia da realidade virtual. Segundo GRAU: “A maioria das realidades virtuais vivenciadas de forma quase total veda hermeticamente a percepção das impressões visuais externas do observador, atrai sua atenção com objetos plásticos, expande perspectivas de espaço real no espaço de ilusão, observa a correspondência de cores e escala e, como o panorama, faz uso de efeitos de luz indireta para que a imagem apareça como a fonte do real. A intenção é instalar um mundo artificial que proporcione ao espaço imagético uma totalidade ou, pelo menos, que preencha todo o campo de visão do observador”. (GRAU, 2007, pág. 30) Os óculos de realidade virtual, adaptados ao ecrã dos telemóveis ou conectados a um computador, permitem hoje ao observador transpor a linha divisória entre a realidade e o universo ilusório da imagem. Ao ser isolado em um simulacro e simultaneamente ao ser privado dos estímulos visuais do mundo tangível e circundante, o observador torna-se apto para a imersão na imagem. A imersão em um novo campo visual fictício possibilita não apenas uma nova forma de fruição de imagens, como também experiências capazes de estimular sensações e sentimentos, como o medo ou a vertigem. Diferente da experiência imersiva possibilitada pela ferramenta da realidade virtual, a realidade aumentada emprega os ecrãs como lentes que permitem ao observador fundir dois mundos aparentemente distintos, o real e o virtual. Todavia, essa fusão ocorre em um espaço de projeção, sendo a imagem real apenas um reflexo da paisagem observada pela lente dos aparelhos telemóveis ou webcams, ou seja, uma imagem ficcional. Na realidade aumentada, a imagem considerada real corresponde a uma projeção, na superfície do ecrã, de pixels ordenados a partir dos dados capturados pela lente e processados por sensores eletrônicos. Portanto, a imagem considerada real, que em sua essência corresponde a uma ficção, dialoga e aproxima-se daquela classificada como virtual, estando as duas na condição de simulacro e de duplo. Todavia, a sociedade contemporânea parece aceitar pacificamente e até demonstra certo entusiasmo em ter a percepção visual intermediada pelas lentes e ecrãs dos telemóveis. Tal fenômeno poderia levar a uma aceitação da imagem obtida pelos telemóveis, em tempo real, como a própria realidade, fazendo com que a percepção da natureza fora do enquadramento ecranizado gere mais estranhamento do que a imagem enquadrada e projetada na superfície reflexiva e ficcional dos ecrãs. Se aceitarmos as imagens projetada nos ecrãs a partir das lentes dos telemóveis como fragmentos da realidade, as camadas de conteúdos virtuais sobrepostas nesses fragmentos gerariam imagens híbridas, como afirma Domingues: O híbrido soma propriedades do ciber e torna-se cíbrido. O potencial do digital, levado ao paroxismo, incrusta virtual com virtual no espaço físico, homologando desejos ficcionais de viver em mundos paralelos. Objetos, cenas, visualização sintética, geografias misturadas são espaços e lugares cíbridos para a existência. A Realidade Aumentada e suas versões tira o foco do virtual como evasão do real e, dialeticamente, acentua a potencialidade do virtual ampliando a realidade (DOMINGUES, 2008, p.109). Uma forma simples de distinguir as ferramentas das realidades virtual e aumentada corresponde ao campo de visão do observador. Na realidade virtual, o campo de visão é hermeticamente fechado impedindo os estímulos visuais externos. Na realidade 7 aumentada, o observador preserva o seu campo de visão recebendo continuamente os estímulos visuais externos, todavia a sua percepção visual é intermediada pelos ecrãs. Dessa forma, as possibilidades de imersão e interação propostas pelas duas ferramentas possuem aproximações e singularidades. Nos dois casos, assim como em qualquer ferramenta empregada para o processo criativo, as possibilidades poéticas podem ultrapassar as funcionalidades técnicas originalmente previstas para tais recursos tecnológicos, a exemplo dos cineclubes formados nas primeiras décadas do século XX por representantes das vanguardas europeias, como o dadaísmo e o surrealismo, pioneiros do cinema experimental. Assim como os artistas dadaístas exploraram os recursos do cinema, como o stop motion, transpondo elementos da linguagem pictórica para a cinematográfica e se apropriando dos recursos da linguagem cinematográfica para repensar a prática pictórica, muitos artistas hoje se apropriam dos recursos da realidade aumentada com os intuitos de repensar e expandir o processo criativo. A possibilidade de fundir em um mesmo campo visual as imagens que circundam o observador com uma vasta gama de conteúdos, em uma relação transmidiática, articulando dados, imagens, arquivos de áudio e vídeo permite que essa tecnologia dialogue com os mais diferentes interesses, do poético ao comercial, do lúdico ao crítico. Todavia, é importante observar que o emprego de uma determinada tecnologia nos processos artísticos implica em certos riscos. Quanto mais a proposta artística subverter as funcionalidades da ferramenta, expandindo-as em função do aspecto poético, maior será a capacidade do trabalho de sobreviver a obsolescência da ferramenta; todavia, caso a proposta artística mantenha com a ferramenta uma relação de dependência, evidenciando apenas as funcionalidades desta, o trabalho possivelmente não sobreviverá quando a tecnologia utilizada se tornar obsoleta. Interfaces: entre o autorretrato e a realidade aumentada Autorretrato e realidade aumentada. A relação entre um gênero tradicional da pintura e uma ferramenta tecnológica recente pode corresponder a uma estratégia para o uso poético da tecnologia da realidade aumentada. Tal fato pode ser justificado pela possibilidade de adicionar ao conteúdo visual presente no autorretrato informações em diferentes formatos midiáticos, expandindo assim a percepção que o observador terá da própria imagem. Para além da aparência da pessoa autorretratada, os conteúdos disponibilizados pela realidade aumentada podem revelar informações que dialoguem com a intimidade do artista. Da mesma forma, tal relação pode propor a discussão sobre a dupla dimensão de simulacro apresentada em um trabalho que articule a imagem gráfica, cuja representação está diretamente associada ao processo de observação ou registro da aparência de alguém, e os conteúdos virtuais, que se conectam ao autorretrato, dependendo dele para serem percebidos. Desta forma, entre a aparência do indivíduo que se autorretratou e o processo de fruição ao observar o trabalho, duas camadas de imagens serão sobrepostas, recriando a aparência para finalmente apresenta-la redimensionada. Tais aspectos estão na gênese do projeto INTERFACES: diálogos e construções entre o autorretrato e a realidade aumentada. A proposição de uma série de autorretratos com conteúdos em realidade aumentada pode suscitar várias questões, todavia uma questão previsível pode corresponder a necessidade ou não do emprego dessa ferramenta. Em que aspecto a tecnologia da realidade aumentada pode acrescentar elementos ao autorretrato que a pintura ou a fotografia já não o façam? Caso o objetivo do autorretrato corresponda apenas ao registroda aparência de um indivíduo, o emprego da realidade aumentada pode torna-se supérfluo. Contudo, se o objetivo do autorretrato consiste em expandir-se para a 8 condição de uma autobiografia, incluindo elementos em diferentes formatos midiáticos que registrem para além da aparência da pessoa autorretratada, apresentando em um mesmo sítio informações sobre a sua própria vida, a realidade aumentada pode tornar-se um recurso atrativo. O seu emprego evitaria os inúmeros percursos que o observador realizaria para abarcar, em um mesmo espaço expositivo, as diferentes médias expostas a partir de um arquivo autobiográfico. Em uma única imagem se fundiriam registros fotográficos, vídeos, textos, objetos manipuláveis, animações, atos performativos dentre outros, sendo garantida a cada média a sua autonomia, mas ao mesmo tempo, tecendo-se entre elas uma trama que resulta em uma imagem situada entre o autorretrato e a autobiografia. O emprego da realidade aumentada para o projeto INTERFACES permite que o autorretrato não fique limitado a apresentação de conteúdos virtuais. A própria ferramenta tecnológica pode ser utilizada para abordar os impactos que as tecnologias digitais de informação e comunicação exercem sobre o comportamento social. O fenômeno da selfie, o poder das redes sociais (que atuam como arquivos abertos das ações cotidianas dos usuários) e a ideia de monitoramento e controle que os gadgets podem exercer sobre a sociedade podem ser trabalhados de forma crítica, uma vez que tais fenômenos estão intimamente ligados ao universo de investigação e ao próprio cotidiano do investigador. O processo para a criação das imagens deve, portanto, partir de conceitos que orbitarão em torno da imagem, auxiliando na construção de cada autorretrato, como o apresentado a seguir. Figura 1 - Autorretrato n. 1 A escolha de um título que apresente apenas um número, indicando a existência de uma série de autorretratos e abdicando do direito de incluir informações adicionais é 9 justificado pela tentativa de evitar que o título direcione a leitura que o observador fará da imagem. Dessa forma, o Autorretrato n. 1 situa a imagem em uma linha temporal quanto ao processo criativo, mas não o faz em relação ao aspecto autobiográfico que resultará da reunião dos demais trabalhos. Apesar de apresentarem um sequenciamento numérico ordenado em função do processo criativo, uma vez expostos os autorretratos, no que tange ao aspecto autobiográfico, essa mesma sequência numérica não será respeitada. Os elementos simbólicos dispostos na imagem foram selecionados a partir do imaginário do autor e do recorte de um momento de sua vida ou de um determinado perfil de identidade. Nesse caso específico, a imagem corresponde ao processo de construção de uma identidade. O elemento que simboliza tal construção corresponde a figura do indígena a pintar a área dos olhos, aludindo às pinturas corporais realizadas em diferentes rituais pelas comunidades indígenas brasileiras. Ao ter a face pintada por um índio, o autor estabelece uma relação com a cultura indígena, relação esta que pode estar situada ou entre um sentimento de empatia pelas tradições culturais dos povos indígenas, ou entre os laços de parentesco. De qualquer forma, o autor não se autorretrata como um indígena. O seu rosto atua como uma fronteira entre a tradição e o progresso. A sua frente, indícios de uma natureza que sucumbe e as suas costas, o avanço da urbanização ilustrado pelas torres e cabos de energia. A própria figura do índio, posicionada de costas para o observador, situa-se entre o universo das tradições culturais e entre as influências da sociedade urbana e de consumo, fato evidenciado pelas vestimentas que incluem tanto o jeans e o tênis como os artigos feitos em arte plumária (braceletes e cocar). As suas ferramentas também reforçam essa relação, pois utiliza uma ânfora de cerâmica para depositar a tinta, mas para pintar emprega um rolo e para alcançar a altura dos olhos do autor, escala um andaime industrial. O ato de pintar parte do rosto do personagem autorretratado projeta em sua face os traços de uma identidade sufocada pelo comportamento urbano e contemporâneo e pelo desapego às tradições, ou mesmo o esquecimento da sua própria genealogia. Aparentemente, o Autorretrato n. 1 reúne em si os elementos necessários para que o observador associe os traços da cultura indígena aos elementos urbanos e a partir de tal articulação, os relacione a identidade do autor. Todavia, a imagem pode expandir-se para além dos limites do suporte através da ferramenta da realidade aumentada. Dessa forma, o autorretrato tanto permitirá que a representação fotográfica do autor seja preservada, como também aspectos performativos e autobiográficos, estando esses associados ao conteúdo apresentado em realidade aumentada através da vinculação à imagem impressa. A imagem passa a apresentar uma dupla capacidade de representação. Em um primeiro momento, parte da fisionomia do autor para representar a sua aparência, articulando-a com vários símbolos e estruturando o conceito de identidade pretendido; e num segundo momento, parte do ato performativo registrado em vídeo e apresentado como conteúdo virtual para superar o simples registro da aparência, revelando aspectos da essência do autor, ou seja, as dimensões sensível e inteligível. A aparição desse conteúdo e a sua dependência, quanto à apreciação, de uma ferramenta tecnológica sujeita à obsolescência, o situa na condição de fantasma. Um fantasma que requer lentes especiais para ser observado. 10 Figuras 2 e 3 – Autorretrato n. 1 em realidade aumentada Figura 4 – Autorretrato n. 1 em realidade aumentada O processo de criação de conteúdos virtuais e da própria tecnologia da realidade aumentada, assim como em qualquer outro processo criativo, exige o conhecimento das ferramentas empregadas para tal fim. Dessa forma, o uso poético da realidade aumentada exige que o autor do projeto conheça as funcionalidades ou manifeste o domínio dos mecanismos de criação. Para a execução do autorretrato n. 1, foram utilizados softwares para modelagem em 3d, como o Studio Max 3d, para a edição de imagem, como o Photoshop, para a edição de vídeo, como o Adobe Premiere e para a criação de aplicações para realidade aumentada, como o Vuforia e o Unity. Como o autor do projeto já possuía conhecimentos técnicos sobre os softwares para modelagem, edição de imagem e de 11 vídeo, buscou-se antes e durante o processo de criação apenas as informações para o desenvolvimento da aplicação. Tais informações foram encontradas com relativa facilidade na internet, todavia em muitos casos voltadas para outras funcionalidades e adequadas as necessidades e interesses do projeto em questão. Os conhecimentos técnicos voltados para o desenvolvimento de aplicações para realidade aumentada eram pesquisados a partir dos interesses poéticos do projeto. O Autorretrato n. 1, por corresponder a primeira experiência do autor com a tecnologia da realidade aumentada, tinha por objetivo inicial experimentar a associação de um conteúdo virtual com uma imagem target (imagens identificadas, rastreadas e usadas como alvos pelos softwares desenvolvidos para realidade aumentada). Ao mesmo tempo, explorou-se a relação entre o observador e o espaço expandido da imagem através da ilusão de uma paisagem em três dimensões. A paisagem e seus elementos, como um antigo aparelho de televisão que traz em seu interior um vídeo performativo do autor, podem ser observados de qualquer ângulo, aumentando a sensação de imersão e interatividade. O processo de texturização das imagens virtuais foi realizado sem o interesse de alcançar um realismo intenso. Tal motivação visa evidenciaro aspecto ficcional da imagem, situando-a como um duplo ou um simulacro e não como um fragmento do mundo tangível. O porvir A experiência de trabalhar articulando dois aspectos aparentemente ímpares da imagem, a tradição e a inovação, corresponde a um processo de aprendizado. Aprendizado no sentido lato da palavra, pois exigiu a apreensão de novos saberes técnicos bem como o exercício das poéticas visuais, tudo voltado para o desejo de obter uma imagem híbrida, situada entre o tangível e o virtual, preservando o aspecto representacional, mas ao mesmo tempo transformando a imagem em um arquivo autobiográfico formado por diferentes médias. Por tratar-se de um primeiro trabalho, os resultados obtidos são superficiais e limitados ao exemplo aqui analisado, todavia o objetivo inicial foi alcançado, obter uma composição que explore o hibridismo entre uma imagem tangível e uma imagem virtual. Outro objetivo alcançado corresponde ao aspecto transmidiático da imagem, obtido pela inclusão do vídeo através da realidade aumentada. Os objetivos alcançados durante a execução do Autorretrato n. 1 auxiliarão no planejamento e execução dos demais. Durante o processo criativo, buscar-se-á um diálogo permanente com a dimensão do duplo presente na imagem, não apenas para reforçar o aspecto ficcional e representacional presente nesta, mas a partir de um ato reflexo, fazer com que os autorretratos em realidade aumentada exerçam sobre o público uma força inicial de atração através dos apelos da imersão e da interação, para posteriormente exercerem uma força oposta de repulsão, obrigando o observador a se distanciar ao perceber que as imagens não passam de simulacros. REFERÊNCIAS AZARA, Pedro. El ojo y la sombra: uma mirada al retrato em occidente. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, Sl, 2002. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013. 12 DOMINGUES, Diana; VENTURELLI, Suzete. <<Cibercomunicação cíbrida no continuum virtualidade aumentada e realidade aumentada – era uma vez ... a realidade>>. IN: Revista ARS, ECA-USP, São Paulo, 2008. Sontag, Susan. «O Mundo das Imagens». Em Ensaios sobre fotografia, 149–175. [1977]. Lisboa: Quetzal Editores, 2012. Vernant, Jean-Pierre. «Figuration et image». Mètis. Anthropologie des mondes grecs anciens 5, n 1–2 (1990): 225–238.