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O crime como mercadoria: a mídia e a construção imagética do homem delinquente

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Núcleo de Prática Jurídica III – Seminário
Manuela Gatto, RA00207643
Prof. Plínio Gentil
1. O estudo da relação entre mídia e o Direito Penal tem estado em voga nos círculos acadêmicos neste último período. No Brasil, este tema ganhou notoriedade, sobretudo após o circo midiático sob o qual se desenvolveram e legitimaram inúmeras ilegalidades, no bojo da Operação Lava-Jato. Sob o pretexto de perseguição à corrupção, a mídia fomentou o que denominamos lawfare, em que ocorrem perseguições de tipo político por justificativas jurídicas.
2. Todavia, é muito anterior a noção de que os meios de comunicação possuem relação intrínseca com o poder punitivo. 
ZAFFARONI, em sua extensa e genial obra, essencial para pensar a criminologia desde o ponto de vista latino-americano, traz o debate sobre o papel fulcral que possuem os meios de comunicação num processo de reificação (MARX) da realidade no sentido da legitimação do controle social punitivo.
De acordo com as circunstâncias, com o momento de poder, se cria o sentimento de insegurança (que pode ou não corresponder a realidade), tal como a identificação de inimigos (criação de estereótipos – definição de papéis sociais positivos e negativos, os últimos, disruptivos). Assim, podemos observar que depende muito da mídia a construção do papel e da imagem da delinquência, em seu escopo ideológico.
4. A expansão do Direito Penal, fenômeno mundial, caracteriza-se pelo estabelecimento de novas políticas repressivas, que visam, sobretudo, atacar o terrorismo, o crime organizado e o tráfico de drogas. 
No intuito de justificar tais políticas – que expandem o jus puniendi estatal, e, via de regra, avançam sobre liberdades individuais a mídia tem importante papel.
Conforme supracitado, a construção da imagem da delinquência e a criação destes inimigos provem de uma manipulação do medo (ZAFFARONI) da qual se valem os meios de comunicação.
5. Em consequência, neste imaginário pouco importa a dinâmica dos delitos em particular e tampouco a prevenção dos mesmos. O que interessa é projetar a necessidade prevenção ou a insegurança. A este fenômeno, denominamos de punitivismo penal midiático, processo “que reflete uma canalização irracional das demandas sociais por mais proteção como demandas por mais punição”.
6. Na medida em que vamos descendo na escala social, vemos com mais força o processo de “importação de discursos repressivistas, que encontram alta receptividade na população” – tome-se como exemplo a aceitação de panaceias como a da pena de morte, amplamente maior nas classes sociais mais baixas. Sobre isto, vejamos:
“a criminologia midiática não tem limites, que ela vai num crescendo infinito e acaba clamando pelo inadmissível: pena de morte, expulsão de todos os imigrantes, demolição dos bairros pobres, deslocamento de população, castração dos estupradores, legalização da tortura, redução da obra pública à construção de cadeias, supressão de todas as garantias penais e processuais, destituição dos juízes.”[footnoteRef:1] [1: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferência de criminologia cautelar, São Paulo: Ed. Saraiva, 2012.] 
7. Ainda que seja esta, justamente, a classe a que atinge a criminalização seletiva (basta observarmos a composição de nossa população encarcerada), vemos esta legitimação do poder punitivo, pois o que ocorre é que os processos de vitimização também são seletivos[footnoteRef:2]. Ou, nas palavras de Albrecht: [2: Segundo o Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mulheres, jovens e negros de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país. A população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. O documento revela que a cada 100 pessoas assassinadas, em 2017, 71 eram negras. Em sua grande maioria mulheres e jovens. ] 
“Nesse diapasão, a criminalidade, ou melhor, o medo de tornar-se vítima de um delito, transforma-se em mercadoria/produto da indústria cultural, razão pela qual a sua imagem pública é traçada de forma espetacular e onipresente, superando, não raro, a fronteira do que é passível de constatação empírica” 
(ALBRECHT, 2000). 
No mundo contemporâneo, portanto, o controle social não se realiza pelo tanque de guerra ou cossacos rondeando as favelas. Ele se produz de maneira muito mais sinistra, que é através do fomento de contradições entres os próprios indivíduos da classe trabalhadora. 
8. Cabe observar, nesta esteira, que a representação imagética da violência (seja pelos meios de massa, seja pela arte e literatura) proporciona uma sensação de realidade. A imagem reflete a coisa material, concreta e não nos incentiva ao desenvolvimento do pensamento abstrato, de certa forma um desincentivo à inteligência. Segundo Adorno:
 “ O fazer um exercício de compreensão da estética da violência - um conceito oriundo da Teoria Estética da indústria cultural - é relevante considerar que desse ponto de vista, a forma é determinante para a construção do sentido, pois representa a antítese da arte e da vida empírica, porque a forma se concretiza pelo aspecto da objetividade na arte” (ADORNO, 1988)
9. Tal sensação, todavia, não corresponde a realidade necessariamente. Vemos corresponder em países com baixo índice de violência a criação midiática da violência. E nos países com alto índice, como os latino-americanos, a manipulação de feitos para a banalização desta. De forma ou outra, cria-se uma sensação de insegurança desproporcional em relação a realidade.
10. “As representações midiáticas dos “problemas sociais”, assim, permitem, de acordo com a análise de Bourdieu (1997), grandes “recortes” na realidade, de forma a apresentar ao público consumidor apenas os fatos que interessem a todos, quais sejam, os fatos omnibus, que, por essa característica, não dividem, mas, pelo contrário, formam consensos, mas de um modo tal que não tocam – como denunciado por Glassner – na essência do problema.
Nesse sentido, a mídia – e em especial a televisão – acaba por “ocultar mostrando”, ou seja, “mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar”; ou, por outro lado, “mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade.” (BOURDIEU, 1997, p. 24)”. 
11. Trata-se de uma verdadeira “cultura do medo” (GLASSNER), onde destaca-se a grande distância que medeia entre aquilo que é noticiado e a realidade fática. Fato é que, de forma insidiosa, esta cultura cria uma onda justiceira que corrói as bases do próprio Estado de Direito, na medida em que influencia diretamente os discursos e ações daqueles responsáveis pela aplicação da lei, afastando-os justamente dos limites que deveriam resguardar.
12. Em suma, cria-se um fenômeno em que pela vinculação da imprensa à política econômica neoliberal, a mídia passa a ter força legitimante do sistema punitivo. A Criminologia Midiática, como podemos denominar, tem como “núcleo irradiador a própria ideia de pena: antes de mais nada, creem na pena como rito sagrado de solução” (BATISTA, 2009).
13. Em tempos de Crise da República (ARENDT), em que as instituições democráticas carecem de legitimação popular, o controle ideológico realizado pela Criminologia Midiática corresponde a interesse politico que cria a indignação moral em prol de um sentimento de necessidade de mais segurança (ZAFFARONI), ou seja, de intervenções estatais.
14. E o efeito produzido ultrapassa, propriamente, a legitimação do jus puniendi e passa a abarcar a própria deslegitimização do jus libertatis. Nas palavras de BATISTA:
“tensões graves se instauram entre o delito-notícia, que reclama imperativamente a pena- notícia, diante do devido processo legal (apresentado como estorvo), da plenitudede defesa (o locus da malícia e da indiferença), da presunção de inocência (imagine-se num flagrante gravado pela câmara!) e outras garantias do Estado democrático de direito”, as quais ‘só liberarão as mãos do verdugo quando o delito-processo alcançar o nível do delito-sentença (= pena-notícia)’”
15. Mas, é claro, tal fenômeno não ocorre de maneira abstrata e irrestrita. Como característica intrínseca do sistema de justiça criminal (BARATTA), a aplicação do poder punitivo estatal é desequilibrada e recai com maior tolerância sobre determinadas condutas e indivíduos e com muito mais força sobre os demais.
E neste processo de seletividade, é imperioso o papel que cumpre a Criminologia Midiática para engendrar, mais do que um estereótipo de delinquente, um segmento social de párias, cuja função é ser uma casta inferior (WEBER).
 16. “Como para concluir que eles devem ser criminalizados ou eliminados, o bode expiatório deve infundir muito medo e ser crível que seja ele o causador único de todas as nossas aflições” (ZAFFARONI).
17. Historicamente, podemos perceber que não nos é estranha a figura deste bode expiatório. Pós o 11 de Setembro, a figura do terrorismo islâmico enquanto inimigo, a guerra ao terror, pôde engendrar as políticas de segurança pública da qual derivou o Patriot Act, cujas violações à privacidade e liberdade dos cidadãos americanos (e de todo o mundo), pudemos perceber apenas após os escândalos recentes causados pelos vazamentos da National Security Agency.
18. No Brasil e na América Latina em geral, podemos perceber que esta figura muito se associa ao tráfico de drogas e a narrativa sensacionalista da Guerra às Drogas, e refere-se sobretudo a jovens periféricos, segundo WACQUANT:
“jovens desempregados deixados a sua própria sorte, mendigos e “sem teto”, nômades e toxicômanos à deriva, imigrantes pós-coloniais sem documentos ou amparo – tornaram-se muito evidentes no espaço público, sua presença indesejável e seu comportamento intolerável porque são a encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada, produzida pela erosão do trabalho assalariado estável e homogêneo”.
	19. “O sujeito criminoso imageticamente construído, que passa a representar a desordem social, deve ser combatido, segundo a exposição midiática, pelo Estado, que passa então a recrudescer suas políticas penais para atender a uma população cada vez mais temerosa e exigente. Em conjunto a esses fatores, torna-se perceptível um discurso de impunidade propagado pela mídia brasileira. Os noticiários sensacionalistas transmitem o aumento da criminalidade, fatores contraproducentes na sensação de segurança, na medida em que discutem as ‘políticas penais ineficientes’, segundo as quais “ninguém fica preso no Brasil, passando ao revés de qualquer garantia processual inerente ao caso concreto, caindo na malha do senso comum”.
	20. “Consolida-se, consequentemente, um estado punitivo, legitimado pelos discursos midiáticos criminalizantes e ideológicos baseados em discursos rasos de saber e que, irremediavelmente, asseveram a (necessária) criminalização da miséria”
	21. Porém, em sentido contrário ao concluído pelo texto, não acredito que este lugar, da criminalização da miséria é o que impera o estado de exceção, em substituição ao Estado Democrático de Direito.
	Me parece que é este próprio o lugar do Estado Democrático de Direito, da Democracia Burguesa. Cabe aqui refletir que muito disto remete à própria conformação do Sistema Penal nos marcos do Estado Burguês. MARX, no Capítulo XXIV de seu O Capital, ao descrever os processos de acumulação originária capitalista, trata que aos camponeses expropriados que não se adaptaram ao trabalho nas grandes cidades, restou a ociosidade e a miserabilidade – condutas as quais passaram a ser criminalizadas (“bandos fora da lei”) no sentido de possibilitar aos capitalistas o exercício de controle de seu exército de reserva de mão de obra (controle populacional).
	22. A criminologia crítica desenvolvida, desde então, demonstra que a guerra as drogas, cárcere não cumpre nenhuma das suas funções declaradas e é um projeto técnico-corretivo absolutamente fracassado. Mas é também a criminologia crítica que demonstra o quanto esse projeto é só aparentemente fracassado, porque cumpre sua função real de reprodução de desigualdade e manutenção de uma ordem social injusta e violenta contra as massas criminalizadas.

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