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TEMPO PASSADO CULTURA DA MEMORIA E GUINADA SUBJETIVA Beatriz Sarlo COMPANHlA DAS LETRAS ( EDITORA ufmg ) Tradufao Rosa Freire d'Aguiar Reitor Ronaldo Tadeu Pena Vice-Reitora Heloisa Maria Murgel Starling Diretor Wander Melo Miranda Vice-Diretora Silvana C6ser Conselho Editorial Wander Melo Miranda (presidente) Carlos Ant6nio Leite Brandao Jose Francisco Soares Juarez Rocha Guimaraes Maria das Gra~as Santa Barbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Sergio Lacerda Beirao Silvana C6ser Tempo passado Cultura da memoria eguinada subjetiva Editora UFMG Av. Ant6nio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central- Terreo Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG Tel.: (31) 3499-4650 Fax: (31) 3499-4768 E-mail: editora@ufmg.br www.editora.ufmg.br ( EDIToRAufmg ) ft COMPANHlA DAS LETRAS mailto:editora@ufmg.br http://www.editora.ufmg.br Tiempo pasado ha sido publicado originalmente en espafiol en 2005. Esta traducci6n es publi- cada mediante acuerdo con Siglo XXI Editores Argentina [Tempo passado foi publicado ori- ginalmente em espanhol em 2005· Esta tradu~ao epublicada mediante acordo com Siglo XXI Editores Argentina]. Tftulo original Tiempo pasado - Cultura de la memoria y giro subjetivo. Una discusi6n Capa Raul Loureiro Imagem da capa Fanfare (1974), de George Dannatt, guache e lapis sobre acrilico. © Cole~ao particular/ The Bridgeman Art Library Preparafiio Marcos Luiz Fernandes Revisiio Carmen S. da Costa Isabel Jorge Cury Dados Internacionais de CataJogar;ao oa Publicartao (CIP) (Camara Brasileira do Livro. SP, Brasil) Sarlo. 8eatriz Tempo passado : cultura da mem6ria e guinada subjetiva I Beatriz Sarlo; tradurtao Rosa Freire d' Aguiar. - Sao Paulo : Companhia das Letras; Belo Horizonte,: UFMG, 2007. Thulo original: Tiempo pasado. ISBN978-85-359-0981_4 (Campaohia das Lelras) ISBN978-85-7041-583-7 (Ed. UFMG) 1. Argentina - Condir;Oes sociais . 1945-1983 2. Argentina _ Condir;oes sociais - 1983 - 3. Mem6ria - Aspectos sociais - Argentina 4. Terrorismo de Estado - Argentina - Historiografia S. Viti mas de terrorismo de Estado _ Argentina - Historiografia. fndice para catalogo sistematico: I. Argentina: Hist6ria social 982 [2007] Todos os direi tos desta edi~ao reservados a EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 - Sao Paulo - sp Telefone (n) 3707-3500 Fax (n) 3707-3501 WWW.companhiadasletras.com.br 1.Tempo passado, 9 2. Critica do testemunho: sujeito e experiencia, 23 3.A ret6rica testemunhal, 45 4. Experiencia e argumenta<;:ao, 69 5. P6s-mem6ria, reconstitui<;:6es,90 6.Alem da experiencia, 114 http://WWW.companhiadasletras.com.br 1. Tempo passado o passado e sempre conflituoso. A ele se referem, em concor- reneia, a memoria e a historia, porque nem sempre a historia con- segue acreditar na memoria, e a memoria desconfia de uma recons- tituic;:aoque nao coloque em seu centro os direitos da lembranc;:a (direitos de vida, de justic;:a,de subjetividade). Pensar que poderia existir urn entendimento faeil entre essas perspectivas sobre 0pas- sado e urn desejo ou urn lugar-comum. Alem de toda deeisao publica ou privada, alem da justic;:ae da responsabilidade, ha algo inabordavel no passado. So a patologia psicologica, intelectual ou moral e capaz de reprimi-Io; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando 0presente como a lembran- c;:aque irrompe no momenta em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda 0 fato do qual nao se quer ou nao se pode lembrar. Nao se preseinde do passado pelo exerdeio da deei- sao nem da inteligencia; tampouco ele e convocado por urn sim- ples ato da vontade. 0 retorno do passado nem sempre e urn momenta libertador da lembranc;:a,mas urn advento, uma captu- ra do presente. Propor-se nao lembrar e como se propor nao perceber urn cheiro, porque a lembranya, assim como 0 cheiro, acomete, ate mesmo quando nao e convocada. Vinda nao se sabe de onde, a lem- branya nao permite ser deslocada; pelo contnirio, obriga a uma per- seguiyao, pois nunca esta completa. A lembranya insiste porque de certo modo e soberana e incontrolavel (em todos os sentidos dessa palavra). Poderiamos dizer que 0 passado sefaz presente. E a lem- branya precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a res- peito de Bergson, 0 tempo proprio da lembranya e 0 presente: isto e, o unico tempo apropriado para lembrar e, tambem, 0 tempo do qual a lembranya se apodera, tornando-o proprio. E possivel nao falar do pass ado. Uma familia, urn Estado, urn ~overno podem sustentar a proibiyao; mas s6 de modo aproxima- tlVOou figurado ele e eliminado, a nao ser que se eliminem todos os sujeitos que 0 carregam (seria esse 0 final enlouquecido que nem sequer a matanya nazista dos judeus conseguiu ter). Em con- diyoes subjetivas e politic as "normais': 0 passado sempre chega ao presente. Essa obstinada invasao de urn tempo (antigo) em outro (agora) irritou Nietzsche, que 0 denunciou em sua batalha contra o historicismo e contra uma "hist6ria monumental" repressora dos impulsos do presente. Inversamente, uma "hist6ria critica" que "julga e condena" e a ~ue corresponderia "aquele cujo peito e oprimido por uma neces- sldade presente e que, a todo custo, quer se libertar dessa carga': J A den~ncia de Nietzsche (que Walter Benjamin ouviu) se dirigia a pOSlyOeSda hist6ria traduzidas em poder simb61ico e em uma ~ireyao sobre 0 pensamento. A hist6ria monumental afogava 0 lmpulso "a-hist6rico" de produyao da vida, a forya pela qual 0 pre- se~te a:ma uma relayao com 0 futuro, e nao com 0 passado.A dia- tnbe metzschiana contra 0 historicismo, articulada no contexto de seus inimigos contemporaneos, ainda hoje pode fazer valer seu alerta. As ultimas decadas deram a impressao de que 0 imperio do passado se enfraquecia diante do "instante" (os lugares-comuns sobre a p6s-modernidade, com suas operayoes de "apagamento", repicam 0 luto ou celebram a dissoluyao do passado); no entanto, tambem foram as decadas da museificayao, da heritage, do passado- espetaculo, das aldeias Potemkin * e dos theme-parks hist6ricos; daquilo que Ralph Samuel chamou de "mania preservacionista";2 do surpreendente renascer do romance hist6rico, dos best -sellers e filmes que visitam desde Tr6ia ate 0 seculo XIX, das hist6rias da vida privada, por vezes indiferenciaveis do costumbrismo, da recic1a- gem de estilos, tudo isso que Nietzsche chamou, irritado, de hist6- ria dos antiquarios. "As sociedades ocidentais estao vivendo uma era de auto-arqueologizayao", escreveu Charles Maier.3 Esse neo-historicismo deixa os historiadores e ide610gos in- conformados, assim como a hist6ria natural vitoriana deixava inconformados os evolucionistas darwinistas. Indica, porem, que as operayoes com a hist6ria entraram no mercado simb6lico do capitalismo tardio com tanta eficiencia como quando foram obje- to privilegiado das instituiyoes escolares desde 0 fim do seculo XIX. Mudaram os objetos da hist6ria - a academica e a de grande cir- culayao _, embora nem sempre em sentidos identicos. De urn lado, a hist6ria social e cultural deslocou seu estudo para as mar- gens das sociedades modernas, modificando a nOyao de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os pormenores cotidianos articu- lados numa poetica do detalhe e do concreto. De outro, uma linha da hist6ria para 0 mercado ja nao se limita apenas a narrayao de uma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado, mas *0 ministro russo Grigori Potemkin teria mandado construir vilarejos falsos de cartao-pedra ao longo do percurso da czarina Catarina II durante sua visit a a Crimeia, em 1787, a fim de convence-Ia do valor de suas novas conquistas terri- toriais. Desde entao, a expressao "aldeia Potemkin" e usada para constru.;:oes lite- rais ou figuradas que se destinam a esconder uma situayao indesejavel. (N. T.) tambem adota urn foco proximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na reconstituis:ao de suas vidas. Essas mudans:as de perspectiva nao poderiam ter acontecido sem uma varias:ao nas fontes: 0 lugar espetacularda historia oral e reconhecido pela disciplina academica, que, ha muitas decadas, considera totalmente legitim as as fontes testemunhais orais (e, por instantes, da impressao de julga-Ias mais "reveladoras"). Por sua vez, historias do passado mais recente, apoiadas quase que apenas em operas:oes da memoria, atingem uma circulas:ao extradiscipli- nar que se estende a esfera publica comunicacional, a politica e, ocasionalmente, recebem 0 impulso do Estado. As "visoes de passado" (segundo a formula de Benveniste) sao construs:oes. Justamente porque 0 tempo do passado nao pode ser e~iminado, e e urn perseguidor que escraviza ou liberta, sua irrup- s:aono presente e compreensivel na medida em que seja organiza- do por procedimentos da narrativa, e, atraves deles, por uma ideo- logia que evidencie urn continuum significativo e interpretavel do tempo. Fala-se do passado sem suspender 0 presente e, muitas vezes, implicando tambem 0 futuro. Lembra-se, narra-se ou se remete ao passado por urn tipo de relato, de personagens, de rela- s:aoe~tre suas as:oesvoluntarias e involuntarias, abertas e secretas, defimdas por objetivos ou inconscientes; os personagens articu- lam grupos que podem se apresentar como mais ou menos favora- veis a independencia de fatores externos a seu dominio. Essas modalidades do discurso implicam uma conceps:ao do social e, eventualmente, tambem da natureza. Introduzem urn tom domi- nante nas "visoes de passado': Nas narras:oes historicas de grande circulas:ao, urn fechado circulo hermeneutico une a reconstituis:ao dos fatos a interpreta- ao de seus sentidos e garante visoes globais, aque1as que, na ambi-s: L ' h . s:aodos grandes historiadores do seculo XIX, loram as smteses oJ.e consideradas ora impossiveis, ora indesejaveis e, em geral, concel- tualmente erroneas. Se, como ja disse ha quarenta anos Hans- Robert Jauss, ninguem se proporia a escrever a historia geral de uma literatura, como foi projeto dos filologos e historiadores do seculo XIX, as historias nao academicas, dirigidas a urn publico for- mado por nao-especialistas, pressupoem sempre uma sintese. As regras do metodo da disciplina historica (incluindo suas lutas de poder academico) supervisionam os modos de reconsti- tuis:ao do passado ou pelo menos consideram ser esse urn ideal epistemologico que garante 0 artesanato aceitavel de seus produ- tos. A discussao das modalidades reconstitutivas e explicita, 0 que nao quer dizer que a partir dela se alcance uma historia de grande interesse publico. Isso depende, antes, do texto e de temas que cha- mem a atens:ao dos especialistas; e depende tambem de 0 histo- riador academico nao se obstinar em provar obtusamente sua aquiescencia as regras do metodo, mas, ao contrario, d~ demons- trar que elas sao importantes justamente porque permltem fazer uma historia melhor. Em contra partida, a historia de grande circulas:ao e sensivel as estrategias com que 0 presente torna funcional a investida do pas- sado e considera total mente legitimo po-Io em evidencia. Se nao encontra resposta na esfera publica atual, ela fracassa e perde todo o interesse. A modalidade nao academica (ainda que praticada por urn historiador de formas:ao academica) escuta os sentidos comuns do presente, atende as crens:as de seu publico e orienta-se em funs:ao delas. Isso nao a torna pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginario social contemporaneo, cujas pressoes ela recebe e aceita mais como vanta gem do que como limite. Essa historia de massas de impacto publico recorre a uma mesma f6rmula explicativa, a urn principio teleo16gico que garan- te origem e causalidade, aplicavel a todos os fragmentos de pass a- do, independentemente da pertinencia que demonstre com cada urn deles em concreto. Urn principio organizador simples exerce sua soberania sobre acontecimentos que a hist6ria academica con- sidera influenciados por principios multiplos. Essa reduyiio do campo das hip6teses sustenta 0 interesse publico e produz uma nitidez argumentativa e narrativa que falta a hist6ria academica. Niio s6 a hist6ria de massas recorre ao relato, como niio pode pres- cindir dele (a diferenya do abandono freqiiente e deliberado do relato na hist6ria academica); portanto, impoe unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma "linha do tempo" consolidada em seus n6s e desenlaces. Seus grandes esquemas explicativos siio relativamente inde- pendentes da materia do passado, sobre a qual impoem uma linha superior de significados. A forya organizadora desses esquemas alimenta-se do "sentido comum" com 0 qual coincide. A esse modelo tambem corresponderam as"hist6rias nacionais" de difu- siio escolar: urn panteiio de her6is, urn grupo de excluldos e repro- bos, uma linha de desenvolvimento unitario que conduzia ate 0 presente. A quebra de legitimidade das instituiyoes escolares em alguns palses e, em outros, a incorporayiio de novas perspectivas e novos sujeitos afetaram tambem as "hist6rias nacionais" de estilo tradicional. As modalidades niio academic as de texto encaram a investida do passado de modo men os regulado pelo ofkio e pelo metoda, em funyiio de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou poHticas. Muito do que foi escrito sobre as decadas de 1960 e 1970 na Argentina (e tambem em outros palses da America Latina), em especial as reconstituiyoes baseadas em fontes teste- munhais, pertence a esse estilo. Sao versoes que se sustentam na esfera publica porque parecem responder plenamente as pergun- tas sobre 0 passado. Garantem urn sentido, e por isso podem ofe- recer consolo ou sustentar a ayiio.Seus principios simples redupli- cam modos de percepyao do social e nao apresentam contradiyoes com 0 senso comum de seus leitores, mas 0 sustentam e se susten- tam nele. Ao contrario da boa hist6ria academica, niio oferecern urn sistema de hip6teses, mas certezas. Esses modos da hist6ria respondem a inseguranya perturba- dora causada pelo passado na ausencia de urn principio explicati- vo forte e com capacidade inclusiva. Everdade que as modalidades comerciais (porque essa e sua circulayiio nas sociedades midiatiza- das) despertam a desconfianya, a crftica e tambem a inveja ranco- rosa daqueles profissionais que baseiam sua pratica apenas na roti- na do metodo. Como a dimensiio simb6lica das sociedades em que vivemos esta organizada pelo mercado, os criterios siio 0 exito e 0 alinhamento com 0 senso comum dos consumidores. Nessa con- correncia, a hist6ria academica perde por motivos de metodo, mas tambem por suas pr6prias restriyoes formais e institucionais, que a tornam mais preocupada com regras intern as do que com a busca de legitimayoes externas que, se siio alcanyadas por urn his- toriador academico, podem ate originar a desconfianya de seus pares. As hist6rias de grande circulayao, em contrapartida, reco- nhecem na repercussao publica de mercado sua legitimidade. Ha decadas 0 olhar de muitos historiadores e cientistas sociais inspirados no etnografico deslocou-se para a bruxaria, a loucura, a festa, a literatura popular, 0 campesinato, as estrategias do coti- diano, buscando 0 detalhe excepcional, 0 vestigio daquilo que se opoe a normalizayao e as subjetividades que se distinguem por uma anomalia (0 louco, 0 criminoso, a iludida, a possessa, a bruxa), porque apresentam uma refutayao as imposiyoes do poder material ou simbolico. Mas tambem se acentuou 0 interesse pelos sujeitos "normais", quando se reconheceu que nao so eles seguiam itinenirios sociais trayados, como protagonizavam negociayoes, transgressoes e variantes. Num artigo pioneiro da imaginativa etnografia social,< Michel de Certeau apresentou as estrategias inventadas por openirios na fabrica para agir em proveito proprio, tirando vantagem de oportunidades minimas de inovayao, nao politica nem ideologica, mas cultural: usar em casa as ferramentas do patrao ou levar escondida uma pequena parte da produyao. Esses atos de rebeliao cotidiana, as "tretas do fraco", como escreve De Certeau, haviam ficado invisiveis para os eruditosque fIxaram a vista nos grandes movimentos coletivos - quando nao so em seus dirigentes -, sem descobrir nas dobras culturais de toda pra- tica 0 prindpio de afIrmayao da identidade, invisivel na otica que definia uma "visao de passado" em que nao havia interesse pela inventividade subalterna, e portanto, nesse drculo vicioso de metodo, nao era capaz de observa-Ia. As hipoteses de Michel de Certeau fundiram-se de tal forma com a ideologia das historias de "novos sujeitos" que ele e pouco mencionado como urn de seus teoricos inovadores (hoje se pin- yam mais citayoes de Homi Bhabha do que da historia francesa ou do materialismo britanico). Os novas sujeitos do novo passado sao esses "cayadores furtivos" que podem fazer da necessidade virtude que modifIcam sem espalhafato e com astucia suas condiyoes d~ vida, cujas praticas sao mais independentes do que pensaram as t~orias da ideologia, da hegemonia e das condiyoes materiais, ins- pl~ad~s. nos distintos marxismos. No campo desses sujeitos ha pn.nclplOS de rebeldia e prindpios de conservayao da identidade, dOlStrayos que as "politic as da identidade" valorizam como auto- constituintes. As "historias da vida cotidiana", produzidas, em geral, de modo coletivo e monografIco no espayo academico, as vezes tern um publico que esta alem desse ambito, justamente pelo interes- se "romanesco" de seus objetos. 0 passado volta como quadro de costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceyao a regra, as curiosidades que ja nao se encontram no pre- sente. Como se trata da vida cotidiana, as mulheres (especialistas nessa dimensao do privado e do publico) ocupam uma parcela relevante do quadro. Esses sujeitos marginais, que teriam sido relativamente ignorados em outros modos de narrayao do pass a- do, demandam novas exigencias de metodo e tendem a escuta sis- tematica dos "discursos de memoria": diarios, cartas, conselhos, orayoes. Esse reordenamento ideologico e conceitual do passado e seus personagens coincide com a renovayao tematica e metodologica que a sociologia da cultura e os estudos culturais realizaram sobre o presente. Em The uses of literacy, 0 livro pioneiro de Richard Hog- gart, a vida domestica, a organizayao da casa operaria e popular, as ferias, a administrayao das despesas em condiyoes de relativa es- cassez, as diversoes familiares esboyam um programa de pesquisas futuras que dizem respeito nao so aos estudos culturais, como tambem as reconstituiyoes do passado. Hoggart realiza esse pro- grama em 1957, antes que ele seja apresentado como grande ino- vayao teorica. Num gesto que, nos anos 1950, podia ser considera- do suspeito pelas ciencias sociais, Hoggart trabalha com suas lembranyas e experiencias de infancia e adolescencia, sem se con- siderar obrigado a fundamentar teoricamente a introduyao dessa dimensao subjetiva. No prologo da ediyao francesa, Jean-Claude Passeron avisa aos leitores que eles se encontram diante de uma nova forma de abordar um objeto que ainda nao estabelecera de vez sua legitimidade. Em 1970, Passeron ainda se sente obrigado a escrever: "E verda de que uma experiencia autobiografIca nao constitui, por si so, um protocolo de observayao metodica [... J. Mas a obra de Hoggart tern justamente essa caracteristica - embora a vivacidade da descri<;:aodissimule as vezes sua organiza- <;:aosubjacente - de se ordenar segundo urn plano de observa<;:ao que traz a marca e os conceitos operativos do inventario etnogra- fico':s Em suma: Passeron reconduz Hoggart aos marcos discipli- nares,justamente porque 0 recurso a primeira pessoa e a experien- cia pr6pria podia, naqueles longinquos 1970, dar a impressao de que os enfraquecia. A ideia de entender 0 passado a partir de sua l6gica (uma uto- pia que moveu a hist6ria) emaranha-se com a certeza de que isso, em primeiro lugar, e absolutamente possivel, 0 que ameniza a complexidade do que se deseja reconstituir; e, em segundo lugar, de que isso se a1can<;:aquando nos colocamos na perspectiva de urn sujeito e reconhecemos que a subjetividade tern urn lugar, apresen- tado com recursos que, em muitos casos, vem daquilo que, desde meados do seculo XIX, a literatura experimentou como primeira pessoa do relato e discurso indireto livre: modos de subjetiva<;:ao do narrado. Tomando-se em conjunto essas inova<;:oes,a atual ten- den cia academica e do mercado de bens simb6licos que se propoe a reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememo- ra<;:aoda experiencia, a revaloriza<;:ao da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindica<;:ao de uma dimensao subjetiva, que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do presente, nao sao surpreendentes. Sao passos de urn programa que se torna explicito, porque ha condi<;:oesideol6gicas que 0 sus- tentam. Contemporflllea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 de "guinada lingiiistica" ou muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, impos-se a guinada subjetiva. Esse reordenamento ideol6gico e conceitual da sociedade do passado e de seus personagens, que se concentra nos direitos e na verdade da subjetividade, sustenta grande parte da iniciativa reconstituidora das decadas de 1960 e 1970. Coincide com uma renova<;:aoanaloga na sociologia da cultura e nos estudos cultu- rais, em que a identidade dos sujeitos voltou a tomar 0 lugar ocupa- do, nos anos 1960, pelas estruturas.6 Restaurou-se a razao do sujei- to,que foi, ha decadas, mera "ideologia" ou "falsa consciencia", isto e, discurso que encobria esse dep6sito escuro de impulsos ou man- datos que 0 sujeito necessariamente ignorava. Por conseguinte, a hist6ria oral e 0 testemunho restituiram a confian<;:anessa primei- ra pessoa que nana sua vida (privada, publica, afetiva, politica) para conservar a lembran<;:a ou para reparar uma identidade machucada. Este livro trata do passado e da mem6ria das ultimas decadas. Reage nao aos usos juridicos e morais do testemunho, mas a seus outros usos publicos. Analisa a transforma<;:ao do testemunho em urn icone da Verdade ou no recursO mais importante para a reconstitui<;:aodo passado; discute a primeira pessoa como forma privilegiada diante de discursos dos quais ela esta ausente ou des- locada. A confian<;:ano imediatismo da voz e do corpo favorece 0 testemunho.O que me proponho e examinar as razoes dessa con- fian<;:a. Durante a ditadura militar, algumas questoes nao podiam ser pensadas a fundo, eram examinadas com cautela ou afastadas a espera de que as condi<;:oespoliticas mudassem. 0 mundo se divi- dia c1aramente em amigo e inimigo e, sob uma ditadura, e preciso manter a certeza de que a separa<;:ao e taxativa. A critica a luta armada, por exemplo, parecia tragicamente paradoxal quando os militantes eram assassinados. De toda maneira, durante os anos da ditadura, na Argentina e no exilio, refletiu-se justamente sobre esse tema, mas a discussao aberta, sem chantagens morais, s6 come~ou, e a muito custo, com a transi~ao democnitica. Passaram- se vinte anos e, portanto, e absurdo negar-se a pensar sobre qual- quer coisa e sobre as conseqiiencias que possam advir de seu exame. 0 espa~o de liberdade intelectual se defende ate mesmo diante das melhores inten~oes. A memoria foi 0dever daArgentina posterior a ditadura mili- tar e 0 e na maioria dos palses da America Latina. 0 testemunho possibilitou a condena~ao do terrorismo de Estado; a ideia do "nunca mais" se sustenta no fato de que sabemos a que nos referi- mos quando desejamos que isso nao se repita. Como instrumento juddico e como modo de reconstru~ao do passado, ali onde outras fontes foram destruldas pelos responsaveis, os atos de memoria foram uma pe~a central da transi~ao democratica, apoiados as vezes pelo Estado e, de forma permanente, pelas organiza~oes da sociedade. Nenhuma condena~ao teria sido possIvel se esses atos de memoria, manifestados nos relatos de testemunhas e vftimas, nao tivessem existido. Eevidente que 0 campo da memoria e urn campo de conflitos entre os que man tern a lembran~a dos crimes de Estado e os que propoempassar a outra etapa, encerrando 0 caso mais monstruo- so de nossa historia. Mas tambem e urn campo de conflitos para os que afirmam ser 0 terrorismo de Estado urn capftulo que deve per- manecer juridicamente aberto, e que 0 que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado, divulgado, discutido, a come- ~ar pela escola. E urn campo de conflitos tambem para os que sus- te~tam que 0 "nunca mais" nao e uma conclusao que deixa para tras 0 passado, mas uma decisao de evitar, relembrando-as as repeti~oes. Desejaria que isso ficasse claro para que os argumen'tos a segUlr possam ser lidos a partir daquilo que realmente tentam prop or. Vivemos uma epoca de forte subjetividade e, nesse senti do, as prerrogativas do testemunho se apoiam na visibilidade que "0 pes- soal" adquiriu como lugar nao simplesmente de intimidade, mas de manifesta~ao publica. Isso acontece nao so entre os que foram vItimas, mas tambem e fundamentalmente nesse territorio de hegemonia simbolica que sao os meios audiovisuais. Se ha tres ou quatro decadas 0 "eu" despertava suspeitas, hoje nele se reconhe- cern privilegios que seria interessante examinar. E disso que se trata, e nao de questionar 0 testemunho em primeira pessoa como instrumento juridico, como modalidade de escrita ou como fonte da historia, a qual em muitos casos ele e indispensavel, embora crie o problema de como exercer a critica que normalmente se exerce sobre outras fontes. Meu argumento aborda a primeira pessoa do testemunho e as formas do passado que dai resultam quando 0 testemunho e a unica fonte (porque nao existem outras ou porque se considera que ele e mais confiavel). Nao se trata simplesmente de uma ques- tao da forma do discurso, mas de sua produ~ao e das condi~oes culturais e politicas que 0 tornam fidedigno. Muitas vezes se disse: vivemos na era da memoria e 0 temor ou a amea~a de uma "perda de memoria" corresponde, mais que a supressao efetiva de algo que deveria ser lembrado, a urn "tema cultural" que, em paises onde houve violencia, guerra ou ditaduras militares, se entrela~a com a politica. A questao do passado pode ser pensada de muitos modos e a simples contraposi~ao entre memoria completa e esquecimento nao e a unica possivel. Parece-me necessario avan~ar criticamente alem dela, sem dar ouvidos a amea~a de que se examinarmos os atuais processos de memoria estaremos fortalecendo a possibili- dade de urn esquecimento indesejavel. Isso nao e verdade. Susan Sontag escreveu: "Talvez se atribua valor demais a memoria evalor insuficiente ao pensamento". A frase pede precau- ~ao diante de uma historia em que 0 excesso de memoria (vejam- se os servios, os irlandeses) pode conduzir novamente a guerra. Este livro nao segue a dire~ao dessas mem6rias nacionais guerrei- ras, mas a outra, a da intangibilidade de certos discursos sobre 0 passado. Move-o a convic~ao de Sontag: e mais importante enten- der do que lembrar, em bora para entender tambem seja preciso lembrar. 2. Critica do testemunho: sujeito e experiencia Os combates pela hist6ria tambem sao chamados agora de combates pela identidade. Nessa permuta~ao do vocabuhirio se refletem a primazia do subjetivo e 0 papel a ele atribuido na esfera publica. Mais uma vez sujeito e experiencia reaparecem, e, por conseguinte, devem ser examinados seus atributos e suas preten- s6es. No registro da experiencia se reconhece uma verdade (origi- nada no sujeito?) e uma fidelidade ao ocorrido (sustentada por urn novo realismo?). A esse respeito, algumas perguntas. Que relato da experiencia tern condi~6es de esquivar a con- tradi~ao entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? A narra~ao da experiencia guard a algo da intensidade do vivido, da Erlebnis? Ou, simplesmente, nas inumeras vezes em que foi posta em discurso, ela gastou toda possibilidade de significado? A expe- riencia se dissolve ou se conserva no relato? E possivel relembrar uma experiencia ou 0 que se relembra e apenas a lembran~a pre- viamente posta em discurso, e assim s6 ha.uma sucessao de relatos sem possibilidade de recuperar nada do que pretendem como objeto? Em vez de reviver a experiencia, 0 relato seria uma forma de aniquila-la, for<;:ando-a a responder a uma conven<;:ao? Ha algum sentido em reviver a experiencia ou 0 unico sentido esta em compreende-la, longe de uma revivencia, e ate mesmo contra ela? Qual e a garantia da primeira pessoa para captar urn sentido da experiencia? Deve prevalecer a historia sobre 0 discurso e renun- ciar-se aquilo que a experiencia teve de individual? Entre urn hori- zonte utopico de narra<;:aoda experiencia e urn horizonte utopico de memoria, que lugar resta para urn saber do passado? A atualidade dessas perguntas vem do fato politico. Em 1973, no Chile e no Uruguai, e em 1976, na Argentina, se produzem gol- pes de Estado de novo tipo. Os regimes que se estabelecem prati- earn atos (assassinatos, torturas, campos de concentra<;:ao,desapa- recimentos, seqiiestros) que consideramos ineditos, novos, na historia poJitica desses paises. Desde antes das transi<;:6esdemo- craticas, mas acentuadamente a partir delas, a reconstitui<;:ao des- ses atos de violencia estatal por vitimas-testemunhas e uma dimensao juridica indispensavel a democracia. Mas, aMm de ter sido a base probatoria de julgamentos e condena<;:6esdo terroris- mo de Estado na Argentina (0 que tambem esta sendo possivel no Chile), 0 testemunho se converteu num relato de grande impacto fora do cenario judiciario. E onde ele opera cultural e ideologica- mente que se passarao as tentativas de resposta as perguntas do paragrafo anterior. A narra<;:aoda experiencia esta unida ao corpo e a voz, a uma presen<;:areal do sujeito na cena do pass ado. Nao ha testemunho s.em experiencia, mas tampouco ha experiencia sem narra<;:ao:a hnguagem liberta 0 aspecto mudo da experiencia, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comuni- cavel, isto e, no comum. A narra<;:aoinscreve a experiencia numa temporalidade que nao e a de seu acontecer (amea<;:adodesde seu proprio come<;:opela passagem do tempo e pelo irrepetivel), mas a de sua lembran<;:a.A narra<;:aotambem funda uma temporalidade, que a cada repeti<;:aoe a cada variante torna a se atualizar. o apogeu do testemunho e, em si mesmo, uma refuta<;:ao daquilo que, nas primeiras decadas do seculo xx, alguns cons ide- raram seu fim definitivo. Walter Benjamin, diante das conseqiien- cias da Primeira Guerra Mundial, expos 0 esgotamento do relato devido ao esgotamento da experiencia que Ihe dava origem. Das trincheiras ou das frentes de batalha da guerra, ele afirmou, os homens voltaram emudecidos. E inegavel que Benjamin se equi- vocava quanta a escassez de testemunhos, justamente porque "a guerra de 1914-8 marca 0 come<;:odo testemunho de mass as': I E interessante, porem, analisar 0 nucleo tea rico do argumento ben- jaminiano. o choque teria liquidado a experiencia transmissivel e, por conseguinte, a experiencia em si mesma: 0 que se viveu como cho- que era forte demais para 0 "minusculo e fragi! corpo humano".2 Os homens, mudos, nao teriam encontrado uma forma para 0 relato do que tinham vivido, e a paisagem da guerra so conservava do pass ado as nuvens. Benjamin assinala com precisao: "as nuvens", porque sobre todo 0 resto voara 0 furacao de uma mu- dan<;:a,imprevisivel quando as primeiras colunas de soldados se encaminharam para os campos das primeiras batalhas. Os finais de A montanha magica e de A marcha de Radetzky sao varia<;:6es sobre a chegada de algo que nao se esperava, uma especie de for<;:a malign a de reden<;:aoinversa, que terminou com 0 que havia ante- riormente, destruindo-o de forma radical, sem possibilidade de que seus restos se incorporassem a algum futuro. Entao, os homens que foram levados ao teatro onde essa for<;:aexibiu seu carater de novidade perderam a possibilidade de reconhecer sua experiencia, pois esta Ihes foi completamente alheia; seu caniter inesperado (para os oficiais que avanc;:aramde uniforme de gala rumo ao barro das trincheiras,para a cavalaria que iria enfrentar os tanques depois dos desfiles de despedida em que a vitoria parecia garanti- da para todo mundo, para todos os contendores inimigos) fez com que a novidade so pudesse ser vivida fisicamente, nos mutilados, nos doentes, nos famintos e nos milhoes de mortos. "0 que, dez anos depois, foi despejado no caudal dos livros de guerra era muito diferente da experiencia que passa de boca em boca", escreveu Ben- Jamm. Em seu classico ensaio sobre 0 narrador, Benjamin expressou nao so uma perspectiva pessimista mas melancolica, porque 0 que ficou ausente nao foi simplesJIlente 0 relato do vivido~e sim apro- pria experiencia como fato compreensfvel: 0 que aconteceu na Grande Guerra provaria a relac;:aoinsepanivel entre experiencia e relato; e tambem 0 fato de que chamamos experiencia 0 que pode ser posto em relato, algo vivido que nao so se sofre, mas se transmi- te. Existe experiencia quando a vftima se transforma em testemu- nho. Filha e produto da modernidade tecnica, a Primeira Guerra Mundial fez com que os corpos ja nao pudessem compreender nem orientar-se no mundo on de se moviam. A guerra anulou a experiencia. o tom melancolico do argumento benjaminiano se estende para tnis. Embora a guerra de urn carater definitivo ao encerra- mento do cicIo de narrac;:oesapoiadas na experiencia, varios secu- los antes, na emergencia da modernidade europeia, 0 narrador do gesto e da voz, como Odisseu ou os evangelistas, comec;:oua perder o domfnio de sua historia. 0 Quixote e, desde 0 romantismo ate os formalistas russos, urn texto-insfgnia, porque 0 romance moder- no nasce sob 0 signo ironico do desencanto. Embora nao seja men- cion ado, Lukacs da a chave interpretativa do romance em term os de ruptura de urn mundo em que a desinteligencia entre 0 vivido e a compreensao do vivido cinde 0 ato de sua narrac;:ao. Estando enfraquecidas as razoes transcendentes que havia por tras da expe- riencia e do relato, toda experiencia se torna problematica (isto e, nao encontra seu significado) e todo relato e perseguido por urn momento -auto-referencial, metanarrativo, ou seja, nao imediato. A experiencia se desconcertou e seu discurso tambem: "Ai, quem nos poderia/ valer? Nem anjos, nem homens/ e 0 intuitivo animal logo adverte/ que para nos nao ha amparo/ neste mundo defini- dO".3Benjamin se refere a urn "emudecimento", partindo do fato de que 0 relato de uma experiencia significativa se ecIipsou, muito antes do choque da guerra e do choque tecnico da modernidade, com 0 surgimento do romance, que tomou 0 lugar das "formas artesanais" de transmissao, isto e, as enraizadas no imediatismo da voz, em urn mundo em que 0 perigo cercava a experiencia (possi- bilitava-a), em vez de habitar em seu centro. No momento em que o risco da experiencia se interioriza na subjetividade moderna, 0 relato da experiencia se torna tao problematico como a propria possibilidade de construir seu sentido. E isso seculos antes de Flaubert e de A educa~aosentimental. Quando a narrac;:aose separa do corpo, a experiencia se sepa- ra de seu sentido. Ha urn vestigio utopico retrospectivo nessas ideias benjaminianas, porque elas dependem da crenc;:anuma epoca de plenitude de sentido, quando 0 narrador sabe exatamen- te 0 que diz, e quem 0 escuta entende-o com assombro, mas sem distancia, fascinado, mas nunca desconfiado ou ironico. Nesse momenta utopico, 0 que se vive e 0 que se relata, e 0 que se relata e o que se vive. Naturalmente, a esse momento lendario nao corres- ponde a nostalgia, mas a melancolia que reconhece sua absoluta impossibilidade. Se seguimos Benjamin, acaba sendo contraditorio em term os teoricos e equivocado em termos crfticos afirmar a possibilidade do relato da experiencia na modernidade e, especialmente, nas epocas posteriores ao choque da Grande Guerra. Se esta rompeu a tram a de experiencia e discurso, que rupturas nao produziram 0 Holocausto e, depois, os crimes em massa do seculo xx, 0 Gulag, as guerras de limpeza etnica, 0 terrorismo de Estado? Trabalhando mais pelo lado das hipoteses sobre experiencia e relato, Benjamin abriu outra Iinha de reflexao. Sua filosofia da his- toria e uma reivindica<j:aoda memoria como instancia reconstitui- dora do passado. Os chamados "fatos" da historia sao urn "mito epistemologico" que reifica e anula sua possivel verdade, enca- deando-os num relato dirigido por alguma teleologia. No rastro de Nietzsche, Benjamin den uncia 0 causalismo; no rastro de Bergson, reivindica a qualidade psiquica e temporal dos fatos da memoria. o historiador, ao seguir essa afirma<j:aoem todas as suas conse- quencias, nao reconstitui os fatos do passado (isso equivaleria a se submeter a uma filosofia da historia reificante e positivista), mas os "relembra", dando-lhes assim seu canlter de passado presente, com respeito ao qual sempre ha uma divida nao paga. Benjamin, entao, faz dois gestos que se entrela<j:amnuma con- tradi<j:aoterrivel. Por urn lado, assinaia a dissolu<j:aoda experiencia e do relato que perdeu a verdade presencial antes ancorada no corpo e na voz. Por outro Iado, critica 0 positivismo historico que reificaria aquilo que no passado foi experiencia e, ao transforma- 10 em "fato': anularia sua rela<j:aocom a subjetividade. No entanto, caso se aceite a dissolu<j:aoda experiencia diante do choque, esse "fato" reificado nao poderia ser senao 0 que e: urn resto objetivo de temporalidade e subjetividade inertes. Benjamin se rebela diante disso, atraves do gesto romantico-messianico da reden<j:aodo pas- sado pela memoria, que devolve ria ao pass ado a subjetividade: a historia como memoria da historia, isto e, como dimensao tempo- ral subjetiva. Seja como for, se a memoria da historia possibilitaria uma restaura<j:aomoral da experiencia passada, subsiste 0 proble- ma de construir experiencia numa epoca, a modernidade, que ero- diu sua possibilidade e que, ao faze-lo, tambem tornoU frageis as for<j:asdo relato. Essa aporia nao se resolve, porque as condi<j:oesde reden<j:ao da experiencia passada estao em ruinas. 0 pensamento de Ben- jamin se move entre urn extrema e seu oposto, reconhecendo, por urn Iado, as impossibilidades e, por outro, 0 mandato de urn ato messianico de reden<j:ao.Poder-se-ia dizer que as aporias da reIa- <j:aoentre historia e memoria ja se esbo<j:amquase totalmente nes- ses textoS. Ate aqui, Benjamin. "0 que tornava 0 mundo familiar desapareceu. 0 passado e a experiencia dos velhos ja nao servem de referencia para alguem se orientar no mundo moderno e para iluminar 0 futuro das jovens gera<j:oes.Quebrou-se a continuidade da experiencia."4 Jean- Pierre Ie Goff Iocaliza essa ruptura nos anos 1970 e a explica com argu- mentos de inova<j:aotecnologica, cultural e moral. 0 que ele des- creve como destrui<j:aoda continuidade entre gera<j:oesnao vem da "natureza" da experiencia, mas da aceIera<j:aodo tempo; nao vem do choque que deixou emudecidos os soidados da Primeira Guerra Mundial, mas de experiencias que ja nao se entendem e sao mutuamente incomensuraveis: os jovens pertencem a uma di- mensao do presente em que os conhecimentos e as cren<j:asdos pais se revelam inuteis. Ali onde Benjamin assinalou a impossibilidade do relato, Le Goff (e antes Margaret Mead) assinalou seu carater intransferivel entre distintas gera<j:oes. Benjamin captou algo proprio da modernidade capitalista em seu sentido mais espedfico. Ela teria afetado as subjetividades ate emudece-las; neIa, so 0 gesto de reden<j:aomessianica consegui- ria abrir 0 horizonte utopico de uma restaura<j:aodo tempo histo- rico pela mem6ria que quebraria a casca reificada dos fatos. Aque- les que, por sua vez, sustentam a hip6tese de uma mudancra na con- tinuidade das geracroes assinalam urn tipo diferente de incomuni- cabilidade da experiencia. Trata-se da crise, tambem moderna, da autoridade do passado sobre 0presente. 0 novo se impoe ao velho por sua qualidade libertadora intrinseca. Tudo isso e bem conhe- cido desde as vanguardas esteticas do comecro do seculo xx: 0 que elas sustentarampara a arte transbordou para a vida nas decadas seguintes. Nesse corte entre 0 novo e0velho, a subjetividade nao esta em jogo, pelo menos nao em primeiro lugar. A crise da ideia de subjeti- vidadevem de outros processos e posicroes,de grande expansivida- de para alem do campo filos6fico, a partir dos anos 1970.0 estru- turalismo triunfante conquistou territ6rios, da antropologia a lingiiistica, a teoria litera ria e as ciencias sociais. Esse capitulo esta escrito e tern como titulo ''Amorte do sujeito".5Quando essa guina- da do pensamento contemporaneo parecia completamente estabe- lecida, ha duas decadas, produziu-se no campo dos estudos da me- m6ria e da mem6ria coletiva urn movimento de restauracrao da primazia desses sujeitos expulsos durante os anos anteriores. Abriu- se urn novo capitulo, que poderia se chamar "0 sujeito ressuscitado". Mas, antes de celebrar esse sujeito que voltou a vida, convem examinar os argumentos que decretaram sua morte, quando sua experiencia e representacrao foram criticadas e dec1aradas impos- siveis. Em 1979,Paul de Man publicou urn artigo que, sem mencio- nar a moda dos estudos autobiograficos que dominava a academia litera ria, era uma critic a radical a pr6pria possibilidade de estabe- lecer qualquer sistema de equivalencias substanciais entre 0 eu de urn relato, seu autor e a experiencia vivida (triangulo semiol6gico no qual se apoiava a teoria da autobiografia de Philippe Lejeune, que 0 apresentava como urn "pacto de leitura").6 Diante da ideia de que existe urn genero estavel, apoiado pelo contrato entre autor e leitor, Man nega a pr6pria ideia de genero autobiografico. 0 que as chamadas "autobiografias" produzem e"a ilusao de uma vida como referencia" e, por conseguinte, a ilusao de que existe algo como urn I sujeito unificado no tempo. Nao ha sujeito exterior ao texto que consiga sustentar essa ficcraode unidade experiencial e temporaL Aschamadas autobiografias seriam indiferenciaveis da ficcrao em primeira pessoa, desde que se aceite ser impossivel estabelecer urn pacto referencial que nao seja ilus6rio (quer dizer: os leitores podem acreditar nele, ate mesmo 0 escritor pode escrever com essa ilusao, mas nada garante que isso remeta a uma relacraoverificavel entre urn eu textual e urn eu da experiencia vivida). Como na fic- craoem primeira pessoa, tudo 0 que uma "autobiografia" consegue mostrar e a estrutura especular em que alguem, que se diz chamar eu, toma-se como objeto. Isso quer dizer que esse eu textual poe em cena urn eu ausente, e cobre seu rosto com essa mascara. Assim, Man define a autobiografia (a auto-referencia do eu) com a figura da prosopopeia, isto e, 0 tropo que outorga a palavra a urn morto, urn ausente, urn objeto inanimado, urn animal, urn avatar da natu- reza. Nada resta da autenticidade de uma experiencia posta em relato, ja que a prosopopeia e urn artificio ret6rico, inscrito na ordem dos procedimentos e das formas do discurso, em que a voz mascarada pode desempenhar qualquer papel: avalista, conselhei- ro, promotor,juiz, vingador (Man enumera).A vozdaautobiogra- fia e a de urn tropo que faz as vezes de sujeito daquilo que narra, mas sem poder garantir a identidade entre sujeito e tropo. Em seus estudos sobre Rousseau (reunidos em Alegorias da leitura), Man afirma que a consciencia de si nao e uma representa- crao,mas a "forma de uma representacrao", a figura que indica que uma mascara esta falando. Fala 0 personagem (persona, mascara do teatro c1assico),que nao pode ser avaliado em relacraoa referen- cia que seu pr6prio discurso propoe; nem pode ser julgado (como nao sejulga 0 ator) por sua sinceridade, e sim por sua apresenta<;:ao de urn estado de "sinceridade': Por conseguinte, essa mascara nao esta ligada a nenhum pacto referencial; nao ha semelhan<;:aque se possa julgar essencial a seu discurso, nem comprovavel atraves dele. 0 decisivo e a atribui<;:aode voz feita por meio da boca da mas- cara; nao ha verdade, mas uma mascara que afirma dizer sua ver- dade (de mascara: devingador, de vitima, de sedutor, de seduzido). A crftica de Paul de Man a autobiografia e provavelmente 0 ponto mais alto do desconstrucionismo literario, que ainda hoje e uma linha hegemonica. Nao se pode ignora -la, ja que a reivindica- <;:aodo testemunho e da verdade da voz e feita sem levar em conta que, se queremos avan<;:arpor esse caminho, precis am os de uma resposta a essa crftica radical. E mais: quase se poderia dizer que, muitas vezes, nos mesmos espa<;:osem que se difundem as teses de Man afirmam-se as verdades da subjetividade e de seus testemu- nhos autobiograficos. Pouco depois, em 1984, Derrida apresentou algumas refle- xoes sobre a autobiografia que tern fortes afinidades com 0 texto de Paul de Man/ Em sua critica, as bases filos6ficas de urn testemu- nho autobiografico sao impossiveis. Derrida nega que se possa construir urn saber sobre a experiencia, porque nao sabemos 0que e a experiencia. Nao ha relato capaz de dar unidade ao eu ou valor de verdade ao empirico (que sempre permanece fora). Nao sabe- mos tampouco por onde passa a linha m6vel que separa 0 essen- cia! dos fatos empiricos entre si, e urn fato empirico de algo que nao o e. 0 que se manifesta na autobiografia como identidade de urn sujeito com seus enunciados s6 e sustentado pela assinatura. "Urn autor, que e uma assinatura que se declara como narrador-sujeito de sua pr6pria narra<;:ao':escreve Nora Catelli.8 Portanto, 0 interesse da autobiografia (Derrida esta lendo Ecce homo, de Nietzsche) reside nos elementos que apresenta como cimento de uma primeira pessoa cujo unico fundamento e, na ver- dade, 0pr6prio texto. Nietzsche escreve: "Vivo de meu pr6prio cre- dito. E talvez seja urn simples preconceito, que eu viva". 0 eu s6 existe porque ha urn contrato secreto, uma conta de credito que se pagara com a morte. Na frase de Nietzsche, Derrida encontra uma chave: longe do acordo pelo qual os leitores atribuiriam urn credi- to de verdade ao texto, este s6 pode aspirar a exist encia se 0 credi- to de seu pr6prio autor 0 sustentar. Nao ha fundamento exterior ao circulo assinatura-texto e nada nessa dupla tern condi<;:oesde asseverar que se diz uma verdade. Como Man, Derrida faz a critica da subjetividade e a crftica da representa<;:ao,e assinala de que modo todo relato autobiografico se desenvolve buscando persuadir. Ecce homo deixa isso claro desde suas primeiras linhas: a interven<;:aoautobiografica epro domo sua, e dai a necessidade de seu exame ret6rico. Nao e preciso subscrever uma epistemologia niilista para trazer essas posi<;:oespara uma dis- cussao com as concep<;:oes simples da verdade no testemunho autobiografico ou com as ideias de que urn relato de p6s-mem6ria (como severa mais adiante) evicario. Para Man e Derrida, ser vica- rio nada significa, ja que antes desse vicario nao houve urn sujeito capaz de pretender ser sujeito verdadeiro de seu verdadeiro relato. o sujeito que fala e uma mascara ou uma assinatura. A frase e de Primo Levi. Assinala, como costuma fazer, 0 nucleo do problema sem necessidade de gran des gestos te6ricos. Seu testemunho sobre Auschwitz e uma materia a partir da qual pode emergir urn sentimento de carater moral. As condi<;:oesque possibilitam seu testemunho sao extremas, e por isso mesmo as regras que 0 regulam devem limitar todas as possibilidades do exa- gero. Nunca, diz Levi, urn testemunho verdadeiro deve abrir a pos- sibilidade para que urn testemunho exagerado tome seu lugar. A materia-prima da indignac;:ao deve ser restringida. E isto urn hornern? e urn testemunho parco e, tendo em vista a proliferac;:ao dos horrores que sao seu objeto, curto. No caso de Levi, nao e possivel colocar os mesmos problemas de primeira pessoa que ocorrem quando ela e submetida a suspei- ta nas criticas feitas a centralidade do sujeito. Pelo contra.rio, se Levi fala e por duas razoes. A primeira, extratextual, psicol6gica, etica e compartilhada com quase todos os que saem do Lager: sim- plesmente e impossivel nao falar. A segunda tern a vercom 0 obje- to do testemunho: a verdade do campo de concentrac;:ao e a morte em massa, sistematica, e dela s6 falam os que conseguiram escapar a esse destino; 0 sujeito que fala nao escolhe a si mesmo, mas foi escolhido por condic;:oestambem extratextuais. Os que nao foram assassinados nao podem falar plenamente do campo de concen- trac;:ao;falam entao porque outros morreram, e em seu lugar. Nao conheceram a func;:aoultima do campo, cuja 16gica, portanto, nao se operou por com pIeto neles. Nao ha pureza na vitima que tern condic;:oesde dizer "fui vitima". Nao ha plenitude nesse sujeito. "Era tipico do Lager tornar-se culpado em alguma medida; eu, por exemplo, aceitei trabalhar num laborat6rio da IG-Farben." A "regra era ceder", porque (exceto nos levantes, cujo atributo ine- vitavel era suicida) 0 Lagernao e urn espac;:ode resistencia. Todos, prisioneiros e nazistas, perdiam parte de sua humanidade, e 0 sujeito do testemunho do campo nao esta convencido de ser sujei- to pleno do que vai enunciar. Pelo contra rio, e urn sujeito ferido, nao porque pretenda ocupar vicariamente 0 lugar dos mortos, mas porque sabe de antemao que esse lugar nao the corresponde. Entao falara transmitindo uma "materia-prima", po is quem deveria ter sido 0sujeito em primeira pessoa do testemunho esta ausente, e urn morto do qual nao existe representac;:aovicaria. Os "condenados" ja nao podem falar e esse silencio imposto pelo assassinato torna in- completo 0 testemunho dos "sobreviventes". Agamben ve aqui a problematica de urn sujeito ausente, uma primeira pessoa que, quando surge no testemunho, sempre esta substituindo outra, mas nao porque possa ser sua vicaria, sua representante, e sim porque nao morreu no lugar de quem morreu. De modo radical, nao se pode representar os ausentes, e dessa impossibilidade se alimenta o paradoxa do testemunho: quem sobrevive a urn campo de con- centrac;:aosobrevive para testemunhar e assume a primeira pessoa dos que seriam os verdadeiros testemunhos, os mortos.9 Urn caso- limite, terrivel, de prosopopeia. o testemunho dos que se salvaram e a "materia-prima" de seus leitores ou ouvintes, que devem fazer algo com 0 que lhes e comunicado e que, justamente porque conseguiu ser comunicado, e s6 uma versao incompleta. Os que se salvaram "nao podem senao lembrar" (escreve Agamben), e, no entanto, nao podem lembrar 0 decisivo, nao podem testemunhar sobre 0 campo na medida em que nao foram vitimas totais, como foi 0 "muc;:ulmano" que se entregou e parou de lutar, e se separou daqueles restos desagrega- dos de sociedade que ficavam no campo. Levi os chama "nao- vivos",isto e:nao-sujeitos, que perderam a noc;:aode qualquer limi- te etico e, para comec;:ar,perderam a palavra em vida. Como Levi comprovou em quem 0 escutava eolia, em espe- cial durante os anos imediatamente posteriores a 1945, tudo no campo e inacreditavel. Nao s6 a organizac;:aosistematica da morte; tambem a dissoluc;:aodas relac;:oese da ideia social do tempo. Por isso, tampouco se pode representar 0 tedio da vida que passa no campo de concentrac;:ao.A mem6ria tende a resgatar os "epis6dios singulares, c1amorosos ou terriveis", mas esses epis6dios ocorriam num tecido totalmente desfeito, que perdera quase por completo suas qualidades sociais. E, no outro extremo, tambem e irrepresen- tavel a intensidade da experiencia no campo, que em muitos aspec- tos foi uma aventura, "0 periodo mais interessante de minha vida", diz Levi.'oVma amiga sua, que foi para Ravensbruck aos dezessete anos, afirmou depois que ali tinha sido sua universidade. Levi escreveu: "Cresci em Auschwitz': Essa intensidade da experiencia vivida, incrivel para quem nao viveu a experiencia, e tambem aqui- 10 que 0 testemunho nao e capaz de representar. Em suma, nao se pode representar tudo 0 que a experiencia foi para 0 sujeito, pois se trata de uma "materia-prima" em que 0 sujeito-testemunha e menos importante que os efeitos morais de seu discurso. Nao e 0 sujeito que se restaura a si mesmo no teste- munho do campo, mas e uma dimensao coletiva que, por oposic;:ao e imperativo moral, se desprende do que 0 testemunho transmite. Essa perspectiva do testemunho e dubitativa e finalmente cetica quanto a seu poder de restaurac;:ao do sujeito-testemunha, e poderia explicar 0 destino suicida de alguns "sobreviventes': como Primo Levi, Jean Amery, Bruno Bettelheim. Embora Levi seja cita- do pelos que acreditam na forc;:ade cura da memoria, seu proprio testemunho e cautelosamente acompanhado por urn ceticismo que impede toda teodiceia da memoria como principio de cicatri- zac;:aodas feridas. Para Levi, seu testemunho nao representa uma epifania do conhecimento nem tern poder de cura da identidade. E, simplesmente, inevitavel por motivos psicologicos e morais. A preocupac;:ao de Levi, pelo men os durante os primeiros an os do pos-guerra, e ser ouvido e levado a serio. Enquanto estavam nos campos, muitos prisioneiros ja desconfiavam da forma como seu relato (se esse relato fosse possivel) seria consider ado. Essa dificuldade parece bem evidente quando se pensa em termos de verdade. Ao se referir aos testemunhos origin ados na Shoah, Ricreur diz que eles estabelecem urn caso-limite, pois e diff- cil incorpora-Ios ao arquivo e porque provocam uma verdadeira "crise do conceito de testemunho': II Sao uma excec;:aosobre a qual e complicado (quase improprio) exercer 0 metodo historiografi- co, pois se trata de experiencias extraordinarias, que nao podem ser comparadas a outras. Mas se Ricreur esta certo, sua advertencia sobre os testemunhos do Holocausto como caso-limite permitiria tambem pensar para dentro dos limites. 0 testemunho do Holo- causto se transformou em modelo testemunhal. 0 que significa que urn caso-limite transfere suas caracteristicas a casos nao-limi- te, ate mesmo em condic;:oes de testemunho completamente banais.12 Nao e so no caso do Holocausto que 0 testemunho exige que seus leitores ou ouvintes contemporaneos aceitem sua veraci- dade referencial, pondo em primeiro plano argumentos morais apoiados no respeito ao sujeito que suportou os fatos sobre os quais fala. Todo testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode comprovar sua veracidade; elas devem vir de fora. Em condic;:oesjudiciarias - por exemplo, no julgamento das tres juntas de com andantes da ditadura argentina -, os promoto- res se viram obrigados a escolher, entre centenas, os testemunhos cuja palavra facilitava 0 exercicio das regras da prova. Em condi- c;:oesnao judiciarias, 0 testemunho pede uma considerac;:aoem que se misturam os argumentos de sua verdade, suas legitimas preten- soes de credibilidade e sua unicidade, sustentada na unicidade do sujeito que 0 enuncia com a propria voz, pondo-se como garantia presente do que diz, mesmo quando nao se trata de urn sujeito que suportou situac;:oes-limite. Se, como afirma Ricreur em Tempo e narrativa, 0 testemunho esta na origem do discurso historico, a ideia de que sobre urn tipo de testemunho seja diffcil, quando nao impossivel, exercer 0 meto- do critico da historia significa uma restric;:aoque diz respeito nao a suas func;:oessociais ou judiciarias, mas a seus usos historiograficos. E, se e admissivel que urn acontecimento de carater excepcional como 0 Holocausto reclame para si uma qualidade inabordavel, e possivel pensar os testemunhos contemporaneos que nao surgem de fatos comparaveis com aqueles que tornariam intocaveis os tes- temunhos do Holocausto.A critic a do sujeito ede sua verdade, a cri- tica da verdade da voz e de sua ligayao com uma verdade da expe- rienda que afloraria no testemunho, ate mesmo quando nao se seguem as conclusoes radicais de Man e Derrida, e necessaria, a nao ser que se dedda atribuir ao testemunho urn valor referendal abrangente do qual se desconfia quando outros discursos 0 reivin- dicam para si. A perplexidade de Ricreur diante dos testemunhos do Holocausto, que escapam as regras da critica, tern razoes mais que suficientes; mas elas nao sao suficientes paraoutros casos. 0 testemunho, por sua auto-representayao como verdade de urn sujeito que relata sua experiencia, exige nao ser submetido as regras que se aplicam a outros discursos de intenyao referencial, alegando a verdade da experiencia, quando nao a do sofrimento, que ejusta- mente a que deve ser examinada. Existe aqui urn problema. DIANTE DE UM PROBLEMA, 0 RECURSO AO OTIMISMO TE6RICO A atualidade e otimista e aceita a construyao da experiencia como relato em primeira pessoa, mesmo quando desconfia de que todos os outros relatos podem remeter de modo mais ou menos pleno a seu referente. Proliferam as narrayoes chamadas "nao fic- cionais" (tanto no jornalismo como na etnografia social e na lite- ratura): testemunhos, hist6rias de vida, entrevistas, autobiogra- fias, lembranyas e mem6rias, relatos identitarios.13 A dimensao intensamente subjetiva (urn verdadeiro renascimento do sujeito, que nos anos 1960 e 1970 se imaginou estar morto) caracteriza 0 presente. Isso acontece tanto no discurso cinematografico e plasti- co como no literario e no midiatico. Todos os generos testemu- nhais parecem capazes de dar sentido a experiencia. Urn movimen- to de devoluyao da palavra, de conquista da palavra e de direito a palavra se expande, reduplicado por uma ideologia da "cura" iden- titaria por meio da mem6ria social ou pessoal. 14 0 tom subjetivo marcou a p6s- modernidade, assim como a desconfianya ou a perda da experiencia marcaram os ultimos capitulos da modernidade cultural. Os direitos da primeira pessoa se apresentam, de urn lado, como direitos reprimidos que devem se libertar; de outro, como instrumentos da verdade. Se fossem a segunda coisa, esta clara a razao pela qual nos espayos de autoridade se desconfiaria deles. Segundo Benjamin, aquilo que nao foi possivel ate determi- nado momenta da hist6ria tornou-se impossivel, por causa do carater irreversivel da intervenyao capitaIista moderna sobre a subjetividade; mas hoje, mesmo citando Benjamin, considera-se possivel a restaurayao de urn relato significativo da experiencia, ignorando justamente aquilo que, para Benjamin, tornava tragica a situayao contemporanea. Com efeito, a confianya num healing identitario produzido pela palavra e subtraida da dimensao pro- blematica em que se focalizou a subjetividade des de 0 final do seculo XIX e abandona, para resumir, nao s6 a perspectiva da qual se descobre a ferida cultural capitalista, mas todas as epistemolo- gias da desconfianya, de Nietzsche a Freud. 0 sujeito nao s6 tern experiencias como pode comunica-Ias, construir seu sentido e, ao faze-lo, afirmar-se como sujeito.A mem6ria e os relatos de mem6- ria seriam uma "cura" da alienayao e da coisificayao. Se ja nao e possivel sustentar uma Verdade, florescem em contrapartida ver- dades subjetivas que afirmam saber aquilo que, ate tres decadas atras, se considerava oculto pela ideologia ou submerso em pro- cessos pouco acessiveis a simples introspecyao. Nao ha Verdade, mas os sujeitos, paradoxalmente, tornaram-se cognosclveis. As vezes e surpreendente encontrar nesse campo de ideias a convivencia entre urn desconstrucionismo filos6fico "brando" e urn otimismo identitario que, embora nao restaure a primazia de Aquele Sujeito anterior ao seculo xx, constr6i Sujeitos MUltiplos, habeis como Ulisses nas escaramUlras para manter 0 que sao e muda-lo; para recuperar 0 passado e adequa-lo ao presente; para aceitar 0 estrangeiro como uma mascara que, no proprio momen- to em que e aceita, e deformada, transformada ou parodiada; para sustentar as contradiyoes libertando-se, ao mesmo tempo, do binarismo simples etc. Seguindo 0 mais brilhante desses teoricos, Homi Bhabha,'s nao apenas relemos text os incompativeis com esses prindpios (como acontece com os usos pos-coloniais de Gramsci): eles sao apresentados na moldura de urn aparato filoso- fico de efeito desconstrutivo que, por ser coerente, nao admitiria nenhuma positividade no discurso identitario. Seja como for, as contradiyoes teoricas que admitem ao mesmo tempo a indizibilidade de uma Verdade e a verdade identi- taria dos discursos de experiencia criam problemas nao so para a filosofia, mas para a historia. E e isto que agora me interessa: 0 que garante a memoria e a primeira pessoa como captayao de urn sen- tido da experiencia? Depois de ter sido submetida a critica radical, a restaurayao da experiencia como memoria e uma questao que deveria ser examinada. A intensa subjetividade do "temperamen- to" pos-moderno tambem marca esse campo de estudos. Quando ninguem esta disposto a aceitar a verdade de uma historia (0 que Benjamin denominou os "fatos" reificados), todos parecem mais dispostos a crenya nas verdades de historias no plural (0 plural: essa inflexao do paradigma que alcanyou a mais alta categoria, 0 que e muito born, mas tambem se propoe como soluyao verbalis- ta a qualquer questao conflituosa). representayao verdadeira. Mas uma linha decisiva da estetica do seculo xx afirmou a necessidade de uma ruptura reflexiva com 0 imediatismo das percepyoes e da experiencia para que estas possam ser representadas. Bertolt Brecht e os formalistas russos pensavam que a arte tern condiyoes de iluminar 0 que nos cerca de modo mais imediato, con tanto que se produza urn corte por distanciamento, que desvie a percepyao de seu habito e a arran que do solo tradicio- nal do senso comum. 0 questionamento do que e costumeiro e a condiyao de urn conhecimento dos objetos mais proximos, que ignoramos justamente porque permanecem ocultos pela familiari- dade que os encobre. Isso vale tambem para 0 passado. "Pensar com uma mente aberta", escreve Hannah Arendt, "significa treinar a imaginayao para que ela faya uma visita." A imagem alude a uma exterioridade da imaginayao com respeito a seu relato. Quem conta uma historia enfrenta, em primeiro lugar, uma materia que, mesmo no caso da experiencia propria, tornou- se, por sua familiaridade, incompreensivel ou banal. Odilio Alves Aguiar, examinando essa dimensao do pensamento arendtiano, afirma que, na falta da imaginayao, "a experiencia perde sua dizi- bilidade e se perde no torvelinho das vivencias e dos habitos repe- tidos".16E possivel dar sentido a esse torvelinho, mas apenas se a imaginayao cumprir seu trabalho de exteriorizayao e distancia. Trata-se de uma qualidade nao so do historiador, mas tambem de quem 0 escuta: a imaginayao "faz uma visita" quando rompe com aquilo que a constitui na proximidade e se afasta para capturar reflexivamente a diferenya. A condiyao dialogica e estabelecida por uma imaginayao que, abandonando 0 proprio territorio, explora posiyoes desconhecidas em que e possivel surgir urn sentido de experiencias desordenadas, contraditorias e, em especial, resisten- tes a se render a ideia simples demais de que elas sao conhecidas porque foram suportadas. Com a franqueza severa que sua condiyao de vitima tornou Com 0 apoio da continuidade hipotetica entre experiencia e relato, reivindica-se essa proximidade como sustentayao de uma audivel, Primo Levi afirmou que 0 campo de concentra<;:ao nao enobrece suas vitimas; poder-se- ia acrescentar que 0 horror pade- cido tampouco lhes permite conhece-lo melhor. Para conhecer, a imagina<;:aoprecisa desse trajeto que a leva para fora de si mesma e a torna reflexiva; nessa viagem, ela aprende que a historia jamais podeni ser totalmente contada e jamais teni urn desfecho, porque nem todas as posi<;:oespodem ser percorridas e sua acumula<;:ao tampouco resulta numa totalidade. 0 principio de urn dialogo sobre a his tori a baseia-se no reconhecimento de seu carater incompleto (que, evidentemente, nao e uma falha na representa- <;:aodos detalhes nem dos "casos': mas uma admissao da qualidade multipla dos processos). Dessa forma, a narra<;:aoassim pensada nao poderia sustentar a identidade nem a tradi<;:ao,nem dotar de legitimidade uma pratica. Ela nao cumpre a fun<;:aode fortaleci- men to identitario nem de funda<;:aode lendas nacionais. Permite ver, justamente, 0 excluido das narra<;:oesidentitarias reivindica-das por urn grupo, uma minoria, urn setor dominante ou uma na<;:ao.A otica dessa historia nao esta distante, mas deslocada do aspecto familiar: como sugere Benjamin, e a otica de quem supor- ta 0 deslocamento do viajante que abandona 0 pais de origem. As narrativas de memoria, os testemunhos e os textos de forte inflexao autobiografica sao espreitados pelo perigo de uma imagi- na<;:aoque se instale "em casa" com firmeza demais e 0 reivindique como uma das conquistas da tarefa da memoria: recuperar 0 que foi perdido pela violencia do poder, desejo cuja inteira legitimida- de moral e psicologica nao e suficiente para fundamentar uma legitimidade intelectual igualmente indiscutivel. Entao, se 0 que a memoria procura e recuperar urn lugar perdido ou urn tempo pas- sado, seria alheia a seu movimento a deriva que a afastaria desse centro utopico. 1sso e 0 que, de certo modo, torna irrefutavel a memoria: 0 valor de verdade do testemunho pretende se sustentar no imedia- tismo da experiencia; e sua capacidade de contribuir para a repa- ra<;:aodo dano sofrido (uma repara<;:aojuridica indispensavel no caso das ditaduras) a localiza naquela dimensao redentora do pas- sado que Benjamin exigia como dever messianico de uma historia antipositivista. Do lado da historia (se e que, apesar de todas as feridas, ou jus- tamente por elas, queremos ter uma historia, e escrevo a palavra no singular para evitar que 0 tributo a urn fetichismo gramatical dos plurais encerre 0 problema da multiplicidade de perspectivas), 0 direito de veto exigido pela memoria coloca urn desafio. Nas ulti- mas decadas, a historia se aproximou da memoria e aprendeu a interroga -la; a expansao das "historias orais" e das micro- historias e suficiente para provar que esse tipo de testemunho obteve uma acolhida tanto academica como midiatica. 0 "dever de memoria" que 0 Holocausto impoe a historia europeia foi acompanhado pela aten<;:aodada as memorias dos sobreviventes e aos vestigios deixa- dos pelas vitimas. Contudo, e preciso problematizar a extensao dessa hegemo- nia moral, sustentada por urn dever de ressarcimento, feito sobre- tudo de memoria: ''A luta legitim a para nao esquecer 0 genocidio dos judeus erigiu urn santuario da memoria e fundou uma 'nova religiao civica', segundo a expressao de Georges Bensoussan. Estendido pelo uso a outros objetos historicos, 0 'dever de me- moria' induz uma rela<;:aoafetiva, moral, com 0 passado, pouco compativel com 0distanciamento e a busca de inteligibilidade que sao 0 oficio do historiador. Essa atitude de deferencia, de respeito congelado diante de alguns episodios dolorosos do passado, pode tornar menos compreensivel, na esfera publica, a pesquisa que se alimenta de novas perguntas e hipoteses. Do lado da memoria, parece-me descobrir a ausencia da possibilidade de discussao e de confronta<;:ao critica, tra<;:osque definiriam a tendencia a impor uma visao do passado". 17 No meio seculo que vai do fim da Segunda Guerra Mundial ate 0 presente, a memoria ganhou urn estatuto irrefutavel. E certo que a memoria pode ser urn impulso moral da historia e tambem uma de suas fontes, mas esses dois tra<;:osnao suportam a exigencia de uma verdade mais indiscutivel que aque- las que e possivel construir com - e a partir de - outros discur- sos. Nao se deve basear na memoria uma epistemologia ingenua cujas pretens6es seriam rejeitadas em qualquer outro caso.'S Nao ha equivalencia entre 0 direito de lembrar e a afirma<;:aode uma verdade da lembran<;:a; tampouco 0 dever de memoria obriga a aceitar essa equivalencia. Ao contrario, grandes linhas do pensa- mento do seculo xx se permitiram desconfiar de urn discurso da memoria exercido como constru<;:aode verdade do sujeito. Ea arte, quando nao procura mimetizar os discursos sobre memoria ela- borados na academia, como acontece com certas esteticas da monumentaliza<;:ao e contramonumentaliza<;:ao do Holocausto,'9 demonstrou que a explora<;:aonao esta contida apenas dentro dos limites da memoria, mas que outras opera<;:6es,de distanciamento ou recupera<;:aoestetica da dimensao biografica, sao possiveis. 3. A ret6rica testemunhal Quando acabaram as ditaduras do suI da America Latina, lembrar foi uma atividade de restaura<;:aodos la<;:ossociais e comu- nitarios perdidos no exilio ou destruidos pela violencia de Estado. Tomaram a palavra as vitimas e seus representantes (quer dizer, seus narradores: desde 0 inicio, nos anos 1970, os antropologos ou ideologos que representaram historias como as de Rigoberta MencM. ou de Domitila; mais tarde, os jornalistas). Em meados da decada de 1980, na cena europeia, especial- mente alema, come<;:oua se escrever urn novo capitulo, decisivo, sobre 0 Holocausto. De urn lado, 0 debate dos historiadores ale- maes sobre a solu<;:aofinal e 0 papel ativo do Estado alemao nas politicas de repara<;:aoe na monumentaliza<;:ao do Holocausto; de outro, a grande difusao dos textos luminosos de Primo Levi, em que seria dificil encontrar alguma afirma<;:aodo saber do sujeito no Lager; mais tarde, as leituras de Giorgio Agamben, em que tampouco epossivel encontrar uma positividade otimista; 0 filme Shoah, de Claude Lanzmann, que propos urn novo tratamento do testemunho e renunciou, ao mesmo tempo, a imagem dos cam- pos de concentrayao, privando-se, por urn lado, de iconografia e, por outro, foryando 0 discurso dos sobreviventes. A menyao a acontecimentos poderia prosseguir.' Todos acompanharam pro- cessos nem sempre surpreendentes do ponto de vista intelectual, mas de grande repercussao na esfera publica; 0 tema ocupou urn lugar muito visivel e, na pnitica, produziu uma nova esfera de debate. Num desses acasos que potencializam fatos significativos e nao podem ser ignorados, as transiyoes democraticas no suI da America coincidiram com urn novo impulso da produyao inte- lectual e da discussao ideol6gica europeia.2 Os dois debates se entrelayaram de modo inevitavel, em especial porque 0 Holo- causto se oferece como modelo de outros crimes e isso e aceito por quem esta mais preocupado em denunciar a enormidade do ter- rorismo de Estado do que em definir seus trayos nacionais espe- dficos. Os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a urn flores- cimento de discursos testemunhais, sobretudo porque os julga- mentos dos responsaveis (como no caso argentino) exigiram que muitas vitimas dessem seu testemunho como prova do que tinham sofrido e do que sabiam que outros sofreram ate morrer. No ambi- to judicial e nos meios de comunicayao, a indispensavel narrayao dos fatos nao foi recebida com desconfianya sobre as possibilida- des de reconstruir 0 passado, salvo pelos criminosos e seus repre- sentantes, que atacaram 0valor probat6rio das narrayoes testemu- nhais, quando nao as acusaram de ser falsas e encobrir os crimes da guerrilha. Se se excluem os culpados, ninguem (fora da esfera judi- ciaria) pensou em submeter a escrutinio metodol6gico 0 testemu- nho em primeira pessoa das vitimas. Sem duvida, teria algo de monstruoso aplicar a esses discursos os prindpios de duvida metodol6gica que expusemos mais acima: as vitimas falavam pela primeira vez e 0 que contavam nao s6 Ihes dizia respeito, mas se transformava em "materia-prima" da indignayao e tambem em impulso das transiyoes democraticas, que na Argentina se fez sob o signo do Nunca mais.* o choque da violencia de Estado jamais pareceu urn obstacu- 10 para construir e escutar a narrayao da experiencia sofrida. A novidade dessa experiencia, tao forte como a novidade dos fatos da Primeira Guerra Mundial a que se referia Benjamin, nao impediu a proliferayao de discursos. As ditaduras representaram, no senti- do mais forte, uma ruptura de epocas (como a Grande Guerra); mas as transiyoes democraticas nao emudeceram por causa da enormidade desse rompimento. Pelo contrario, quando despon- taram as condiyoes da transiyao, os discursos comeyaram a circu- lar e demonstraram ser indispensaveis para a restaurayao de uma esfera publica de direitos. A mem6ria e urn bem comum, urn dever (como se disse nocaso europeu) e uma necessidade juridica, moral e politica. Alem da aceitayao dessas caracteristicas, e bem dificil estabelecer uma perspectiva que se proponha examinar de modo critico a narrayao das vitimas. Se 0 nucleo de sua verdade deve ser inquestionavel, tambem seu discurso deveria ser protegido do ceticismo e da criti- ca.A confianya nos testem unhos das vitimas e necessaria para a ins- talayao de regimes democraticos e0 enraizamento de urn prindpio de reparayao e justiya. Pois bern, esses discursos testemunhais, sejam quais forem, sao discursos e nao deveriam ficar confinados numa cristalizayao inabordavel. Sobretudo porque, em paralelo e construindo sentidos com os testemunhos sobre os crimes das dita- duras, emergem outros fios de narrayoes que nao estao protegidas pela mesma intangibilidade nem pelo direito dos que sofreram. Em outras palavras: durante certo tempo (hoje nao sabemos *Em 1983-4, no governo do presidente Raul Alfonsin, foi criada a Comissao Nacional sobre 0 Desaparecimento de Pessoas, presidida pelo escritor Ernesto Sabato. Os resultados da comissao, publicados no livro Nunca mas, levaram ao julgamento dos militares da ditadura. (N. T.) quanto), pelo fato de denunciar 0horror, 0 discurso sobre os crimes tern prerrogativas, justamente por comportar urn vinculo entre hor- ror ehumanidade. Outras narrac;:6es,inclusive aspronunciadas pelas vitimas ou por seus representantes, que se inscrevem num tempo anterior ao dos crimes (no caso argentino, 0 final dos anos 1960 e 0 inicio dos 1970) e costumam parecer entrelac;:adas,seja porque pro- vem do mesmo narrador,seja porque sesucedem umas asoutras,nao tern as mesmas prerrogativas e, na tarefa de reconstituir a epoca enclausurada pelas ditaduras, podem ser submetidas a critica. Alem disso, se as narrac;:6estestemunhais sao a Fonteprincipal do saber sobre os crimes das ditaduras, os testemunhos dos mili- tantes, intelectuais, politicos, religiosos ou sindicalistas das deca- das anteriores nao sao a unica Fontede conhecimento; s6 uma feti- chizac;:aoda verdade testemunhal poderia outorgar-Ihes urn peso superior ao de outros documentos, inclusive os testemunhos con- temporaneos aos fatos dos anos 1960 e 1970. S6 uma confianc;:a ingenua na primeira pessoa e na lembranc;:a do vivido pretenderia estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal. E s6 uma caracterizac;:aoingenua da experiencia exigiria para ela uma verda- de mais aIta. Nao e menos positivista (no sentido em que Ben- jamin usou essa palavra para caracterizar os "fatos") a intangibili- dade da experiencia vivida na narrac;:ao testemunhal do que a de urn relato feito a partir de outras Fontes. E, se nao submetemos todas as narrac;:6es sobre os crimes das ditaduras ao escrutinio ideol6gico, nao ha razao moral para ignorar esse exame quando se trata das narrac;:6essobre os anos que as precederam ou sobre fatos alheios aos da repressao, que lhes foram contemporaneos. Paul Ricreur se pergunta, no estudo que dedica as diferenc;:as ja classicas entre hist6ria e discurso, em que presente se narra, em que presente se rememora equal e 0 passado que se recupera. 0 presente da enunciac;:aoe 0 "tempo de base do discurso': porque e presente 0 momenta de se comec;:ara narrar e esse momento fica inscrito na narrac;:ao.Isso implica 0 narrador em sua hist6ria e a inscreve numa ret6rica da persuasao (0 discurso pertence ao modo persuasivo, diz Ricreur). Os relatos testemunhais sao "dis- curso" nesse sentido, porque tern como condic;:ao urn narrador implicado nos fatos, que nao persegue uma verdade extern a no momenta em que ela e enunciada. E inevitavel a marca do presen- te no ato de narrar 0 passado, justamente porque, no discurso, 0 presente tern uma hegemonia reconhecida como inevitavel e os tempos verbais do passado nao ficam livres de uma "experiencia fenomenol6gica" do tempo presente da enunciac;:ao.3 "0 presente dirige 0 passado assim como urn maestro, seus musicos': escreveu Halo Svevo. E, como observava Halbwachs, 0 passado se distorce para introduzir-se coerencia.4 Estendendo as noc;:6esde Ricreur, pode-se dizer que a hegemo- nia do presente sobre 0 passado no discurso e da ordem da experien- cia e se ap6ia, no caso do testemunho, na mem6ria e na subjetivida- de. A rememorac;:ao do passado (que Benjamin propunha como a unica perspectiva de uma hist6ria que nao reificassse seu objeto) nao euma escoIha, mas urna condic;:aopara 0 discurso, que nao escapa da mem6ria nem pode livrar-se das premissas impostas pela atualidade a enunciac;:ao.E, mais que uma libertac;:aodos "fatos" coisificados, como Benjamin desejava, e uma ligac;:ao,provavelmente inevitavel, do passado com a subjetividade que rememora no presente. As narrac;:6esda mem6ria tambem insinuam outros proble- mas. Ricreur assinala que e errado confiar na ideia de que a narra- c;:aopossa preencher 0vazio da explicac;:ao/compreensao: "Criou-se uma aIternativa falsa que faz da narratividade tanto urn obstaculo como urn substituto da explicac;:ao':sHa dois tipos de inteligibilida- de: a narrativa e a explicativa (causal). A primeira esta apoiada num efeito de "coesao': que provem da coesao atribuida a uma vida e ao sujeito que a enuncia como sua. Vezzetti assinalou que a memoria recorre preponderantemente ou sempre a formas narrativas, cujas representac;:oes "ficam necessaria mente estilizadas e simplifica- das".6Naturalmente, a estilizac;:aounifica e trac;:auma linha argu- mental forte, mas tambem instala 0 relato num horizonte em que tern raizes a ilusao de evitar a dispersao do sentido. Da perspectiva da disciplina historica, em compensac;:ao, ja nao se pretende reconduzir os acontecimentos a uma origem; ao renunciar a uma teleologia simples, a historia renuncia, ao mesmo tempo, a urn unico principio de inteligibilidade forte e, sobretudo, apropriado a intervenc;:ao na esfera publica, em que os velhos dis- cursos de uma historia com argumentos nitidos prevalecem sobre as perspectivas monograficas da historia academica. Justamente 0 discurso da memoria e as narrac;:oesem primeira pessoa se movem pelo impulso de bloquear os sentidos que escapam; nao so eles se articulam contra 0 esquecimento, mas tambem lutam por urn sig- nificado que unifique a interpretac;:ao. No limite esta a utopia de urn relato "completo", do qual nada reste do lado de fora. A tendencia ao detalhe e ao acumulo de pre- cisoes cria a ilusao de que 0 concreto da experiencia passada ficou capturado no discurso. Muito mais que a historia, 0discurso econ- creto e pormenorizado, por causa de sua ancoragem na experien- cia recuperada a partir do singular. 0 testemunho e inseparavel da autodesignac;:ao do sujeito que testemunha porque ele esteve ali onde os fatos (lhe) aconteceram. E indivisivel de sua presenc;:ano local do fato e tern a opacidade de uma historia pessoal "afundada em outras historias"/ Por isso e admissivel a desconfianc;:a;mas, ao mesmo tempo, 0 testemunho e uma instituic;:ao da sociedade, que tern a ver com a esfera juridica e com urn lac;:osocial de confianc;:a, como apontou Arendt. Quando 0 testemunho narra a morte ou a vexac;:aoextrema, esse lac;:oestabelece tambem uma cena para 0 luto, fundando assim uma comunidade ali onde ela foi destruida.8 o discurso da memoria, transformado em testemunho, tern a ambic;:aoda autodefesa; quer persuadir 0 interlocutor presente e assegurar-se uma posic;:aono futuro; justamente por isso tambem e atribuido a ele urn efeito reparador da subjetividade. Eesse aspecto que salientam as apologias do testemunho como "cura" de identi- dades em perigo. De fato, tanto a atribuic;:aode urn sentido unico a historia como a acumulac;:aode detalhes produzem urn modo rea- lista-romantico em que 0 sujeito que narra atribui sentidos a todo detalhe pelo proprio fato de que ele 0 incluiu em seu relato; e, em contrapartida, nao se cre obrigado a atribuir sentidos nem a expli- car as ausencias, como acontece no caso da historia. 0 primado do detalhe e urn modo realista-romantico de fortalecimento da credi- bilidade do
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