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CANCLINI_O método

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FONTE: CANCLINI, Néstor García. O método. In.:_____ O mundo inteiro 
como lugar estranho. Trad. Larissa Fostinone Locoselli. São Paulo: Editora da 
Universidade de São Paulo. 2016. 176p. 
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O MÉTODO 
 
Falei, sem dar nomes, de como se tornou insustentável o método 
dedutivo: onde está a teoria social nesta época globalizada e 
dispersa, ou seja, interdependente e errática, que permite extrair 
consequências observacionais, explicar por que os atores agem de 
maneiras tão diferentes e instáveis? 
 
Também o método indutivo é protelatório: aonde nos leva a 
acumulação de dados e experiências? Quando tem sentido parar para 
estabelecer como se organizam interações sempre variáveis, que só 
aos poucos perseveram? 
 
Entre as iluminações de um método e de outro, que – não vamos 
negar – produziram conhecimentos (insuficientes), chama-me 
atenção a atitude epistemológica de poeta como Arnaldo Calveyra, 
tão sutis para ver “a luz que milagrosamente, se recupera entre cinzas 
dos fogos mal apagados”. Um escritor espanhol, José Ángel 
Cilleruelo, desconcertado com seu modo de alternar, até em um 
mesmo texto, poesia, narração e teatro, perguntou a ele: 
 
- Que limites internos você acredita que existem hoje entre os 
gêneros? 
 
- Nenhum, não existe nenhum limite interno quando que a gente 
busca de verdade é uma espécie de incandescência da palavra que se 
torna poética... Em meu caso, não vejo descontinuidade entre 
escrever um conto e escrever um poema ou uma peça de teatro. Eu 
sempre digo de brincadeira que cheguei tarde à repartição de 
gêneros... 
 
Marina Mariash e Santiago Llach o entrevistaram sobre método para 
o suplemento Grandes Líneas do jornal El Ciudadano: 
 
- Depois de tantos anos de escrever, você foi encontrando técnicas 
ou mecanismos para encher uma página em branco? 
 
- Se tivesse isso, eu me dedicaria a outra coisa. A curiosidade é 
começar de novo. Se a gente soubesse fazer as coisas, seriam sem 
graça. A escrita é uma tarefa de curiosidade com a língua em grau 
máximo. 
 
Alguém poderia responder que na ciência não se trata de não se 
entediar, mas de conhecer. Seria possível argumentar que as duas 
situações não estão longe uma da outra. Mas, escutemos cientistas 
sociais que também são artistas e encontraram na criatividade chaves 
para fazer ciência. 
Em vez da literatura, pode ser a música. Robert Faulkner e Howard 
Becker, jazzista e sociólogos, quiseram entender como os músicos 
que trabalham em bares e festas – isto é, lugares onde descobrem 
que têm de tocar uma variedade de peças que nem sempre 
conhecem antecipadamente – podem tocar juntos com pouco ou 
nenhum ensaio e com um mínimo de música escrita para se orientar. 
 
Achávamos que tínhamos uma resposta simples, mas certeira: são capazes 
de fazer isso por que sabem a mesma música, as mesmas canções. Muitos 
deles conheciam vários temas em comum, mas muitos outros não sabiam 
esta ou aquela canção, e o músico que confiasse que todos podem tocar 
algo correria o risco de comentar um erro grave. 
 
Como os músicos criam uma atuação se não podem confiar que 
todos sabem um repertório comum? A atuação provém tanto do 
inventado como do já sabido. 
 
Prestemos atenção ao contínuo processo de ajuste mútuo por meio do qual 
são compartilhados, ao passarem, fragmentos de conhecimento que se 
combinam para produzir uma atuação suficientemente boa para a ocasião e 
seus participantes. Como qualquer outra atividade que várias pessoas, 
empreendem juntas, o que os músicos de jazz fazem não é aleatório nem 
desarticulado, mas também não é totalmente fixo e previsível. As proporções 
sempre misturam as duas cosias e os termos da mistura não são uma simples 
aplicação de maneiras conhecidas de chegar a um acordo, mas antes, uma 
criação do momento. 
 
Faulkner e Becker chegaram a essa certeza por meio de um raciocínio 
teórico nem deduzindo-a de compromissos estéticos, filosóficos ou 
sociológicos anteriores. Foi mediante a observação direta. 
 
O que descrevemos não é o que pensamos que os músicos deveriam fazer, 
nem o que desejaríamos que eles fizessem, nem o que fariam se estivessem 
fazendo as coisas bem, de acordo com algum critério. Em compensação, 
descrevemos o que fazem, conforme pudemos ver, registar e entender. 
Portanto, em última instância, a pergunta que respondemos não é a que 
tínhamos a princípio, mas a que aprendemos a formular ao avançar em 
nosso trabalho: como os músicos fazem para combinar saberes parciais e 
conseguir criar uma atividade coletiva suficientemente boa para variedade 
de pessoas envolvidas no evento? 
 
Por meio dessa observação, disposta a abandonar o que tinham 
aprendido em correntes sociológicas que eles mesmos ensinavam em 
universidade, chegaram a notar que muitos não músicos, que se 
ocupam de outras práticas – curar, roubar, drogar-se – em vez de 
atuarem executando habitualmente um programa que todos os seus 
colaboradores conhecem com perfeição, estão alertas a cada dia para 
o que os outros estão fazendo e ajustam continuamente sua ação 
conforme o que vão ouvindo e vendo. Mais do que descobrir leis que 
existiram antes dos membros de um grupo atuarem, mais do que 
sociedade e cultura como algo já instalado, encontram “repertórios” 
para usar, complicações, conflitos, deslizes, como ocorre quando 
várias pessoas tentam fazer algo juntas.

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