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MAICY BASTOS RODRIGUES CASO CLÍNICO A CONSTRUÇÃO DO VÍNCULO MÃE-BEBÊ NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA NEONATAL Caso Clínico apresentado ao curso de Pós- Graduação em Psicologia Hospitalar da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, como parte das atividades exigidas para a obtenção do título de especialista. SÃO PAULO 2018 MAICY BASTOS RODRIGUES CASO CLÍNICO A CONSTRUÇÃO DO VÍNCULO MÃE-BEBÊ NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA NEONATAL Caso Clínico apresentado ao curso de Pós- Graduação em Psicologia Hospitalar da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, como parte das atividades exigidas para a obtenção do título de especialista. Orientadora: Prof. Ms. Renata Pereira Condes SÃO PAULO 2018 SUMÁRIO 1.Dados de Identificação do Paciente..............................................................................01 2.História da Doença e História Pregressa do Paciente...................................................01 3.Encaminhamento para a Psicologia..............................................................................02 4.Resumo dos Atendimentos...........................................................................................03 5.Hipótese Psicodinâmica................................................................................................11 6.Articulação Teórica-Clínica.........................................................................................12 7.Reflexões sobre o Caso: Impasses e Possibilidades.....................................................16 8.Referências Bibliográficas............................................................................................18 1.Dados de Identificação do Paciente e Familiares: Paciente: Recém-Nascido, SN, sexo feminino, nascida em 19/05/2018, 11 dias de vida quando do início dos atendimentos. Filiação: Mãe: APN, 36 anos, casada, desempregada, ensino médio completo, sem religião definida, porém destaca durante os atendimentos que tem muita fé e acredita em Deus. Pai: ACN, 29 anos, casado, chefe de cozinha, ensino médio completo, evangélico. 1.1.Genograma Familiar 2.História da doença e História Pregressa do Paciente A RN S nasceu na Santa Casa de São Paulo no dia 19/05/2018, onde manteve-se internada desde então. S é a segunda filha do casal, que já é pai de HVN, de 06 anos. AP é natural de Pernambuco e seu marido do Ceará. Ambos vieram para São Paulo com suas famílias ainda crianças em busca de melhores condições de vida. São casados há 08 anos. Residem com a filha em imóvel alugado na Vila Maria. AP tem uma relação próxima com sua família. Os pais e as duas irmãs também residem em São Paulo e frequentam a casa um dos outros com frequência, mas com quem a paciente tem mais proximidade é com a mãe, que aparece com frequência em sua fala. Já a família do marido me parece mais distante, porém quando eu questionei como era o relacionamento familiar com os mesmos, AP respondeu que era bom, que eram pessoas tranquilas e amigas – porém nunca falava sobre eles. Após a primeira gestação, na qual a filha também ficou internada em uma UTI Neonatal por três meses e precisou passar por três cirurgias cardíacas, AP parou de trabalhar para se dedicar exclusivamente aos cuidados da mesma. A renda da família vem do marido, que trabalha como Chefe de cozinha em um bar e restaurante. A genitora relata que sempre quis ser mãe. Ambas as gestações foram sonhadas e planejadas. Por receio do que já havia passado, coloca que fez inclusive exames pré- natais particulares, tamanha era sua insegurança de que os problemas da primogênita se repetissem nessa gravidez. No total, foram 07 consultas de pré-natal, onde nenhum dos exames apontava alterações. AP conta que a notícia da gravidez foi muito bem recebida por ela e pelo marido, que sentiram muita alegria e emoção ao confirmar a vinda de uma segunda filha. A gestação foi vivida de forma ambivalente, alternando momentos de felicidade e muito querer, com medo e não querer, pois lembrava da gestação anterior e sentia-se insegura, receiosa de que algo parecido pudesse acontecer novamente. Fisicamente, a gravidez seguia normal e sem intercorrências, mas com 24 semanas sentiu fortes dores e veio para a Santa Casa, passando por uma cesárea de urgência. SN nasceu prematura com 24 semanas em um parto cesárea com peso de 1.310kg, tendo como valores de Apgar 1 no primeiro minuto de vida e 8 no quinto, dificuldades respiratórias, má formação cardíaca e pulmonar, sendo imediatamente internada na UTI Neonatal. AP relata que tudo aconteceu muito rápido e que não teve tempo de processar, “quando me dei conta, já estava parindo” (sic). Ao questionar como ela vivenciou essa experiência e de que forma se sentiu, ela foi concisa, afirmando que mais uma vez foi diferente do que havia imaginado, mas que isso não importava mais, pois sua filha estava viva e com saúde. Percebi que isso era algo dolorido para a mesma e resolvi que em outro momento, quando eu me sentisse mais a vontade e vinculada com a mesma, voltaria a esse assunto. 3.Encaminhamento para a Psicologia O serviço de Psicologia atuante na UTI Neonatal da Santa Casa atende todos os pais de bebês recém-nascidos internados, tendo em vista o ambiente estressor e gerador de angústia que se encontram. Nesse sentido, a equipe de Psicólogos busca acolher e dar suporte emocional até a alta do bebê. A equipe participa uma vez por semana da reunião multidisciplinar, no intuito de tomar conhecimento do quadro clínico e desenvolvimento dos bebês internados, além de discutir características do vínculo pais-bebê, estado emocional dos pais e auxiliar na comunicação dos mesmos entre a equipe. 4.Resumo dos Atendimentos Foram realizados oito atendimentos, sendo sete com AP e um com AC, entre o período de 30/05/18 a 01/08/18. A paciente mostrou-se colaborativa e receptiva ao longo dos atendimentos, sendo comunicativa e participativa, criando facilmente um bom vínculo comigo. AP era uma mãe bastante presente na UTI Neo, conhecida e 1 Apgar é o boletim médico utilizado para objetivar a condição de nascimento do RN a partir de cinco parâmetros clínicos: frequência cardíaca, regularidade da respiração, tônus muscular, reflexos e coloração da pele (Rodrigues e Amaral, 2016). querida pela equipe multiprofissional, que a descreveu como “tranquila, simpática, educada e carinhosa”.Com as outras mães, também construiu um bom vínculo, era normal vê-la sorrindo e conversando com as mesmas dentro da UTI. Após o período inicial – onde ainda não tinha vínculo tão consolidado com S, AP era afetuosa e muito cuidadosa com a filha. Quando a mesma ainda não podia mamar, ela tirava o leite com frequência e ia ao banco de leite. Posteriormente, a medida que a filha ia melhorando e a equipe liberando, ela fazia questão de cuidar de S, mesmo que muitas vezes se senti-se receiosa, dava banho, trocava fralda, ficava com a filha no colo, cantava e conversava com a mesma, em especial quando estava dando a mama. S evoluía a cada semana e depois de 02 meses internada na UTI Neonatal, foi transferida para o cuidados intermediários, ficando lá por aproximadamente 20 dias, tendo alta hospitalar no dia 01/08/2018. Primeiro atendimento:30/05/18 Local: Recepção da UTI Neonatal Eu aguardava por AP na recepção da UTI Neo e ainda não a conhecia pessoalmente, o atendimento havia sido agendado por telefone. Ela chegou e se apresentou, sorrindo e de forma espontânea, me abraçou. Nesse primeiro momento, meu objetivo era conhecê-la, saber um pouco de sua história de vida, colher dados sobre sua gestação e em que circunstâncias ela ocorreu, além de saber mais sobre S e como a mãe estava lidando com a hospitalização da filha. A paciente relata que sua gravidez foi planejada por ela e seu marido. No entanto, tinha receio de como poderia ser, tendo em vista que na primeira gestação, a filha nasceu prematura e com problemas cardíacos, ficando internada 03 meses na UTI Neonatal e passando por 03 cirurgias do coração. O puerpério da primeira filha foi um momento de tristeza, angústia e solidão para AP. Conta que o marido teve dificuldade em lidar com a situação e passou a beber diariamente. A mãe, que sempre a ajudava em tudo, se afastou. Atribui isso ao aspecto frágil que HV tinha, o que ela acredita que acabava fazendo com que as pessoas temessem auxiliá-la em coisas básicas, como segurar no colo e dar banho. Destaca que os primeiros meses da vida de HV foram um desafio a ela como mulher, mãe e pessoa. Sentia-se esgotada fisica e emocionalmente tendo que lidar com tudo sozinha. A partir do sexto mês, as coisas foram melhorando conforme a saúde e aparência da filha melhoravam, fazendo-a parecer mais “com um bebê normal de 06 meses e não com um bebê prematuro, frágil e com cicatrizes” (sic). Mostrou-se colaborativa durante todo o atendimento. Comunicou-se de forma clara e demonstrou receptividade. Apresentou humor ansioso e em alguns momentos chorou, em especial quando falou da forma como a hospitalização de S vem afetando HV. Diz que a filha pergunta pela irmã o tempo todo, que não está dormindo e nem se alimentando como antes. “Percebo que ela está triste e não sei como acalmá-la ou consolá-la” (sic). Relatou sentir-se impotente e solicitou ajuda na comunicação com a mesma, o que foi feito, dado orientações de que deveria conversar com a filha em uma linguagem simples, em que a mesma pudesse entender, explicando que a irmã menor está doente e que nesse momento, precisa ficar internada no hospital, onde os médicos estão cuidando dela. Durante o atendimento, consegui acolher e criar um bom vínculo com AP, onde ela parecia segura e confortável para expor seus sentimentos e emoções. O que me chamou atenção foi o fato de ela estar com S recém-nascida, internada em uma UTI em estado grave, e mesmo assim, só conseguir trazer suas angústias em relação a HV. As intervenções realizadas foram: acolhimento, escuta psicológica e psicoeducação. Na reunião multiprofssional, a médica responsável por S informou que ela estava anêmica 2 , taquidispnéica 3 e perdendo a cartilagem do nariz pela má formação e pela necessidade de uso do CPAP 4 . Segundo atendimento: 13/06/18 Local: Recepção da UTI Neonatal No segundo atendimento, meu objetivo era saber como a paciente estava lidando com a hospitalização da filha, resgatar como estava se sentindo e a forma que isso estava afetando sua vida. AP chega ansiosa e chorosa. Traz novamente questões não elaboradas de sua primeira gestação, que tiveram consequências psíquicas muito marcantes para a mesma. Começa dizendo que cometeu um erro para tentar proteger HV. Questiono o que aconteceu, e ela diz que sentiu a filha muito triste em casa, sem querer brincar, e perguntando insistentemente pela irmã. Diz que não teve coragem de falar o que havíamos conversado, e mostra pra filha uma foto em seu celular de um bebê do berçário, afirmando que aquela é S e que ela está bem, que HV não precisa se preocupar. Porém, quando o pai chega, sem saber da situação, HV pede que ele mostre a ela uma foto de S e afirma que sua mãe já mostrou. Quando o pai mostra a foto real de S, HV fica assustada, começa a chorar e pergunta ao pai porque ele está mostrando a foto “desse bebê doente” (sic) a ela. Ele a acalma e diz que esse bebê é S, que ela nasceu pequenina, por isso está em um berço especial e com alguns tubos, que ajudam seu 2 A anemia ocorre geralmente pela perda de sangue próximo ao parto ou pela necessidade frequente coleta de sangue feitas nos bebês para realizar exames. (Moreira e Rodrigues, 2003) 3 Taquipnéia é quando o bebê respira mais rápido que o normal. (Moreira e Rodrigues, 2003) 4 O CPAP é uma forma de fornecer oxigênio sob pressão em uma concentração conhecida. O ar é liberado através de pequenos tubos que entram nas narinas do bebê. É usado principalmente ajudando a manter os alvéolos dos pulmões abertos. (Moreira, Rodrigues, Braga e Morsch, 2003) coração a bater, sua respiração ficar melhor e ela se alimentar. HV então chama a mãe e a acusa de mentirosa. Nesse momento, AP começa a chorar. Diz que mentiu para HV para protegê-la. Acolho e questiono o que ela sente quando me conta tudo isso, ela diz que sente tristeza e medo que a filha não a perdoe e que sofra ainda mais, fantasiando sobre a irmã que está internada. Questiono o que realmente ela esperava tendo mentido para a filha, que tipo de mensagem estaria passando para HV em uma situação onde ela poderia ter conversado e explicado o que de fato estava acontecendo, o que claramente ia auxiliar no entendimento da filha nessa situação. Ela direciona sua raiva também para o marido, AC. Fala que “pra variar” (sic), ele é o culpado por essa situação. Pergunto o que ela quer dizer com isso e ela fala que quando HV nasceu prematura, ele passou a beber todos os dias. Não ia visitar a filha no hospital e não ajudava em nada quando ela teve finalmente alta e foi pra casa. Só começou a se conectar com a filha a partir do sexto mês. “Ele virou alcóolatra” (sic). Apesar de AP não dizer, percebo o quanto ela ainda está extremamente magoada com AC por suas atitudes durante o puerpério de HV e o culpa por várias situações que acontecem nos dias atuais. Questiono como é a relação dos dois nos dias de hoje e ela diz que tem dois anos que ele não bebe, porém reclama que ele trabalha demais e não dedica muito tempo a sua família. “Não é nem por mim que falo, é por HV. Ela sente a falta do pai” (sic). Pergunto como está S, tentando tirar AP do passado e fazê-la olhar para a situação presente, e ela diz que não está muito preocupada, pois já passou por isso uma vez e confia na equipe médica. As intervenções realizadas foram no intuito de dar suporte emocional, acolher e ressignificar suas emoções. Novamente, saio do atendimento me perguntando como posso trazer essa mãe para o aqui-agora, fazendo-a olhar para S. Na supervisão, entendo que esse processo só ira ocorrer na medida que eu der escuta e auxiliar AP a elaborar as questões mal resolvidas em relação ao puerpério de HV e a mágoa que tem da forma como o marido agiu nesse período, pois só assim conseguirei ajudá-la na construção de vínculo com S. Terceiro atendimento: 20/06/18 Local: Recepção da UTI Neonatal e UTI Neonatal (Ao lado da incubadora de S) No terceiro atendimento, o objetivo era abrir um espaço acolhedor, onde a paciente se senti-se acolhida para falar das questões de sua primeira gestação e ajudá-la na elaboração das mesmas. AP inicia o atendimento trazendo sua preocupação com HV. Diz que quando foi buscá-la na escola, a professora chamou-a e disse que HV estava agindo diferente, que não brincava como antes e que não estava comendo todo o lanche, além de estar dispersa e infantilizando a voz. Relata que a filha está assim desde que S nasceu. Acolho e valido seus sentimentos, explicando que a chegada de um irmão provoca mudanças na vida de uma criança, que se vê obrigada a dividir o afeto dos pais, ainda mais no casode HV, que durante 06 anos foi filha única. Comportamentos regressivos são naturais nesse momento, pois a criança sente ciúmes, medo de perder o amor dos pais, de ser deixada de lado, etc. Explico que a reação de HV é completamente normal e suas atitudes diferentes são a forma que encontrou para expressar o que está sentindo. Destaco a importância de sempre conversar com a mesma, ouvi-la, mostrando que nada mudou, que o afeto continua igual, mostrar o lado bom de ter uma irmã, alguém para brincar, entre outras coisas. Pergunto se ela ainda vê HV como um bebê de UTI, que precisa de muita proteção.Ela me olha e concorda com a cabeça que sim. Pergunto então, de que forma ela vê S, que é quem de fato está na UTI, precisando de um cuidado especial. AP fica emocionada e diz que não estava conseguindo perceber o quão focada em HV estava. Diz que agora, após me ouvir dizer que os comportamentos da filha estão dentro do normal, se sente aliviada, pronta para focar mais em S. Validei com ela todas suas crises e angústias, esclareço que é normal se sentir dividida quando se é mãe de dois e a tranquilizo, mostrando que ela está tentando se situar e dando o melhor que pode nesse momento. Essas foram as intervenções realizadas escuta, acolhimento, suporte emocional, validação de sentimentos e psicoeducação. Quando levanto para me despedir, AP me pergunta se já “conheço” S, eu respondo que a vejo sempre que vou na UTI, e ela me convida para ir ver a filha junto com ela. Vamos juntas e ao chegar em frente da incubadora, ela diz, sorrindo: “Olha que linda, Maicy. Ela não é linda?” Eu concordo e sinto-me muito feliz, entendo esse convite como uma confirmação do vínculo terapeuta-paciente, além de conseguir perceber sua conexão com S. Quarto atendimento: 27/06/18 Local: UTI Neonatal (Ao lado da incubadora de S) No quarto atendimento, meu objetivo era resgatar as últimas reflexões feitas e ver o que a paciente traria, o que emergeria em nosso contato. Porém, ao entrar na UTI NEO, vejo AC, pai de S, debruçado sobre a incubadora, gesticulando e falando com a filha. Espero um momento e me aproximo, me apresentando e perguntando se ele teria um tempo para conversar comigo. Ele é receptivo, sorri e iniciamos o atendimento. Apresentou humor estável, estava consciente e orientado. Relatou estar tranquilo com a hospitalização de S, afirma que “chorar não resolve, o que ajuda é rezar, tenho que me manter forte” (sic). Nesse momento, digo “de fato, chorar não resolve, mas ajuda. É uma expressão natural. Todos os sentimentos e emoções são importantes e necessários para o nosso funcionamento, sabe? É tão natural quanto sorrir quando se está feliz. Você acha que seria menos forte se chorasse?” Ele me olha em silêncio, reflexivo, lagrimando. Continuo: “Penso que chorar não é sinal de fraqueza, e sim sinal que você está passando por uma barra e sendo forte há muito tempo”. Ele diz: “Sendo bem sincero, esse homem grande aqui que você tá vendo chorou tanto na semana passada que teve que ser acalmado por uma enfermeira. Olhei pra minha filha ali, tão pequena, tão frágil e chorei.”, pergunto como ele se sentiu após chorar e ele responde: “aliviado”. AC traz estar se sentindo dividido com S internada no hospital e HV e AP em casa. Diz que não se sente a vontade para ter momentos de lazer com a família sabendo que a filha está em uma UTI. Coloca que sua esposa cobra isso dele, que reage: “Como vou para shopping com minha filha aqui? Me sinto paralisado, é como se a vida só fosse pra frente quando ela sair daqui” (sic). Acolho e autorizo seus sentimentos, porém destaco o quanto é importante fazer um esforço para se cuidar, ter momentos fora daqui fazendo coisas que lhe façam bem e o fortifiquem, na tentativa de achar um equilíbrio emocional, por mais difícil que possa parecer, ressaltando que estando bem, poderá continuar vindo e cumprindo seu papel de pai aqui, sem esquecer dos outros papéis que tem em sua vida. Essas foram as intervenções utilizadas: escuta, acolhimento, suporte, validação de sentimentos e orientações. Na reunião multiprofissional, a equipe relata que S está fazendo frequentemente uma importante distensâo abdominal, foi diagnosticada com meningite 5 e funcionamento do seu pulmão é considerado insatisfatório. Quinto atendimento: 11/07/18 Local: UTI Neonatal (Ao lado da incubadora de S) Já faziam duas semanas que eu não atendia AP, a mesma não estava comparecendo aos atendimentos e meu objeto hoje era entender seus motivos, além de auxiliá-la na construção de vínculo com S. AP inicia o atendimento justificando sua ausência na UTI, dizendo que HV está tendo crises de asma, o que a tem preocupado e impedido de vir visitar S. Estava ao lado da incubadora de S, e pela primeira vez, a vejo com a filha no colo, dando de 5 A meningite é a inflamação das meninges por invasão bacteriana. (Kallás, 2011) mamar a mesma. Ao perceber o momento das duas, me afasto e digo que preciso fazer umas anotações, informando que continuaremos o atendimento em breve. Ao sair da sala, volto um tempo depois e observo através do vidro AP olhando amorosamente para S, fazendo carinho em sua cabeça enquanto ela mama. Sorri para a filha e canta para a mesma. Me aproximo e pergunto como ela está se sentindo, ela diz que muito feliz por estar dando de mamar a filha, que não consegue “achar palavras” (sic) para expressar a emoção que está sentindo. Conta que sentiu-se insegura ao ter que dar banho na mesma e trocá-la, sorri dizendo que “sabe que isso é besteira” (sic), afinal já fez isso com HV várias vezes, mas que acabou se acostumando com a equipe fazendo e que pela fragilidade de S, teme fazer alguma coisa errada. Diz sentir-se “mais mãe” ao fazer essas tarefas. Relata que muitas vezes, antes desse momento, chegava na UTI Neo e sentia-se desoriantada quanto ao que iria fazer. Observava a equipe de enfermagem manuseando S e desejava que fosse ela fazendo isso, mas ao mesmo tempo, coloca que entende que naquele momento, era desses cuidados clínicos que a filha precisava. Mostro a ela o quanto independente desse período, ela sempre esteve ali presente e o quanto isso foi e continua sendo importante para sua filha, que rconhece sua voz, seu cheiro e se acalma quando ela está por perto – destaco que a equipe tem sim um saber clínico, mas que ela tem um saber de mãe, o que é único. AP fica com os olhos marejados. Quanto ao quadro clínico de S, noto que AP não está totalmente apropriada do mesmo e nunca o traz para os atendimentos. Resolvo perguntar sobre a saúde e prognóstico da filha, e ela responde que S está melhorando, que tem fé que logo ficará boa e poderá ir pra casa. Não se aprofunda, acrescenta que está tranquila, que não se sente ansiosa pela alta, pois sabe que nesse momento, é melhor para filha permanecer internada. Apesar de ainda trazer bastante a preocupação com HV e queixas sobre o marido, percebo que AP está mais consciente, centrada no aqui-agora, conseguindo estabelecer um vínculo funcional e afetivo com S. As intervenções de hoje foram feitas nesse sentido: buscando acolhê-la, torná-la mais consciente e presente, dando suporte emocional e oportunidade para que ela se sinta mais conectada consigo e consequentemente, com S. Sexto atendimento: 18/07/18 Local: Recepção da UTI Neonatal No sexto atendimento, meu objetivo era reforçar o vínculo mãe e filha e entender melhor como estava a dinâmica familiar perante a hospitalização de S. Encontro AP na recepção da UTI e subimos juntas para o atendimento. Ela inicia dizendo que quer falar sobre o relacionamento com AC. Diz sentir-se triste, pois tiveram uma briga e não estão se falando direito. O desentendimento se deu segundo ela, porque o mesmo “só pensa em trabalho e esquece da família” (sic).Passa algum tempo reclamando do marido. Nos outros atendimentos, a paciente trazia pequenas reclamações sobre o marido, sempre ligadas ao excesso de trabalho e a forma como o mesmo se ausentava do hospital e da convivência com ela e HV, porém, o mesmo vinha quase diariamente visitar S no hospital antes de ir para o trabalho, dado que eu tinha obtido na recepção e com a equipe de enfermagem. Com isso em mente, pergunto o que AP espera do marido, pois ela continua o tratando como se ele sempre estivesse fazendo algo de errado, como se o mesmo estivesse, por exemplo, bebendo – como na primeira gestação. “Percebo que você culpa seu marido por algo que ele já fez, mas não está mais fazendo. Por mais que a situação se pareça (me referindo a internação de ambas as filhas), não é a mesma. Você consegue perceber que as coisas são diferentes hoje?”. Ela concorda que sim com a cabeça e fica em silêncio, reflexiva. Após mais algumas colocações sobre o assunto, finalizo pedindo que ela pense sobre o que conversamos e tente olhar para a situação como ela se apresenta hoje e não da forma que foi, destacando o quanto percebo o esforço de AC para se fazer presente na hospitalização de S e na convivência com ela e HV. As intervenções utilizadas nesse atendimento foram escuta, confrontação no sentido de despertar para a consciência e acolhimento. O caso de S não é mais discutido na reunião multiprofissional, pois a mesma teve alta da UTI Neo e está no cuidados intermediários. Sétimo atendimento: 30/07/18 Local: Recepção da UTI Neonatal No sétimo atendimento, o objetivo era continuar o reforço do vínculo-mãe e filha e também ver o que emergia a partir de nosso encontro. AP se apresenta ao atendimento com humor ansioso e fala acelerada, o que é atípico para a mesma. Relata que S está bem e isso a deixa muito feliz, porém destaca que teve um novo desentendimento com o marido e está muito aborrecida com ele. Conta que houve uma falha na comunicação entre ela e a médica, que ela entendeu que S teria alta naquele dia e ligou ansiosa para o marido, pedindo que o mesmo viesse para o hospital e trouxesse o bebê conforto. AC saiu do trabalho e ao chegar no hospital, descobriram que a alta não aconteceria naquele dia, o que deixou o marido “furioso, falando alto” (sic), continua, dizendo que ele foi extremamente grosso e que ela vai ficar na casa da mãe dela. Reflito com ela o quanto esses meses tem sido estressantes para eles enquanto pais e casal, que ambos estão nervosos, cansados emocional e fisicamente, preocupados, etc. Que isso não justifica, de forma alguma, a grosseria do marido, mas que brigas acontecem e que nesse momento, o mais importante é que eles possam, com calma, se entender e priorizar S, pois a mesma vai precisar dos pais unidos, além de HV, que também sofre com toda situação. Procuro mostrar a ela o quanto ela e o marido abdicaram e se esforçaram esses meses e que agora, na reta final, é o momento que S mais precisa deles. Ela concorda, mostra-se assertiva, pontua algumas questões diz que vai conversar com AC. AP diz que sente-se culpada e que questiona sua capacidade enquanto mãe e mulher; pergunto o motivo dessa fala e ela diz que não conseguiu levar ambas as gestações até o final, e desconfia que o marido a culpa por isso. Me pergunta se acho que tem algum problema com ela e pelo quê isso aconteceu duas vezes (falando sobre a prematuridade das filhas). Pontuo e reconstruo com ela seus cuidados pré-natais, que foram feitos corretamente, seu cuidado com a alimentação e com sua saúde e vou mostrando que ela fez tudo que podia durante as gestações, que a culpa não cabe nessa situação, mesmo que eu entenda que ela se sinta dessa forma. Pergunto se o que eu disse faz sentido, se ela consegue visualizar dessa forma e ela diz que sim, mas que gostaria que pudesse ter sido diferente. As intervenções feitas foram no sentido de acolher e validar suas angústias, medos e ajudá-la a expressar e ressignificar a raiva. Oitavo atendimento: 01/08/18 Local: Recepção da UTI Neonatal Ao verificar o prontuário de S antes do início de atendimento, vejo que a mesma tem previsão de alta para o dia de hoje – o qual também seria meu último dia de estágio na UTI Neo. Vou para o atendimento pensando em fazer uma retrospectiva e pontuar como percebi o crescimento de AP enquanto mulher e mãe, validando seus esforços e acolhendo o que emergisse. AP apresenta-se com humor alegre, fala com emoção da melhora de S, afirma que a mesma terá alta hoje e que vai, finalmente, para casa com sua família. Diz que ela e AC conversaram e que dentro da limitação de cada um, estão se entendendo. Reforço e valido seu esforço e continuamos trabalhando algumas questões do relacionamento – como a importância de exercitar o diálogo, escutar e se esforçar para compreender o outro, ouvir para entender e não para responder e se defender - no intuito de fortificar e unir o casal para a chegada de S e se prepararem para readaptação na rotina da família. Informo a AP que esse será nosso último atendimento por conta do fim do estágio e peço que ela relembre como estava quando iniciamos e como se sentia aqui- agora, que estamos finalizando. AP me agradece, diz que minha ajuda foi muito importante para ela, que estava inicialmente se sentindo “perdida, desacreditada de muitas coisas” (sic), e que eu auxiliei ela a olhar mais para si e suas filhas e sorri, dizendo: “além de me ajudar a ter mais paciência com meu marido”. Devolvo dizendo o quanto foi importante e gratificante para mim acompanhá-la e levanto, recebendo um abraço e devolvendo, emocionada. 5. Hipótese Psicodinâmica No primeiro atendimento que fiz com AP, ela me trouxe todo um vivído passado em relação a hospitalização de sua primeira filha. A forma como ela me contava o que havia passado em detalhes, incluindo a rotina do hospital, os medos e angústias, a ausência do marido e da sua mãe, a mágoa que isso acarretou, as cirurgias que a filha passou...era tão dolorido e carregado de ressentimento, que ela não conseguia olhar para seu momento presente. Era como se a hospitalização da segunda filha a estivesse fazendo resgatar e reviver o sofrimento não elaborado de 06 anos atrás. Juntas, fomos percebendo que de fato isso estava acontecendo. AP demonstrava uma angústia extrema rememorando seu passado no hospital. O temor da repetição não era só em relação a situação da filha, mas também do marido. Tinha muito medo de perdê-lo, sentia-se ameaçada e insegura perante a situação que de certa forma, se repetia. Isso aparecia em sua fala, o receio de que ele agisse como na internação de HV: se ausentando do papel de marido e de pai, bebendo, estando ausente, o que quase acarretou no fim do casamento. A desconexão inicial com S era um mecanismo de defesa, pois ao se afastar emocionalmente do vínculo com a filha, se afastava também de suas angústias. Além disso, uma questão importante para entendermos esse afastamento é o luto vivenciado por AP, um luto que ocorre com toda mãe, mas é potencializado no caso de bebês prematuros: a perda do filho ideal e o encontro com o filho real. Nesse sentido, é natural e esperado que as mães levem um tempo – que é algo pessoal de cada uma – para se conectarem com seus filhos, e isso não seria diferente com AP, que precisou de uma certa ausência emocional para conseguir, posteriormente, se conectar com S. Ao longo dos atendimentos, com auxílio de minha supervisora ao discutirmos o caso, percebo que meu trabalho é sim o de trazê-la para o aqui-agora e ajudá-la na construção do vínculo mãe-bebê, mas não sem antes acolhê-la e dar escuta a suas dores passadas – que a ela se faziam presentes, auxiliá-la no entendimento, elaboração e ressignificação das mesmas. Inicialmente, a filha S pouco aparecia em seu discurso. O que ela trazia erasua preocupação constante sobre a forma que HV reagia a hospitalização de S, mas ela mesma não se implicava nessa questão. E consequentemente, ao começar a falar de HV, vinha a tona o sofrimento passado. Aos poucos, a medida que vou dando escuta e voz a sua subjetividade, que suas questões vão sendo elaboradas, percebo que seu discurso vai mudando, que em seu tempo e conforme vou sinalizando, com muito respeito e cuidado, a necessidade de olhar para a caçula, AP começa a se conectar com S e maternar mesmo diante dos limites de uma UTI Neonatal. . 6. Articulação Teórico-Clínica A UTI Neonatal da Santa Casa de São Paulo é composta por uma equipe multidisciplinar de médicos pediatras e neonatologistas, residentes nessas especialidades, enfermeiras e técnicas de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogo, nutricionista, psicólogos e assistente social. É uma unidade humanizada, onde os pais podem ficar 24h com o bebê, caso queiram. Aos sábados, é permitido a visita de avós e irmãos durante 30 minutos, sendo que dependendo da idade dos irmãos, é necessário que os mesmos passem por uma avaliação psicólogica inicial. Quanto aos demais parentes e conhecidos, só é permitida a entrada destes em casos remotos, como por exemplo um caso de óbito ou quando eles são a referência de suporte do bebê e/ou dos pais. (Condes et al, 2012) Ainda segundo as autores acima, a UTI Neonatal é referência em gestação de alto risco, então além de acolher os recém nascidos na pópria Santa Casa, recebe também bebês encaminhados de outros hospitais. Para Nunes (2010), a notícia de que o bebê ficará internado em uma UTI Neonatal é recebida com grande preocupação para os pais, que sentem-se angustiados, impotentes e abalados emocionalmente. Tal idéia é corroborada por Gomes (2002), que acrescenta que o tanto a notícia da internação como o início desta é extremamente difícil por vários fatores. A família sente-se desorganizada, o bebê é separado dos pais logo após seu nascimento e sua prematuridade não permite que ele responda aos apelos de contato dos mesmos como era esperado. Ao falar de família, não podemos esquecer do impacto que o nascimento de um bebê prematuro traz também para os irmãos, que sentem toda a ansiedade e angústia dos pais e dependendo da idade que se encontram, ainda não tem formas concretas de expressar facilmente o que sentem, podendo apresentar infantilização e regressão em seus comportamentos, problemas escolares, de alimentação e de sono, assim como de relacionamento. Outros vão para o oposto, mostrando-se maduros, cuidadosos e responsáveis, entendendo que precisam cuidar da mãe. Todas essas reações são normais e falam também da culpa, por em algum momento não terem desejado esse irmão mais novo e sentirem-se responsáveis pela doença e internação do mesmo.(Morsch, Braga, 2003) Essa situação ficou bem explícita durante os atendimentos: HV apresentou vários dos sintomas de regressão, apresentando fala infantilizada, insônia, problemas na escola – tanto na realização de tarefas, como no relacionamento com os colegas e professores, além de não querer se alimentar, o que aumentava a angústia sentida por AP. Ainda segundo as autoras acima, cumpre informar que as crianças precisam que os pais conversem com elas em uma linguagem adequada, clara e simples e sejam verdadeiros em suas respostas, explicando de forma lúdica e adequada a cada faixa etária, o motivo da hospitalização do irmão.Ao fazerem isso, mostrando-se compreensivos, acolhedores e preocupados com os mesmos, as crianças sentem-se mais seguras para enfrentar o momento difícil que estão vivendo. Quando eu naturalizei para AP as reações que HV estava apresentando e a orientei como conversar com a mesma, a filha mostrou-se mais segura e menos ansiosa com a hospitalização da irmã. Moreira et al (2003) afirmam que um dos fatores que geram estresse e ansiedade tanto para os pais como para os bebês (e em algumas situações, até para a equipe de trabalho) é o próprio ambiente físico de uma UTI Neonatal, um local carregado de luzes, barulho e equipamentos. Os pais se veem em uma situação completamente diferente da que idealizaram: estão em um ambiente estranho, cercado de profissionais desconhecidos que entram e saem a todo instante, que falam com os mesmos utilizando palavras que não conhecem e muitas vezes não entendem. (Braga, Morsch, 2003) É nesse contexto que esta família está inserida pela segunda vez. Após AP ter vivenciado o nascimento da primeira filha prematura, com 28 semanas, e uma longa internação da mesma em uma UTI Neonatal, a história se repetia com S. AP vivenciava a descontrução da maternidade idealizada, da filha imaginária que existia no seu psiquismo e estava perante uma filha real, prematura, com risco de morte...de que forma ela olharia para esse bebê? Como seria a construção do seu vínculo com a mesma? O bebê imaginário é aquele que os pais idealizam durante a gestação,quando imaginam como será seu rosto, seu corpo, atribuindo ao mesmo traços familiares...pensam no nome, dando a ele significado. É a partir daí que os pais passam a criar vínculo com o filho. Porém, no nascimento, se deparam com o bebê real, que não corresponde totalmente ao bebê imaginário. Dessa forma, existe um luto a ser trabalhado, o que se agrava ainda mais com a prematuridade, que faz com que os pais entrem em contato com um bebê pequeno, frágil e doente. (Condes, 2016) Para Moreira, Rodrigues (2003), entende-se por prematuro todo bebê que nasce antes de completar 37 semanas. Também utiliza-se a expressão pré-termo, indicando que o bebê nasceu antes do tempo esperado. (Amaral, Lacerda, 2006). Segundo esses autores, o mais preocupante na prematuridade é a formação e maturidade dos órgãos, que vai se desenvolvendo juntamente com a idade gestacional, então a medida que o bebê cresce, seus órgãos crescem junto. Dessa forma, quanto mais prematuro o bebê for, mais reservado será o seu prognóstico. Mathelin (1998) também nos fala do luto da mãe diante da perda do filho real, o que é ainda mais agravado diante de um nascimento prematuro. Os últimos meses de gestação para a mãe são muito importantes, é um período de elaboração para ela e para o filho, onde a mesma passa a ter “contato” com o bebê: quando ele mexe, quando ela constrói sua imagem e seu corpo em seu psiquismo e permite que ele tome forma. O nascimento prematuro tira essa possibilidade da mãe e aí encontra-se um desafio ainda maior, como afirma Suassuna (2011): O luto vivenciado não é só do bebê imaginário, é também do bebê real, que tem um prognóstico reservado e pode estar correndo risco de morte. É nesse luto, nesse espaço entre bebê imaginário e real que AP dá início a seu vínculo com a filha. Nos primeiros atendimentos, notamos sua dificuldade em olhar verdadeiramente para S. Apesar de AP ser bastante presente na hospitalização da filha, não estava, de fato, ali. Isso foi dito para ela em atendimento, quando eu pontuei que sentia que ela estava alí muitas vezes apenas em corpo, mas não a sentia ali em pensamento e sentimento. Ela estava vivendo seu luto e procurando formas de entrar em contato com a filha. Eu respeitei seu tempo, o que muitas vezes, não é feito, sendo cobrado da equipe multiprofissional que a mãe se vincule rapidamente com o bebê. Essa questão é destacada por Baltazar, Gomes, Cardoso (2010), que nos dizem que é esperado dos pais que os mesmos se apropriem de seus papéis e que a barreira trazida pela prematuridade seja ultrapassada rapidamente. Em especial para mãe, esse vínculo torna-se mais difícil, pois além do luto do bebê real, que naturalmente ocorre, estamos falando de um bebê prematuro, que traz a tona a sua falha, a culpa por não ter conseguido gerar um filho saudável. AP trouxe questionamentos sobre a culpa, chegando a dizer que tinhacerteza que havia algo errado com ela, pois mesmo tendo todos os cuidados necessários durante as gestações, ambas as filhas haviam nascido prematuras. Em um atendimento, disse que desconfiava que o marido a culpava por não ter “conseguido segurar as filhas na barriga” (sic). Os autores acima afirmam que outro fator importante que nesse primeiro momento dificulta a construção do vínculo é a impossibilidade ou restrição da maternargem, já que os cuidados do bebê são transferidos para a equipe multiprofissional e a mãe os vê como detentores do saber. Tal idéia é corroborada por Morsch, Valansi (2003), que dizem que as mães, ao terem seus bebês encaminhados para UTI Neo, sentem-se culpadas e incapazes, pois suas referências de maternagem e cuidado naquele momento não fazem sentido, tendo em vista que o bebê precisa de cuidados clínicos específicos que elas não podem dar. Szejer (1999) complementa, afirmando que no parto prematuro, a mãe sente-se vazia, pois sua dedicação é tida por ela mesmo como inválida, uma vez que seus cuidados ao bebê não oferecem ao mesmo naquele momento a sobrevivência que ele precisa. Sentem-se desnecessárias no ambiente hospitalar e por vezes, concluem que é melhor entregar os cuidados a equipe multiprofissional. Nesse sentido, é extremamente importante o trabalho do psicólogo, que auxilia os pais a falarem sobre esse nascimento diferente, acolhe seus medos e angústias, autoriza seus sentimentos, o que ajuda os pais a elaborarem a hospitalização e aproxima os mesmos do bebê. (Morsch,Valansi, 2003) Através da escuta e elaboração do que sentia, AP passou a sentir-se mais segura para maternar. Mostrava alegria em segurar a filha no colo, amamentar, ninar, acariciar e mesmo com certa insegurança, trazia o quanto era importante e gratificante o momento de dar banho, trocar a fralda. Em suas palavras, ao realizar isso,“eu me senti mais mãe” (sic). Outro fator importante ao falar de nascimento de prematuros é a também prematuridade dos pais. A gestação ocorre não só fisicamente na mulher como também psicologicamente. Enquanto o filho cresce na barriga, se desenvolve também no psiquismo e na subjetividade dessa mãe, que tem esse crescimento interrompido pelo nascimento inesperado. Da mesma forma que o bebê precisa de um período internado para estar “pronto”, entende-se que essa mãe também precisa, pois ainda está gestando psiquicamente esse bebê. Ambos precisam vencer essa barreira e se adotar. O filho, convocar os pais á esse papel, de exercer a sua parentalidade, e os pais, de conseguirem atender essa demanda e ir construindo esse vínculo com seu filho, mesmo com o medo que ele venha a falecer, mesmo tentando se proteger emocionalmente e com todos os limites impostos pela vivência em uma UTI Neonatal (Condes, 2016). Foi utilizado durante todos os atendimentos a psicoteria breve focal com base gestáltica, definido por Ribeiro (2015) como um método no qual cliente e psicoterapeuta estão envolvidos com o mesmo objetivo: Solucionar problemas imediatos que estejam causando sofrimento para o cliente, que usufrui de todos os recursos disponíveis no momento, sendo o trabalho feito o mais rápido e focal possível, para que o cliente consiga, posteriormente, trilhar sozinho o seu caminho. Simon, Silva, Santos (2005) complementam, afirmando que o terapeuta precisa usar a “focalização seletiva”, localizando o centro do conflito e atuando somente sob o mesmo, ignorando outros aspectos ou problemáticas percebidos por ele. Na Gestalt terapia, não se pretende curar – se pretende sim, operar mudanças, trazer para a consciência o que, por sua vez, pode se transformar em um processo de cura. O terapeuta estará sempre presente e ativo, porém dando espaço ao cliente para que o mesmo seja livre perante o seu processo, permanecendo sempre como a figura principal. Como terapeutas, temos como objetivo nesse processo facilitar ao cliente seu retorno para si mesmo, tornando-se consciente, ajudando-o a ressignificar seus momentos para que ele se reencontre consigo mesmo e se reconheça como pessoa (Ribeiro, 2015). Dessa forma, utilizando a psicoterapia breve gestáltica no ambiente hospitalar, procura-se focar nos recursos saudáveis do indivíduo, ao invés de focar na doença. Questionar quem é esse indívudo para além da doença e/ou da crise que se apresenta: Valorizando-o, buscando suas potencialidades e percebendo os aspectos positivos deste (Simon, Silva, Santos, 2005). Esse foi o tempo todo meu trabalho: tornar AP mais consciente, presente e foi assim que ela se permitiu aproximar mais de S, sua filha real. Elaborou o luto da perda das filhas perfeitas, trazendo questões tanto da gestação anterior como da atual e através disso e do que foi trabalhado durante as sessões, tornou-se mais presente no aqui-agora e sensível a toda situação, aproximando-se e conseguindo estabelecer um vínculo afetivo com S. 7.Reflexôes sobre o caso: impasses e possibilidades Apesar de já ter vivência em hospitais, jamais tinha trabalhado em uma UTI Neonatal e o início do estágio foi acompanhado de medos e inseguranças. Me questionava se daria conta de trabalhar com mães que estavam em um grau de sofrimento tão elevado e vivenciando um período tão difícil da vida. Fantasiava se conseguiria agir com naturalidade perante os bebês, tão pequenos, em incubadoras, cercados de aparelhos e tubos. Sempre imaginei a chegada de um filho como um momento mágico, de muito amor e alegria para os pais. Algo que marcava o início de uma nova fase da vida e que deveria ser muito celebrado. A mãe, entrando na maternidade prestes a parir e saindo realizada, com seu bebê no colo. Na UTI NEO, vivenciamos um rompimento dessa fantasia. No meu primeiro dia de estágio, lembro de entrar nas salas e andar devagar, me permitindo, em meu tempo, olhar os bebês internados. A maioria era muito, muito pequeno, alguns estavam intubados, outros faziam protocolo de hipotermia, uns choravam e tinham má formações bem visíveis. Lembro da orientação da minha supervisora, que disse: “Sempre vejam os bebês sozinhas e antes do atendimento, não deixem para ver pela primeira vez junto com as mães.” Isso fez todo sentido quando vi alguns bebês, pois de fato, a aparência deles pode despertar emoções em nós. Feito isso, procurei AP, que foi uma das primeiras mães que atendi. Sua história de vida me chamou a atenção, pois era a segunda vez que ela vivenciava esse momento tão dolorido: a internação de uma filha a longo prazo em uma UTI Neonatal. AP tinha muitas questões emocionais mal resolvidas que influenciavam em seu aqui-agora, o medo por tudo que já havia passado se repetia e a fazia reviver mágoas anteriores, o que dificultava a formação de seu vínculo com S. Dessa forma, percebi, com a ajuda e orientação da minha supervisora, que enquanto as questões passadas da hospitalização de HV não fossem minimamente elaboradas, a paciente não conseguiria voltar seu olhar para S. Ao longo dos atendimentos, fomos juntas trabalhando essas questões e as demais que emergiam e aos poucos, pude perceber a construção afetiva do vínculo mãe-bebê, o que foi extremamente gratificante para mim. Esse caso foi extremamente importante pra mim. Criei um vínculo afetivo com AP, aguardava ansiosa para atendê-la, vibrava com suas conquistas. Torcia pela saúde de S, gostava de olhá-la na incubadora e ver seu crescimento. Quanto a AP, vê-la construindo, aos poucos, o vínculo com S foi emocionante. A história de vida de AP me tocou de alguma forma, talvez em algum lugar que eu ainda não consiga acessar. O fato é que ninguém escolhe falar de um caso específico dentre outros tantos a toa. Atender esse caso foi gratificante, assim como escrever esse trabalho e poder me conectar com tudo que senti durante essa jornada. Com isso, fiquei com o questionamento “Até queponto, na Psicologia hospitalar, devemos deixar para trás a história de vida da paciente e lidar somente com a crise que emerge?”. Referências Amaral PAP, Lacerda TL. Nomenclaturas, avaliação de idade gestacional e curvas de crescimento neonatal. In: Magalhães M, Rodrigues FPM, Gallacci CB, Pachi PR, Chopard MRT, Neto TBL. Guia de Bolso de Neonatologia. São Paulo: Atheneu, 2016. p. 03-12. Baltazar DVS, Gomes RFS, Cardoso TBD. Atuação do psicólogo em unidade neonatal: construindo rotinas e protocolos para uma prática humanizada. Rev SBPH 2010; 13(1): 13-18. Braga NA, Morsch DS. Os primeiros dias na UTI. 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