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AULA 5 TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA Prof.ª Lígia Maria Bueno Pereira Bacarin 2 CONVERSA INICIAL Prezado cursista, nesta aula resgataremos o debate necessário para que uma equipe multidisciplinar possa auxiliar o neurologista a realizar, com maior precisão, um diagnóstico de criança com TEA, e apresentaremos alguns dos elementos e recursos técnicos que mais obtiveram resultados positivos no diagnóstico clínico desenvolvido para o trabalho com essas crianças. Holanda (2017) chama a atenção para o fato de que nem todas as crianças com TEA apresentam os mesmos sintomas. Por conseguinte, o diagnóstico é embasado nas suas especificidades e o planejamento para o seu desenvolvimento depende, sobretudo, da interação com a equipe multidisciplinar que o auxiliará. Após feito o diagnóstico, o processo de aceitação e reconhecimento do transtorno por parte dos familiares se tornará a pedra fundamental para o alcance do desenvolvimento que a criança com TEA pode atingir. Existem inúmeras instituições públicas, privadas, organizações não governamentais (ONGs) e grupos voluntários que desenvolvem um trabalho direcionado aos familiares do TEA. No Brasil, os mais reconhecidos são: Associação Brasileira de Autismo (Abra); Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae); ONG Autismo & Realidade; Grupo de apoio aos pais e familiares de autistas. A ONG Autismo & Realidade ([S.d.]) mantém em seu site, de forma sempre atualizada, um mapa regionalizado das instituições de autismo no Brasil. Aqui está o link da ONG, para facilitar o acesso: <https://autismo.institutopensi.org.br/> (Acesso em: 5 fev. 2019). Com o acompanhamento familiar organizado, o olhar da família sobre as possibilidades para o desenvolvimento da criança com TEA adquire status de enfrentamento e esperança. E diversas são as propostas de tratamento e intervenção pedagógica. Contudo, algumas questões que antecedem o tratamento são fundamentais para que a criança alcance todos os seus benefícios. Nesse sentido, a questão que servirá de norte para orientar esse módulo se centralizará na seguinte problemática: por que o diagnóstico é tão importante? E por que a identificação das características específicas da criança é 3 pressuposto para as intervenções pedagógicas? Quais os elementos, após o diagnóstico, que antecedem a elaboração do plano de tratamento individual? TEMA 1 – O DIAGNÓSTICO E A AVALIAÇÃO DO TEA EM SEUS ASPECTOS ESPECÍFICOS Observamos que não é fácil estabelecer o diagnóstico clínico sobre o TEA; e se esse transtorno se apresenta em seu grau severo, moderado ou suave. Como também não é fácil organizar uma equipe multidisciplinar que será a base de apoio e auxiliará o neurologista pediátrico a identificar realmente se a criança é autista. Acerca dessa questão, Bosa (2006, p. 48) infere que: [...] o planejamento do tratamento deve ser estruturado de acordo com as etapas de vida do paciente. Portanto, com crianças pequenas, a prioridade deveria ser terapia da fala, da interação social/linguagem, educação especial e suporte familiar. Já com adolescentes, os alvos seriam os grupos de habilidades sociais, terapia ocupacional e sexualidade. Com adultos, questões como as opções de moradia e tutela deveriam ser focadas. Infelizmente, há poucas opções de moradia em nosso país – uma área que tem sido grandemente negligenciada, causando preocupações para os pais. Essa autora chama atenção para a variedade de serviços disponíveis, dos atendimentos individualizados, desenvolvidos por profissionais especificamente treinados para atender a determinado nível de dificuldade da criança com autismo, até mesmo às equipes compostas por multiprofissionais, chamadas equipes multidisciplinares. Bosa (2006) enfatiza que a eficácia do tratamento dependerá tanto da experiência e do conhecimento dos profissionais sobre o autismo como da metodologia usada para desenvolver o trabalho em equipe e com a família. Existem, conforme essa autora, quatro elementos considerados pontos básicos para quaisquer intervenções propostas, sendo eles (Bosa, 2006, p. 48): 1. estimular o envolvimento social e comunicativo da criança com TEA; 2. aprimorar o seu aprendizado e a sua capacidade de solucionar problemas; 3. diminuir comportamentos que interfiram no aprendizado, com o acesso às oportunidades de experiências do cotidiano; 4. ajudar as famílias a lidar com o autismo. Porém, antes de iniciarmos as considerações acerca das propostas metodológicas de intervenção para o desenvolvimento da criança com TEA, torna- se necessário resgatarmos algumas questões referentes ao aspecto do 4 diagnóstico. A criança é um ser racional e o seu desenvolvimento precisa ser situado no contexto familiar, no contexto social em que o diagnóstico será elaborado (Rotta; Ohlweiler; Riesgo, 2015, p. 45). Compreendemos que o diagnóstico da criança com TEA só se realiza com base em quatro eixos norteadores: 1. os critérios do DSM V; 2. o resultado de testes neuropsicológicos e de escalas de avaliação da linguagem e comportamento; 3. o uso de vídeos caseiros, fotos e relatórios escolares; 4. a avaliação multidisciplinar. Nosso intuito, neste tópico, é apresentar elementos mais complexos sobre esses eixos para que possamos, posteriormente, entender os limites da ação metodológica e o que é possível ultrapassar. Para isso, abordaremos aquelas teorias que possuem maior número de evidências científicas e melhores resultados. 1.1 Rastreamento visual nas crianças com TEA Uma das características marcantes nas crianças com TEA, dentre os aspectos clínicos que ressaltam a observação, se refere aos momentos de interação delas com os demais. Na condição de crianças neurotípicas, quando interagem, olham para a face da outra pessoa, apenas 40% dos autistas fazem o mesmo. Outro aspecto interessante é que as crianças neurotípicas, quando estão brincando, olham para as mãos das outras crianças, ao passo que apenas 20% dos autistas têm esse comportamento. Por exemplo: a criança neurotípica, enquanto brinca com outras crianças, olha para as demais, busca outro brinquedo, acrescenta outras brincadeiras. Já as crianças com autismo, não. Continuam com o mesmo brinquedo e interagem apenas com ele. Nesse sentido, essa característica se tornou um dos fatores para identificação precoce de uma criança que possivelmente poderia ser autista. Tendo esse fator em perspectiva, abordaremos a teoria do rastreamento visual (RV). 5 O RV surgiu em resposta a um dos problemas do processo de identificação de critérios clínicos para o estabelecimento do diagnóstico de crianças com autismo, com base na hipótese que indica que os primeiros sinais do transtorno podem ser identificados entre os 6 e os 12 meses de idade, tornando-se mais perceptíveis e estáveis entre os 18 e os 24 meses (Ozonoff et al., 2010). Todavia, mesmo com a constatação de possibilidades de rastreamento ainda na primeira infância, apenas uma minoria dos casos é diagnosticada antes do período pré-escolar (Dumont-Mathieu; Fein, 2005). Para estabelecer uma forma de investigação dessa possibilidade, utiliza-se o método do contato visual atípico (CVA). 1.1.1 Contato visual atípico (CVA) Segundo Oliveira (2017), o CVA representa um critério para o diagnóstico e também um dos primeiros sinais da patologia. Para esse autor, um dos principais indicadores do TEA é a dificuldade da criança em olhar nos olhos durante uma conversa, já que ela tende a focar muito mais em detalhes ou em objetos. Conforme Figura 1. Figura 1 – O foco de uma criança autista Crédito: Thyago Macson/Shutterstock. A habilidade de orientação social refere-se ao alinhamento dos receptores sensoriais para um evento social ou para uma pessoa e é considerada uma chave importante do processamento da informação social. Seu desenvolvimento emergeem torno dos 5 meses de idade, sendo seguida pelo desenvolvimento da atenção compartilhada. Tal habilidade é expressa a partir da volição ativa para estímulos sociais, tais como o giro de cabeça quando a criança é chamada pelo nome. Dessa forma, quando a habilidade de orientação social não está desenvolvida ou há falhas em seu desenvolvimento, a criança tem 6 dificuldades em processar os estímulos sociais cotidianos, como expressão facial, fala e gestos. (Ozonoff et al., 2010, p. 76) 1.2 Resgate dos sinais clínicos precoces para o diagnóstico do TEA Entendemos que os sinais clínicos precoces são aqueles indícios que se apresentam até os 3 anos de idade da criança. Retomamo-nos na Figura 2. Figura 2 – Sinais clínicos precoces de uma criança com TEA Importante considerar, conforme observação de Belini e Fernandes (2007), que todos os estudos científicos que trabalham com o prognóstico, a longo prazo, de crianças com TEA, estão em consenso sobre a busca do diagnóstico precoce até os 3 anos. E esse diagnóstico, sistematicamente, tem a função de: favorecer o desenvolvimento futuro da criança; obter um resultado benéfico das intervenções. Alguns exemplos de como identificar esses sinais clínicos (Brites, 2018): Pelos relatos de mães que, durante o aleitamento materno, perceberam que o bebê não as olhava (uma das regras do desenvolvimento das crianças é que, durante a mamada, a criança goste de olhar para a mãe); Crianças com TEA, muitas vezes, quando são bebês, preferem ficar sozinhas no berço ou no chão, mas não gostam de ficar no colo ou repudiam um abraço Crianças com TEA não aprendem a dar tchau, piscadinhas, não mandam beijos, não possuem gestos corporais de indiferença ou os aprendem e em um determinado momento ocorre-lhes um quadro regressivo e elas param com os gestuais; 7 O jeito de brincar das crianças com TEA é repetitivo e direcionado para determinado objeto; A criança se bate ou arranca o próprio cabelo, morde-se, entre outros gestos violentos contra si próprio; A criança demonstra dificuldade de brincar de forma abstrata, pois essas brincadeiras requerem a presença do olhar e a ausência do olhar e, como a criança com TEA tem mau contato visual, muitas vezes ela não compreende essas brincadeiras; A criança com TEA adota atitudes repetitivas e restritas, desde pequenos. TEMA 2 – O MODIFIED CHECKLIST FOR AUTISM IN TODDLERS (M-CHAT) Losapio e Pondé (2008) ensinam que o uso de questionários de triagem oferece o melhor método para identificação precoce de crianças com TEA. As autoras explicam que vários instrumentos têm sido utilizados, entre eles: childhood autism rating scale (Cars) social communication questionnaire (SCQ) screening tool for autism in two years old (Stat) developmental behaviour checklist (DBC) checklist for autism in toddlers (Chat) modified checklist for autism in toddlers (M-Chat) Losapio e Pondé (2008) demonstram que o M-Chat é um instrumento de rastreamento precoce de autismo, que tem a função de identificar indícios desse transtorno em crianças entre 18 a 24 meses. O método é autoaplicável e simples e apresenta alta sensibilidade e especificidade. Todavia, Losapio e Pondé (2008) chamam a atenção para o fato de que tal ferramenta foi desenvolvida no idioma inglês e, com isso, não existe consenso, na literatura, quanto à melhor técnica de tradução, sendo a adaptação transcultural uma das formas possíveis. 8 Figura 3 – O estudo do comportamento de uma criança com TEA, com base no método M-Chat Neste tópico, usaremos a versão em português do questionário M-Chat feita por Losapio e Pondé (2008), únicas que obtiveram autorização dos pesquisadores que desenvolveram originalmente o método para traduzi-lo para o português. O método usado por elas foi o back-translation1, o que propiciou aspectos de equivalência semântica e operacional, conceitual e de itens (método reproduzido no Quadro 1). Quadro 1 – Versão final do M-Chat em português Por favor, preencha as questões abaixo sobre como seu filho geralmente é. Por favor, tente responder todas as questões. Caso o comportamento na questão seja raro (ex. Você só observou uma ou duas vezes), por favor, responda como se seu filho não fizesse o comportamento. 1. Seu filho gosta de se balançar, de pular no seu joelho etc.? Sim Não 2. Seu filho tem interesse por outras crianças? 3. Seu filho gosta de subir em coisas, como escadas ou móveis? 4. Seu filho gosta de brincar de esconder e mostrar o rosto ou de esconde-esconde? 1 Técnica que consiste em traduzir um documento previamente traduzido para seu idioma original, ou retrotradução. Essa técnica permite melhorar a qualidade da tradução realizada (Jorge, 1998). Como ela reage quando a chamam pelo nome? Como ela refere-se a si mesma? A criança com TEA brinca junto com outras crianças? Gosta de estar junto de outras pessoas? Ela aponta para o objeto? Existe interesse seu em compartilhar com os pais os objetos, plantas e outros elementos que lhe despertaram curiosidade? A criança fixa o olhar? O seu contato visual é pobre? Ela brinca de faz de conta? Não constrói, apenas empilha objetos? Contato visual/ construção de torres Apontar/ levar objetos para os pais verem Reconhecer-se pelo próprio nome Atenção compartilhada/ imitação 9 5. Seu filho já brincou de faz de conta, como, por exemplo, fazer de conta que está falando ao telefone ou que está cuidando da boneca, ou qualquer outra brincadeira de faz de conta? 6. Seu filho já usou o dedo indicador dele para apontar, para pedir alguma coisa? 7. Seu filho já usou o dedo indicador dele para apontar, para indicar interesse em algo 8. Seu filho consegue brincar de forma correta com brinquedos pequenos (ex. Carros ou blocos), sem apenas colocar na boca, remexer no brinquedo ou deixar o brinquedo cair? 9. O seu filho alguma vez trouxe objetos para você (pais) para lhe mostrar este objeto 10. O seu filho olha para você no olho por mais de um segundo ou dois? 11. O seu filho já pareceu muito sensível ao barulho (ex. Tapando os ouvidos)? 12. O seu filho sorri em resposta ao seu rosto ou ao seu sorriso? 13. O seu filho imita você? (ex. Você faz expressões/caretas e seu filho imita?) 14. O seu filho responde quando você o chama pelo nome? 15. Se você aponta um brinquedo do outro lado do cômodo, o seu filho olha para ele? 16. Seu filho já sabe andar? 17. O seu filho olha para coisas que você está olhando? 18. O seu filho faz movimentos estranhos com os dedos perto do rosto dele? 19. O seu filho tenta atrair a sua atenção para a atividade dele? 20. Você alguma vez já se perguntou se seu filho é surdo? 21. O seu filho entende o que as pessoas dizem? 22. O seu filho às vezes fica aéreo, “olhando para o nada” ou caminhando sem direção definida? 23. O seu filho olha para o seu rosto para conferir a sua reação quando vê algo estranho? Fonte: Robins; Fein; Barton, 1999 citados por Losapio; Pondé, 2008. TEMA 3 – ASPECTOS GERAIS DO TRATAMENTO Salientamos que o TEA é um transtorno complexo heterogêneo. Ou seja, todos os autistas apresentam as características tríades, mas cada um deles é diferente um do outro. À vista disso, não é possível propiciar o mesmo tratamento para todos eles. 10 O que não significa uma inexistência de arcabouço teórico e metodológico que possa orientar ações considerando as múltiplas determinações do TEA. Consideramos que a síntese dos debates sobre tratamento converge em relação: à necessidade de uma abordagem com multidisciplinariedade; à necessidade de uma abordagem precoce; a haver melhora do quadro, com a idade; a se adotar estratégias específicas no suporte pedagógico e comportamental da criança com TEA; à necessidade de o tratamento ser medicamentoso; à importância de se dar orientação e suporte à família da criança com TEA. Percebemos que nenhum profissional, isoladamente, conseguirá resultados no caso de crianças com TEA. Todos deverão trabalhar juntos, todavia cada um na sua área. Nesse sentido, a escola possui um papel fundamental: acomodar essa criança com TEA para que suas especificidades não representem empecilho ao seu desenvolvimento. Contudo, essa intenção se perderá se não ocorrer o diálogo entre a escola e os demais profissionais que estarão atendendo essa criança. A interação é vital, porque não podemos mais entender superficialmente alguns aspectos dessa criança e negar a profundidade das suas necessidades educacionais especiais. Nesse sentido, a abordagem precoce conseguirá encaminhar a criança com TEA para fazer as intervenções de terapia ocupacional que lhe ajudarão a resolver atrasos na sua interação social. Porém, existem metodologias específicas para cada caso, tanto no suporte pedagógico, quanto na abordagem comportamental da criança com TEA. Essas formas de educação estruturadas representam caminhos direcionados, tais como: picture exchange communication system (Pecs), applied behavior analysis (ABA), terapia de integração sensorial, técnicas de cognição social, entre outras. Entretanto, um pressuposto para se estudar as estruturas e modelos de intervenção pedagógica é se entender como se comporta a criança com TEA na sala de aula. 11 TEMA 4 – ALUNO COM TEA NA SALA DE AULA – PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Todo modelo de intervenção pedagógica, na teoria, apresenta soluções para a problemática do estudante com TEA. Todavia, para que analisemos qual o melhor método, precisamos conhecer o ambiente da sala de aula e como a criança autista se comporta nesse ambiente. Existe uma vasta literatura que apresenta elementos que comprovam que o estudante autista tem muito a oferecer e pode aprender como qualquer outra criança, desde que se consiga entender o que ele precisa. Sobre essa questão, Farias, Maranhão e Cunha (2008, p. 366) afirmam que: Nessa perspectiva, a escola inclusiva deve estar disposta a adaptar seu currículo e seu ambiente físico às necessidades de todos os alunos, propondo-se a realizar uma mudança de paradigma dentro do próprio contexto educacional com vistas a atingir a sociedade como um todo. Neste espaço, a relação professor-aluno com deficiência deve influenciar a autoimagem desse aluno e o modo como os demais o veem, trazendo benefícios tanto para ele quanto para o seu grupo com base em um suporte que facilite a todos obter sucesso no processo educacional. Dessa forma, a escola para ser considerada inclusiva deve promover as possibilidades e potencialidades de todo e qualquer sujeito, sobretudo aquele com deficiência. A necessidade de inferirmos, primeiro, da forma como são configuradas as relações no ambiente escolar se faz presente pois, mesmo com o melhor dos métodos, a realidade se sobrepõe ao desejo de se querer mudar. Com isso, conhecer as limitações do trabalho que deveria ser realizado em âmbito escolar com os estudantes autistas tem um grau de importância para que não se atravanque o processo e não se reproduzam inconsistências. Sobre essa questão, Schmidt et al. (2016, p. 224) analisam que: “A falta de conhecimento, resultante de lacunas na formação inicial e continuada particularmente, percepções romantizadas do autista, como um ser preso a um mundo próprio e inacessível, parecem negativamente impactar a prática pedagógica dos docentes”. Com isso, para que consiga aplicar as metodologias, a escola precisa reconhecer o imperativo de uma orientação pedagógica que dê suporte ao atendimento do aluno autista. E reconhecer que o autismo é uma das síndromes, um dos transtornos que têm maior heterogeneidade e também que a maneira discriminatória como essas crianças eram tratadas necessita ser combatida. 12 Por exemplo, uma pessoa que tem um problema de coração ou outra que é hipertensa permanecerão a vida toda com esse problema, não ocorrerão mudanças nas características ou mesmo no tratamento de sua doença. Com o TEA isso não acontece. O espectro é muito amplo; então, há aquelas crianças que não falam, que não conseguem interagir por meio da fala, e até crianças que falam muito bem, de forma tão rebuscada que ninguém nem imagina que elas sofrem de um problema. Para entender qual é a característica da criança com TEA, a seguir ilustramos algumas situações com base no convívio com essas crianças, no ambiente escolar. 1. Porta de entrada: devemos buscar saber qual o interesse de crianças com TEA, pois seus interesses são restritos. Exemplos: elas podem gostar de dinossauros; de personagens de desenho, como o Bob Esponja; de astronomia; saberem os nomes e curiosidades dos países e suas capitais etc. Equívoco: uma primeira forma de se aproximar dessas crianças é nos interessando pelo fato, por aquilo que ela sabe. Normalmente, a tendência é nos aproximarmos deles como pessoas que não sabem nada e a quem precisamos ensinar tudo. Precisamos saber ouvir o conhecimento que elas já adquiriram. 2. Estabelecer um bom vínculo: precisamos ter empatia, conseguir nos relacionar, conquistar a confiança, principalmente porque a criança com TEA enfrenta vários medos que outras crianças não têm. E, ao estabelecermos algum vínculo de confiança com ela, ela vai conseguir nos demonstrar seus medos e estabeleceremos, a partir desse momento, um bom contato. Equívoco: sem essa confiança, as técnicas de escrita, de fala, entre outras, não funcionarão. Dessa forma, ao receber um aluno com TEA, converse com a família, converse com a coordenação e peça o histórico dele, tente saber do que ele gosta, pergunte para ele por que ele se interessa. Exemplo: normalmente, crianças com TEA se vestem com a roupa do personagem favorito ou carregam o brinquedo favorito na mão; se o educador começar a se interessar por essas informações e talvez 13 desenvolver atividades que tenham a ver com esse tema, tudo vai ficar mais fácil. Conforme Schmidt et al. (2016): A inclusão está na participação ativa da equipe pedagógica na vida do estudante, assim como no aproveitamento do aluno com a metodologia empregada. Ou seja, precisa haver troca entre as partes. Mesmo que não seja possível prever qual a característica a ser trazida para dentro da sala de aula pelo estudante, é importante que haja, então, um grupo de profissionais que tenha treinamento para lidar com situações que impõem desafios. William Recai, voluntário no Nacional Autista Oscite da Escócia, diagnosticado aos 25 anos com TEA, comenta que: “Todo tipo de apoio deve reconhecer que embora o autismo seja uma parte muito importante do que eu sou não é tudo o que eu sou. Pais e profissionais deveriam reconhecer que não somente nós podemos aprender com eles, mas eles também podem aprender conosco” (Brasil, 2000, p. 38). TEMA 5 – PRESSUPOSTOS PARA O TRABALHO COM CRIANÇA COM TEA EM SALA DE AULA Depois que o educador e a equipe escolar estabelecerem um primeiro contato, entendendo do que a criança com TEA gosta ou pelo que ela se interessa, algo importante é buscar padronizar os sentidos dela, ou seja, audição, tato, paladar, que são diferentes para as crianças com TEA. Algo que não incomoda algumas crianças pode incomodá-las. Essas características são denominadas de transtorno de processamento sensorial (TPS). 5.1 Transtorno de processamento sensorial (TPS) e suas consequências para o autista em sala de aula A exacerbação da sensibilidade sensorial, conhecida como transtorno de processamento sensorial (TPS), se configura como um desordenamento das habilidades sensoriais. As consequências dessadesorganização são uma hipersensibilidade ou uma hipossensibilidade ao ambiente. Hipersensibilidade: de hiper – acima do esperado, muito intenso. Hipossensibilidade: escassez do sentido, de determinada habilidade da pessoa. 14 É importante ressaltar que tanto a hiper quanto a hipossensibilidade podem levar a criança a ter prejuízo na cognição, no comportamento e no campo emocional. Pois crianças autistas com problemas sensoriais apresentam dificuldade em interpretar e organizar as informações sensoriais do seu próprio corpo ou do ambiente. Conforme estudos apresentados na Revista Ler & Saber Autismo nº 5, de 26 de abril de 2017, a criança autista pode, por exemplo, Ignorar um barulho muito alto ou não responder ao seu nome (hiporresposta), e ficar agitada e gritar ao escutar o (hiporresposta). Pode ainda, reagir emocionalmente ou agressivamente ao toque (hiperresposta) ou apresentar necessidade incomum de tocar certos brinquedos, superfícies, texturas ou pessoas (hiporresposta). (Autismo, 2017, p. 16, grifos do original) É como se ela visse, percebesse, ouvisse o mundo de uma forma diferente. Mais uma vez, não existe um padrão. Não adianta falar que toda criança com autismo é mais sensível ao som, pois tem criança autista que fica bem com o barulho, mas que tem uma alteração de comportamento diante de um cheiro, que tem realmente náusea dependendo do cheiro que ela sente. Há crianças com autismo que podem manifestar uma alteração de comportamento na hora do lanche – você já pensou como seu aluno autista lida com a hora do lanche? A seguir elencamos alguns exemplos de situações que podem ocorrer no comportamento de uma criança com TEA (Bosa, 2006): demonstrar estranhamento diante do barulho de um ar-condicionado, de um liquidificador, de um secador, de um aspirador, de uma enceradeira ou do latido de um cachorro; aparentar estranhamento ao sentir alguns cheiros; na questão visual, ela pode se interessar por um detalhe e esquecer do todo; ela pode escolher sempre os mesmos brinquedos, preferencialmente aqueles que têm um papel claro e bem definido; passar de uma atividade a outra com frequência, não concluindo essas atividades; ao desenhar, fazer sempre as mesmas figuras; ser desajeitada e esbarrar em tudo que encontra; 15 ter dificuldade de pegar uma bola quando esta é jogada, não se antecipando ao movimento da bola; preferir, muitas vezes, atividades mais sedentárias; apresentar dificuldades na tentativa de imitação de alguém; evitar situações novas, frustrar-se facilmente; preferir seguir rotinas; criar e seguir rituais e rotinas; mostrar dificuldade em julgar a força necessária para tocar uma pessoa ou um objeto; apresentar incômodo ao cortar as unhas e o cabelo; incomodar-se com um simples carinho, reagindo a ele agressivamente, parecendo ansiosa ou tocando objetos e pessoas excessivamente; incomodar-se com etiquetas nas roupas; não andar descalça ou adorar andar descalça, principalmente na areia ou grama; chorar quando tomar banho no chuveiro ou adorar tomar banho no chuveiro; evitar o toque e estar sempre distante das pessoas ou, quando tocada, não perceber o toque; ter alimentação muito seletiva, escolher alimentos com base na mesma textura ou consistência ou adorar comer alimentos com texturas variadas, crocantes e/ou apimentados; aparentar sofrer muito ao escovar os dentes; apresentar enjoo ao andar em carros ou ônibus; evitar parquinhos (e brinquedos como gira-giras, balanços, escorregas) ou adorar parquinhos e agir com muita intensidade ao utilizar os brinquedos dos parquinhos; não gostar de permanecer em filas; 16 evitar sujar-se, não gostar de brincadeiras que envolvam pintura, argila; ou sujar-se nas brincadeiras e não demonstrar qualquer incômodo, sequer perceber que está suja; usar roupas torcidas no corpo; costumar morder-se ou morder o outro. parecer ter prazer em cair; parecer não ter saciedade ou não sentir fome; parecer não ouvir e adorar música alta; costumar cheirar objetos. Enfim, pode ser que o aluno autista apresente alterações de sensação e comportamento que sejam muito específicas e que o educador só vá conhecê-las observando-o. O que lhe impõe um grau maior de dificuldade, uma vez que também existem vários alunos na sala de aula. Mas, desenvolver essa capacidade requer uma prática que pode ser treinada e aprimorada. Relato da Professora X: Se o seu aluno começou a fazer um barulho, começou a fazer algum movimento que chama a atenção, ficou mais irritado ou gritou, presta atenção no que estava acontecendo antes. Será que tem algum barulho, algum som, alguma luz que aconteceu, alguma [coisa] que você falou, bater palma ou chamar que realmente mobilizou ele? Os pontos importantes são: as expressões faciais, a mímica facial. E prossegue o relato da Professora X: A gente tem uma mania, né, que é olhar pra onde vai falar, “Fulaninho, hein!”, se eu fizer essa cara para você, você naturalmente sabe que eu estou muito brava com você ou a gente chegar e falar “Bonito, hein, Joãozinho!”. Quando a gente fala bonito, a gente pode falar “Nossa, Joãozinho é bonito!”. Mas, quando eu falo “Bonito, hein!”, ele, o Joãozinho, vai saber que ele está encrencado hoje [naquele momento]. [Já] se o Joãozinho tiver autismo, talvez ele não saiba [disso]. Crianças com autismo têm dificuldade em entender a mímica facial. Às vezes, elas reconhecem as emoções; mas, essa sutileza de uma sobrancelha levantada significar desconfiança ou enfrentamento elas não têm. Dessa forma, quando o educador faz críticas ao comportamento do autista em sala de aula, na verdade o aluno autista não sabe que, naquele momento, está sendo chamada a sua atenção. 17 Portanto, a lição da Professora X é: “Ser muito clara, objetiva, quando for chamar a atenção dessas crianças. Ou chamar a atenção dizendo: ‘Joãozinho, você não pode ficar de pé na sala! Você pode se sentar?’. Olha a diferença, é diferente de eu chegar e eu falar: ‘Joãozinho, isso é jeito de ficar?’”. FINALIZANDO Prezado cursista: nesta aula, buscamos o aprofundamento sobre o processo necessário para que uma equipe multidisciplinar consiga auxiliar no levantamento das informações necessárias para que o clínico consiga elaborar o diagnóstico de uma criança com TEA. E relacionamos o diagnóstico com os primeiros passos para a elaboração de um plano de intervenção individual ou de um plano de tratamento individual pedagógico, antes mesmo de se debater as teorias de intervenção. Para orientar o desenvolvimento dessa linha de organização das nossas aulas, elaboramos as seguintes questões norteadoras: Por que o diagnóstico do TEA é tão importante? Por que a identificação das características específicas de uma criança com TEA é pressuposto para que haja as intervenções pedagógicas? Conforme analisa Holanda (2017), compreendemos que, antes de tratarmos das várias possíveis intervenções a serem propostas, se faz importante estabelecermos como primeiros passos a criação de um plano individual de tratamento orientado por um neuropediatra, levando em conta todas as necessidades da criança, em um dado momento. Holanda (2017) também chama a atenção para que lembremos de que o TEA engloba uma série de particularidades, com muitas possibilidades de tratamento, e que os pacientes com TEA apresentam demandas diferentes. No entanto, toda e qualquer abordagem irá cobrir os pilares do desenvolvimento comportamental e escolar da criança com TEA, tendo ou não o auxílio medicamentoso. As principais modalidades terapêuticas e os tratamentos modernos do TEA são baseados em estudos científicos controlados e realizados por muitos anos em diversos centros de pesquisas. Nesse sentido, para que possamos escolher, dentre as principais intervenções,as principais teorias metodológicas de intervenção, há necessidade de conhecermos como a criança com TEA se 18 comporta no ambiente da sala de aula e percebermos que buscar, dessa criança, a sua confiança é um requisito básico para que possamos desenvolver um trabalho voltado especificamente à situação dela. 19 REFERÊNCIAS AUTISMO & REALIDADE. São Paulo, [S.d.]. Disponível em: <https://autismo.institutopensi.org.br/>. Acesso em: 3 fev. 2019. AUTISMO e integração sensorial. Revista Ler & Saber Autismo, n. 5, 26 abr. 2017. BELINI, A. E. G.; FERNANDES, F. D. M. 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