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Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6304-8 9 788538 763048 História do Brasil: do Início da Colonização às Conjurações M aristela Carneiro 2017 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações Maristela Carneiro Apresentação Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C289h Carneiro, Maristela História do Brasil: do início da colonização às conjurações / Maristela Carneiro. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2017. 154 p. :il. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-387-6308-6 1. Brasil - História - Período colonial, 1500-1822. I. Título. 17-41907 CDD: 981 CDU: 94(81) © 2017 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 3 Apresentação O propósito deste livro é abordar a história do Brasil Colônia, pe- ríodo de início da formação política e cultural da América portuguesa e da configuração territorial que compreendemos hoje como o Estado bra- sileiro. Muitos historiadores dissertaram sobre variados aspectos do co- tidiano, do pensamento, da religiosidade e, principalmente, dos grandes ciclos econômicos que pautaram as atividades produtivas e as práticas de sociabilidade em uma colônia fundada, sobretudo, para suprir Portugal com riquezas como o pau-brasil, o açúcar, as “drogas do sertão” e o ouro. Persistem atualmente, todavia, muitas interpretações folclóricas a res- peito do período, baseadas mais no senso comum do que em fontes biblio- gráficas, iconográficas ou materiais. Por isso, é fundamental que os estudos sobre a Colônia sejam constantemente revistos e reavaliados, permitindo a construção de uma imagem mais completa desse momento de nossa história. Esse período formativo tem início no século XVI, com a chegada dos primeiros portugueses, capitaneados por Pedro Álvares Cabral, às praias do Atlântico, e se encerra com o estabelecimento da corte lusitana no Rio de Janeiro, no começo do século XVIII. Naquele momento, o centro de poder foi deslocado da Metrópole para a Colônia, a fim de resguardar Portugal da ofensiva que o império de Napoleão lançava sobre toda a Europa. Tendo isso em vista, os dez capítulos que compõem esta obra con- templam as principais questões que envolveram cerca de três séculos de história: a presença indígena no Brasil pré-Cabralino, o sistema colonial português, as religiosidades coloniais, o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, a escravidão, as revoltas na Colônia e a eventual crise do projeto português nas Américas, ao fim do século XVIII. Para além daquilo que se encontra cristalizado no senso comum, ainda que seja parte fundamental do modo como muitos brasileiros veem a si mesmos e sua história, esperamos que a abordagem desses assun- tos instigue um olhar pesquisador e crítico, de modo a problematizar a complexa cadeia de permanências e rupturas da qual emergiu um Brasil imensamente plural em religiosidades e práticas culturais, marcado por conflitos e sociabilidades cujas raízes remontam ao passado colonial. Boa leitura! Sobre a autora Maristela Carneiro Pós-Doutoranda em História, pela Universidade Federal do Mato Grosso (2017). Doutora em História, pela Universidade Federal de Goiás (2016). Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2012). Licenciada em História, na mesma instituição (2007) e em Filosofia pela Faculdade Santana (2011). Atua como docen- te nas áreas de História e Filosofia nos mais diversos níveis de ensino. Autora de livros e materiais didáticos. 6 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações SumárioSumário 1 Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira 9 1.1 Interpretações clássicas do projeto colonial 10 1.2 Periodização da história do Brasil Colônia 15 1.3 Fontes para o estudo da história da colonização brasileira 17 2 Grupos indígenas brasileiros 25 2.1 Organização social e cultural das comunidades indígenas 26 2.2 Os aldeamentos e a escravidão indígena 30 2.3 Costumes e permanências culturais 33 3 Portugal e a colonização das terras tropicais 41 3.1 A estruturação econômica e política da colônia 42 3.2 União Ibérica: conflitos e expansão das fronteiras do Brasil colonial 45 3.3 Domínio holandês e o legado de Nassau 48 4 O Santo Ofício no Brasil colonial 57 4.1 A Contrarreforma, os jesuítas e a catequese indígena 58 4.2 A inquisição e os cristãos-novos na sociedade colonial 62 4.3 Sincretismo e negociações religiosas no Brasil Colônia 63 5 A manufatura do açúcar 71 5.1 Aspectos da economia açucareira colonial 72 5.2 Sociedade e cultura do açúcar 75 5.3 Declínio do ciclo açucareiro 77 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 7 SumárioSumário 6 Tráfico negreiro e escravismo 85 6.1 Caracterização do tráfico negreiro: ideologias e justificativas do trabalho cativo 86 6.2 Revoltas e resistência africana: o caso de Palmares 90 6.3 Costumes e permanências culturais 92 7 A mineração e o Brasil colonial setecentista (séc. XVIII) 97 7.1 Circunstâncias da instituição da economia mineradora 98 7.2 Conflitos entre os paulistas e os emboabas 102 7.3 A sociedade das Minas Gerais 103 8 As revoltas coloniais e as contestações políticas 111 8.1 Conjuntura das contestações políticas 112 8.2 Tensões provinciais, conflitos de fronteira e revoltas nativistas 113 8.3 Revoltas emancipacionistas 117 9 Ideias iluministas e a Inconfidência Mineira 125 9.1 A influência das ideias iluministas 126 9.2 O caso da Inconfidência Mineira 129 9.3 As reconfigurações do império português 132 10 Crise do sistema colonial 139 10.1 Rumos da economia 140 10.2 Novas relações de poder e sociabilidade 143 10.3 Demandas locais e crise do sistema colonial 146 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 9 1 Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira O período compreendido entre os séculos XV e XVI apresentou um significativo crescimento comercial na Europa, com uma demanda cada vez maior por artigos de luxo vindos de fora, estimulando o florescimento do comércio marítimo, no que se tor- naria conhecido como a Era das Grandes Navegações. Nesse contexto, burgueses ricos e reis começaram a articular capital para investir em trocas internacionais, facilitadas pela chegada de tecnologias como a pólvora, a bússola, o astrolábio e o papel. A inven- ção da imprensa, por Johannes Gutenberg, popularizou conhecimentos antes restritos a poucos, e os novos modelos de embarcação permitiram viagens mais longas e com tripulações menores. Enquanto isso, narrativas famosas, como a de Marco Polo, atiça- vam a curiosidade de empreendedores europeus, com relatos de riquezas incríveis. A Igreja Católica, por sua vez, viu nessas viagens uma oportunidade de catequizar os gentios e reagir contra o crescimento das igrejas reformistas. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 10 A expansão das navegações também representou o início de um processo de incorpora- ção das Américas na mentalidade e no imaginário europeu do período, além de se constituir como um período de difusão cultural e início de um processo de mundialização. Todos esses fatores, em maior ou menor medida, deram vida à colonização brasileira, conforme será exposto ao longo deste livro. 1.1 Interpretações clássicas do projeto colonial A Era dos Descobrimentos mudaria de forma crucial o modo como os europeus viam o mundo, abrindo seus horizontes de forma radical e irreversível. No início do século XVI, os limites geográficos dos povos do “Velho Mundo”, acomeçar pelos ibéricos, seriam ex- pandidos extraordinariamente, e a variedade de mercadorias disponíveis alcançaria novos níveis. Essa dilatação dos territórios sob influência europeia inevitavelmente alcançaria as terras americanas, já ocupadas por milhares de etnias indígenas. Entre estas, encontravam- -se as terras reivindicadas pelo reino de Portugal, conformando, assim, parte do império ultramarino português. As décadas iniciais de exploração promovidas pela Coroa portuguesa se resumiram a expedições de reconhecimento do território recém-adquirido. Instalações precárias foram estabelecidas a fim de explorar o pau-brasil (Paubrasilia echinata, antigamente Caesalpinia echinata), madeira nobre que podia ser empregada para tinturaria. Além disso, foi necessá- rio garantir a defesa desse território contra incursões empreendidas por outros europeus, como os franceses, os quais também tinham interesse na extração do pau-brasil, que podia ser obtido por meio de alianças com povos indígenas, como os tupinambás, declaradamente inimigos dos portugueses. Embora existam registros do estabelecimento de uma feitoria em Cabo Frio em 1503, quando da expedição de Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho, as primeiras ocupações defini- tivas empreendidas por portugueses se deram somente em meados de 1530, quando a Coroa dividiu a costa brasileira em grandes lotes, adotando o sistema de Capitanias Hereditárias. Foi a partir desse momento, portanto, que efetivamente se iniciou o processo de colonização do que chamamos de América portuguesa. Os donatários, senhores dessas capitanias, tinham autoridade para explorar amplamente as riquezas locais, bem como instituir cargos burocrá- ticos e amealhar tributos. O vínculo entre o donatário e a Coroa era regulamentado em dois documentos, que estabeleciam quanto dos rendimentos da capitania deveria ser transmitido a Portugal, bem como os deveres do donatário: a Carta de Doação e a Carta de Foral. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 11 Figura 1 – TEIXEIRA, Luís. Divisão da costa brasileira em capitanias hereditárias. 1574. Cópia elaborada a partir do original. Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Fonte: Wikimedia Commons. Dentro dos limites legais, o senhor podia escravizar índios cativos em sua capitania, capturados nas Guerras Justas1. Também podia repartir seu território em sesmarias, ceden- do lotes a cristãos portugueses, que assumiam o compromisso de colonizar a terra. Assim a administração portuguesa buscava garantir mão de obra para as atividades produtivas e forças para a defesa da Colônia, desonerando a Coroa da obrigação de realizar investimen- tos exclusivos para esses fins. Para as populações nativas, esse modelo de ocupação representou duas mudanças trau- máticas em seu modo de vida: a expropriação de suas terras por um Estado oficial, com limites artificialmente estabelecidos, e a conformação forçada a uma rotina de trabalho com- pulsória, que não era de modo algum semelhante aos modelos produtivos que conheciam. Povos indígenas como os tupiniquins não apenas serviriam como soldados nos com- bates contra corsários franceses, como também, por muito tempo ainda, seriam a principal 1 O conceito de “guerra justa” foi defendido por pensadores cristãos, entre os quais Santo Agostinho. Para ele, as autoridades seculares têm o dever de auxiliar a Igreja em seu combate contra as iniquida- des humanas, sendo então lícito e justo empregar armas para enfrentar inimigos externos ou oposito- res da fé. Na América Ibérica, o conceito seria empregado para empreender guerra contra indígenas que se negassem à conversão. Para saber mais sobre o tema, ver: VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 12 fonte de força produtiva a ser empregada em atividades como a coleta do pau-brasil, a cons- trução de engenhos e fortificações e o cultivo da terra. Esse primeiro sistema de governo da colônia brasileira produziu resultados precários, de modo que a Coroa optou por implementar um modelo centralizado, instaurando no ter- ritório representantes diretos da Metrópole. A partir dessa iniciativa foi gestado o sistema de Governo-Geral, no qual um governador nomeado pelo monarca deveria conduzir a explora- ção econômica na Colônia, a fundação de vilas e o combate a ameaças, como os corsários de outras nações europeias. A primeira sede do Governo-Geral foi situada na cidade de Salvador. Um sistema centralizado como esse demandava uma burocracia considerável. O gover- nador-geral contava, entre os funcionários de seu gabinete, com o auxílio de um ouvidor-mor, que cuidava da aplicação da justiça, um provedor-mor, que deveria tratar da arrecadação de impostos e das finanças da colônia, e um capitão-mor, cuja função era combater os inimigos da Colônia. Fundamental para a manutenção dos interesses da Coroa, ao menos a princípio, foi a ação das ordens religiosas, especialmente da Ordem de Jesus. Designando-se a missão de catequizar os gentios do Brasil colonial, os jesuítas forneciam aos portugueses uma justifica- tiva moral para sua presença em terras distantes: a salvação das almas daqueles que desco- nheciam a “luz de Cristo”. Assim, a política de disseminação do cristianismo dava suporte à exploração econômica dos colonos. Eventualmente, porém, a escravidão indígena viria a ser substituída pela escravidão negra, em razão de fatores conjunturais: 1) o imaginário de que os indígenas eram natural- mente inadequados para o trabalho intenso das lavouras; 2) a resistência de diversos grupos indígenas ao trabalho compulsório; 3) a disseminação de doenças europeias, às quais os nativos não eram resistentes, o que gerou grande mortalidade entre essas populações e, consequentemente, uma diminuição na disponibilidade de mão de obra; e 4) a intensificação e a lucratividade do tráfico de mão de obra escravizada oriunda da África. A escravidão, as grandes propriedades hereditárias e a prática da monocultura visando à importação – em suma, o modelo de agricultura que é conhecido hoje como plantation – se tornariam pilares da vida econômica da América portuguesa. Esse modelo de administração centralizada tra- ria grandes lucros para a metrópole portuguesa por cerca de três séculos, causando impacto indelével na configuração do país que emergiria desse território. A visão predominante em livros didáticos e exames vestibulares sobre a história colo- nial do Brasil é significativamente influenciada pela abordagem do historiador Caio Prado Júnior (1907-1990) na obra Formação do Brasil contemporâneo, de 1942. A visão de Prado Júnior sedimentou-se no imaginário nacional, consolidando sua imagem como um grande intér- prete da cultura brasileira, comparável a Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Na interpretação de Prado Júnior, esse Brasil Colônia surge estritamente em função da Metrópole, não com um desenvolvimento orgânico, mas como um projeto exploratório. Estabelecendo o conceito de Sentido da Colonização, o autor situa a Colônia como uma extensão da empresa comercial ibérica, um fruto do capitalismo mercantil português, con- denada à produção de artigos de importação para a Metrópole e às práticas do latifúndio, Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 13 da monocultura e da escravidão. Restritos pelo Pacto Colonial a fazer comércio apenas com Portugal, que detinha o monopólio dos bens manufaturados consumidos em território colo- nial, os brasileiros foram tolhidos da possibilidade de possuir uma indústria manufatureira e um empreendedorismo próprios. O autor argumenta que, No seu conjunto e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicostoma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa do que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. (PRADO JÚNIOR, 1957, p. 16) A abordagem seguida por Prado Júnior, e por outros historiadores que seguem sua linha de pensamento, tende a subvalorizar os indivíduos que de alguma forma existiam à margem do modo de vida agrícola, homens livres que não eram senhores de terras, menos- prezando seu possível papel na economia colonial. Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e os escravos [...]. [Esses] dois grupos são os dos bem classificados na hierarquia e na estrutura social da colônia: os primeiros serão dos dirigentes da colonização nos seus vários setores; os outros, a massa trabalhadora. Entre essas duas cate- gorias nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e ina- daptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty, mais tarde, veria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade, daria como inexistente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “le Brésil n’a pas de peuple”.2 (PRADO JÚNIOR, 1957, p. 279-280) Essa condição de “inutilidade” reduziria, por exemplo, o valor de pequenas manufa- turas domésticas, como a fabricação de tecidos, que poderia empregar tanto a mão de obra escrava quanto a livre, ou a presença de pequenas propriedades rurais, muitas vezes cedidas a escravos alforriados, a título de recompensa por produtividade, ou a cargos de homens brancos pobres. Em razão dessa contradição da abordagem pradiana, surgiram outras perspectivas his- toriográficas, centradas justamente na autonomia dos elementos mercantis brasileiros “inú- teis e inadaptados”. Uma vasta produção bibliográfica a respeito ganhou fôlego a partir da década de 1970, com particular força nas duas décadas seguintes, norteada principalmente por fontes primárias. Essas pesquisas de base mais empírica buscaram apontar, para além do paradigma da produção colonial predominantemente exportadora, elementos produti- vos voltados ao consumo interno, fosse em pequenas unidades de subsistência, fosse por meio da circulação de gêneros alimentícios dentro das fronteiras da Colônia. 2 “O Brasil não tem povo.” Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 14 Iraci del Nero da Costa (1992), por exemplo, observou a existência de diversos núcleos populacionais, em várias regiões brasileiras, entre os séculos XVIII e XIX, onde indivíduos livres e não proprietários tinham relevância para a economia local, trabalhando em setores como a manufatura rural, o comércio e o transporte de mercadorias. Figura 2 – DEBRET, Jean-Baptiste. Negra tatuada vendendo caju. 1827. Aquarela sobre papel, co- lor.: 15,5 x 21 cm. Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro, RJ. Um estudo marcante acerca das particularidades do período que se opõe ao conceito de Sentido da Colonização foi proposto por João Luís Fragoso e Manolo Florentino (2001), em O Arcaísmo como projeto. Esses autores, que estudaram a economia fluminense na passagem do século XVIII para o XIX, sustentaram que, ao menos em seu período tardio, a economia colonial desfrutava de considerável autonomia, haja vista que, embora o Pacto Colonial es- tabelecesse regras rígidas para o comércio e as relações entre Colônia e Metrópole, como apontado por Prado Júnior, essas normativas estavam sujeitas à flexibilidade do cotidiano brasileiro no período e à dinâmica da vida econômica, que nem sempre podia ser devida- mente regulada. Qual seria a grave limitação do modelo interpretativo de Caio Prado Júnior? [...] A nosso juízo tal limitação deveu-se ao fato de ele haver transposto para o plano fenomênico, sem as necessárias e devidas mediações, elementos próprios do que considerou a essência de nossa formação e da sociedade aqui constituída. Reduzido, assim, o plano do concreto [...] a elementos de sua pretensa essência [...], resta-nos uma caricatura de vida econômica e social, desfigurada, rígida, descarnada, apartada da experiência do dia a dia [...] que faz com que nos sinta- mos tão incomodados, tão “desconfortáveis” quando confrontamos nossa visão daquela sociedade com a que derivamos da leitura dos escritos de Caio Prado Júnior. (COSTA, 1995, p. 18) Isso se daria porque o projeto colonial não teria sido rigorosamente uma extensão do capital mercantil burguês de Portugal, mas, antes, uma perpetuação do Antigo Regime em Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 15 Portugal, um reino no qual não era contraditória a figura do fidalgo-mercador, um nobre que não se aplicava apenas à administração do meio rural, mas ao comércio e à vida urba- na. O tráfico negreiro se tornaria, em particular, uma força motriz da economia colonial, e muitos de seus agenciadores ficariam mais ricos que os grandes proprietários rurais. Do ponto de vista de O Arcaísmo, o projeto colonial é muito mais uma perpetuação do poder da velha aristocracia, exercendo seu modelo de domínio lusitano, que um fruto da iniciativa do capital burguês em associação com o Estado. É válido observar que os dois grandes modelos explicativos apresentados aqui, por serem contraditórios entre si, são passíveis de tensões. O ponto de vista pradiano indica com clareza os principais fatores envolvidos nas políticas oficiais de colonização exercidas pelo Estado português, enquanto a mirada da autonomia colonial aponta para brechas nessas políticas, ex- ploradas em casos que devem ser estudados de acordo com suas especificidades conjunturais. 1.2 Periodização da história do Brasil Colônia Entre as décadas de 1500 e 1530, a experiência colonial portuguesa no Brasil foi essen- cialmente limitada a visitas exploratórias para a aquisição de pau-brasil. Em 1531, Martim Afonso de Sousa foi enviado à Colônia com uma expedição militar, a fim de eliminar a presença francesa na costa brasileira. A partir dessa expedição, teve início um processo de povoamento de facto, com a inauguração da vila de São Vicente, em 1532. Esse povoamento deveria servir aos propósitos de repelir invasores, amealhar escravos, organizar a Colônia por meio da divisão de terras e iniciar o cultivo da cana-de-açúcar. Em 1534, a terra foi dividida em quinze capitanias hereditárias, em um modelo de go- verno que sofreu com inúmeros problemas, a começar pela dificuldade dos colonos de se adaptarem às terras tropicais. Além disso, havia a necessidade de investimentos maciços para a construção de engenhos – onde a cana deveria ser processada para a produção do açúcar –, sem previsão de retornos imediatos, bem como a dificuldade de se obter mão de obra para o trabalho pesado nas lavouras de monocultura. Essas questões causaram o insucesso de boa parte das capitanias, o que levou a Coroa portuguesa a instituir o Governo-Geral, de 1548 a 1549, centralizando a administração colo- nial brasileira nas mãos de Tomé de Sousa. Ainda assim, é relevante pontuar que, mesmo com a formalização desse sistema, houve a permanência de algumas das capitanias heredi- tárias – ou seja, a implantação desse governo não significou a desarticulação completa das capitanias3. Ao longo desse período, a cana-de-açúcar se tornou um dos mais importan- tes produtos de importação do mundo, trazendo riquezas para o território, especialmente 3 Segundo o historiador e professor JoãoPaulo Garrido Pimenta, da Universidade de São Paulo ( USP),o sistema de capitanias hereditárias foi abolido juridicamente no Brasil apenas no século XVIII, em 1759, sendo que a última capitania foi extinta somente no século XIX. Esse aspecto é indicativo tanto da inadequação de periodizações muito rígidas da história do Brasil quanto da convivência de diferentes formas de governo ou modelos de organização. Saiba mais assistindo ao vídeo História do Brasil Colonial I, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l4683aqImi0&list=PLpJ5wGT4jMZx5-f7nQ-dIc- YeGu8GbaDdV>. Acesso em: 7 abr. 2017. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 16 para as regiões de Pernambuco e São Vicente, onde o cultivo intensivo havia se mostrado mais exitoso. À medida que crescia a exportação de açúcar, crescia também a importação de escravos, alimentando o tráfico negreiro no Atlântico. Embora o Tratado de Tordesilhas, assinado pelas Coroas de Portugal e Espanha em 1494, dividindo entre os dois Estados a posse dos “territórios por descobrir”, desse aos por- tugueses o direito de exploração sobre a costa brasileira, muitos corsários, especialmente de nacionalidade francesa, buscaram tirar proveito das riquezas do território ao longo do século XVI, atacando embarcações ibéricas no Atlântico. Entre 1555 e 1560, os franceses procuraram estabelecer-se em definitivo na América portuguesa, aliando-se à tribo tupinambá para formar a França Antártica, empreendimento que viria a fracassar em razão de conflitos internos e batalhas com os portugueses e seus aliados indígenas. Uma nova tentativa seria feita com a França Equinocial, entre 1612 e 1615, novamente suprimida pelos portugueses. Os próprios portugueses acabaram por desobedecer às normas do Tratado de Tordesilhas, permitindo o fluxo de entradas e bandeiras, através do interior do território e invadindo os limites dos domínios espanhóis na porção sul da América. A tensão entre os reinos espanhol e português atingiria seu ápice em 1580, com uma unificação dinástica que se estendeu até 1640. Ao longo desse período, a Coroa portuguesa foi integrada à espanhola, na unidade política conhecida como União Ibérica, gerando im- pacto nas colônias e colocando o território brasileiro em rotas de conflito. Por exemplo, uma das consequências da Guerra Anglo-Espanhola, combate entre as Coroas inglesa e ibérica, resultaria em um ataque do corsário inglês James Lancaster ao porto de Recife. Entre 1630 e 1654, seria a vez dos holandeses buscarem estabelecer domínios em solo brasileiro. Fixando-se na região Nordeste, sob o comando de Maurício de Nassau, eles tira- ram proveito da riqueza açucareira e implementaram diversas mudanças em Pernambuco, até sua expulsão pelos portugueses. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a Colônia passaria por um período de consolidação e formação de uma identidade local. No decorrer das décadas e dos séculos de colonização, os colonos desenvolveram afinidades entre si e com a região onde viviam, o que viria a con- tribuir para a formação dessa identidade e a progressiva acentuação das diferenças entre os “portugueses da Colônia” e os “portugueses da Metrópole”. A descoberta de ouro nas Minas Gerais alimentaria um novo ciclo econômico. As ten- sões sociais desse período, envolvendo a demanda dos colonos por maior autonomia, de- sembocaria em revoltas como a Inconfidência Mineira (1789), que tentaria organizar uma conspiração para impor fim ao domínio português sobre a região das Minas. O período colonial teria fim em 1815, quando a Família Real portuguesa, então exila- da no Rio de Janeiro, em razão da invasão de Portugal por tropas napoleônicas, instituiu várias reformas. O Brasil foi então elevado da categoria de Colônia a reino par de Portugal, Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 17 constituindo a união política conhecida como Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O Quadro 1, a seguir, apresenta uma breve cronologia dos principais acontecimentos do período colonial brasileiro. Quadro 1 – Linha do tempo do Brasil Colônia. 1500-1530 Período exploratório do pau-brasil 1530 Início da colonização – expedição de Martim Afonso de Sousa 1532 Fundação da Vila de São Vicente 1534 Divisão das capitanias hereditárias 1548 Reforma político-administrativa: Governo-Geral 1580-1640 União Ibérica 1808 Vinda da Família Real ao Brasil 1815 Fim do Período Colonial – elevação do Brasil a reino par de Portugal: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves Fonte: Elaborado pela autora. 1.3 Fontes para o estudo da história da colonização brasileira O estudo do período colonial no Brasil dispõe de uma diversidade de fontes primárias, já que os registros que oferecem vislumbres da época têm proveniência oficial e literária. Documentos referentes à administração colonial ultramarina portuguesa, como os comuni- cados oficiais e as cartas régias – por exemplo, como o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, assinado pelo príncipe-regente Dom João de Bragança (Dom João VI de Portugal) –, abrem uma janela para a observação das políticas assumidas por Portugal em relação a seu território além-mar. Deve-se lembrar, contudo, que essas fontes foram produzidas por europeus, de modo que carregam um discurso eurocêntrico. O historiador deve se atentar para esse filtro cul- tural, sendo especialmente cuidadoso em seu trato com a fonte, questionando-a e buscan- do contemplar mais do que um ponto de vista dominante. Também é importante lembrar que documentos oficiais não são as únicas fontes válidas. Esses documentos, que carregam certamente um discurso oficial, podem ser enriquecidos pelos indícios da vida cotidiana, oferecidos por bilhetes trocados com finalidades não oficiais, diários e listas de compras, por exemplo. As cartas, por exemplo, são documentos relativamente abundantes desse período. Escritas por missionários ou exploradores, com finalidades diversas, como relatar as potencialidades Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 18 do novo território para a empresa colonial, pedir auxílio ou reportar conquistas, as missivas abrem espaço para muitas interpretações acerca do período. Um caso célebre é o da carta la- vrada por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. Trata-se de um comunicado oficial dirigido ao rei Dom Manuel acerca das terras recém-descobertas, oferecen- do informações sobre o território e os povoamentos pré-Cabralinos ali existentes. Ao mesmo tempo que dá pistas sobre a configuração do território e o modo de vida dos nativos, essa carta também possibilita uma reflexão sobre o olhar europeu, ao evidenciar o deslumbramento de Caminha (e presumivelmente de seus conterrâneos) diante de um ambiente completamente novo, marcado por fauna, flora e culturas distintas de tudo que os portugueses haviam conhe- cido até então. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cui- dar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ove- lha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. (BRASIL, 2017) Documentos emitidos por autoridades governamentais ou eclesiásticas também podem lançar luzes sobre a vida da Colônia, oferecendo amostras dos caminhos institucionais que caracterizavam a vida local. Um exemplo é o seguinte trecho de Primeira Visitação do Santo Officio ás Partes do Brasil, que relata a primeira passagem pela Américaportuguesa de um visitador licenciado, encarregado de reforçar as normativas do Santo Ofício português nas possessões ultramarinas da Metrópole: Em 1573 foi queimado um francez herético na Bahia. As circumstancias não vie- ram a nosso conhecimento. Estava nas attribuições episcopaes velar pela pureza da fé, dar combate ás heresias, castigar os herejes. Quando as heresias medievaes appareceram sob as formas mais diversas, reclamando especialistas theologos para as desmascararem, e surgiram nos pontos mais afastados, exigindo unidade de acção para debellalas, a autoridade episcopal foi diminuindo, embora não desaparecesse de todo diante da autoridade dos inquisidores. (MENDONÇA, 1922 [1591-92], p. 5) O documento em questão traz detalhes reveladores a respeito dos procedimentos, pu- nições e modelos de investigação empregados pela Inquisição portuguesa, bem como o al- cance de sua influência fora do território continental português, além da visão que se tinha das práticas religiosas, oficiais ou não, desenvolvidas na Colônia. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 19 De forma comparável às cartas, os relatos de viajantes são também discursos que po- dem ser lidos sob duas perspectivas: 1) informações relevantes sobre os povos encontra- dos por indivíduos como Hans Staden, Jean de Léry, Pero de Magalhães Gândavo, Fernão Cardim, Claude D’Abbeville e Yves D’Evreux, incluindo estudos das línguas e costumes dos povos tupis e descrições da flora e da fauna nativas, muitas vezes acompanhadas de ilustrações pitorescas; e 2) o que esses autores, europeus e cristãos, expressavam acerca da terra e de seus habitantes e o que isso pode revelar sobre o pensamento eurocêntrico do pe- ríodo, frequentemente focado na assimilação do exótico – como no excerto a seguir, em que Fernão Cardim trata da sexualidade tupi: Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar contrário, e perseverava virgem até que o tomasse e matasse correndo-lhe primeiro suas festas por espaço de dois ou três anos; a mulher da mesma maneira não conhecia homem até lhe não vir sua regra, depois da qual lhe faziam grandes festas; ao tempo de lhe en- tregarem a mulher faziam grandes vinhos, e acabada a festa ficava o casamento perfeito, dando-lhe uma rede lavada, e depois de casados começavam a beber, porque até aí não o consentiam seus pais, ensinando-os que bebessem com tento, e fossem considerados e prudentes em seu falar, para que o vinho lhe não fizes- se mal, nem falassem cousas ruins, e então com uma cuia lhe davam os velhos antigos o primeiro vinho, e lhe tinham a mão na cabeça para que não arreves- sassem, porque se arrevessava tinham para si que não seria valente e vice-versa. (CARDIM, 2009 [1583-1601], p. 176-177) Evidentemente, é importante observar que cada um desses relatos guarda em si um dis- curso próprio, não podendo ser tomado sem a confrontação com outros relatos disponíveis e uma avaliação crítica. Por exemplo: relatos de viagens e cartas que fazem referências aos povos nativos do Brasil são unilaterais, posto que apresentam a visão de clérigos e admi- nistradores portugueses, mas não contemplam qualquer visão que os próprios indígenas tivessem de si. Com frequência, tais documentos expressam a clara intenção de preparar o terreno para a evangelização e a escravização dos povos nativos, o que pode resultar em um viés “barbarizante” acerca destes, justificando ações intrusivas, ou mesmo violentas, como as promovidas reiteradamente por bandeirantes, missionários e autoridades coloniais. Em razão dessas questões, como qualquer outra fonte, os registros coloniais4 devem ser abordados com cuidado, sempre com a confrontação de dados divergentes em natureza e de procedências diferentes, evitando-se a simples reprodução de discursos já sedimentados. 4 Atualmente, podem ser encontradas compilações de fontes do período colonial, como o material organizado pelo professor Luiz Carlos Villalta, da Universidade Federal de Minas Gerais, intitulado Coletânea de documentos e textos de História do Brasil Colonial, o qual compreende testemunhos de nature- zas diversas datados do período. Esses registros podem ser acessados no endereço eletrônico: <http:// www.fafich.ufmg.br/pae/colonia/documentos/coletaneadedocumentos.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2017. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 20 Ampliando seus conhecimentos Escritor e político, nascido em São Paulo, Caio Prado Júnior (1907-1990) teorizou sobre a formação do Brasil em vista de seu passado colonial. Pesquisador de viés marxista, Prado Júnior buscava abordar os eventos coloniais a partir da ótica do materialismo histórico, vinculando a histó- ria brasileira à natureza de sua relação econômica com Portugal e sempre relacionando, em seu entendimento, esses acontecimentos às repercussões contemporâneas. Sua obra Formação do Brasil contemporâneo é frequen- temente considerada equivalente em importância a Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Seu conceito de “sentido da colonização” situa a fundação do Brasil como um centro de produção de bens de exportação. Essa conjuntura seria vista pelo autor como problemática para o desenvolvimento da América portuguesa como colônia, posto que teria tolhido a formação de um mercado interno e, consequentemente, de um país independente e economicamente forte. O sentido da colonização (PRADO JÚNIOR, 1957, p. 15-22) [...] O sentido da evolução de um povo pode variar; acontecimentos estranhos a ele, transformações internas profundas do seu equilíbrio ou estrutura, ou mesmo ambas essas circunstâncias conjuntamente, poderão intervir, desviando-o para outras vias até então ignoradas. Portugal nos traz disso um exemplo frisante que para nós é quase doméstico. [...] No alvorecer do século XV, a história portuguesa muda de rumo. Integrado nas fronteiras geográficas naturais que seriam definitivamente as suas, constituído territorialmente o reino, Portugal se vai transformar num país marítimo; desliga-se, por assim dizer, do continente, e volta-se para o oceano que se abria para o outro lado; não tardará, com suas empresas e conquistas no ultramar, em se tornar uma grande potência colonial. [...] Isso nos leva, infelizmente, para um passado relativamente longínquo e que não interessa diretamente ao nosso assunto. Não podemos contudo dispensá-lo, e precisamos reconstituir o conjunto da nossa formação colo- cando-a no amplo quadro, com seus antecedentes, desses três séculos de atividade colonizadora que caracterizam a história dos países europeus a partir do século XV; atividade que integrou um novo continente na sua órbita, paralelamente aliás ao que se realizava, embora em moldes diver- sos, em outros continentes: a África e a Ásia. [...] Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 21 [...] A expansão marítima dos países da Europa, depois do século XV, expansão de que o descobrimento e a colonização da América constituem o capítulo que particularmente nos interessa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países. Deriva do desenvolvimento do comércio continental europeu, que até o século XIV é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a uma mesquinha navegação costeira e de cabotagem. Como se sabe, a grande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento do Império do Ocidente é a que liga por terra o Mediterrâneo ao mar do Norte, desde as repúblicas italianas, através dos Alpes, os cantões suíços, os grandes empórios do Reno, até o estuário do rio onde estão as cidades flamengas. No século XIV, mercê de uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar,outra rota ligará aqueles dois polos do comércio europeu: será a marítima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. Rota que, subsidiária a princípio, substituirá afinal a primitiva no grande lugar que ela ocupava. O primeiro reflexo dessa transformação, a princípio imperceptível, mas que se revelará pro- funda e revolucionará todo o equilíbrio europeu, foi deslocar a prima- zia comercial dos territórios centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada oceânica: a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha e a península Ibérica. Esse novo equilíbrio firma-se desde o princípio do século XV. Dele derivará não só todo um novo sistema de relações internas do continente, como, nas suas consequências mais afastadas, a expansão europeia ultrama- rina. O primeiro passo estava dado e a Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o oceano. O papel de pioneiro nessa nova etapa caberá aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo dessa península que avança pelo mar. Enquanto holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na via comercial recém-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vão mais longe, procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos e já instalados, e para que contavam com vantagens geográfi- cas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nessa avançada pelo oceano descobrirão as ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores), e continuarão perlongando o continente negro para o sul. Tudo isso se passa ainda na primeira metade do século XV. Lá por meados dele começa a se dese- nhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a África. Seria abrir para seu proveito uma rota que os poria em contato direto com as opulentas Índias das preciosas especiarias, cujo comércio fazia a riqueza Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 22 das repúblicas italianas e dos mouros por cujas mãos transitavam até o Mediterrâneo. Não é preciso repetir aqui o que foi o périplo africano, rea- lizado afinal depois de tenazes e sistemáticos esforços de meio século. [...] Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articu- lam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do século XV, e que lhes alar- gará o horizonte pelo oceano afora. Não têm outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das ilhas pelos portu- gueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América, a exploração e ocupação de seus vários setores. [...] [...] Tudo isso lança muita luz sobre o espírito com que os povos da Europa abordam a América. A ideia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis. A ideia de ocupar, não como se fizera até então em terras estranhas, apenas como agentes comer- ciais, funcionários e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de articulação entre as rotas marítimas e os territórios ocupados; mas ocupar com povoa- mento efetivo, isso só surgiu como contingência, necessidade imposta por circunstâncias novas e imprevistas. Aliás, nenhum povo da Europa estava em condições naquele momento de suportar sangrias na sua população, que no século XVI ainda não se refizera de todo das tremendas devasta- ções da peste que assolou o continente nos dois séculos precedentes. Na falta de censos precisos, as melhores probabilidades indicam que em 1500 a população da Europa ocidental não ultrapassava a do milênio anterior. [...] Os problemas do novo sistema de colonização, envolvendo a ocupa- ção de territórios quase desertos e primitivos, terão feição variada, depen- dendo em cada caso das circunstâncias particulares com que se apre- sentam. A primeira delas será a natureza dos gêneros aproveitáveis que cada um daqueles territórios proporcionará. A princípio, naturalmente, ninguém cogitará de outra coisa que produtos espontâneos, extrativos. É ainda quase o antigo sistema das feitorias puramente comerciais. Serão as madeiras, de construção ou tintoriais (como o pau-brasil entre nós) na maior parte deles; [...] Viria depois, em substituição, uma base econômica mais estável, mais ampla: seria a agricultura. [...] Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 1 23 Atividades 1. Discorra sobre o conceito de Sentido da Colonização, elaborado por Caio Prado Júnior. 2. Em que sentido a abordagem da obra O Arcaísmo como projeto diverge significativa- mente da visão pradiana? 3. Que cuidados são necessários com relação ao tratamento das fontes primárias do período colonial? Referências BRASIL. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. A carta de Pero Vaz de Caminha. [1500]. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2017. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Hedra, 2009 [1583-1601]. COSTA, Iraci del Nero da. Arraia-miúda: um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo: MGSP, 1992. ______. Nota sobre a não existência de modos de produção coloniais. São Paulo: IPE-FEA/USP, 1985. ______. Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior. Cadernos NEHD, São Paulo, n. 3, 1995. FRAGOSO, João Luís; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, socie- dade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Confissões da Bahia. São Paulo: Paulo Prado, 1922 [1591-92]. Disponível em: <https://archive.org/stream/primei- ravisita00sociuoft#page/n5/mode/2up>. Acesso em: 1 dez. 2016. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo – colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Resolução 1. É fundamental ressaltar aqui que Prado Júnior considerava a colonização do ter- ritório brasileiro como uma extensão do projeto capitalista mercantil português, o que, em sua visão, impactou profundamente a história brasileira, repercutindo até a contemporaneidade. Fruto de um ideal burguês de expansão comercial, a Colônia estaria sempre fadada a ser um fornecedor de produtos tropicais de interesse da Métropole, incapaz de obter sua própria autonomia, mesmo com a independência política. A massa popular situada entre os senhores e os escravos seria irrelevante para tal projeto colonial. Considerações sobre a historiografia da colonização brasileira1 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 24 2. Fragoso e Florentino percebem o projeto como uma implementação do Antigo Regi- me no Novo Mundo, mais uma extensão do modelo aristocrático português que um devaneio de empreendedorismo burguês. Os autores sugerem um Brasil Colônia, ao menos em seu período tardio, muito mais flexível que aquele apresentado por Prado Júnior, onde as normativas do Pacto Colonial eram frequentemente tensionadas para permitir uma autonomia individual, especialmente no que dizia respeito à via do comércio, capaz de produzir riquezas individuais ainda mais pródigas que o cultivo da cana-de-açúcar pelos grandes latifundiários. 3. Assim como qualqueroutra forma de registro, as cartas e os relatos de viagem re- fletem um ponto de vista, particularmente recuado no tempo, pois pertence a indi- víduos confrontados com uma realidade radicalmente nova a seus olhos. No caso de relatos elaborados por missionários e administradores europeus sobre as popu- lações nativas e sobre o modo de vida de colonos locais, é importante atentar para possíveis discursos normatizadores, pautados por interesses diversos. História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 25 2 Grupos indígenas brasileiros Uma das concepções mais difundidas acerca da formação do povo brasileiro é a de que esse processo se deu pelas vias da miscigenação e da interação pacífica, até mesmo afetuosa, entres três “matrizes culturais”: a europeia, a indígena e a africana. Embora seja visível que componentes de todas essas vertentes étnicas contribuíram para a “invenção” do Brasil, a complexidade do processo de trocas culturais dificil- mente poderia ser sintetizada em uma fórmula. A miscigenação não se deu sempre por vias consensuais, e grupos inteiros foram submetidos a circunstâncias de opres- são, perda de território ou extermínio até que fosse constituída uma unidade nacional reconhecível como Brasil. De todo modo, qualquer compreensão mais refinada da diversidade cultural que marcou a formação do Brasil colonial deve certamente passar pelo estudo das culturas indígenas que aqui viveram – e, em muitos casos, ainda vivem. É válido começar com um esclarecimento sobre o uso da palavra índio, que era empregada pelos europeus do século XVI para descrever nativos do Extremo Oriente (“as Índias”). Posto que o primeiro contato dos europeus com terras americanas os pôs a pensar que estas se tra- tavam de território asiático, os povos que eles encontraram passaram a ser designados como índios, uma denominação que se perpetua até os dias atuais, com graus maiores ou menores de aceitação, dependendo do contexto. Outros termos ainda foram utiliza- dos, tais como gentio, bárbaro, selvagem e negro da terra. Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 26 A denominação índio ou indígena mostra-se particularmente enganosa, por encorajar a ideia de que esses povos constituem uma espécie de unidade coesa em termos de modo de vida, língua, religião ou organização social. Esses grupos são na verdade caracterizados por uma imensa diversidade, ainda que compartilhem a noção de continuidade relativa ao período pré-colombiano, a concepção de patrimônio cultural local como fato agregador da comunidade e um senso de si como entidade diferenciada do restante do conjunto nacional. A teoria mais aceita atualmente é a de que as primeiras populações americanas teriam se originado de ondas migratórias provenientes da Ásia e, posteriormente, ramificaram-se em uma infinidade de sociedades, adotando modelos variados de vida ritual, subsistência e composição social. Apesar de haver controvérsia entre autores que tratam do tema, os números estimados para a população indígena brasileira anterior ao contato com os europeus flutuam entre um e cinco milhões de indivíduos, compreendendo cerca de mil grupos diferentes. O antropólo- go Darcy Ribeiro (2004) afirmou que, apenas no início do século XX, cerca de oitenta grupos teriam desaparecido devido a epidemias e ações violentas. Considerando que essas sociedades eram ágrafas, nada deixaram em termos de registros por meio dos quais possamos reconstituir sua visão acerca da chegada dos invasores ou de toda a história que a precedeu. Tudo que se sabe dessas culturas do período pré-Cabralino parte de achados arqueológicos e de suposições elaboradas com base na grande quantidade de crônicas ou relatos de viagem escritos por exploradores europeus que estiveram no Brasil a partir do século XVI, como Jean de Léry e Hans Staden. Há de se reconhecer, evidentemente, o impacto que tiveram essas culturas na língua falada, nos costumes praticados no Brasil e no modo como o território nacional veio a se organizar. No entanto, os grupos indígenas, longe de se configurarem como algo restrito a um passado colonial, são ainda hoje uma parcela relevante, embora de visibilidade restrita e sujeita a generalizações frequentes, do povo brasileiro. Assim, compreender a história des- ses povos é fundamental para pintar um quadro mais completo da formulação histórica do Brasil colonial. 2.1 Organização social e cultural das comunidades indígenas A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de co- brir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como ro- que de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. (BRASIL, 2017) Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 27 Essa descrição, contida na Carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, o escrivão da arma- da de Pedro Álvares Cabral se refere aos primeiros nativos avistados por portugueses no território que se tornaria o Brasil. Tratava-se de tupiniquins, um povo falante de uma língua tupi, como vários outros que habitavam a costa brasileira. Com o tempo, vários elemen- tos da cultura tupi foram assimilados à cultura brasileira, sendo inclusive abraçados pelos escritores românticos do século XIX. Desse modo, faz sentido que, nas mentes de muitos brasileiros, tupi e índio sejam quase termos intercambiáveis. Entretanto, o contexto cultural é mais complexo. Há cerca de 150 línguas indígenas so- breviventes no Brasil de hoje, por exemplo, as que pertencem aos troncos linguísticos tupi e macro-jê, além de várias outras famílias linguísticas extensas, como as línguas caribes e as aruaques, e línguas isoladas, como a trumái e a ticuna. Essa variedade linguística reflete uma diversidade de costumes e visões de mundo que ainda são objeto de interesse de pes- quisadores de várias áreas. Dentro desses grupos são várias as particularidades de ordem religiosa, artística e so- cial observadas, mas também há pontos em comum entre eles. De modo geral, as sociedades indígenas encontradas pelos portugueses eram caracterizadas principalmente por adota- rem uma economia de subsistência, sistemas políticos mais simples e um nível de elabora- ção material relativamente menor que os europeus. Nenhum desses grupos dominava, por exemplo, a metalurgia, a irrigação, o uso de animais de tração (e, consequentemente, da tecnologia da roda) ou a arquitetura com alvenaria. Como foi observado por viajantes como Jean de Léry, esses povos não pareciam ter uma religião reconhecível aos olhos europeus, com templos, ídolos esculpidos, cultos organizados ou mesmo uma hierarquia rigorosa de deuses, segundo uma perspectiva teísta convencional. No campo da organização social, os indígenas que se encontravam no território brasi- leiro não possuíam instituições reconhecíveis como reinos, ministérios ou cúrias sacerdotais. As relações dentro das comunidades eram pautadas principalmente por questões de faixa etária, ancestralidade, gênero e vida ritual. Chefias com frequência eram baseadas no poder da oratória ou nas proezas militares de um indivíduo, nem sempre levando em conside- ração a hereditariedade. As interações entre um povo e outro podiam variar de modelos tradicionais e rígidos de cooperação a alianças precárias e motivadas por necessidade, de francas inimizades a estados de relativa submissão motivadas por um histórico de conflito. Costumes e rituais podiam interferir significativamente nessas relações intertribais, es- pecialmentecom respeito às guerras. Os povos tupis da costa, por exemplo, guardavam o costume da antropofagia: inimigos capturados em combate eram conduzidos à aldeia dos vitoriosos, onde eram executados em um elaborado ritual, após o qual sua carne era consu- mida. Acreditava-se que, entre inimigos tradicionais, como os tupinambás e os tupiniquins, a antropofagia era um dever de vingança ritual, já que um guerreiro compensava o consumo de seus ancestrais pelos inimigos consumindo os descendentes destes, em uma cadeia infi- nita de vendetas intertribais. Algumas das sociedades nativas do Brasil ainda eram predominantemente nômades, vivendo da caça, da pesca e da coleta de produtos sazonais da floresta. Outras desenvolviam essas atividades em complementaridade com um modelo de agricultura adaptado às terras Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 28 tropicais: a agricultura de coivara, que envolve o plantio em áreas recém-queimadas de flo- resta, as quais são abandonadas para repousar e se recompor após algumas colheitas. Via de regra, as culturas coletoras desenvolveram repertórios materiais mais simples, enquanto as culturas agrárias criaram formas reconhecíveis de cerâmica, cestaria e tecelagem, por vezes decoradas com elaborados grafismos, ricos em simbologias. Dado que desconheciam animais de tração, como o cavalo e o boi, completamente au- sentes na fauna nativa das Américas, e seus implementos estavam restritos a tecnologias líticas (artefatos como machadinhas ou cortadores feitos de pedra) ou orgânicas (madeira, osso, couro), essas culturas desenvolviam suas atividades produtivas de forma diferente dos europeus, empregando o fogo como sua principal ferramenta e produzindo ambientes de cultivo que, visualmente, eram pouco semelhantes às fazendas europeias. Não se pode subestimar o choque representado pela chegada dos europeus, equipados com implementos de ferro, que facilitavam o trabalho agrícola, e armas de fogo, alterando significativamente o modo como se praticava a caça e a guerra. Essa assimetria, somada a outros fatores conjunturais, como a questão religiosa, pro- duziria um forte impacto nas culturas indígenas, que, apesar dos constantes atritos com os europeus, desenvolveriam também uma relação de dependência com os invasores, buscan- do obter deles bens exóticos, como roupas, espelhos, ferramentas de ferro, armas de fogo e animais de criação. Reforçando esse choque, a organização social dessas comunidades não apresentava classes sociais do modo compreendido pelo europeus, posto que os modelos econômicos que adotavam não permitiam acúmulo considerável de excedentes ou concentração de bens de vulto nas mãos de indivíduos específicos, até porque o conceito de riqueza imobiliária estava praticamente ausente do imaginário indígena. Enquanto os europeus estavam fami- liarizados à rigidez dos estamentos sociais (nobreza/clero/burguesia/campesinato), a estrati- ficação existente entre as populações indígenas brasileiras era pautada, conforme já foi dito, por questões de gênero e faixa etária. Na maioria das vezes, as mulheres eram responsáveis pela atividade agrícola, pelo processamento dos alimentos e pelos cuidados com as crianças pequenas, e os homens pela caça, pela pesca e por formas específicas de coleta, bem como pela fabricação de armas e implementos envolvidos nessas atividades. As crianças, de acor- do com o gênero, eram educadas seguindo a rotina de atividades dos adultos, quando não tinham atribuições específicas. Os idosos com frequência tinham também uma rotina bem estabelecida de atividades produtivas diversificadas, posto que não poderiam mais se apli- car com vigor em atividades extenuantes. Nesse modelo produtivo, todos os indivíduos de determinado estrato (homens ou mu- lheres, em determinada faixa etária) possuíam a gama de conhecimentos necessários para levar a cargo as atividades produtivas e rituais que eram deles esperadas, o que resultava na inexistência de “especialistas”. Ferreiros, carpinteiros e construtores não teriam lugar, por- tanto, em uma sociedade onde o conjunto de tarefas é conhecido por todos os participantes, Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 29 em todas as etapas do processo. Ferreiros e joalheiros, em particular, não teriam razão de ser em uma sociedade que desconhecia a metalurgia. Mesmo os chefes indígenas raramente apresentavam o caráter institucionalizado/sacra- lizado que caracterizava os monarcas europeus, sem jamais possuírem a mesma extensão de poder. A escolha dos chefes podia ser ditada por habilidades particularmente acentuadas de liderança em combate e atividades produtivas ou pelo uso da oratória em ocasiões de ri- tuais. Uma das poucas formas de especialidade encontradas em tais sociedades é a categoria dos xamãs ou pajés, palavra de origem tupi que se refere a curandeiros e líderes espirituais. Em certos grupos indígenas, todavia, o papel de condução de rituais pode ser pulverizado entre vários indivíduos, ou até mesmo entre todos os membros de uma comunidade em contextos específicos. Em muitos casos, o xamã não está isento de participar de atividades produtivas como a caça, por exemplo. Portanto, ao contrário das sociedades encontradas pelos europeus nos Andes e no Vale do México, aquelas que residiam no território brasileiro não construíram cidades ou mesmo templos, nem desenvolveram uma arquitetura monumental, posto que seus sistemas reli- giosos e civis não exigiam isso. Além disso, não havia aristocracias ou uma diversificação econômica que pudesse distinguir significativamente os membros de uma comunidade. Um trecho de Viagem à terra do Brasil, do francês Jean de Léry, comenta elogiosamente sobre esse modelo de organização: É coisa quase incrível e de envergonhar os que consideram as leis divinas e hu- manas como simples meios de satisfazer sua índole corrupta, que os selvagens, guiados apenas pelo seu natural, vivam com tanta paz e sossego. É evidente que me refiro a cada nação de per si ou às que vivem como aliadas, pois aos inimigos já sabemos como tratam. (LÉRY, 1980 [1578], p. 205-206) A comunidade tupinambá, à qual se refere Léry, era aliada dos franceses e praticava a antropofagia ritual, assim como outros povos tupis, sacrificando inimigos capturados e consumindo sua carne. Mesmo repugnado por tal prática, o autor ressalta em mais de um momento o estado de paz que prevalecia dentro das aldeias brasileiras ou entre aldeias que possuíam alguma forma de aliança, ainda que não houvesse qualquer presença forte de ordenamento civil, ou seja, nenhum tipo de policiamento organizado ou regulação oficial institucionalizada por ministros, secretários, prefeitos etc. Na obra apresentada na Figura 1, o artista Jean-Baptiste Debret expõe o cotidiano das comunidades indígenas1. 1 É relevante notar que a maioria das imagens utilizadas neste material não foi produzida no período em análise, tendo sido elaboradas por artistas posteriores, atendendo às demandas dos respectivos períodos de produção. Afora o caso dos artistas holandeses no século XVII, testemunhos visuais das populações nativas do Brasil foram relativamente raros até meados do século XX, quando artistas franceses foram convidados pela Coroa portuguesa a se estabelecerem no território brasileiro, repre- sentando então suas paisagens e seu povo. Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi um dos nomes mais relevantes entre esses artistas vindos da França. Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 30 Figura 1 – DEBRET, Jean-Baptiste. Botocudos, Puris, Pataxós e Machacalis. 1834. Litografia sobre papel, color.: 21,1 x 32,6 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo. O choque cultural que se seguiu ao contato entre colonizadores e nativos foi crucial para o desenrolar da história colonial. Em mais de um momento as concepções indígenas de religiosidademostraram-se incompatíveis com a assimilação dos princípios cristãos, assim como as noções de vida prática se revelaram incompatíveis com a assimilação de institu- cionalidades e modelos econômicos europeus. Somados, esses fatores ajudaram na criação de um modelo colonial que frequentemente incorporaria os povos americanos, quando es- tes não se conformavam às reduções jesuíticas, devidamente cristianizados e adequados ao modo de vida europeu, apenas como mão de obra escrava. Mais comum foi seu isolamento do convívio com o restante da sociedade colonial, como alvo óbvio de guerras e predação, situação que acarretaria grande número de conflitos no interior do território nos séculos por vir. Perduraria ainda o estranhamento entre esses dois “Brasis”, um devidamente configura- do conforme modelos europeus, e outro apenas precariamente controlado, foco de disputas, distante das instituições civis e religiosas tradicionais. 2.2 Os aldeamentos e a escravidão indígena Os indígenas representavam um problema para o processo colonizador português. Se fossem considerados humanos, o que era algo controverso entre os primeiros colonos e su- jeito a diversas discussões entre os letrados do período, seriam súditos da Coroa portuguesa e não poderiam ser escravizados. Mas, se não pudessem ser escravizados, também não po- deriam ser assimilados de forma alguma à sociedade que se pretendia construir nos trópi- cos, pois viviam de forma muito distinta dos colonos. Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 31 Em contato com essas pessoas tão diferentes na aparência, nos hábitos e na visão de mundo, muitos europeus começaram a avaliar se elas eram igualmente humanas ou se eles precisavam rever suas percepções sobre o que era humanidade. Frequentemente prevaleceu a visão de que a nudez, a linguagem, o paganismo e a antropofagia eram indicadores de barbarismo que deveriam ser suprimidos por meio do convívio e do trabalho forçado, e da subsequente cristianização forçada, ou pela via da “guerra justa” – o extermínio do “gentio bárbaro”, ameaçador da ordem civilizada. Figura 2 – DEBRET, Jean-Baptiste. Índios soldados da província de Curitiba escoltando prisioneiros nativos. 1831. Litografia sobre papel: 20 x 32,5 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo. Além do choque cultural, a praticidade normalmente levava os colonos a flexibilizar os limites do legalismo, ditando suas próprias regras. Como necessitavam de escravos que pudessem empregar no cultivo de cana-de-açúcar, a exploração dos não cristãos (e, portan- to, “não humanos”) como mão de obra forçada tornava-se um componente fundamental da economia da Colônia. A captura de nativos era uma forma conveniente de obter cativos para o trabalho agrícola, enfraquecendo – quando não eliminando – grupos indígenas que poderiam representar uma ameaça aos colonos. Os colonizadores exploravam, em diversos momentos, as inimizades históricas entre os diferentes povos indígenas, aliando-se a alguns grupos com a finalidade de atacar e destruir ou escravizar indivíduos de outras comunidades. Povos aliados podiam, por exemplo, ser recompensados com bens, rendimentos e títulos. Algumas comunidades indígenas acaba- riam por buscar alianças com os colonos, com a intenção de evitar sua própria destruição, enquanto outras, em vista dos conflitos crescentes, tornar-se-iam ainda mais inimigas. As expedições que adentravam o território, com a finalidade de desbravar a Colônia em busca de minérios e outras riquezas naturais, eram conhecidas como entradas e bandeiras, Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 32 lideradas por capitães do mato, e também se dedicavam à prática do preamento, que en- volvia a captura de indígenas para trabalhos forçados. Confrontar agrupamentos indígenas que não se encontravam sob a tutela de missionários era perfeitamente lícito, pois tais gru- pos eram considerados resistentes à fé cristã e enfrentá-los constituía uma forma de guerra justa. Mesmo aqueles que se encontravam devidamente abrigados em reduções jesuíticas estavam sujeitos a ataques, uma vez que a simples aderência ao cristianismo não freava os impulsos predatórios de muitos capitães preadores de escravos. Índios em condição de pe- núria poderiam ainda se vender, numa prática conhecida como escravidão voluntária, que foi regulamentada pelo administrador colonial Mem de Sá, em 1566. Além da escravização, implementada com o uso da força, os colonos sujeitavam os in- dígenas à condição servil por meio do trabalho assalariado e da aculturação2, empreendida principalmente pelos jesuítas, mas também por outras ordens religiosas, as quais introdu- ziam os nativos a um novo modelo de ocupação da terra, que substituía sua organização tribal por um novo regime de trabalho e sua vida ritual pelo catolicismo. Esses indígenas eram batizados, recebiam nomes portugueses e deviam se portar como portugueses, como demonstra este excerto de uma carta do Padre José de Anchieta: Todos êstes impedimentos e costumes são mui faceis de se tirar se houver temôr e sujeição, como se viu por experiencia desde do tempo do governador Mem de Sá até agora; porque com o os obrigar a se juntar e terem igreja, bastou para receberem a doutrina dos Padres e perseverar nela té agora, e assim será sempre, durando esta sujeição. (ANCHIETA, 1964 [1584], p. 333) Figura 3 – RUGENDAS, Johann Moritz. Aldeia tapuia. 1824. Aquarela e grafite sobre papel: 15,5 x 28,2 cm. Coleção da Arte da Cidade de São Paulo, São Paulo. 2 O contato intercultural pode se processar de várias maneiras, e a aculturação é uma das mais mar- cantes entre essas dinâmicas. A aculturação se processa em relações culturais assimétricas, quando uma das culturas envolvidas se revela mais potente, ou seja, desfruta de maior alcance e influência. Nesses casos, a cultura menos influente acaba por adotar elementos da mais poderosa, o que pode resultar na extinção de muitos de seus caracteres identitários. Essa relação pode ser vista no caso dos grupos indígenas brasileiros que assimilaram muitos dos hábitos, da tecnologia e da religião de origem europeia. Há exemplos, no entanto, de casos de resistência cultural e hibridizações. Sobre o conceito, ver: MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma in- trodução. São Paulo: Atlas, 2006. Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 33 Nos aldeamentos jesuíticos, os índios eram catequizados em sua própria língua, medi- da utilizada pelos missionários para facilitar o processo de conversão. Com efeito, os jesuí- tas esforçaram-se para sistematizar as línguas tupi por meio da criação de uma gramática. Muito do que ainda se conhece acerca do tupi antigo, falado por muitas comunidades da costa brasileira, deve-se aos esforços de pesquisa linguística dos missionários. Nesses locais se desenvolvia um processo de “destribalização” que demandava uma aculturação radical: o trabalho agrícola, por exemplo, tradicionalmente uma atribuição fe- minina nas sociedades tupis, precisava ser empreendido por todos, independentemente do gênero ou da faixa etária, o que poderia causar confrontos a princípio. O ensino de cânticos religiosos e métodos de construção e artesanato europeus acabava por descaracterizar o modo de vida também no nível estético e da vida doméstica. Para além da aculturação, que transformava os indígenas efetivamente em súditos da Coroa portuguesa, os aldeamentos convertiam-nos em força produtiva e reserva militar con- tra índios “bravios”, ou seja, aqueles que ainda não haviam sido aldeados. Figura 4 – Ruínas da redução jesuítica de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões (RS). Fonte: Jolkesky/iStockphoto. A exploração dos indígenas como escravos só seria encerrada legalmente no século XVIII, via uma lei assinada pelo secretário de Estado do rei D. José I, o Marquêsde Pombal. É válido notar que mesmo antes disso, ainda em fins do século XVI, a escravidão indígena havia en- trado em declínio, sendo gradualmente substituída pela escravidão negra, tanto pela acepção comum, entre os colonos, de que os indígenas eram pouco aptos ao trabalho pesado quanto por interesses envolvidos no lucrativo tráfico negreiro, que trazia cativos da África. 2.3 Costumes e permanências culturais A cultura de um povo, expressão de sua identidade que se manifesta por meio de seu patrimônio material, de suas tradições e ritos, é uma cadeia dinâmica, não estática. Uma Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 34 cultura local ou nacional é tão definida pelas permanências de épocas passadas quanto pela assimilação de elementos novos. Figura 5 – Casa em aldeia Kamayurá, no Alto Xingu (MT). Fonte: Phototreat/iStockphoto. As comunidades indígenas muitas vezes adotaram posturas diferentes em relação à administração colonial portuguesa, conforme o período colonial em questão, ou mesmo posteriormente, no que diz respeito ao território brasileiro. Os níveis de interação desses grupos com o restante do coletivo nacional variaram significativamente, desde uma roti- na de trocas regulares a estados de isolamento, quando o histórico do contato se revelou traumático demais para permitir uma convivência mais estreita. Em todos os casos, porém, observam-se os efeitos duradouros e o impacto indelével do contato entre culturas radical- mente diferentes. Afora os topônimos de origem tupi que hoje permeiam amplamente a geografia brasi- leira (nomes como Araraquara, Bertioga, Itaim, Ipiranga, Iguaçu, Paraíba, Sergipe, Ubatuba), as permanências mais visíveis de culturas indígenas na cultura brasileira podem ser observa- das em práticas cotidianas fundamentais, como a arte popular e a medicina. A importância da cerâmica e da cestaria para a cultura popular brasileira, assim como o emprego comum de ervas e rituais como soluções para problemas de saúde, é também, certamente, herança das sociedades tradicionais pré-Cabralinas. Além disso, os métodos de produção e processamento de alimentos são um marco im- portante. A agricultura de coivara, por exemplo, foi preservada através dos séculos e con- tinua a ser praticada em várias partes do território nacional. O cultivo da mandioca-brava é uma permanência particularmente relevante, já que se mantém como o item mais impor- tante da agricultura da América tropical, mas também há exemplos de outras culturas agrí- colas claramente relevantes para a culinária brasileira e que são parte da herança alimentar https://www.shutterstock.com/pt/g/frontpage Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 35 indígena: o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o tomate, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, as cuias e cabaças, o abacaxi, o mamão, a erva-mate e o guaraná, além de árvores como o caju, o pequi e o cacau. Ampliando seus conhecimentos Sobre os canibais (MONTAIGNE, 2009 [1580], p. 51) [...] Eles são selvagens assim como chamamos selvagens os frutos que a natureza produziu por si mesma e por seu avanço habitual; quando na verdade os que alteramos por nossa técnica e desviamos da ordem comum é que deveríamos chamar de selvagens. Naqueles são vivas e vigorosas, e mais úteis e naturais, as virtudes e propriedades verdadeiras, e, nestes, nós as abastardamos adaptando-os ao prazer de nosso gosto corrompido. E por conseguinte, o próprio sabor e a delicadeza de diversos frutos daquelas paragens que não são cultivados são excelentes até para nosso próprio gosto, se comparados com os nossos: não é razão para que o artifício seja mais reverenciado que nossa grande e poderosa mãe natu- reza. Sobrecarregamos tanto a beleza e a riqueza de suas obras com nossas invenções que a sufocamos totalmente. Seja como for, em qualquer lugar onde sua pureza reluz ela envergonha esplendidamente nossos vãos e frí- volos empreendimentos: Et veniunt bederae sponte sua melius, Surgit et in solis formosior arbutus antris, Et volucres nulla dulcius arte canunt. [A hera cresce melhor por si só nas grutas solitárias; O medronheiro cresce mais bonito, E os pássaros têm um canto mais melodioso sem trabalho.] Todos os nossos esforços não conseguem sequer reproduzir o ninho do menor passarinho, sua contextura, sua beleza e sua utilidade; tampouco a teia da miserável aranha. Todas as coisas, diz Platão, são produzidas pela natureza ou pela fortuna ou pela arte. As maiores e mais belas, por uma ou outra das duas primeiras; as menores e imperfeitas, pela última. Portanto, essas nações parecem assim bárbaras por terem sido bem pouco moldadas pelo espírito humano e ainda estarem muito próximas de sua ingenuidade original. As leis naturais ainda as comandam, muito pouco abastardadas pelas nossas; mas a pureza delas é tamanha que, por Grupos indígenas brasileiros2 História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 36 vezes, me dá desgosto que não tenham sido descobertas mais cedo, na época em que havia homens que, melhor que nós, teriam sabido julgar. Desagrada-me que Licurgo e Platão não as tenham conhecido, pois pare- ce-me que o que vemos por experiência naquelas nações ultrapassa não somente todas as pinturas com que a poesia embelezou a Idade de Ouro, e todas as suas invenções para imaginar uma feliz condição humana, como também a concepção e o próprio desejo de filosofia. Eles não consegui- ram imaginar uma ingenuidade tão pura e simples como a que vemos por experiência e nem conseguiram acreditar que nossa sociedade conse- guisse manter-se com tão pouco artifício e solda humana. É uma nação, eu diria a Platão, em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subor- dinação, de riqueza, ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam men- tira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desco- nhecidas. Como ele consideraria distante dessa perfeição a república que imaginou! [...] Sobre o governo e as autoridades, e o que existe de ordem e de justiça (STADEN, 2011 [1557], p. 122) Entre os selvagens, não há um governo constituído e não há privilégios. Cada cabana tem um superior. Ele é o chefe. Todos os chefes são da mesma origem e têm o mesmo direito de dar ordens e governar. Disso cada um concluirá o que quiser. No caso de um deles se sobressair aos demais por atos de guerra, será mais seguido do que os outros numa campanha de guerra, como o antes mencionado Cunhambebe. Além disso, não eviden- ciei nenhum privilégio entre eles, exceto que os mais jovens devem obe- decer aos mais velhos, de acordo com o que exigem os costumes deles. Se alguém bater ou atirar em outra pessoa de forma a matá-la, os parentes e amigos do morto podem ficar dispostos a matá-lo por sua vez, mas isso raramente ocorre. Os moradores de cada cabana obedecem ao chefe de cada uma delas. O que o chefe ordenar será feito, não por obrigação ou por temor, mas unicamente por boa vontade. Grupos indígenas brasileiros História do Brasil: do início da Colonização às Conjurações 2 37 Religião dos selvagens da América; erros em que são mantidos por certos trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus (LÉRY, 1980 [1578], p. 205) Embora seja aceita universalmente a sentença de Cícero, de que não há povo, por mais bruto, bárbaro ou selvagem que não tenha ideia da existên- cia de Deus, quando considero os nossos tupinambás vejo-me algo emba- raçado em lhe dar razão. Pois além de não ter conhecimento algum do verdadeiro Deus, não adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes, como
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