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MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: PERSPECTIVA SOCIO-HISTÓRICA E NEUROPSICOLÓGICA AULA 2 Prof. Reginaldo Daniel da Silveira 2 CONVERSA INICIAL Perspectivas socio-histórica, econômica e da saúde pública No âmbito socio-histórico, a medicalização corresponde a uma visão mais ampla da medicina, uma busca da incompletude, uma reformulação para reafirmação do status da saúde. Na relação médico-paciente, os dois são sujeitos sociais, quer influenciando, quer influenciados. A perspectiva econômica é atrelada à expansão da indústria farmacêutica, à força da mídia, ao impacto tecnológico e ao jogo em que protagonistas principais ocupam espaços de controle social e nesse movimento criam regras que acabam sendo absorvidas pela saúde pública. TEMA 1 – PERSPECTIVA SOCIO-HISTÓRICA DA MEDICALIZAÇÃO No texto que antecedeu este estudo, Maturo (2012), em um conceito do sociólogo Peter Conrad, diz que a medicalização abrange aspectos da vida humana considerados problemas médicos, ao passo que antes não eram vistos como patológicos. Esse olhar conceitual em Sanches e Amarante (2014) considerando Conrad e os filósofos Ivan Illich e Michel Foucault oferece subsídios para um alcance maior do tema numa discussão socio-histórica. Para os autores, a medicalização em Conrad usa o caráter médico na linguagem, na explicação e no tratamento. Já em Illich, causa a iatrogenia, uma epidemia de doenças. Voltando a Foucault, o filosofo francês vê a medicina no discurso científico de uma sociedade higienizada, em que corpos e comportamentos são apropriados pelo biopoder (Sanches; Amarante, 2014). Há dois sentidos para Foucault na medicalização: um sobre a medicina como prática social do Estado à população, e outro sobre uma medicina indefinida de práticas corporais fora do alcance dela (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Junior, 2014). Em nossa análise, isso faz com que qualquer pessoa possa ser um paciente, objetificando-se como gerador de comportamentos a serem tratados. Estar fora da normalidade pode ocorrer na infância, na gravidez, no parto, na timidez, na tristeza, no sobrepeso, no esquecimento e outros. Para cada “situação problemática”, um diagnóstico surge. É um transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) aqui, um transtorno de estresse pós- traumático (TEPT) ali. Criam-se o estigma, o preconceito, o alvo de atitudes 3 negativas na classe tal, em que pessoas são pintadas com cores de loucura, violência ou inadequados (Who, 2001). A incompletude (histórico-cultural) da medicina precisa da visão externa para se reformular e avançar, enquanto se apropria daquilo que a modifica tornando-se extensão de si mesma. Há dois diferentes mundos em nossas pupilas, diz o pensador russo Mikhail Bakhtin, citado por Freitas (1994). Um deles é a consciência da incompletude, o outro é a alteridade como experiência vital. Só o outro nos narra do nascimento à morte e, por meio dele, marcamos nossos contornos, e nessa pluralidade surge a medicalização. Enfatizamos que o profissional da saúde só existe como ser social, como membro histórico e contextual do seu grupo social. A medicina precisou da cultura e da sociedade para avançar e as usou para marcar território além dos limites dela. Há uma contradição estrutural que afirma e nega ao mesmo tempo: de um lado, a medicina que planeja, organiza, decide e cuida da saúde; de outro, a que diagnostica, prescreve, controla e patologiza. Reiteramos que, ao se desenvolver como ciência curativa, a medicina expandiu seus níveis de cobertura preventiva para eliminar “comportamentos” em grande parte entendidos como “sintomas” e não pertencentes à noção de normalidade. Alguém sintomático é alguém anormal e, portanto, fora da curva do saudável e sujeito aos estigmas de “estar fora”. Na escola, crianças com comportamentos fora da curva (atitudes antissociais, por exemplo) na visão vygotskyana1 ressaltada por Signor, Berberian e Santana (2017) correm o risco de ser vistas como os infratores de leis sociais e, ao contrário de reverter “os comportamentos”, provocam a exclusão social. Diante do neurologista, psiquiatra, clínico geral, psicólogo ou outro profissional da saúde, o usuário é um corpo/mente em seu contexto histórico- social. Entendemos haver aqui uma subjetividade de processos complexos de linguagens e saberes em que o agir/reagir afeta, é afetado, aprende e ensina. Comportamentos “fora da curva” são dimensões socio-históricas e culturais em que as pessoas vivem e se encaixam os dogmas neurológicos, biológicos etc. Para que não fiquemos no modo idem per idem de explicar coisas pela mesma coisa, os próprios pressupostos histórico-sociais nos ajudam a avançar. Bakhtin (citado por Freitas, 1994) diz que, na pluralidade de perspectivas, os 1 Lev Semyonovich Vygotsky foi um psicólogo proponente da psicologia histórico-cultural. 4 olhares externos nos convidam. Nossas limitações capturam e prendem o olhar externo em nossa própria singularidade, sem perceber que também ficamos presos. É nessa direção que devemos caminhar ou, adequando o pensamento de Moyses (2001, citado por Meira, 2012), precisamos romper com a perspectiva individualizada que biologiza (tanto quanto patologiza) e usar a reflexão crítica para compreender o significado de saúde e doença em sua multiplicidade. TEMA 2 – PERSPECTIVA ECONÔMICA DA MEDICALIZAÇÃO Em nossa percepção, a resolução de problemas sociais com medicamentos por meio da publicidade frequente nos meios de comunicação influencia o próprio domínio médico, dando-se a ideia de que remédios sempre são bons, o que não é verdade, até mesmo por haver maior investimento da indústria farmacêutica do que em pesquisas e desenvolvimento (Brasil, 2018). A medicalização está vinculada a uma realidade condicionada por aspectos financeiros. O desejo de prevenir doenças e mortes prematuras provoca uma redefinição da saúde e da doença, com o protagonismo de prescrição a um contingente cada vez maior de pacientes. Não se pode negar as contribuições positivas para a melhoria no atendimento a doenças; boa parte dos avanços em medicamentos não existiria se não fossem as pesquisas patrocinadas. Entretanto, a indústria farmacêutica obtém lucro considerável com o movimento de medicalização sendo, como entendem Birrer e Tokuda (2017), uma de suas principais forças motrizes. Moynihan e Cassels (2005) falam na influência da indústria farmacêutica aos médicos para fazerem cursos com financiamentos na cifra do bilhão de dólares, viagens pagas para campos de golfe, nas quais os profissionais recebem por treinamento sobre medicamentos recentes. Os autores citam ainda três outras informações que firmam o potencial financeiro como mobilizador econômico na medicação: (1) 60% das pesquisas biomédicas nos Estados Unidos são financiadas especialmente por medicamentos da indústria farmacêutica; (2) em 2004, as empresas farmacêuticas pagaram cerca de dois mil dólares por cada metro quadrado na sede do Congresso Anual da American Psychiatric; e (3) a alegação (indústria farmacêutica) de que a depressão é causada por desequilíbrio químico no cérebro, precisando de inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRSs), fez triplicar o uso de Prozac, Paxil e Zoloft, 5 nos anos 1990. Mais de 20 bilhões de dólares foram gerados para os fabricantes (Moynihan; Cassels, 2005). Outro espaço econômico é observável no marketing televisivo em campanhas de empresas farmacêuticas, projetadas para implementar uma percepção pública de doença e de saúde consistente com o portfólio de medicamentos prescritos (Moynihan; Cassels, 2005; Poitras, 2009). Grande parte dos programas no horário nobre de televisão gira em torno de questões médicas. Alguns desses espaços educam o público, e outros, na visão de Birrer e Tokuda (2017), seguem uma tramafictícia para puro entretenimento. Os autores alertam acerca da vulnerabilidade do público que acaba sendo condicionado, principalmente em programas de entrevistas com especialistas, alguns com boa reputação. Médicos titulados impressionam pela linguagem médica, são ouvidos e acreditados. Não há lei contra alegações sem fundamento na televisão, apenas a própria consciência prevalece. Outro ponto é a Internet, em regulamentos reduzidos sobre o que se divulga no ciberespaço. Grande quantidade de material médico atrativo tende a estabelecer juízos medicalizados na mente de quem navega. Pessoas normativamente saudáveis podem ver seus corpos como doentes e são influenciadas pela divulgação midiática de tratamentos médicos eficazes. Poitras (2009) chama a atenção para a história do Viagra e de medicamentos para disfunção erétil que confirma a capacidade do marketing direto ao consumidor, provocando aumento drástico de vendas dos medicamentos prescritos. O autor defende haver interesse em divulgar apenas os resultados favoráveis de ensaios clínicos que ganham grande repercussão em vieses de publicação. Informações negativas são suprimidas, e isso parece atrair mais o interesse dos editores de revistas em publicar ensaios clínicos bem- sucedidos. Para Birrer e Tokuda (2017), as empresas farmacêuticas apoiam pesquisas para provar que seus medicamentos funcionam no “tratamento” e no alívio do sofrimento. A comunidade médica vê os resultados positivos acumulados, e não os ensaios fracassados ocultos e engavetados. Uma olhada em qualquer revista médica comprova esse ponto. De acordo com as divulgações dos autores, muitas vezes encontram-se contribuições das mesmas empresas cujos produtos constituem o objeto da pesquisa. A esse respeito, estudos positivos são altamente desejáveis, mas até negativos são bem-vindos, desde que o distúrbio em estudo retenha a designação de uma condição médica, pois 6 estimulará mais pesquisas e solicitará novas publicações. As propagandas comerciais são pagas pelos fabricantes de medicamentos e muitas vezes estrelam celebridades conhecidas ou médicos reais que podem ou não estar envolvidos na pesquisa e cuja presença aumenta a credibilidade. (Birrer; Tokuda, 2017, p. 49) Outro exemplo lembrado por Poitras (2009) são as “cláusulas focais” nos contratos de investigadores em ensaios clínicos, as quais visam impedir que pesquisadores liberem qualquer informação sobre o ensaio clínico sem a permissão do patrocinador. Casos assim enquadrados podem ser problemáticos se o médico se deparar com situações significativas de segurança. Informações negativas divulgadas enfrentam ameaças de ações civis, perda de apoio para pesquisas, redução ou eliminação de contribuições filantrópicas a instituições e enfrentamento a especialistas externos contratados para refutar a responsabilidade de quem divulga a informação (Poitras, 2009). Birrer e Tokuda (2017) consideram igualmente alarmante a tendência crescente para uso off label2, que ocorre devido à ausência de parâmetros de referência. Nesse sentido, o mercado para determinado produto pode se expandir até o limite da engenhosidade de seus fabricantes. O fato também serve a algumas empresas farmacêuticas que veem na medicalização um modo de ressuscitar produtos com falhas anteriores, além de recuperar seus custos. TEMA 3 – PERSPECTIVA POLÍTICA DA MEDICALIZAÇÃO O conceito moderno de política, de acordo com o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004), é ligado à concepção de poder. Para Cotrim e Fernandes (2016), esse poder político abrange a posse dos meios de coerção social, cujo domínio da força institucional e jurídica garante o controle socialmente coercitivo. A medicalização como processo social é, antes de tudo, um processo político, como reitera Pinto (2015), citando Dias (2010), ao afirmar que muitos problemas, antes de serem sociais, culturais ou ambientais, são essencialmente políticos. Para Foucault, a medicalização alinha-se no plano do biopoder e da biopolítica e está ligada a uma medicina que usa o discurso científico para tomar a sociedade como objeto de higienização, disciplinando os corpos (Sanches; 2 Off label se refere a um medicamento empregado para indicação diferente daquela autorizada pelo órgão regulatório de medicamentos e para a qual não existem bases científicas. É o uso para uma indicação terapêutica não descrita em bula e também em faixa etária diferente da recomendada. Publicações fazem referências às justificativas e consequências da utilização off label, além de propostas para a regulamentação do uso (Paula; Miguel; Miguel, 2011). 7 Amarante, 2014). A visão foucaultiana é de uma medicina que se impõe como ato de autoridade, uma política de rastreamento de doenças na população, estando doente ou não. Minakawa (2016) ressalta que isso vai além do normal e anormal, a medicalização não encontra limites, estendendo-se para outros campos não tradicionais da medicina. Contribui para isso a socialização do indivíduo por várias instituições alinhadas ao poder político, como a publicidade, distribuidora de informações. Foucault vê nessa marcha a criação de um arquipélago médico, no qual os corpos se tornam cúmplices de uma ordem social normativa do cotidiano (Hancock, 2018). O sociólogo Irving Zola vê a medicalização como instituição de controle social associada com questões de gestão da sociedade, especialmente em duas áreas: psiquiatria e saúde pública (Minakawa, 2016). A autora destaca também a percepção de Ivan Illich sobre a cultura medicalizada na dimensão política e social, criando um caráter “macrossociológico”. Illich critica a sociedade industrial das tecnologias médicas na ameaça à saúde provocada pela medicina moderna. O aspecto político se salienta no modo em que acontece o gerenciamento da saúde. Para Ferreira (2015), esse pleito está associado a uma prática governamental direcionada à população por normas, leis e disciplinas pelas quais se transfere a portadores de anormalidades um rol de prescrições médicas e políticas de saúde. O indivíduo nessa condição é limitado a uma ordem imperiosa de ser e pertencer ao Estado. Para Foucault, o poder não é redutível ao Estado, autoridades e leis ou instituições centralizadas. Hancock (2018) reporta que esse poder não se restringe às instituições políticas nem é redutível a elas, em que uma classe pode dominar outra ou em que o poder é simplesmente a reprodução das relações de produção. Portanto, na visão de Foucault, destacada por Hancock, o poder não pode ser entendido como uma falsa consciência produzida pela ideologia ou propaganda; ao contrário, é constitutivo de todas as relações, normas e práticas sociais, trabalhando tanto no dominante quanto no dominado. O poder que vimos em Foucault é refletido em efeitos de influência da medicalização. Por ela se fabricam disciplinas entrecruzadas na educação, aprendizagem, saúde e direitos humanos com vistas à governamentalidade biopolítica (Ferreira, 2015). É relevante considerar nessa autora os efeitos políticos na medicalização como projetos de leis, serviços, convênios e programas de diagnóstico de tratamento de supostos transtornos – por exemplo, 8 dislexia, TDAH e hiperatividade. Em sentido oposto, leis e políticas públicas surgem na defesa dos direitos básicos e visão socio-histórica do indivíduo. O Dossiê sobre a Psicofobia, elaborado pelo Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, também faz notar que a Associação Brasileira de Psiquiatria tem exercido influência na arena política para aprovação dessa lei, a qual defende o tratamento em saúde mental focado no saber psiquiátrico, distanciando-se dos movimentos antimanicomiais que provocaram a reforma psiquiátrica, tentando enfraquecer ou mesmo eliminar a força da Lei n. 10.216/2001, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoasportadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. (Ferreira, 2015, p. 73) TEMA 4 – PERSPECTIVA DA SAÚDE PÚBLICA DA MEDICALIZAÇÃO A medicalização da saúde pública no Brasil leva em conta como fatores principais a centralização do modelo biomédico, a expansão dos serviços de diagnósticos, o domínio da indústria farmacêutica, as políticas de saúde desconsiderando o usuário e as dificuldades no setor de vigilância sanitária. Tesser (2008) cita Nye (2003) para explicar que ao longo do tempo as novas técnicas terapêuticas na saúde pública se expandiram e incorporaram diferentes inflexões de caráter social, econômico ou existencial, criando em nossa análise o atual estado biomédico pelo reducionismo mecanicista. A Organização Panamericana de Saúde (Opas) recomenda que os países tenham mais de 40% de médicos generalistas. No Brasil, segundo Cardoso (2014), estudos do Conselho Federal de Medicina (CFM) apontam que apenas 30% dos médicos especialistas são generalistas em áreas como medicina familiar, comunitária e outras. Outro aspecto lembrado trata de não se concentrar o foco numa só pessoa, num só saber. Se o médico é levado a medicalizar os problemas apresentados, outros profissionais, em contato com o contexto de vida dos usuários (agentes comunitários, técnicos de enfermagem etc.), possuem potencial para abordar de forma mais ampla os problemas. O trabalho sobre a vida familiar e social tem o poder de desmedicalizar o diagnóstico e relativizar a abordagem biologicista em certo nível. Dois fatores são lembrados na medicalização da saúde pública no século XX, conforme Martins (2014): o grande crescimento da medicina nos exames laboratoriais, com destaque para os de imagem como ultrassonografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética; e a expansão vertiginosa de estabelecimentos de diagnósticos (32,9% entre 2005 e 2009). Citem-se aqui o fluxo de distribuição de renda do brasileiro, a regulamentação econômica 9 aplicada às fontes pagadoras e a intensa incorporação de tecnologia aos serviços de saúde (fenômeno mundial). Esses dados explicam a expansão do segmento de medicina diagnóstica (Martins, 2014) e favorecem a medicalização. Em 1988, criou-se no Brasil o Sistema Único de Saúde (SUS), concebido como política do Estado Democrático de Bem-Estar e que, embora não alinhado à tendência neoliberal brasileira, buscou ampliar o acesso ao cuidado com a saúde. Acompanhando a expansão da medicina e suas conexões (indústria farmacêutica, laboratórios, operadoras de planos de saúde e outros), o SUS aumentou sua cobertura em serviços de atenção à saúde como: Programa Saúde da Família (PSF), Programa Nacional de Imunização (PNI), Programa Mais Médicos (PMM), Programa Farmácia Popular (PFP), Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e outros. Nesse fluxo de crescimento pela nossa ótica, o SUS se depara com uma farmacologia de racionalidade biomédica que promove a medicalização como resposta a impasses subjetivos e sociais. A impulsão de remédios atende a qualquer sinal de fragilidade. Agências de publicidade especializadas são contratadas, novos distúrbios são apresentados, bem como estratégias para o consumo de remédios. O que falamos aqui está presente na literatura vigente sobre o tema. A questão de vigilância sanitária é evolutiva. O histórico brasileiro nessa área, já próximo ao século atual, acumulou eventos negativos como a falsificação, entre 1996 e 1998, de 172 registros pelo Ministério da Saúde em medicamentos para tratamento de hormônios e HIV. Silva, Costa e Lucchese (2018) citam ainda: óbitos de idosos na Clínica Genoveva, em 1996, no Rio de Janeiro (RJ); 82 registros de problemas com o uso do soro Ringer Lactato em 32 óbitos na rede privada de Recife; e o caso da “pílula de farinha” em 1998, com o anticoncepcional Microvlar (PE) (Silva; Costa; Lucchese, 2018). Não obstante manter-se em prontidão para combater doenças3, a saúde pública no Brasil segue os mesmos vieses críticos, usuais nos processos de medicalização. Mudanças socioculturais da realidade vigente transformam e potencializam sofrimentos e dores. Vivemos sob diagnósticos, prescrições, patologias e controle. Isso, em nossa concepção, vai do diagnóstico de um comportamento no cotidiano a um prognóstico de como ficaremos bem se 3 A distribuição de kits para diagnóstico do coronavírus em todo o território nacional (março de 2020) é um exemplo. 10 fizermos esse ou aquele procedimento médico estético. Não é à toa que o Brasil é o terceiro país do mundo em número de cirurgias plásticas, apenas abaixo de Estados Unidos e México. Os dados de Poli Neto e Caponi (2007) revelam que em 2003 houve 400 mil intervenções, e metade delas meramente estéticas – entre estas, 40% de lipoaspiração, 30% de mamas e 20% de procedimentos faciais. Tentativas foram feitas para mudar a tradição medicalizante na saúde pública brasileira; um exemplo do PSF, criando uma tensão necessária entre a biomedicina e abordagens mais extremadas. Na visão de Tesser (2008), porém, não houve uma reorganização na formação de especialistas médicos e enfermeiros em escala suficiente para se sustentar. Equipes foram levadas a tratar programas de saúde com protocolos diagnósticos e terapêuticos definidos, sem recomendações sobre como lidar com a demanda espontânea que busca os serviços de atenção básica ou como responder a imprevistos reiterados e inevitáveis sobre como cuidar da saúde. Ante um mal-estar qualquer, há uma tendência natural em se buscar atendimento, e nesse sentido a responsabilidade de diagnose e de terapêutica cai na mão do médico por ser ele a base da competência. Contudo, a escuta e a orientação também são competências de outros profissionais. Nesse seguimento, Tesser (2008) apresenta um olhar na busca de desmedicalizar, usando-se os serviços de acolhimento do Atendimento Primário de Saúde (APS). Problemas de saúde medicalizados que procuram os serviços de saúde influenciados pela mídia, cultura de consumo, medo ou insegurança podem ser menos medicalizantes conforme seja a sensibilidade do usuário e do profissional não médico em relação ao problema tratado a base de diagnósticos, prescrições, patologias e controle. Exemplos são a Clínica Ampliada, o Método Clínico Centrado na Pessoa e a Prevenção Quaternária, modelos de superação do modelo biomédico e do reducionismo biológico pela ampliação da análise e da intervenção biopsicossocial (Cardoso, 2014). TEMA 5 – O GERENCIAMENTO DE PSICOFÁRMACOS PELA ANVISA A falsificação de medicamentos no Brasil teve um momento crítico, em que remédios para câncer de crianças eram misturados à água. A investigação do aumento considerável de mortes em curto espaço de tempo mostrou que remédios comprados pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) em licitações 11 públicas estavam dentro de um esquema nacional de falsificação de medicamentos em todo o país (Mathias, 2019). Como resposta, foi criada em 1999 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A ela coube a segurança sanitária de produtos e serviços de saúde e a fiscalização da produção e venda de medicamentos, com poder para tirá-los do mercado e multar laboratórios. Além disso, se tornou responsável por regular ações na área de alimentos e publicidade sobre eles (Mathias, 2019). No papel, a Anvisa parece mais forte do que o sistema de vigilância que a precedeu, não há mais um responsável único, e sim uma diretoria colegiada. Sem indicações únicas do ministro, o Executivo manda nomes para o Senado aprovar ou não. Aparentemente, existe imunidade às pressões, mas isso não acontece. A realidade destacada (Mathias, 2019) é de que se o Senado aprova o dirigente e não só a Anvisa já há filtro político; se o Executivo indica alguém que não seja, por exemplo, do interesse da indústriafarmacêutica ou outra qualquer em que inexista o interesse capital, ele não passa no Senado e o jogo se estende. A “imunidade” na Anvisa e nos demais setores parece não ter forças para se livrar de denúncias envolvendo esquema de lobbies no Ministério da Saúde. Foi o que aconteceu no episódio envolvendo Alexandre Paes dos Santos, conhecido como APS e que ocupou um longo tempo de investigação sob suspeita de ter tentado influenciar a decisão de compra do remédio Gilvec pelo Ministério (Folha de São Paulo, 2001). Críticas continuam existindo, como a regulação da propaganda de alimentos de interesse para as grandes corporações os anorexígenos que envolvem questões de interesse da saúde pública e que têm beneficiado o interesse do setor regulado, e não o interesse sanitário (Mathias, 2019). Alguns dados divulgados no Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (2015) revelam como os psicofármacos estão sendo consumidos pela população no Brasil. O cloridrato de metilfenidato, conhecido como Ritalina, indicado para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e usado no tratamento de crianças, é questionado e visto como um medicamento de baixa qualidade, curto período de seguimento e pouca capacidade de generalização, embora tenha o consumo cada vez mais crescente no Brasil e no mundo. O caráter medicalizante da Ritalina verifica-se ao se observar sua utilização reduzida no recesso escolar e o crescimento no ano letivo com a 12 iminência de reprovação escolar (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2015). O Fórum demonstrou apreensão com estimulantes do sistema nervoso. Se a Ritalina teve ligeira queda no segundo semestre de 2013, produtos similares como o Concerta e o Venvanse aumentaram o consumo. Por outro lado, a ausência de dados de venda do Strattera é preocupante, especialmente depois do alerta de geração de pensamentos suicidas por um Comitê da Food and Drug Administration (FDA), órgão que controla drogas e alimentos nos Estados Unidos (O Globo, 2012). Além disso, o Strattera é um medicamento que substitui outros que são controlados, uma vez que não necessita de talonário especial para sua prescrição (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2015). Uma última recomendação do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade quanto ao consumo de remédios no Brasil diz respeito aos riscos do uso abusivo do Clonazepan. Estudos apontam que o uso prolongado de benzodiazepínicos causam demência e Síndrome de Alzheimer. NA PRÁTICA Em termos de saúde pública, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), 44,9% dos médicos brasileiros não são especialistas, e, dos que o são, apenas 30% possuem especialidade em áreas generalistas (medicina familiar comunitária, clínica médica, ginecologia, obstetrícia e pediatria). A referência de Cardoso (2014) mostra que, na prática, esses profissionais alocados para atenção primária executam uma intervenção médica episódica, centrada no diagnóstico e nas tecnologias médicas, sem que haja o necessário crivo e dedicação ao cuidado. Essa desigualdade se mostra acentuada na comparação com planos de saúde (30% dos brasileiros) que têm à disposição quatro vezes mais médicos. FINALIZANDO Do ponto de vista socio-histórico, podemos sintetizar que a medicalização como determinante de práticas médicas reducionistas e biologistas não se desprende do seu objeto, a cultura medicalizada (que envolve na essência o indivíduo tratado), e é por ela também modificada. Há, sem dúvida, um contexto 13 em que as dimensões histórica, social e cultural são consideradas na elaboração do espectro vigente da relação ser humano e social. A partir do ponto em que estudamos como se dá essa construção, observando, investigando pesquisadores da área por meio de diferentes perspectivas e situações, passamos a mudar nossas significações e nos tornamos passíveis de interferir e mudar rumos inadequados da existência humana. 14 REFERÊNCIAS ANVISA surgiu em 99 para fiscalizar medicamentos. Folha de São Paulo, 27 nov. 2001. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u27057.shtml>. Acesso em: 03 abr. 2020. BIRRER, R. B.; TOKUDA, Y. Medicalização: uma perspectiva histórica. Journal of General and Family Medicine, v. 18, n. 2, p. 48-51, abr. 2017. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5689393/>. Acesso em: 03 abr. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Uso de medicamentos e medicalização da vida: recomendações e estratégias. 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