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Aula 7 - DELITO COMO AÇÃO CULPÁVEL - DIREITO PENAL

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DELITO COMO AÇÃO CULPÁVEL
1. CONCEITO
Como observado, o delito, analiticamente, é a ação ou a omissão típica, ilícita e culpável. Isso, vale dizer: uma ação adequada a um tipo de injusto, não justificada e censurável ao agente.
A noção de culpabilidade põe em evidência direta e necessária a relação entre a ordem normativa jurídica e o homem – ser igualmente digno e livre –, pessoa única e irrepetível.
Nesse sentido, há de ser respeitada, sempre, a condição do homem como pessoa, como ser responsável, centro de todo o Direito.
A culpabilidade, em termos jurídico-penais, pode ser conceituada como a reprovação pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita em determinadas circunstâncias em que se podia atuar conforme as exigências do ordenamento jurídico.
O juízo de reprovação ou censura jurídica tem como pressuposto necessário a evitabilidade individual do fato, considerado in concreto. Isso significa o reconhecimento do homem individualmente, sem nenhuma exceção.
Assim, não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude, embora possa existir ação típica e ilícita inculpável.
No exame da culpabilidade, devem ser levados em consideração, além de todos os elementos objetivos e subjetivos da conduta típica e ilícita realizada, também, suas circunstâncias e aspectos relativos à autoria.
A culpabilidade constitui o fundamento e o limite da pena.1 Com isso, não se quer dizer que a culpabilidade seja o único fundamento da pena.
O que não se pode admitir é que a pena seja fundamentada apenas na finalidade de prevenção (geral/especial), visto que tal postura implica utilizar o homem como instrumento para a manutenção da ordem social, de cunho meramente utilitarista, e, como tal, enseja a violação do princípio constitucional da dignidade humana.2
Diante da polêmica determinismo/indeterminismo, o que se enfatiza é que a ciência do Direito Penal recorre na atualidade predominantemente à cláusula salvadora, segundo a qual tanto o determinismo quanto o indeterminismo não podem ser comprovados, e, portanto, o sistema jurídico-penal deve ser legitimado, prescindindo de uma verificação científica empírica do livre-arbítrio humano.3 Já que, aliás, esse problema atinge qualquer teoria da culpabilidade.
Na verdade, o que realmente importa na matéria vem a ser a capacidade de autodeterminação do ser humano de se ajustar a determinados critérios normativos.
Em resumo, resta evidente que o princípio de culpabilidade e a própria noção de culpabilidade enquanto categoria jurídico-penal são conquistas irrenunciáveis do Direito Penal moderno, que tem no homem integrado socialmente seu fundamento maior.
2. EVOLUÇÃO DOGMÁTICA DA CULPABILIDADE
A evolução das várias concepções dogmáticas da culpabilidade4 está relacionada com os conceitos de ação e de delito (clássico, neoclássico, finalista e normativista). Podem ser assim sintetizadas:
a) Teoria psicológica – essa teoria é produto do positivismo científico (causalismo naturalista) imperante no final do Século XIX, quando o paradigma de ciência é a causal-explicativa, ciências naturais e sociais, impulsionadas pelas teorias de Darwin, Spencer e Comte.
Na Itália, desenvolveu-se a Escola Positiva, de cunho essencialmente antropossociológico (criminológico), ao passo que, na Alemanha, construiu-se o primeiro sistema teórico-jurídico de delito, baseado no modelo naturalista (sistema Liszt-Beling). Neste último, a culpabilidade vem a ser a relação subjetiva ou psíquica entre o autor e o fato. Em sentido estrito, significa “tão somente a relação subjetiva entre o ato e seu autor”.5
São elementos ou graus de culpabilidade: a) imputabilidade; b) dolo ou culpa (espécies ou modalidades de culpabilidade).
Em síntese, a teoria psicológica ou subjetiva reunia os elementos subjetivos do delito na culpabilidade, conforme uma orientação naturalista, e considerava a imputabilidade como seu pressuposto, enquanto não afetava a relação psíquica entre autor e fato.
As dificuldades dessa teoria acabaram por fomentar o surgimento das orientações normativas, que passaram a entender a culpabilidade como integrada por valorações. Dessa forma, a culpabilidade converte-se em um juízo de valor que expressa uma reprovação.6
b) Teorias normativas: convém destacar que não há uma teoria normativa, mas, sim, uma variedade de teorias normativas da culpabilidade. Dentro de uma perspectiva metodológica, assinalam-se três períodos de sua evolução: o primeiro abrange o final do século XIX até 1915, onde se destacam a presença de várias correntes metodológicas; o segundo envolve o aparecimento da orientação neokantiana penal (1920-1930); e o terceiro período é representado pela polêmica entre a concepção neokantiana e as outras correntes de pensamento (finalismo, por exemplo).7
b.1) Teoria psicológico-normativa ou normativa complexa – a forte crítica dirigida à teoria precedente pelo pensamento neokantiano, especialmente da Escola de Baden, deu lugar ao nascimento da corrente normativa da culpabilidade.
O neokantismo, valorativo e finalista, propiciou-lhe uma nova dimensão. Inicialmente, Reinhard von Frank (1907), James Goldschmidt (1913) e Berthold Freudenthal (1922) lançaram as bases dessa concepção, que foi posteriormente desenvolvida, sobretudo, por Edmund Mezger (1932).
O primeiro, referindo-se ao dolo, no caso de estado de necessidade exculpante, salientou que a culpabilidade não se esgotava no nexo psicológico entre o agente e o resultado. Acrescenta, então, à imputabilidade, ao dolo e à culpa, a normalidade e concomitância das circunstâncias (begleitenden Umstände) nas quais o agente praticou conduta delitiva.
A culpabilidade é reprovabilidade, como juízo de valor sobre o fato em relação ao seu autor, diante das circunstâncias reais em que agiu.
Na sequência, Goldschmidt afirma que a culpabilidade não é mera relação psíquica, mas uma valoração do próprio fato típico. Assim, não é o fato psicológico em si, mas sua valoração de acordo com a exigência normativa.8
De seu lado, Freudenthal contribui para aperfeiçoar essa ideia, agregando que a reprovabilidade da conduta depende da possibilidade de exigir-se do agente comportamento diverso do previsto na norma – o poder atuar de outro modo. A inexigibilidade de outra conduta exclui a reprovação, servindo de base para exclusão de toda culpabilidade.
Finalmente, obteve essa construção dogmática o seu auge com os estudos de Mezger. Dando especial ênfase aos aspectos normativos, em oposição a uma posição sociológica, a culpabilidade se apresenta para este último autor como uma situação fática e um juízo axiológico sobre ela versado.
Conceitua a culpabilidade como o “conjunto dos pressupostos da pena que fundamentam, diante do autor, a reprovabilidade pessoal da conduta antijurídica. A ação aparece, por isso, como expressão juridicamente desaprovada da personalidade do agente”.9
A culpabilidade surge, então, como vínculo psicológico e como reprovabilidade por ausência de causas de inexigibilidade de outra conduta. São seus elementos: a) imputabilidade; b) dolo ou culpa (formas de culpabilidade); c) exigibilidade de conduta diversa.
O dolo contém a consciência da ilicitude (elemento normativo – chamado de dolus malus). A imputabilidade (capacidade de culpabilidade) não aparece como pressuposto, mas sim como elemento da culpabilidade, e a inexigibilidade de outra conduta é causa de sua exclusão.
b.2) Teoria normativa pura10 ou finalista – metodologicamente refuta-se aqui as teses anteriores (positivista e neokantista), para afirmar-se uma concepção ontofenomenológica. Fruto da doutrina finalista da ação, criada por Welzel e seguida por Maurach, Kaufmann, Stratenwerth, Niese, Cerezo Mir, e tantos outros.
A culpabilidade é juízo de censura pela realização do injusto típico (quando podia o autor ter atuado de outro modo).
Culpabilidade, enuncia Welzel, “é reprovabilidade de decisão da vontade”.11 Isso quer dizer: o autor podia adotar em vez de uma resolução de vontade ilícita, tanto dirigida à realização dolosa do tipo como quando não se aplica a direção finalmínima exigida, uma decisão ou resolução voluntária conforme a norma. É sempre culpabilidade de vontade, só podendo ser culpável o indivíduo dotado de vontade livre (poder de agir voluntariamente).12 Exatamente nesse poder de agir de outro modo é que reside a essência da culpabilidade.
Advirta-se que a culpabilidade é “uma qualidade valorativa negativa da vontade de ação e não a vontade em si mesma”.13 Daí a incorreção das outras doutrinas de que a culpabilidade tenha caráter subjetivo ou psicológico, “um estado anímico pode ser portador de uma culpabilidade maior ou menor, mas não pode ser uma culpabilidade (maior ou menor)”.14
Nessa perspectiva, excluem-se do conceito de culpabilidade a maioria dos elementos subjetivos, anímicos ou psicológicos – integrantes do tipo de injusto –, conservando-se fundamentalmente o critério da censurabilidade ou reprovabilidade (elemento valorativo).
Esse juízo de reprovação se assenta sobre a imputabilidade, a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
A imputabilidade, como pressuposto existencial da reprovabilidade, existe ou não de modo geral na situação concreta, independentemente da conduta lícita ou não do agente, e a reprovabilidade diz respeito à conduta ilícita real, de modo que seus elementos constitutivos são todos aqueles necessários para que o autor, imputável, tivesse podido adotar, em relação ao fato concreto, uma resolução de vontade conforme ao Direito em lugar de uma vontade antijurídica.
Dado que a culpabilidade individual não é outra coisa senão a limitação (concreção) da capacidade de culpabilidade em relação ao fato concreto, a censurabilidade é determinada pelos mesmos elementos, cuja ocorrência com caráter geral constitua a capacidade de culpabilidade: o autor deve ter conhecido o injusto do fato, ou pelo menos deve tê-lo podido conhecer, e deve ter podido decidir-se por uma conduta conforme ao Direito em virtude desse conhecimento (real ou possível) do injusto.
A culpabilidade concreta (reprovabilidade/censurabilidade) está, pois, constituída (paralelamente à capacidade geral de culpabilidade) por elementos intelectuais e volitivos.15
O elemento intelectual da reprovabilidade vem a ser o conhecimento ou cognoscibilidade da realização típica e da ilicitude, e o elemento volitivo é a não exigibilidade de obediência ao Direito (elemento normativo).
A grande crítica à postura de Welzel é o fato de manter ele a formação da vontade como objeto do juízo de culpabilidade.
Tem-se, como elementos da culpabilidade: a) imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude; c) exigibilidade de conduta diversa.
Essa concepção decorrente do finalismo, ressalte-se, entende a culpabilidade basicamente como juízo axiológico, ainda que conserve um elemento mínimo de ordem psicológica (último elemento psicológico – “mínimo motivo real de dúvida de que se atuou contrariamente ao Direito”).16
O dolo (dolo natural) e a culpa integram, respectivamente, os tipos de injusto doloso e culposo.
b.3) Teorias normativo-preventivas da culpabilidade – o conceito de culpabilidade normativa, baseado na liberdade humana (possibilidade de atuar de outro modo ou mesmo capacidade de motivação conforme a norma) – como, também, seu oposto determinista –, têm sido alvo de crítica pelo fato de serem indemonstráveis empiricamente.
Em razão disso, a doutrina tem procurado encontrar vias alternativas para a matéria (culpabilidade e/ou seu fundamento), que vão desde a alteração de sua intitulação e conteúdo, passando por sua irrelevância jurídico-penal, até sua substituição por outra categoria jurídica.
Assim, no âmbito das correntes preventivas da culpabilidade, deve ser mencionada a teoria da motivação normativa (teoria social da culpabilidade), que tem como característica básica fundar a culpabilidade não na liberdade de autodeterminação, mas na capacidade de motivação normativa do sujeito. Ou seja: capacidade de o sujeito ser motivado pela prescrição normativa penal, conforme um homem médio na mesma situação.
A respeito dessa concepção, vale transcrever a veemente e definitiva assertiva, versando sobre sua falsidade: “A culpabilidade é, se entendida no sentido do conceito social sem base ontológica, tão somente uma imputação de si mesma, um conceito totalmente carente de conteúdo, que não responderia à pergunta acerca da justificação (legitimação) da pena, mas que só a confundiria através de um círculo vicioso”.17
Nessa perspectiva, aponta-se, por exemplo, a concepção de culpabilidade de Mir Puig, denominada imputação pessoal, como sendo a capacidade de motivação normal pelas normas jurídicas. Os inimputáveis e os que estejam em situação de inexigibilidade de outra conduta não têm essa capacidade.18
De modo algo similar, Roxin considera a culpabilidade inserida num contexto mais amplo chamado responsabilidade (postura integradora), formada pela culpabilidade e por critérios de prevenção (geral e especial). Culpabilidade significa atuação ilícita, embora existente a motivabilidade/dirigibilidade normativa.
Há culpabilidade quando o agente está, no momento do fato, receptivo ao apelo normativo, que, segundo seu estado de saúde mental, a decisão conforme a norma era-lhe motivável. Afirma-se que isso não quer dizer que o agente poderia agir de outro modo, mas, sim, que, quando existente uma capacidade de controle intacta e com ela a motivabilidade normativa, “se lhe trata como livre”.
A culpabilidade – capacidade de motivação pela norma – é de natureza mista empírico-normativa. A responsabilidade, como categoria político-criminal, é definida como uma valoração, posterior à ilicitude, para tornar penalmente responsável o agente (para atribuir-lhe responsabilidade). Para a imposição da pena, além da culpabilidade, deve estar comprovada, ainda, sua necessidade.19
Redefine-se, então, a culpabilidade, com base nos fins do Direito Penal. A imputabilidade é conceituada como capacidade de motivação; a consciência da ilicitude é requisito da motivação e a exigibilidade de outra conduta se funda na necessidade de motivação.
Há, ainda, quem entenda que a culpabilidade, no sentido material, tem fundamento na função motivadora individual da norma penal, isto é, as normas cumprem uma função motivadora de condutas adequadas. A culpabilidade, com isso, relaciona-se estreitamente com os fins da pena – prevenção especial.20
A respeito dessa tese, adverte-se, com propriedade, que a afirmação da culpabilidade tão somente quando ocorra uma relação entre a norma penal e o infrator em virtude da qual essa é interiorizada, motivando o indivíduo, expressa mais um pressuposto da culpabilidade de que sua própria e verdadeira noção.21 Essa observação vale de certa forma para todas as teorias motivacionais.
Por sua vez, Jakobs prega a irrelevância da culpabilidade como categoria dogmática.22 No contexto de uma teoria sistêmica, busca-se determinar a culpabilidade a partir dos fins da pena, entendida como manutenção da ordem jurídica (garantia de expectativas normativas). Afirma-se a culpabilidade, como responsabilidade, quando existe um déficit de motivação jurídica dominante em um comportamento ilícito. A culpabilidade significa falta de fidelidade ao Direito. Para ele, a finalidade da pena é manter a confiança geral na norma, e, assim, estabilizar o ordenamento. O conceito de culpabilidade, segundo o autor citado, deve ser configurado funcionalmente, isto é, como um conceito que produz um resultado de regulação, de acordo com determinados princípios – requisitos do fim da pena –, para uma sociedade de estrutura determinada. Desse modo, tal conceito varia segundo a função que desempenhe no sentido do fim da pena e da constituição da sociedade. É, pura e simplesmente, a funcionalização total da culpabilidade.
Não se pode aceitar esse conceito – descritivo e formal – de culpabilidade, que transforma a consciência/fim da pessoa humana na finalidade do sistema social, além de implicar uma inversão lógica em que o fim da pena substitui seu pressuposto.
Aliás, este último defeito está presente,em maior ou menor escala, nas teses funcionalistas. Essa concepção poderia propiciar o desenvolvimento de uma estrutura quase universal e arbitrariamente adaptável, mas a função de garantia e de proteção do conceito de culpabilidade se perde totalmente.23
Em síntese, a culpabilidade tem na liberdade do homem de poder atuar de modo diverso seu fundamento ontológico (estrutura lógico-objetiva), como dado real e inerente à sua própria condição de pessoa humana livre e responsável. É, pois, reprovabilidade da vontade final.
3. CONCEITO MATERIAL DE CULPABILIDADE
Em princípio, o conceito de culpabilidade, como censurabilidade pessoal da ação ou omissão típica e ilícita, é de natureza formal, visto que não indica seu fundamento. Este último está, segundo Welzel, na capacidade do autor de agir de outro modo.
Tem sido alvo de discussão na ciência do Direito Penal a problemática do conceito substancial de culpabilidade, muito embora haja exagero24 sobre a impossibilidade de comprovação empírica de uma pessoa, em uma situação concreta, poder ou não atuar de maneira diversa.
Cabe indagar, também, se realmente a ciência jurídico-penal necessita chegar a tal empirismo para solucionar a contento os casos concretos que se lhe apresentam.
Para Jescheck, o conceito material de culpabilidade se apresenta com caráter de postulado e pode se basear em exigências éticas, de segurança pública, na específica direção dos impulsos humanos ou nos fins da pena.25
Assume-se aqui, como ponto de partida, o conceito empírico-normativo de culpabilidade conforme a Constituição, formulado por Cerezo Mir.26
Nesse sentido, o conceito material de culpabilidade deve ser coerente com o conceito de ser humano que inspira o texto constitucional.
A Constituição brasileira se funda em uma concepção do homem como pessoa, como ser livre, digno e responsável, capaz de autodeterminação segundo critérios normativos. Confirma-se por assim dizer a autonomia ética do homem.
Proclama-se o Estado Democrático de Direito, que tem por fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, CF), com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos, e regida, entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, bem como da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade (arts. 3.º, 4.º e 5.º, caput, CF).
O conceito de liberdade aqui manejado vem a ser um conceito normativo, e não metafísico, conforme a Constituição. Nada mais claro. No Estado de Direito democrático e social, o predomínio do ser humano deve ser indiscutível; há de ser sempre o fim principal de toda atividade estatal.27
Trata-se de alicerçar, em termos substanciais, a culpabilidade no reconhecimento da liberdade e dignidade da pessoa humana, considerando-a como ser livre e responsável, valores imanentes à sociedade democrática e ao texto constitucional brasileiro.
O homem é um ser dotado de capacidade conforme valores e fins. A concepção da culpabilidade, como capacidade de agir de outro modo, vem fundamentada não só por exigências normativas – conceito de homem que inspira a normativa constitucional –, senão também pela concepção do ser humano da moderna Antropologia e Psicologia comparadas, assim, também, pelo reconhecimento da liberdade da vontade na realidade social, objeto de regulação jurídica.28
Além disso, sempre que se possa comprovar a impossibilidade de agir de modo diverso, deve ficar, em princípio, excluída a culpabilidade.
Convém mencionar que há posições isoladas, decorrentes de estudos neurocientíficos, que confrontam esse conceito, em razão da dificuldade de se comprovar na prática a liberdade de decisão do ser humano.
No campo das neurociências, estudos decorrentes do mapeamento cerebral demonstraram que a origem das ações humanas está em uma atividade cerebral anterior à tomada de consciência e vontade de sua realização29. Em outras palavras, isso significa que no momento em que o indivíduo pratica uma conduta, primeiro ele decide fazê-la, para depois tomar consciência e ter vontade de realização.
Todavia, a revelação desse mecanismo não impede, em absoluto, a consideração do homem como ser livre e responsável, uma vez que essa atividade cerebral prévia da tomada de decisão não vem necessariamente condicionada por fatores causais deterministas. Desse modo, se, por um lado, não se comprova empiricamente a existência da liberdade, do mesmo mal padece a aferição do determinismo.
Por isso, deve-se insistir na concepção de culpabilidade compatível com a própria dignidade humana e com a verificação de que a própria norma penal só tem razão de existir se o indivíduo, seu destinatário, é juridicamente considerado livre para aderir ao seu comando ou violá-la, submetendo-se à consequência jurídica correspondente. Ademais, a lei penal é taxativa ao exigir a imputabilidade pessoal como base da responsabilidade penal.
Por último, cabe acrescentar que a culpabilidade é sempre o fundamento e o limite da pena,30 e como juízo de reprovação constitui tão somente um dos fundamentos da pena, que, além disso, deve ser justa e necessária.31
4. ELEMENTOS DA CULPABILIDADE
4.1. Imputabilidade
É a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde pelos seus atos).
Costuma ser definida como o “conjunto das condições de maturidade e sanidade mental que permitem ao agente conhecer o caráter ilícito do seu ato e determinar-se de acordo com esse entendimento”.32
Essa capacidade possui, logo, dois aspectos: cognoscitivo ou intelectivo (capacidade de compreender a ilicitude do fato); e volitivo ou de determinação da vontade (atuar conforme essa compreensão).
Contrario sensu, o Código Penal define os inimputáveis como aqueles que carecem de capacidade de culpabilidade: quando, por anomalia mental, são incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 26, caput, CP).
Em sede doutrinária, são apontados sobre a matéria três sistemas ou método principais:
a) Sistema biológico ou etiológico – leva em consideração a doença mental, enquanto patologia clínica, ou seja, o estado anormal do agente. Seu protótipo vem a ser o artigo 64 do Código Penal francês de 1810: “Não há crime nem delito, quando o agente estiver em estado de demência ao tempo da ação”;
b) Sistema psicológico ou psiquiátrico – considera apenas as condições psicológicas do agente à época do fato. Diz respeito apenas às consequências psicológicas dos estados anormais do agente;
c) Sistema biopsicológico ou misto – atende tanto às bases biológicas que produzem a inimputabilidade como às suas consequências na vida psicológica ou anímica do agente. Resulta, assim, da combinação dos anteriores: exige, de um lado, a presença de anomalias mentais, e, de outro, a completa incapacidade de entendimento (fórmula do art. 26, CP). É o acolhido, na atualidade, pela maioria das legislações penais.
4.1.1. Causas de exclusão da imputabilidade
A imputabilidade pode ser excluída em determinadas hipóteses – causas excludentes de imputabilidade ou causas de inimputabilidade:
a) doença mental (ex.: paralisia cerebral progressiva, esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, epilepsia grave, demência senil, paranoia). É uma alteração mórbida da saúde mental, independentemente de sua origem;
b) desenvolvimento mental incompleto ou retardado. O primeiro consiste na condição em que o indivíduo não se desenvolve intelectualmente de forma regular, de acordo com os processos de socialização e integração normais da civilização. São comumente apontados como exemplos de desenvolvimento mental incompleto o surdo-mudo não educado e o silvícola não integrado. Por não se tratar de condição patológica, o desenvolvimento mental incompleto, sobretudo dos silvícolas não integrados, geralmente é comprovado por parecer antropológico, e não exame médico-legal.33
Por sua vez, o desenvolvimento mental retardado compreende aschamadas oligofrenias – idiotia, imbecilidade, debilidade mental – que, em psiquiatria, também são chamadas de causas de retardo mental, uma condição não classificada como doença, mas como “o resultado de um processo patológico no cérebro, caracterizado por limitações nas funções intelectual e adaptativa. Sua causa em geral não é identificada, e as consequências tornam-se evidentes pela dificuldade no funcionamento intelectual e nas habilidades da vida”.34
c) menoridade – menores de dezoito anos – consagra-se aqui o princípio da inimputabilidade absoluta por presunção (art. 27, CP), com fulcro no critério biológico da idade do agente, e que, a partir da Carta de 1988, tem assento constitucional (art. 228, CF). Porém, ficam os menores de 18 anos sujeitos às disposições específicas do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104, Lei 8.069/1990). Esse diploma legal prevê, no caso de ato infracional (crime ou contravenção penal) praticado por criança ou adolescente, medidas de proteção genéricas (art. 98, ECA) e específicas (art. 101, ECA) e, ainda, para o adolescente, medidas socioeducativas (art. 112, ECA). Se o menor já tem 18 anos completos, mas ainda não atingiu os 21, faz jus à atenuação da pena (art. 65, I, 1.ª parte, CP) e à redução do prazo prescricional (art. 115, CP);
d) embriaguez acidental completa (art. 28, II, §1.º, CP) e embriaguez patológica completa (art. 26, caput, CP). Ao agente inimputável deve ser aplicada medida de segurança – internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e tratamento ambulatorial (arts. 96 e 97, CP).
Por outro lado, a denominada imputabilidade diminuída ou atenuada – redução da capacidade de culpabilidade – constitui uma área intermediária, estado limítrofe, terreno neutro, situada entre a perfeita saúde mental e a insanidade, em virtude da dificuldade existente muitas vezes em ser traçada uma linha precisa de demarcação.
Assim, quando tratar-se de perturbação da saúde mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que apenas reduzem (não era inteiramente capaz – art. 26, parágrafo único, CP) a capacidade do agente de conhecer o caráter ilícito de seu comportamento ou de determinar-se conforme esse entendimento, a responsabilidade penal será obrigatoriamente diminuída de forma proporcional à redução de sua capacidade de culpabilidade (v.g., certas oligofrenias, psicoses, psicopatias, neuroses).
É uma causa geral de diminuição de pena. Contudo, em razão do sistema vicariante – para os semi-imputáveis –, os efeitos da semi-imputabilidade são a diminuição da pena ou sua substituição por medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial), caso o condenado necessite de tratamento curativo (art. 98, CP).
Nessa zona cinzenta ou fronteiriça estão “os estados atenuados, incipientes e residuais de psicose, certos graus de oligofrenias e em grande parte as chamadas personalidades psicopáticas, e os transtornos mentais transitórios quando afetam, sem excluir, a capacidade de entender e querer”.35
A possibilidade de submeter indivíduos situados nesses estados atenuados de transtorno mental a uma pena privativa de liberdade, ainda que diminuída, sofre algumas críticas justamente porque, dentro do sistema prisional, eles não se equiparam aos demais condenados, e sempre necessitam de alguma forma de tratamento curativo, não propiciado no contexto em que são inseridos.36
Os denominados estados emotivos ou passionais, perturbações da consciência, podem ser assim conceituados: 1. Emoção – sentimento intenso e passageiro que altera o estado psicológico do indivíduo, provocando ressonância fisiológica (ex. angústia, medo, vingança, tristeza); 2. Paixão – chamada emoção-sentimento – é a ideia permanente ou crônica por algo (ex. cupidez, amor, ódio, ciúme).
Esses estados psicológicos fazem parte, em geral, da vida cotidiana e não há motivo para que recebam tratamento diferenciado da lei penal. Daí que a emoção e a paixão, salvo quando patológicas (art. 26, CP), não têm o condão de elidir a imputabilidade penal. Entretanto, podem, em certas circunstâncias, aparecer como atenuantes (art. 65, III, c, CP) ou causas de diminuição de pena (art. 121, §1.º, CP – homicídio privilegiado).
A embriaguez consiste em um distúrbio físico-mental resultante de intoxicação pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos, afetando o sistema nervoso central, como depressivo/narcótico.
Comporta a embriaguez as espécies e graus seguintes: 1. Não acidental: voluntária (dolosa – querida) ou culposa (deflui de culpa – o estado de ebriedade é previsível) – não exclui a imputabilidade penal (art. 28, II, CP); constitui circunstância agravante, se preordenada (art. 61, II, l, CP); 2. Acidental: derivada de caso fortuito ou de força maior – na primeira, não há vontade ou culpa, o agente não a quis, nem a previu ou podia fazê-lo; na segunda, decorre da inevitabilidade – exclui a imputabilidade penal, se completa; reduz a pena, se incompleta (art. 28, II, §§1.º e 2.º, CP). Como exemplo de embriaguez por caso fortuito, pode-se apontar o caso em que alguém acrescenta clandestinamente substância psicoativa na bebida de outra pessoa, fazendo com que esta chegue a um estado de intoxicação; de sua vez, ocorre força maior quando o indivíduo é coagido física ou moralmente, mas em todo caso irresistivelmente, a ingerir bebida alcoólica ou outra substância.
Tendo em conta a intensidade da ação do álcool (ou substância análoga) – grau de alcoolemia –, divide-se em: a) Embriaguez incompleta – fase de excitação (a partir de 0,8g por mil de sangue); b) Embriaguez completa – fase de depressão (cerca de 3g por mil de sangue); c) Embriaguez comatosa – fase de letargia, equiparada legalmente à completa (cerca de 4 a 5g por mil de sangue).37
Os estados de autêntica demência (embriaguez patológica, demência alcoólica, alcoolismo crônico e delirium tremens) são alcançados pela regra da inimputabilidade (art. 26, caput, CP).
Da mesma forma, na Lei 11.343/2006 (Lei Antidrogas), o artigo 45, caput, dispõe que “é isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (hipótese de inimputabilidade).
Todavia, segundo o artigo 46, da Lei 11.343/2006, “as penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (hipótese de semi-imputabilidade).
Ainda nessa seara, há de ser mencionada a teoria da actio libera in causa (ação livre na causa), que constitui uma exceção ao princípio de considerar as categorias do delito relativamente ao tempo da prática do fato punível. Pode ser definida como compreendendo “os casos em que alguém, no estado de não imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de um resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando podia e devia prever”.38
Pela ação livre na própria causa, a constatação da imputabilidade é transferida para o momento antecedente à prática delitiva (embriaguez voluntária e culposa).
Contudo, em razão do conceito amplíssimo acolhido ao abarcar, inclusive, o delito cometido em estado de embriaguez não acidental imprevisível para o agente quando imputável acaba-se por prever hipótese de responsabilidade penal objetiva, com evidente afronta aos princípios da responsabilidade subjetiva (culpabilidade) e da legalidade.
Em se tratando de embriaguez preordenada (art. 61, II, l, CP), considera-se o momento em que o agente se pôs em estado de embriaguez e não o momento final para a aplicação da agravante genérica. Aqui se temem conta a actio libera in causa.
4.2. Potencial consciência da ilicitude
É o elemento intelectual da reprovabilidade, sendo a consciência ou o conhecimento atual ou possível da ilicitude da conduta. Trata-se, então, da possibilidade de o agente poder conhecer o caráter ilícito de sua ação – consciência potencial (não real) da ilicitude.
Não quer dizer, porém, que se trata de um “conhecimento atual e efectivo do dever jurídico concreto de omitir a realização do facto proibido (ou de levar a cabo o facto imposto), mas no seu conhecimento potencial, da sua cognoscibilidade, de uma capacidade do seu conhecimento”.39
Para esse conhecimento (profano), “basta que o autor tenha base suficiente para saber que o fato praticado está juridicamente proibido e que é contrário às normas mais elementares que regem a convivência”.40
O agente só age culpavelmente quando conhece ou pode conhecer a ilicitude de seu comportamento (vide teoria do erro).
A potencial consciência da ilicitude, portanto, vem a ser a capacidade de conhecer a contrariedade da conduta em relação à ordem jurídica. Isso porque, em certas circunstâncias, o indivíduo não tem concreta consciência da ilicitude da conduta praticada, mas tem condição suficiente para alcançar esse conhecimento. Tal condição ou circunstância deve ser aferida no caso concreto, sendo objeto de apreciação e decisão judicial.
Note-se que esse conhecimento potencial não se refere às leis penais, basta que o agente saiba ou tenha podido saber que o seu comportamento contraria ao ordenamento jurídico. Fato ilícito significa tão somente aquele proibido pela lei, independentemente de seu aspecto imoral ou antissocial.
A ausência desse elemento – potencial consciência da ilicitude – dá lugar ao erro de proibição (art. 21, caput, CP) que, quando inevitável, é causa excludente de culpabilidade.
Assim, por exemplo, pode-se dizer que está em erro de proibição inevitável, excludente da potencial consciência da ilicitude, o agricultor de subsistência, pessoa simples e de pouca instrução, que reside junto com a família em uma propriedade rural afastada da zona urbana, acusado de praticar o crime previsto no artigo 56 da Lei 9.605/1998, por ter em depósito substância tóxica, nociva à saúde humana e ao ambiente, que, no entanto, é comumente utilizada na lavoura por ele e pelos demais membros da comunidade agrícola de sua região.
4.3. Exigibilidade de conduta diversa
Deve-se, inicialmente, como visto, a Freudenthal, a ideia de que se a culpabilidade constitui reprovabilidade pessoal da conduta ilícita, faz-se necessário considerar a não exigibilidade como causa de exclusão da culpabilidade.
Com a confirmação da imputabilidade e da potencial consciência do injusto, encontra-se substancialmente firmada a culpabilidade. Todavia, isso não é suficiente, ainda, para que a ordem jurídica estabeleça a censura de culpabilidade. Há casos em que se acha fortemente atenuada a possibilidade de agir conforme a norma. Daí a inexigibilidade de comportamento de acordo com o direito.
Trata-se do elemento volitivo da reprovabilidade, consistente na exigibilidade da obediência à norma. Para que a ação do agente seja reprovável, é indispensável que se lhe possa exigir comportamento diverso do que teve. Isso significa que o conteúdo da reprovabilidade repousa no fato de que o autor devia e podia adotar uma resolução de vontade de acordo com o ordenamento jurídico, e, não, uma decisão voluntária ilícita.41
Em princípio, nas hipóteses de delitos da ação dolosos, só deve ser admitida a inexigibilidade quando esteja expressa na lei; nos delitos culposos pode ser admitida quando não for ao agente exigível a observância do cuidado objetivamente devido, e, nos delitos omissivos, dolosos ou culposos, é acolhida sempre que a conduta ordenada implique interesses próprios legítimos.42
4.3.1. Causas de exclusão de exigibilidade de conduta diversa ou causas de inexigibilidade de conduta diversa
Importa, nesse passo, pôr em destaque as causas de exclusão da culpabilidade (causas de inculpabilidade), por falta de exigibilidade de conduta diversa.
A lei brasileira dispõe de modo expresso: “Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”:
a) Coação moral irresistível (art. 22, 1.ª parte, CP) – constitui a coação moral irresistível uma causa de inculpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, e nisso difere da coação física irresistível (vis absoluta), que exclui a ação, por inexistência de vontade. Trata-se a coação moral da grave ameaça (vis compulsiva), em que a vontade do coacto não é livre, mas viciada, sendo punível o autor da coação (autoria mediata).
Desse modo, é possível sustentar que na coação moral, diferentemente da coação física, existe espaço para a vontade, mas se mostra de tal modo viciada, comprometida, que não se pode exigir do agente um comportamento conforme os ditames do ordenamento jurídico.
O coacto, portanto, tem vontade, mas se encontra diante de um dilema: ante dois resultados indesejados, deve optar por um deles, e é exatamente nesse ponto que reside o fundamento da inexigibilidade da conduta que visasse a salvaguardar o bem jurídico que, ao final, resulta lesado.43
Exemplo: O pai que, tendo o filho sequestrado, é coagido pelos sequestradores armados a ir até uma agência bancária e ali efetuar um assalto, com vistas a obter a quantia necessária para o pagamento do resgate.
A coação moral irresistível apresenta os seguintes requisitos:
a.1) irresistibilidade da coação – significa que o constrangimento deve ser impossível de ser vencido pelo coagido.
O mal de que é ameaçado deve ser grave, certo e inevitável, de modo a não permitir que se conduza conforme o Direito. Observe-se que o ponto de referência da coação moral é o homo medius – não se trata nem do herói e tampouco do covarde ou do indivíduo que tem o medo à flor da pele.44
A coação moral é irresistível quando não pode ser superada, senão mediante o emprego de extraordinária energia, o que é, por óbvio, juridicamente inexigível. Importa destacar que, sendo a coação moral resistível, beneficia o coacto a circunstância atenuante (art. 65, III, c, CP);
a.2) coator, coacto e vítima – através da coação moral irresistível, o coator obriga o coacto a praticar um delito contra um terceiro (a vítima), lhe suprimindo a capacidade de resistência pela ameaça. Registre-se que a ação ou omissão perpetrada pelo coacto é ilícita, podendo dar lugar à legítima defesa por parte da vítima.
Resta excluída apenas a culpabilidade do coacto, porque “o ato volitivo se desenrolou de maneira anormal, sob a pressão moral e psicológica do coator”.45
b) Obediência hierárquica ou devida (art. 22, 2.ª parte, CP) – dentre todas as formas de obediência (política, doméstica, espiritual etc.), a única capaz de excluir a culpabilidade do agente é a obediência hierárquica, entendida como a conduta do subordinado que “obedece mandado procedente de superior hierárquico, quando este ordena no círculo de suas atribuições e na forma requerida pelas disposições legais”.46
Assim, em princípio, essa causa de inculpabilidade ampara toda conduta típica realizada por força de uma obrigação de obediência, preenchidas as exigências específicas de lei.
Cumpre atentar para o fato de que, ao lado dos mandados legítimos e conforme ao Direito, existem ordens que, em que pese procederem de uma autoridade superior e referir-se ao seu círculo de atribuições, são, em realidade, ilegais. São estas últimas que podem dar lugar à obediência hierárquica como causa de exclusão da culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa.
Registre-se que, quando o agente obedece a ordem legal de superior hierárquico, seu comportamento poderá estar abarcado por uma causa de exclusão da ilicitude – no caso, o estrito cumprimento de dever legal. Assim, enquanto neste último a lei determina não apenas o dever, mas também o conteúdo do dever a ser cumprido pelo agente, na obediênciahierárquica o ordenamento prevê a existência do dever, mas não fixa o seu conteúdo, que será decidido em cada caso pelo superior.
Consequentemente, como naquela causa de justificação, a conduta efetuada não pode jamais deixar de ser conforme o Direito (dever legal), na obediência hierárquica o ato ordenado poderá ser antijurídico – daí porque ela não passa de uma causa de exclusão da culpabilidade.47
O dever de obediência do subordinado nasce de um mandado vinculante. E o subordinado que executa um mandado vinculante atua de acordo com o Direito, ainda que o conteúdo da ordem viole o ordenamento jurídico, posto que está obrigado a obedecer.
É, portanto, caso de inexigibilidade de outra conduta, só sendo punível o superior hierárquico, autor da ordem (autoria mediata), salvo se esta for manifestamente ilegal, quando responde, também, o inferior hierárquico.
O subordinado só será responsabilizado se percebe que a ordem constitui um ato ilícito, diante das circunstâncias por ele conhecidas.
Quando o subordinado não se dá conta da ilegalidade da ordem, mas está em condições de fazê-lo, não será abarcado por essa causa de inculpabilidade, desde que presentes indícios suficientes que lhe permitiriam suspeitar da ilicitude do mandado.48
Na hipótese em que o descumprimento causa sérias consequências negativas ao subordinado, pode este beneficiar-se de uma circunstância atenuante (art. 65, III, c, 2.ª parte, CP).
Para a configuração da obediência hierárquica ou devida, exigem-se os requisitos seguintes:
b.1) relação de subordinação hierárquica fundada no Direito Público – vale dizer, a ordem deve advir de uma autoridade pública, dentro da organização do serviço público, o que também inclui os cidadãos, nos casos em que atuam por ordem dessas autoridades. Excluem-se, portanto, os casos de subordinação doméstica ou privada;
b.2) ordem de acordo com as formalidades legais e não manifestamente ilegal – é preciso que a ordem se refira às relações habituais existentes entre aquele que manda e quem obedece, estando dentro da esfera de competência do primeiro. Assim, se o subordinado, depois de avaliar a licitude da ordem e constatar a competência da autoridade que o obriga, não tem razões para suspeitar de irregularidades e cumpre o mandado, estará acobertado por essa excludente de culpabilidade.
Todavia, se a ordem exorbita da esfera de competência do superior hierárquico, ou sua ilegitimidade ou ilicitude apareçam evidentes, o inferior não estará amparado por essa eximente, posto que seu dever de obediência não pode ser maior que o seu dever profissional (v.g., o policial que entra em domicílio alheio sem autorização judicial, motivado apenas pela ordem verbal de seus superiores, responderá pelo delito de invasão de domicílio – art. 150, CP).
Dentre as hipóteses de manifesta ilegalidade da ordem, pode-se enumerar: 1. Quando, emanada de autoridade incompetente; 2. Quando, não reúne a ordem, os requisitos formais necessários à sua exteriorização; 3. Quando, é obviamente ilícita. Registre-se que a ordem deve ser manifestamente ilegal, quaisquer que sejam as circunstâncias do caso concreto, de acordo com um critério objetivo.49
Nesse aspecto, cumpre advertir que a presunção de legitimidade ou de juridicidade dos atos do Estado se vê consideravelmente fortalecida em um Estado de Direito democrático e social, e, tendo em vista essa presunção, não existe um dever jurídico ilimitado de examinar a licitude da ordem por parte do subordinado, dever este que suporia um grave obstáculo ao funcionamento da Administração Pública.
Assim, apenas quando o subordinado conheça as circunstâncias do caso concreto que determinam a ilicitude da ordem é que deverá examinar se a execução da ordem é evidentemente antijurídica – porque o seria quaisquer que fossem as circunstâncias do caso concreto – ou perfaz delito.50
Se a ordem é manifestamente ilegal, incumbe ao subordinado não cumpri-la. Cumprindo-a, responde pelo ilícito em coautoria com o superior de quem emanou a ordem;
b.3) estrita obediência da ordem – é necessário que o cumprimento da ordem do superior fique adstrito aos limites do que nela se contém. É clara a linguagem do Código ao falar em “estrita obediência a ordem”. Caso contrário, há excesso, e desaparece a exculpação do ato praticado.
Assim por exemplo, age em obediência hierárquica o funcionário público que, trabalhando no setor financeiro de determinada entidade da Administração Pública direta ou indireta, recebe ordens de seu superior hierárquico para fazer o repasse mensal de certa quantia, mediante emissão de recibo, que aparentemente seria destinada ao pagamento de despesas da repartição quando, na realidade, o superior hierárquico apropriava-se naquelas quantias.
c) Estado de necessidade exculpante – a situação de estado de necessidade só existe quando preenchidos os termos do artigo 24 do Código Penal. Essa modalidade de estado de necessidade decorre da teoria diferenciadora objetiva ou dualista, conforme já analisado nas causas de justificação.
Embora a opinião de grande parte da doutrina, em razão exatamente da orientação perfilhada pela lei, seja no sentido de vislumbrar somente o estado de necessidade justificante, cientificamente não se entende como o posicionamento mais correto. Em determinadas situações, socorre a exclusão da culpabilidade do agente por inexigibilidade de outra conduta: em se tratando de conflito de bens equivalentes ou de conflito de bens diferentes, com o sacrifício do bem de maior valor.51 Exemplos: a) a tábua de Carneades: após ter naufragado o barco, duas pessoas têm apenas uma tábua que só pode sustentar uma delas. [A] joga [B] fora da boia, para salvar sua própria vida; b) caso do Mignotte (ocorrido na Inglaterra em 1884): dois náufragos condenados a morrer de inanição, salvam-se praticando antropofagia de um terceiro; c) o alpinista que, como único meio de se salvar da morte, corta a corda que o ligava a outro, fazendo com que este se precipite no abismo; d) caso do naufrágio da nau São Paulo (1561): “E deitando-se a nado às embarcações que o recolhessem, o que não quiseram fazer, podendo, e lhe defenderam com muitas pancadas e espaldeiradas o chegar a elas, com que deram ao mar com outros, que iam já nelas apegados, podendo ainda levar mais de sessenta homens e deixando em terra meninos e doentes sem consolação nenhuma”; e) [A], para evitar ser ilicitamente detido, fere o guarda que o persegue (sacrifício de bem de maior valor).
Deve-se mencionar, ainda, como hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, ínsita na Parte Especial do Código Penal, o favorecimento pessoal entre familiares (art. 348, §2.º, CP),52 não se tratando, portanto, de escusa absolutória como, aliás, entende a doutrina majoritária. Esta última posição ignora o “papel da exigibilidade como fundamento de uma culpabilidade relevante para o Direito Penal”,53 mesmo porque no favorecimento pessoal entre indivíduos do mesmo círculo familiar impera, de modo geral e objetivamente, estreitas relações de lealdade e solidariedade que têm o condão de elidir a capacidade de agir de modo diverso do agente.
Assim, a ausência do elemento objetivo da culpabilidade – exigibilidade de outra conduta – torna o comportamento do sujeito inculpável, isto é, não se exige dele um comportamento segundo a norma.54
5. TEORIA DO ERRO
Antes de iniciar-se o estudo do erro em matéria penal, torna-se necessário distinguir o erro da ignorância e esta da simples dúvida.
O primeiro vem a ser uma falsa noção ou um falso conhecimento de um fato ou de uma regra jurídica. É um estado positivo: quem erra vê mal, pensa que existe, embora ignore o existente. Já a segunda, representa a ausência completa de conhecimento ou de representação, sendo um estado negativo da consciência (não ver). Por sua vez, a dúvida se traduz em uma pluralidade de imagens, uma das quais de acordo com a realidade.
O Código Penal brasileiro disciplina o erro, de forma moderna, nos artigos 20 (erro de tipo) e 21 (erro de proibição), nas pegadas de seu congênere alemão (arts.16 e 17).
5.1. Teorias
O tratamento penal do erro obedece às várias doutrinas que buscaram discerni-lo e fundamentar seus efeitos práticos:
5.1.1. Teorias do dolo (esquema causal)
O conhecimento da ilicitude é elemento do dolo, situado na culpabilidade (forma de culpabilidade – dolo normativo/dolus malus). Tanto o erro de tipo como o erro de proibição excluem o dolo – solução unitária:55
a) teoria estrita ou extrema do dolo – considera que a falta de consciência do injusto elide sempre o dolo. Ademais, faz uma total equiparação entre erro de tipo e erro de proibição, sendo ambos excludentes do dolo;
b) teoria limitada do dolo – a consciência da ilicitude constitui um elemento do dolo. No caso de ausência dessa consciência, elimina-se o dolo, subsistindo, porém, a culpa. Mas o estado de indiferença ou de inimizade do autor diante do direito iguala-se ao dolo (responde a título de dolo).
A principal diferença entre as teorias – estrita e limitada – do dolo está no fato de a primeira exigir um conhecimento atual e concreto do injusto, e a teoria limitada apenas seu conhecimento potencial;
c) teoria modificante do dolo – segundo essa corrente, “parte-se do pressuposto de que a consciência da ilicitude faz parte do dolo; assim, o erro de proibição inevitável exclui a consciência da ilicitude e, em consequência, o dolo; este faz parte da culpabilidade, logo, fica excluída, também, a culpabilidade, bem como a responsabilidade penal; se evitável o erro de proibição, o agente será punido com a pena do crime doloso, podendo ser atenuada. Aqui reside a distinção entre essa teoria modificada do dolo e a tradicional teoria limitada do dolo, pois, para esta, o erro evitável implica na punição do agente por crime culposo”.56
5.1.2. Teorias da culpabilidade (esquema finalista)
Ao contrário das teorias do dolo, aqui, de acordo com a doutrina normativa pura da culpabilidade, o dolo é concebido como dolo do fato ou dolo natural, despojado da consciência do injusto, que está inserta na culpabilidade.
Para essas teorias, o dolo é a mera consciência e vontade de realização do tipo objetivo – dolo valorativamente neutro.
Como o dolo não exige o conhecimento normativo, a consciência da ilicitude não o integra, sendo alocada na culpabilidade, reduzida a simples juízo de censura.
Essas concepções são divididas em duas: teoria estrita e teoria limitada da culpabilidade.
A primeira – teoria estrita da culpabilidade – considera que o erro sobre a ilicitude do fato é sempre erro de proibição. Neste último, o autor tem conhecimento da realização do tipo (dolo): sabe o que faz, mas erroneamente acredita ser permitido, seja por desconhecer a norma penal ou por mal interpretá-la, seja por supor erroneamente a concorrência de uma causa de justificação. Em cada uma dessas hipóteses, há exclusão ou diminuição da reprovabilidade.57
Desse modo, o erro sobre as causas de justificação – descriminantes putativas – é erro de proibição e exclui a culpabilidade se for inevitável. Há uma distinção basilar em relação às hipóteses de erro de tipo, nas quais falta o dolo do agente. Aparece como decisiva “a possibilidade ou não de ser o autor censurado pela ignorância do injusto. Inexistindo censura, não há culpabilidade nem pena”.58
A partir do explicitado, é de ser observado que o erro de proibição, ainda que verse, principalmente, sobre matéria normativo/legal, pode alcançar, também, o fato (situação de fato).
Por sua vez, a segunda – teoria limitada da culpabilidade – opera uma distinção entre erro de proibição direto e indireto, ocorrendo este último quando incidente, em certa vertente, sobre uma justificante. Dessa maneira, a teoria limitada estabelece uma solução diferenciada no tratamento do erro que versa sobre uma causa de justificação (descriminante putativa):
1) o erro sobre os pressupostos fáticos (errônea suposição de condicionantes típicas) de uma causa de justificação equipara-se, nos seus efeitos, ao erro de tipo permissivo, de modo que exclui o dolo, restando a culpa.
Exemplo: existência da agressão na legítima defesa; da situação de necessidade no estado de necessidade, do dever legal no estrito cumprimento de dever legal.
Essa espécie de erro está incluída no âmbito das chamadas descriminantes putativas, e está regulada pelo artigo 20 §1º do Código Penal (também chamado de erro de tipo permissivo). As descriminantes putativas são explicadas com mais detalhes na sequência, no item referente às espécies de erro.
2) o erro sobre a existência, o âmbito ou os limites legais de uma causa de justificação constitui erro de proibição indireto, que, se inevitável, exclui a culpabilidade e, se evitável, diminui a pena.
Exemplo: erro sobre a injusta e iminente agressão na legítima defesa; sobre estrito cumprimento do dever legal; sobre o regular exercício de direito.
Assim, a diferença entre as duas teorias da culpabilidade – estrita e limitada – está no tratamento dado ao erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação: para a teoria estrita é hipótese de erro de proibição; para a teoria limitada é tratado como erro de tipo permissivo.
Acerca do tratamento do erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, cumpre observar que a postura perfilhada pelo Código Penal brasileiro – a saber, a adoção da teoria limitada da culpabilidade (art. 20, §1.º) – parte de uma equívoca interpretação do significado da teoria do tipo.
Com efeito, numa primeira fase da evolução da tipicidade, o conceito de delito tinha como elementos essenciais a ilicitude e a culpabilidade. Logo, concebia-se o dolo como a consciência da ilicitude (dolus malus), o que pressupunha o conhecimento concreto dos elementos fáticos da ação. Era indispensável, portanto, para a aferição da consciência da ilicitude, o conhecimento das características da ação concretamente realizada.
Os pressupostos fáticos das causas de justificação se inserem, precisamente, entre as circunstâncias da ação concreta, o que significa que o erro do agente a respeito da presença daqueles pressupostos vai refletir sobre o potencial conhecimento da ilicitude da conduta. Assim, o erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação também deveria – de acordo com esse entendimento – excluir o dolo, e permitir tão somente a punição a título de culpa, em caso de inobservância do dever objetivo de cuidado.
Em síntese: um sistema dogmático que desconhece a categoria do tipo não permite diferenciar o erro sobre os elementos do tipo e o erro sobre os pressupostos fáticos das causas de justificação, pois apenas o conhecimento da totalidade das circunstâncias da ação proporciona o conhecimento da ilicitude e permite aferir a presença do dolo.59
Com o desenvolvimento da categoria do tipo – teoria finalista –, surge, como consequência inarredável, a distinção conceitual entre erro de tipo e erro de proibição.
No contexto dessa perspectiva, não se pode negar que o juízo de tipicidade antecede o de ilicitude, de modo que, mesmo com base nas premissas que assume como verdadeiras, é forçoso concluir que a conduta passará por um duplo filtro: em um primeiro momento, se examina sua relevância penal (tipo positivo) – juízo provisório de ilicitude –, e, em um segundo momento, sua conformidade ou contradição com o ordenamento jurídico (tipo negativo) – juízo definitivo de ilicitude.
Logo, “se o que interessa é comprovar se o sujeito pôde formar um conhecimento acerca do significado antijurídico do fato, parece necessário considerar sua capacidade intelectiva na primeira sequência de fatos, pois nela é onde o fato total começa a adquirir significado jurídico”, isto é, “faz-se necessário examinar antes mesmo da antijuridicidade se o sujeito apreendeu o significado dos fatos do tipo”.60
Assim, o erro sobre os pressupostos fáticos das causas de justificação não afeta a estrutura do fato típico (dolosa ou culposa), pois a totalidade do tipo continua a cumprir sua função de advertência e de estímulo à observância do cuidado objetivamente devido.
Embora o conhecimento dos pressupostosfáticos das causas de justificação, bem como dos elementos objetivos do tipo, tenham por objeto as circunstâncias do fato (elementos descritivos ou normativos), na verdade, apresentam significado jurídico distinto e, consequentemente, o seu conhecimento também desempenha funções diferentes: cada categoria dogmática cumpre uma função de motivação específica, que contribui para a formação da motivação final do sujeito capaz de se autodeterminar conforme a um sentido.
Já que apenas o sujeito capaz de agir de outro modo pode responder pelas consequências de seus atos, e que para aferir essa capacidade faz-se necessário que tenha potencial consciência da ilicitude, é de concluir-se que a responsabilidade penal será maior “quanto mais próximo estiver o sujeito de aceder a esse conhecimento e menor quanto mais longe estiver”.61
Daí se extrai que o erro sobre os pressupostos fáticos das causas de justificação deve dar lugar apenas à exclusão da culpabilidade (se inevitável) ou à diminuição da pena (se evitável), e não à atipicidade da conduta, visto que o sujeito conhecia e queria a realização do fato, e estava, portanto, mais próximo da aquisição do conhecimento da ilicitude.
Além disso, carece de fundamento a ficção de culpa adotada pela teoria limitada da culpabilidade, como se erro de tipo fosse.
Como se observa, “só o erro sobre uma circunstância do tipo abre caminho para a culpa. A falta de consciência da antijuridicidade não diz respeito, consequentemente, ao dolo e tampouco dá lugar à culpa”.62
Não é certo, conforme se defende, que a teoria limitada da culpabilidade produz resultados mais justos,63 visto que se “o sujeito atua com consciência e vontade de realizar os elementos que fundamentam o injusto específico de uma determinada conduta delitiva (os elementos positivos do tipo, segundo a terminologia da teoria dos elementos negativos do tipo), que deve servir-lhe de estímulo para certificar acerca da concorrência ou não das circunstâncias que servem de base para uma causa de justificação”; mais justo seria, na verdade, “considerar esse erro como um erro de proibição, como faz a teoria pura”.64
O erro sobre os pressupostos fáticos das causas de justificação não deveria excluir o dolo, e, sim, receber o mesmo tratamento conferido ao erro de proibição.
A teoria estrita da culpabilidade reconhece que a consciência da ilicitude não é elemento do dolo, mas da culpabilidade, e, assim, o erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação deve excluir a culpabilidade (se inevitável o erro) ou diminuir a pena imposta (se evitável).
Essa, porém, não foi a opção doutrinária seguida pelo legislador brasileiro de 1984, como observado.
5.2. Espécies de erro
O Direito positivo brasileiro, após a reforma de 1984, vincula-se à teoria limitada da culpabilidade, sendo que o tratamento do erro ficou assim disposto:
a) Erro sobre os elementos do tipo (erro de tipo). Dispõe o Código Penal no artigo 20, caput: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”.
O erro sobre o fato típico diz respeito ao elemento cognitivo ou intelectual do dolo, sendo sua contraface. É aquele que recai sobre os elementos essenciais ou constitutivos – fáticos ou normativos – do tipo de injusto, sem os quais deixa de existir (coisa alheia, no delito de furto – art. 155, CP). Nele, o agente não sabe o que está fazendo; falta-lhe a representação mental exigível para o dolo típico (lado inverso do dolo do tipo).65 Tanto pode decorrer de uma equívoca apreciação de ordem fática, como de errônea compreensão do Direito.
O erro de tipo acaba por eliminar a congruência entre as partes objetiva e subjetiva do tipo legal, indispensável para a configuração do delito doloso.66
Exemplos: coisa alheia (art. 155, CP – furto); funcionário público (art. 333, CP – corrupção ativa); alguém – supõe-se animal (art. 121, CP – homicídio); ou o próprio matar, também no crime de homicídio, quando se supõe erroneamente estar apenas alimentando a vítima quando, na realidade, o alimento está envenenado, sem conhecimento do executor; moeda falsa (art. 289, §1º, CP – circulação de moeda falsa); menor de catorze anos (art. 217-A, CP); drogas (art. 33, Lei 11.343/2006 – tráfico de drogas); autorização judicial (art. 10, Lei 9.296/1996 – interceptação telefônica), entre outros.
No caso de o erro versar sobre uma qualificadora (por exemplo, abuso de confiança no furto qualificado – art. 155, §4.º, II, CP –, meio insidioso no homicídio qualificado – art. 121, §2.º, III, CP), ocorre apenas afastamento do elemento qualificador do tipo (= erro de tipo – exclusão do dolo em relação à qualificadora), mas persiste o tipo legal básico (nos exemplos, furto e homicídio simples). Já em relação ao tipo privilegiado, o efeito legal é outro: o agente que supõe erroneamente a existência de um elemento privilegiado (por exemplo, motivo de relevante valor social ou moral no homicídio privilegiado – art. 121, §1.º, CP) deve responder como se ele realmente tivesse existido.
O erro acidental (erro sobre a pessoa), por sua vez, atinge os aspectos ou dados secundários do delito e é irrelevante para os efeitos desse artigo. Versa sobre dados acessórios, estranhos ao tipo objetivo e que não alteram sua existência.67
Exemplo: [A], desejando vingar-se de [B], mata [C], por engano.
No concernente ao erro de tipo essencial inevitável, invencível ou escusável, há exclusão da tipicidade (dolo ou culpa): não pode ser superado pelo agente, apesar de ter empregado as precauções regularmente exigidas; se for evitável, vencível ou inescusável: podia ser evitado pela maior diligência do autor –, exclui-se o dolo, subsistindo a responsabilidade por culpa, se for o caso (regra da excepcionalidade do crime culposo – art. 18, parágrafo único, CP);
b) Descriminantes putativas. Dispõe o artigo 20, §1.º, do Código Penal: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”.
Putativo, do latim putare, é o pensado, mas inexistente. Em outras palavras, há uma incongruência ou contradição entre a representação fática do agente e a situação objetiva ou real.
No que respeita às descriminantes putativas (em que o agente imagina, por erro, sua conduta lícita, supondo situação que, se existente, torná-la-ia legítima), deve-se proceder a uma separação quando o erro versa sobre os pressupostos fáticos – situação de fato – ou a existência ou os limites normativos – estar permitido, autorizado – de uma causa de justificação (art. 23, CP), isso em virtude da concepção acolhida pelo legislador pátrio.
No primeiro caso, tem-se erro de tipo permissivo (art. 20, §1.º, CP) que, se inevitável, elimina o dolo e a culpa; se evitável, exclui o dolo, subsistindo a culpa. Segundo Jescheck, trata-se de um erro sui generis situado entre o erro de tipo e o erro de proibição indireto.68
Assim, embora o erro sobre os pressupostos objetivos de uma justificante não seja um erro de tipo stricto sensu, deve ser tratado de maneira similar, diante da análoga estrutura que apresentam (ou de sua maior proximidade).69
O erro de tipo permissivo não se confunde com o denominado erro de permissão, que se refere à existência/subsistência e aos limites normativos de uma justificante, devendo ser considerado como erro de proibição indireto – (art. 21, CP).
De outro lado, no segundo caso (erro sobre a existência ou limites de uma justificante), há erro sobre a ilicitude do fato (art. 21, caput, CP), que, se inevitável, exclui a culpabilidade; se evitável, diminui a pena.
Deu-se guarida à teoria limitada da culpabilidade (item 17 da Exposição de Motivos do Código Penal), que pertence, como a teoria estrita da culpabilidade, ao esquema finalista. A teoria limitada opera uma distinção entre erro de proibição direto e indireto, ocorrendo este último quando incidente em certa vertentesobre uma causa justificante.
Portanto, a teoria limitada estabelece uma solução diferenciada no tratamento do erro que versa sobre uma causa de justificação (art. 23, CP): a) o erro sobre os pressupostos fáticos de uma excludente de ilicitude constitui erro de tipo permissivo, isto é, equipara-se, nos seus efeitos, por analogia, ao erro de tipo, de modo que exclui o dolo, restando a culpa, quando punível (ex.: existência da agressão na legítima defesa); b) o erro sobre a existência ou os limites legais de uma justificante constitui erro de proibição indireto que, se inevitável, exclui a culpabilidade e, se evitável, diminui a pena (ex.: erro sobre a injusta agressão na legítima defesa).
Para a teoria estrita ou restringida da culpabilidade, há uma equiparação desse erro (sobre pressupostos objetivos de uma justificante) ao erro de proibição indireto.
De consequência, “os três casos de suposição errônea de concorrência de uma causa de justificação são igualmente erros de proibição: o erro inevitável exclui a culpabilidade, o evitável a atenua segundo a medida da evitabilidade”.70
A teoria dos elementos negativos do tipo, por incluir as causas de justificação como parte do tipo e os seus pressupostos como elementos negativos do tipo, considera o erro sobre os pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude como um erro de tipo.
Ainda nesse campo, existem as teorias do dolo ligadas ao modelo clássico e neoclássico de delito.
c) Erro sobre a ilicitude do fato (erro de proibição). “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço” (art. 21, caput, CP).
Trata-se de erro que tem por objeto a proibição jurídica do fato. Ou seja: erra-se sobre a ilicitude do fato, mas com consciência de que se realiza o tipo legal.
O agente perde, em decorrência do erro de proibição, a compreensão da ilicitude do fato. Dessa forma, se o agente sabe o que faz, acreditando erroneamente ser permitido: desconhece a norma penal, interpreta-a mal ou supõe, de forma equívoca, a concorrência de uma causa de justificação (teoria estrita da culpabilidade).
Constitui o lado oposto da consciência do injusto: supõe erroneamente que atua de forma lícita, conforme a norma.
Exemplo: o agente acredita que ter em depósito cocaína não é vedado.
Tem-se que o autor “sabe o que faz tipicamente, mas supõe de modo errôneo que era permitido”.71 Não bastando aqui só a falsa representação, senão também a falta de representação da ilicitude do fato.
A diferença decisiva entre erro sobre os elementos do tipo e erro sobre a ilicitude do fato “não se refere à oposição fato-conceito jurídico, mas, sim, à diferença tipo-ilicitude”.72
Assim, quem se apodera de coisa alheia, que erroneamente considera sua, encontra-se em erro de tipo, pois não sabe que subtrai coisa alheia; mas quem acredita ter direito de fazer justiça pelas próprias mãos e se apodera de coisa alheia (caso do credor/devedor insolvente), encontra-se em erro de proibição, sobre a ilicitude de sua conduta. Quem desconhece que a coisa de que dispõe está penhorada ou embargada, erra sobre uma característica do tipo; mas quem, sabendo-o, acredita erroneamente ter um direito a dispor dela, encontra-se em erro de proibição.73 O sujeito que tem relações sexuais com menor de catorze anos acreditando que a vítima já tem dezoito anos completos, está em erro de tipo; porém, se o autor conhece a idade da vítima, mas acredita estar autorizado a ter com ela relações sexuais porque esta não é mais “virgem”, ou, ainda, porque é prostituta, pode incorrer em erro de proibição.
O erro de proibição divide-se em:
c.1) direto – o agente atua com a convicção de que sua ação não está proibida pela ordem normativa – erro sobre a ilicitude da conduta (sobre a existência da própria norma legal e sobre o âmbito de sua abrangência).
Exemplos: bigamia – erro sobre a natureza do casamento anterior, que se supõe inválido; furto de coisa de pequeno valor – o agente crê ser tal conduta permitida; casa de prostituição – o agente acredita que tal conduta não é proibida porque, durante muito tempo, testemunhou a presença de autoridades como delegados, juízes, promotores em uma casa de prostituição.
c.2) indireto ou erro de permissão – designa o erro sobre uma norma permissiva. O agente pensa que sua ação é lícita por estar amparada por uma excludente da ilicitude (o agente supõe presente uma causa de justificação inexistente) que, na verdade, não é reconhecida pelo direito – erro sobre a existência ou os limites de uma causa de justificação.
Exemplos referentes ao erro sobre a existência de uma causa de justificação: homicídio piedoso – o agente mata o enfermo terminal, não resistindo aos seus pedidos; cumprimento de uma ordem – o militar que, mesmo percebendo ser a ordem ilegal, julga ser seu dever cumpri-la; o agente que se apropria indevidamente de parte de quantia de dinheiro a ele confiada por pessoa que lhe deve aquele valor, acreditando que existe situação especial de autorização.
No que tange ao erro sobre os limites legais ou alcance de uma causa de justificação, pode-se citar o caso do sujeito que, após uma série de ameaças recebidas por desafeto contra sua vida, mata-o, de forma premeditada e mediante emboscada, acreditando tratar-se de legítima defesa, porque ignora requisito essencial da justificante, que é a existência de agressão atual ou iminente.
O erro de proibição inevitável exclui a culpabilidade, por falta de potencial consciência da ilicitude; e o evitável diminui obrigatoriamente a pena (art. 21, CP).74
O princípio ignorantia legis neminen excusat, literalmente epigrafado (art. 21, caput, 1.ª parte, CP), que não se confunde com a falta de consciência da ilicitude, é apenas uma atenuante (art. 65, II, CP).
Advirta-se, por fim, que para a dogmática tradicional ou causalista, o erro de tipo é, ao lado do erro sobre a ilicitude, uma questão que diz respeito à existência ou não da culpabilidade.
d) Erro determinado por terceiro: no erro causado por agente provocador, deve responder pelo fato punível, a título de dolo ou culpa, o terceiro provocador, que determina o erro (art. 20, §2.º, CP). No que toca ao provocado ou induzido, será isento de pena se o erro for inevitável; se evitável será punido por culpa (art. 20, §1.º, CP).
Exemplo: [A] recebe um revólver de [B], e este afirma estar a arma descarregada. Se [A], sem procurar certificar-se do caráter verídico da afirmação, dispara e vem a matar alguém, responderá por homicídio culposo, e [B] por homicídio doloso.
e) Erro sobre a pessoa: o erro sobre a pessoa – erro acidental – não afasta o agente de pena. Consideram-se aqui as condições ou qualidades da pessoa visada pelo agente.
Exemplo: [A] quer matar [B], seu pai, mas atinge [C], por engano, pessoa estranha – aplica-se a agravante de parentesco (art. 61, II, e, CP).
É importante destacar que essa mesma espécie de erro pode ocorrer quanto a objetos, e não somente pessoas. Por exemplo [A], marido de [B], pretendendo dela se vingar em razão de um pedido de divórcio, decide furtar o seu carro, mas acaba, por engano, devido à semelhança física dos veículos, subtraindo o carro de [C], pessoa sem qualquer relação com ele. [A] deve responder pelo crime de furto (consumado ou tentado), aplicando-se a agravante de violência doméstica (art. 61, II, f, CP).
f) Aberratio ictus (erro na execução) – é a aberração no ataque/desvio do golpe, isto é, acidente ou erro quanto aos meios de execução. A consequência do erro na execução é a mesma prevista para o erro sobre a pessoa ou erro acidental, isto é, o agente responde como se tivesse acertado quem pretendia atingir, considerando-se todas as qualidades da pretendida vítima. Se atinge também a vítima pretendida, responde por ambos os crimes, em concurso formal.
Exemplo: [A] pretende matar [B], dispara contra ele, mas falha na execução e atinge [C]; na hipótese de atingir [B] e [C], aplica-se a regra do concurso formal (art. 73, CP).
g) Aberratio delicti – desviodo delito/resultado diverso do pretendido – refere-se à hipótese em que se atinge bem jurídico de outra espécie. Nesse caso, a consequência jurídica é diferente daquela aplicável ao erro na execução. O artigo 74 do Código Penal, que regula a matéria, prevê que quando o agente, por acidente ou erro na execução, atinge um resultado diverso do pretendido, responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do concurso formal.
Exemplo: [A] procura atingir [B] com uma pedra; mas, por inabilidade, atinge uma orquídea – planta ornamental – ali existente (art. 49, parágrafo único, da Lei 9.605/1998). [A], policial, pretende disparar sua arma de fogo em local habitado (art. 15 da Lei 10.826/2003), mirando para cima, com a finalidade apenas de assustar turma de jovens que fazia algazarra de madrugada, em local residencial. No entanto, antes de disparar, assusta-se com a intervenção repentina de [B], e acaba atingindo [C], causando-lhe lesão corporal (art. 129, §6º, CP).
Ainda em matéria de erro, convém observar que o erro versando sobre causa pessoal de exclusão de pena, condição de punibilidade, ou, simplesmente, condição processual, não gera os efeitos próprios da categoria do erro jurídico-penal, visto que em tais hipóteses a matéria não faz parte do tipo de injusto e nem afeta seu conteúdo, sendo, portanto, irrelevante.75
Quadro sinótico
	DELITO COMO AÇÃO CULPÁVEL
	Conceito
	Reprovabilidade pessoal da conduta típica e ilícita.
	Evolução dogmática da culpabilidade
	Teorias:
a) teoria psicológica – relação psíquica entre autor e fato;
b) teorias normativas:
b.1) teoria psicológico-normativa ou normativa complexa – vínculo psicológico e reprovabilidade por exigibilidade de conduta diversa;
b.2) teoria normativa pura ou finalista: juízo de censura pela realização do injusto. Elementos: a) imputabilidade; b) potencial consciência da ilicitude; c) exigibilidade de conduta diversa;
b.2.1) conceito unitário de culpabilidade (concepção lógico-funcional) – capacidade de compreender (e em consequência atuar) o fato ilícito não evitado e capacidade de motivação conforme a norma.
b.3) teorias normativo-preventivas da culpabilidade – fundamentalmente baseadas na capacidade de motivação normativa do sujeito.
	Conceito material de culpabilidade
	É aquele assente no conceito jurídico constitucional de pessoa, como ser livre e responsável.
	Elementos da culpabilidade
	1. Imputabilidade
1.1. Conceito: capacidade de culpabilidade.
1.2. Sistemas:
a) sistema biológico ou etiológico;
b) sistema psicológico ou psiquiátrico;
c) sistema biopsicológico ou misto (art. 26, CP).
1.3. Causas de exclusão da imputabilidade:
a) doença mental;
b) desenvolvimento mental incompleto ou retardado;
c) menoridade (art. 27, CP);
d) embriaguez acidental completa (art. 28, II, §1.º, CP) e embriaguez patológica completa (art. 26, caput, CP).
2. Potencial consciência da ilicitude
2.1. Conceito: conhecimento potencial do caráter ilícito da ação.
3. Exigibilidade de conduta diversa
3.1. Conceito: possibilidade da adoção de comportamento conforme o direito.
3.2. Causas de exclusão de exigibilidade de conduta diversa ou causas de inexigibilidade de conduta diversa:
a) coação moral irresistível;
b) obediência hierárquica (art. 22, CP);
c) estado de necessidade exculpante.
	TEORIA DO ERRO
	Teorias
	1. Teorias do dolo: erro de tipo e erro de proibição excluem o dolo, situado na culpabilidade:
a) teoria estrita do dolo;
b) teoria limitada do dolo;
c) teoria modificante do dolo.
2. Teorias da culpabilidade: consciência da ilicitude integra a culpabilidade:
a) teoria estrita da culpabilidade: erro sobre a ilicitude é sempre erro de proibição;
b) teoria limitada da culpabilidade: distinção entre erro de proibição direto e indireto:
b.1) erro sobre pressupostos fáticos de uma causa de justificação: exclui o dolo, restando a culpa;
b.2) erro sobre a existência, o âmbito ou os limites de uma causa de justificação: se inevitável, exclui a culpabilidade; se evitável, atenua a pena.
	Espécies de erro
	1. Erro de tipo: erro sobre elementos essenciais do tipo. Exclui o dolo, mas permite punição por crime culposo (art. 20, caput, CP):
a) essencial: relativo a elementos do tipo objetivo;
b) acidental: relativo a circunstâncias acessórias ao tipo objetivo.
2. Erro de proibição: erro sobre a proibição jurídica do fato. Se inevitável, isenta de pena; se evitável, atenua a sanção (art. 21, CP):
a) erro de proibição direto: convicção da ausência de proibição;
b) erro de proibição indireto ou erro de permissão: existência e limites de uma causa de justificação.
3. Erro de tipo permissivo (descriminantes putativas): pressupostos fáticos de uma causa de justificação (art. 20, §1.º, CP). Se inevitável, exclui o dolo e a culpa; se evitável, subsiste a culpa.
4. Erro determinado por terceiro: responde o terceiro que determina o erro (art. 20, §2.º, CP).
5. Erro sobre a pessoa: não isenta de pena (art. 20, §3.º, CP).
6. Aberratio ictus: erro na execução (art. 73, CP).
7. Aberratio delicti: resultado diverso do pretendido (art. 74, CP).
_____________
1 Cf. CEREZO MIR, J. Culpabilidad y pena. Problemas fundamentales del Derecho Penal, p. 179; JESCHECK, H.-H. Tratado de Derecho Penal, 1993, p. 367 e ss.; REALE JR., M. Instituições de Direito Penal, I, p. 186.
2 Assim, CEREZO MIR, J. Curso de Derecho Penal español, I, p. 30-31.
3 HIRSCH, H.-J. El principio de culpabilidad y su función en Derecho Penal. In: Hirsch, H.-J. Derecho Penal: obras completas, I, p. 156.
4 Cf. JESCHECK, H.-H. Op. cit., p. 577 e ss.
5 VON LISZT, F. Tratado de Derecho Penal, II, p. 388.
6 Ibidem, p. 11.
7 Ibidem, p. 60-61.
8 Cf. GOLDSCHMIDT, J. La concepción normativa de la culpabilidad, p. 32 e ss.
9 MEZGER, E. Tratado de Derecho Penal, II, p. 7-8; Idem. Derecho Penal, p. 189.
10 Muitos autores negam o caráter puramente normativo da culpabilidade finalista (v.g., Cerezo Mir, Hirsch, Stratenwerth). Na verdade, há apenas uma acentuação do aspecto normativo.
11 WELZEL, H. El nuevo sistema del Derecho Penal, p. 80; Idem. Derecho Penal alemán, p. 198. Este autor distingue entre culpabilidade como reprovabilidade (qualidade negativa da própria conduta) e culpabilidade como conceito normativo graduável (conceito axiológico negativo maior ou menor).
12 WELZEL, H. Op. cit., p. 198.
13 WELZEL, H. El nuevo sistema del Derecho Penal, p. 81.
14 Ibidem, p. 81.
15 WELZEL, H. El nuevo sistema del Derecho Penal, p. 100-101; Idem. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista, p. 109-110.
16 CUELLO CONTRERAS, J. Op. cit., p. 938.
17 SCHÜNEMANN, B. Op. cit., p. 25.
18 Cf. MIR PUIG, S. Derecho Penal, p. 530 e ss.
19 Cf. ROXIN, C. Derecho Penal, p. 797 e ss.
20 Cf. MUÑOZ CONDE, F.; GARCIA ARÁN, M. Derecho Penal, p. 372 e ss.; MUÑOZ CONDE, F. Teoria geral do delito, p. 130-131.
21 Cf. CORDOBA RODA, J. Culpabilidad y pena, p. 28-31.
22 Cf. JAKOBS, G. Derecho Penal, p. 579 e ss., especialmente, p. 584-586.
23 Cf. HIRSCH, H.-J. El principio de culpabilidad y su función en el Derecho Penal. HIRSCH, H.-J. Derecho Penal: obras completas, I, p. 158.
24 Henkel, em profunda pesquisa sobre a matéria, concluiu que alguns elementos importantes para o juízo de culpabilidade são suscetíveis de constatação.
25 Op. cit., p. 581.
26 Cf. CEREZO MIR, J. Op. cit., p. 38 e ss.
27 Cf. PRADO, L. R. Bem jurídico-penal e Constituição, p. 67 e ss.
28 CEREZO MIR, J. O conceito material de culpabilidade. RCJ, 2, p. 4 e ss.; Idem. El delito como acción culpable. Anuario de Derecho y Ciencias Penales, XLIX, p. 31 e ss.
29 Vide FERRACIOLO, J. Neurociência e direito penal: um novo horizonte para a imputabilidade penal?. IBCCRIM, 23, 272, 2015, p. 15-16.
30 CEREZO MIR, J. Culpabilidad y pena. Problemas fundamentales del Derecho Penal, p. 179 e ss.
31 Ibidem, p. 191.
32 BRUNO, A. Direito Penal, II, p. 44.
33 SOUZA, A. B. G; JAPIASSÚ, C. E. A. Curso de Direito Penal. P. G., p. 290.
34 SADOCK, B. J.; SADOCK, V. A. Compêndio de psiquiatria. Ciência do comportamento

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