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Fundamentes de Direito Público Caries Ari Sundfeld No "Prefácio" desta obra diz o Prof. Geraldo Ataliba, constatando que o Brasil está muitos anos defasado em relação ao ensino e aplicação do Direi- to Público: "Como se vivessemos em 1910, dá-se ao estudante a impressão de que o mundo do direito é formado pelo direito civil, comercial e penal. Mais grave fica o problema quando se verifica que a maioria dos estudantes - e mesmo já graduados - supõe que a lei geral de aplicação de normas ju- rídicas (entre nós impropriamente designada como Lei de Introdução ao Có- digo Civil) é de direito privado, levando ao equívoco de pensar que o direito civil é a matriz do direito. Tal perspectiva privatista é deformante e tem gra- víssimas repercuções na própria vida institucional". Daí, conclui Geraldo Ataliba, "ignorar-se que o direito administrativo é o direito comum da administração pública. Daí o menoscabo pelo direito cons- titucional e pelo direito público em geral" e, como conseqüência, "os avan- ços do totalitarismo: má legislação, escassa literatura e deficiente jurispru- dência de direito público, o que leva aos casuísmos, ao arbítrio, às omis- sões e aos abusos dos agentes públicos diante de uma cidadania inerme e j indefesa, como que desarmada pela ignorânca dos operadores jurídicos". Daí, concluímos, a importância capital desta obra, que é uma verda- deira introdução e uma teoria geral do Direito Público, imprescindível para a compreensão deste ramo da Ciência Jurídica. Escrito de forma clara e didá- tica, como pontos de uma cadeira já implantada na Faculdade de Direito da PUC-São Paulo, é livro que se lê com proveito e prazer, tanto pelo seu con- teúdo como pela agradável forma de exposição. =1 - MALHEIROS — EDITORES F U N D A M E N T O S D E D I R E I T O D L J B E I O O íh edição, 10- tiragem CÀCLCS ARI SINDfCLD CARLOS ARI SUNDFELD é um dos líderes do movimento de inovação jurídica em direito pú- blico e regulação no Brasil, áreas em que atua como docente, pesquisador e consultor. Parti- cipou da criação da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, onde é pro- fessor na Graduação e coordenador do Cursç de Especialização em Direito Administrativo. É também professor do Doutorado e Mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde fez sua graduação, mes- trado e doutorado. Foi professor convidado da Faculté de Droit, d'Économie et de Gestion de l'Université de Pau et des Pays de L'Adour (1994-1995). Fundou e preside a Sociedade Brasileira de Direito Público (www.sbdp.org.br ), que mantém uma escola de iniciação científi- ca (a Escola de Formação) e programas de aperfeiçoamento, pesquisa e publicações, como as editadas pela Malheiros Editores (os livros Direito Administrativo Econômico, Par- cerias Púbiico-Privadas, Leis de Processo Ad- ministrativo, por ele coordenados, e outros). Publicou, ainda, vários livros (Direito Adminis- trativo Ordenador, Licitação e Contratos Admi- nistrativos; e outros) e vem coordenando ou participando de inúmeras obras coletivas. Concebeu diversas inovações legislativas relevantes, como a licitação por pregão, a Lei Geral de Telecomunicações, o modelo brasi- leiro de agência reguladora independente (ANATEL), as Leis Federal e Mineira de Par- cerias Púbiico-Privadas, a Lei Paulista de Pro- cesso Administrativo, e outras. Participa dos conselhos de diversas re- vistas científicas, como a Revista de Direito Administrativo, a Revista de Direito Público da Economia, a Revista Trimestral de Direito Público, a Interesse Público, entre outras, nas quais tem publicado inúmeros artigos e pare- ceres. Tem atuado, como diretor ou conse- lheiro, em entidades científicas como o IBDA - Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, o IDEPE - Instituto Geraldo Ataliba, a ABDI - As- sociação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações, a Asociación de Dere- cho Público dei Mercosur e outras. É, ainda, membro titular do Instituto de Derecho Admi- nistrativo da Universidad Notarial Argentina. = = MALHEIROS 5VSEDITORES http://www.sbdp.org.br Carlos Ari Sundfeld FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO 4- edição, revista, aumentada e atualizada, 10- tiragem =. -MALHEIROS = ~ EDITORES FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO © CARLOS ARI SUNDFELD I a edição, 1992; 21 edição, I a tiragem, 07.1993; 2'1 tiragem, 03.1996; 3a- edição, I a tiragem, 02.1997; 2a- tiragem, 01.1998; 3a- tiragem, 10.1998; 4a- tiragem, 02.1999; 4a edição, I a tiragem, 02.2000; 2a tiragem, 03.2001; 3a- tiragem, 02.2002; 4a- tiragem, 03.2003; 5a tiragem, 04.2004; ' 6a- tiragem, 05.2005; 7a tiragem, 04.2006; 8a- tiragem, 05.2007; 9X tiragem, 03.2008. ISBN 85-7420-170-7 Direitos reservados desta edição por MALHEIROS EDITORES LTDA. Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 CEP 04531-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3078-7205 Fax: (11) 3168-5495 URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: malheiroseditores@terra.com.br Composição PC Editorial Ltda. Capa Criação: Vânia Lúcia Amato Arte: PC Editorial Ltda. Impresso no Brasil Printed in Braiil 04.2009 http://www.malheiroseditores.com.br mailto:malheiroseditores@terra.com.br Para Ticiana Prefácio A Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Pau- lo, sob a liderança de ELIZABETH NAZAR CARRAZZA, criou a disciplina de Fundamentos de Direito Público, como resultado de luta, prega- ção e proselitismo de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, MICHEL TEMER, ADILSON DALLARI, ROQUE CARRAZZA e nosso. Estávamos, há muitos anos, convencidos da necessidade dessa inovação. Como advogados, estudiosos e professores, pensamos que o ensino jurídico no Brasil está muitos anos defasado, inclusive quanto ao currículo dos cursos de graduação, que é quase o mesmo que o do começo do século. Sua principal deformação está na des- proporção entre as cargas de ensino de direito público e privado, respectivamente. Como se ainda vivêssemos em 1910, dá-se ao es- tudante a impressão falsa de que o mundo do direito é formado pelo direito civil, comercial e penal. Mais grave fica o panorama quando se verifica que a maioria dos estudantes - e mesmo dos já graduados - supõe que a lei geral de aplicação de normas jurídicas (entre nós impropriamente designada Lei de Introdução ao Código Civil) é de direito privado, levando ao equívoco de pensar que o direito civil é matriz do direito. Tal pers- pectiva privatista é deformante e tem gravíssimas repercussões na própria vida institucional. Daí o ignorar-se que o direito administrativo é o direito comum da administração pública (RUY CIRNE LIMA) e norma reguladora das relações entre administração e administrados. Daí o menoscabo pelo direito constitucional e pelo direito público em geral. Tudo isso num contexto errí que os litígios de direito público, estatisticamente, já são quase a metade do movimento dos Tribunais, chegando as rela- ções de direito público a expandir-se até estender-se a quase todos os confins da atividade humana. Não pode surpreender, assim, o mau desempenho dos diplo- mados (bacharéis em direito), nesse clima. Por outro lado, isso en- 8 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO gendra um círculo vicioso: a maioria dos bacharéis atuantes vê o mundo pela ótica do direito civil e é levada a assim modelar suas próprias funções e ver as dos demais. Daí que os programas de con- cursos públicos para cargos jurídicos tenham escandalosa predomi- nância de matérias privatistas, o que incentiva estes estudos, com prejuízo do direito público. Conseqüência é o desconhecimento, e decorrente desprestígio, do direito constitucional e demais setores publicísticos que, ou são ignorados, ou tratados com técnicas, prin- cípios, espírito e perspectiva privatísticas pelos aplicadores, inclu- sive judiciais. Não é de estranhar, nesse clima, os avanços do totalitarismo: má legislação,escassa literatura e deficiente jurisprudência de di- reito público, com conseqüente insegurança do administrado diante do Estado, e dificuldade na evitação dos casuísmos, arbítrios, omis- sões e abusos dos agentes públicos diante de uma cidadania inerme e indefesa, como que desarmada pela ignorância dos operadores ju- rídicos. Como romper esse círculo vicioso? Ensinando, desde o ingres- so na Faculdade de Direito, que o direito constitucional é a matriz de todo o direito e que o direito público é, no mínimo, tão impor- tante como o privado, para a vida social. Daí a criação dessa disciplina, que vem sendo ministrada com sucesso e excelente acolhimento pelos alunos, com notáveis resul- tados, inclusive para os estudantes de vocação privatística. Estas breves considerações mostram bem quão oportuno é este livro de texto, a servir de material para instrução, orientação e ani- mação do curso. A dedicação e idealismo do professor CARLOS ARI SUNDFELD, em tão pouco tempo, permitiram-lhe criar este instrumen- to, que terá utilidade bem mais ampla do que a imaginada por ele mesmo. Uma Faculdade de Direito que há muito deu ênfase ao direito público (2 anos de carga de direito constitucional, administrativo e tributário) e que foi fundada por publicistas como OSWALDO ARA- NHA BANDEIRA DE MELLO, CARVALHO PINTO, MEIRELLES TEIXEIRA, FRAN- CO MONTORO e tantos outros, é pioneira mais uma vez, implantando, com êxito, esta disciplina, no primeiro ano de seu currículo. Pioneiro é também, por isso mesmo, este livro, elaborado tão eficientemente por um de seus mais ativos professores, como CAR- PREFÁCIO 9 LOS ARI SUNDFELD, que põe, de modo didático e claro, as questões básicas, os princípios e a própria categorização do direito público. Ensina o professor CARLOS ARI o sistema de direito público, habituando o aluno a "pensar" em termos juspublicísticos. Mostra o universo jurídico em suas facetas geral e pública, dando-lhe visão mais ampla e abrangente, liberando-o, por antecipação, dos deleté- rios preconceitos civilistas. O senso didático do professor CARLOS ARI - apoiado em vasta experiência e ampla cultura jurídica - conduz o aluno, ao longo da leitura, de modo suave e seguro, tomando essa iniciação atraente e espontânea. Estou certo de que não só os estudantes, mas todos os estudio- sos do direito terão grande proveito com a leitura e meditação des- tas excelentes lições. Daí o alcance desta obra inovadora que, como disse, transcen- de seus objetivos imediatos. GERALDO ATALIBA Sumário Introdução 15 I a Parte PODER POLÍTICO E DIREITO Capítulo I - Regulação jurídica do Poder Político 1. Poder 19 2. Poder político 20 3. Estado-poder e Estado-sociedade 22 4. Direito público e direito privado 24 5. Plano 27 Capítulo II - Evolução histórica da regulação do Poder Político 1. Introdução 29 2. Pré-história 29 3. Antigüidade 30 4. Idade Média 33 5. Absolutismo 33 6. Idade Contemporânea 35 Capítulo III- O Estado Social e Democrático de Direito 1. Estado de Direito 37 1.1 Supremacia da Constituição 40 1.2 Separação dos Poderes 42 1.3 / Superioridade da lei 45 1A Garantia dos direitos individuais 46 2. Estado Democrático de Direito 49 3. Estado social e democrático de Direito 54 Capítulo IV- O Sujeito Estado 1. O Estado é uma pessoa jurídica 59 12 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO 2. Personalidade jurídico-constitucional do Estado 66 3. Personalidade de direito público 68 4. Relacionamento externo do Estado 70 5. Descentralização política e administrativa do Estado .... 72 Capítulo V - Atividades do Estado 1. Introdução 75 2. Atividade dos particulares ' 77 3. Exploração pelo Estado de atividades dos particulares.... 78 4. Atividades estatais 79 4.1 Atividades instrumentais 80 4.2 Atividades-fim: 80 4.2.1 Relacionamento internacional 80 4.2.2 Atividades de controle social 81 4.2.3 Atividades de gestão administrativa 82 5. Atos e fatos jurídicos 85 5.1 Fato jurídico 85 5.2 Ato jurídico 86 Capítulo VI - Uma introdução ao Direito Processual 1. O fenômeno processual no direito público 89 2. Noção de processo 94 3. Relação jurídico-processual 97 4. Esquema geral dos processos estatais 98 4.1 Processo legislativo 99 4.2 Processo judicial 100 4.3 Procedimento administrativo 101 Capítulo VII- O que é Direito Administrativo? 102 Capítulo VIII - Equilíbrio entre Autoridade e Liberdade 1. A sociedade como titular e destinatária do poder 109 2. Competência 112 3. Direitos dos particulares 115 2 a Parte O DIREITO PÚBLICO Capítulo IX-Direito e Ciência Jurídica 1. Introdução 121 SUMÁRIO 13 2. Normas jurídicas. Os mundos do ser e do dever-ser 123 3. Sistema jurídico 126 4. Direito e ciência jurídica 129 5. A atividade do profissional do direito 132 6. Divisão da ciência jurídica em ramos 134 Capítulo X-A Dicotomia Direito Público x Direito Privado 1. A dicotomia público x privado 138 2. A dicotomia público x privado no direito 139 3. Distinção entre direito público e direito privado com base no regime jurídico 140 Capítulo XI - Os Princípios no Direito 1. Princípios e ciência do direito 143 2. Os princípios jurídicos são parte do ordenamento 145 3. Importância dos princípios no direito público 147 4. Utilidade dos princípios na aplicação do direito 147 5. Princípios explícitos e implícitos 148 Capítulo XII - Princípios Gerais do Direito Público 1. Introdução 152 2. Autoridade pública 154 3. Submissão do Estado à ordem jurídica 158 4. Função 163 5. Igualdade dos particulares perante o Estado 167 6. Devido processo 173 7. Publicidade 177 8. Responsabilidade objetiva 180 9. Igualdade das pessoas políticas 185 Bibliografia 187 • • • mm m • Introdução Terminei este livro em 1991, para festejar o nascimento da Ti- ciana. Quis fazer um texto apaixonado, espontâneo, simples, sem preconceitos - como são as crianças. O objetivo era didático: apoiar meu curso de Fundamentos de Direito Público na Faculdade de Di- reito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Os anos se passaram. O livro desprendeu-se de mim: saiu a an- dar sozinho por aí, fez seus próprios amigos, viajou por salas de aula em tantas Faculdades do Brasil, foi sendo reeditado. Mas este- ve sempre próximo, acompanhando-me a vida. Viu nascer o Adria- no (que ganhou seu próprio livro), a Roberta querida a meu lado, meus pais Ary e Zezé me olhando como menino - isso é tão bom. Teve grande responsabilidade na criação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Aproximou-me de alunos, que viraram assis- tentes, passaram a professores, agora são doutores. Aqui vai uma nova edição, adaptada às mudanças constitucio- nais recentes e com mais um capítulo, falando do direito adminis- trativo. Espero que vocês gostem. Reproduzo, ainda agora, o Prefácio que o Prof. Geraldo Atali- ba escreveu para a 1- edição. E um jeito de ouvir seu estímulo, de sentir seu espírito, de dizer obrigado, de matar as saudades... Preciso agradecer a muita gente. Os Profs. Jacintho de Arruda Câmara e Vera Cristina Scarpinella Bueno ajudaram na atualização. Os Profs. Benedicto Pereira Porto Neto, Cássio Scarpinella Bueno, Floriano Azevedo Marques Neto e Márcia Pellegrini, entre tantos outros, foram e são companheiros dos cursos. Os Profs. Agustín Gordillo, Aires Barreto, Celso Antônio Bandeira de Mello, Marce- lo Fig/ieiredo, Márcio Cammarosano e Weida Zancaner estão entre os qt/e colaboraram com idéias. Álvaro e Suzana Malheiros vêm cuidando com carinho da publicação. Falo mais uma vez com a Ticiana, que já entende tudo. Aqui está seu presente, minha filha. Feito de palavras e idéias. Pura vida. I a Parte Poder Político e Direito Capítulo I Regulação jurídica do Poder Político 1. Poder. 2. Poder político. 3. Estado-poder e Estado-sociedade. 4. Di- reito público e direito privado. 5. Plano.1. Poder 1. Os seres humanos não vivem sós. Buscam sempre, por di- versos modos, estabelecer relações as mais variadas com seus se- melhantes: comunicam-se, trocam bens, unem esforços em ativida- des comuns, compartilham os espaços. A vida humana é, essencial- mente, uma experiência compartilhada. A vida impõe, portanto, a formação de grupos sociais. Cada indivíduo participa de inúmeros grupos, no interior dos quais mantém relações. Inicialmente, todos integram o grupo de ha- bitantes da Terra, vinculados por interesses em parte semelhantes - a preservação da paz e da natureza, o respeito mútuo - e em parte distintos - a disputa por territórios, o pagamento de dívidas interna- cionais. Depois, esse grande grupo vai se dividindo, quase ao infi- nito, em múltiplos outros: o dos habitantes de um mesmo continen- te, o dos nacionais de um país, o dos moradores de uma cidade, o dos empregados de uma empresa, o dos membros de um partido político, o dos integrantes de uma família. A convivência, seja dos indivíduos no interior desses grupos, seja de cada grupo com os demais, depende de um fator essencial: da existência de regras estabelecendo como devem ser as relações entre todos. Os integrantes de cada grupo social - uma família, uma em- presa, um clube, uma cidade, um país, o mundo - vivem sob regras comuns. Em uma palavra: a convivência depende da organização. 20 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO O grupo social pode ser definido, portanto, como a reunião de indivíduos sob determinadas regras. 2. Para existirem tais regras, alguma força há de produzi-las; para permanecerem, alguma força deve aplicá-las, com a aceitação dos membros do grupo. A essa força, que faz as regras e exige o seu respeito, chama-se poder. Norberto Bobbio, mencionando a distinção de três correntes explicando o significado do poder, indica que a mais aceita "esta- belece que por 'poder' se deve entender uma relação entre dois su- jeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria. A mais conhecida e também a mais sintética das definições relacionais é de Robert Dahl: 'A in- fluência (conceito mais amplo, no qual se insere o de poder) é uma relação entre atores, na qual um ator induz outros atores a agirem de um modo que, em caso contrário, não agiriam' (1963, trad. it., p. 68). Enquanto relação entre dois sujeitos, o poder assim definido está estreitamente ligado ao conceito de liberdade; os dois concei- tos podem então ser definidos um mediante a negação do outro: o poder de A implica a não-liberdade de B. A liberdade de A implica o não-poder de B" (Estado, Governo, Sociedade, p. 78). Em todo grupo, um, ou alguns, dos membros exerce sobre os outros o poder: na família, os pais sobre os filhos; na empresa, o diretor sobre os gerentes, os gerentes sobre os chefes de seção, os chefes sobre os demais. 2. Poder político 3. Se é certo que em todo grupo organizado há um poder, exis- tem, no entanto, diferentes espécies de poderes e, em conseqüên- cia, diferentes espécies de grupos sociais. Dentro da empresa, o po- der do patrão sobre o empregado resulta da dependência econômi- ca: o empregado insubmisso (que não aceita o poder do patrão) per- de o emprego. No clube, o poder da diretoria se expressa, entre ou- tros meios, pela possibilidade de punir os associados. Ao pensarmos no Brasil como um grupo de pessoas (brasilei- ras e estrangeiras) organizadas sob determinadas regras, que permi- tem a convivência de todas, verificamos ser ele também um grupo REGULAÇÃO JURÍDICA DO PODER POLÍTICO 21 social, pertencente à espécie a que chamamos de Estado. Então, no Estado brasileiro há um poder, que sujeita todos os habitantes do país. Damos a esse poder a designação de poder político. Qual a peculiaridade dele, a determinar sua distinção em relação aos de- mais tipos de poderes existentes? 4. A primeira característica do poder político é a possibilidade do uso da fo rça física contra aqueles que não se comportem de acor- do com as regras vigentes: quem não obedece à proibição de matar seu semelhante é perseguido e preso; quem não paga os impostos é privado de seus bens. É verdade ser uma exceção o uso, pelo Esta- do, da força física contra os membros do país. Mas essa possibili- dade existe, como último recurso contra os insubmissos, e é em vir- tude dela que as pessoas, normalmente, aceitam, sem resistir, as im- posições do Estado. Isso não é tudo. O que há de significativo no Estado é o fato de ele reservar para si, com exclusividade, o uso da força. O Estado nega, a quem por ele não autorizado, o direito de usar a força con- tra os outros indivíduos. Assim, a segunda característica fundamen- tal do poder estatal é a de não reconhecer a ninguém poder seme- lhante ao seu. Então, a peculiaridade do poder do Estado (poder político) é, de um lado, o basear-se no uso da força física e, de outro, o reser- var-se, com exclusividade, o uSo dela. "Uma vez reduzido o conceito de Estado ao de política e o con- ceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido torna-se o de diferenciar o poder político de todas as outras formas que pode assumir a relação de poder. (...) O poder político vai-se assim iden- tificando com o exercício da força e passa a ser definido como aque- le poder que, para obter os efeitos desejados (retomando a defini- ção hobbesiana) tem o direito de se servir da força, embora em últi- ma instância, como extrema ratio. (...) Se o uso da força é a condi- ção necessária do poder político, apenas o uso exclusivo deste po- der lhe é também a condição suficiente" (Norberto Bobbio. Estado, Governo, Sociedade, pp. 78-80 e 81). 5. Decorrem disso duas conseqüências muito importantes. A primeira: o poder do Estado se impõe aos demais poderes existen- tes em seu interior, razão pela qual lhes é superior. Os poderes do 22 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO patrão, do pai, do sindicato, da diretoria do clube, são subordinados ao poder do Estado. A segunda: o Estado não reconhece poder ex- terno superior ao seu. O Estado brasileiro não admite que o alemão exerça qualquer poder sobre as pessoas residentes no Brasil. A isso denominamos soberania. 6. Resumindo, o grupo organizado de pessoas chamado Estado: a) mantém-se com o uso da força; b) reserva para si seu uso exclusivo; c) não reconhece poder interno superior ao seu; d) não reconhece poder externo superior ao seu (é soberano). 3. Estado-poder e Estado-sociedade 7. Mas, no interior do Estado, como em todo grupo, há alguém que exerce o poder e quem se submete a ele. Quem é, dentro do Estado, o detentor do poder e quem é seu destinatário? Chamaremos o detentor do poder político de Estado-poder e seu destinatário de Estado-sociedade. O Estado-poder é integrado por aqueles que definem as regras de convivência na sociedade e as aplicam, com o uso da força, se necessário: o presidente da repúbli- ca, os ministros, os deputados e senadores, os governadores, os de- putados estaduais, os prefeitos, os vereadores, os juizes, os servido- res públicos em geral. O Estado-sociedade é formado por todos os habitantes do país. —8. O Estado-poder cria e faz cumprir as regras regendo as rela- ções das pessoas dentro do Estado-sociedade: as de relacionamento entre pais e filhos, patrão e empregado, credor e devedor, entre vi- zinhos. Quem não as cumpre espontaneamente, sujeita-se ao uso da força, pelo Estado-poder, para a obtenção da obediência. A essas regras, criadas pelo Estado-poder e impostas com o uso da força, chamamos de normas jurídicas. Normas são regras de conduta. A regra segundo a qual as pes- soas não devem comer à mesa com as mãos também é uma norma, pois também pretende impor condutas. Porém, não é norma jurídi- ca. A razão é simples: sua observância não pode ser imposta com o uso da força. Se não atentar a ela, não mais serei convidado a jantar REGULAÇÃO JURÍDICADO PODER POLÍTICO 23 com os amigos, mas não serei por eles fisicamente constrangido a usar os talheres. A regra pela qual os pais devem alimentar os fi- lhos é norma jurídica: se descumprida, pode levar à prisão do pai, imposta pelo Estado-poder. 9. O Estado-poder não é um ser humano, não é pessoa no sen- tido comum da palavra. Vimos que é integrado por indivíduos. No entanto, quando realizam as atividades do Estado-poder, seus inte- grantes não o fazem como se cuidassem de suas próprias vidas, mas sim como se, naquele momento, fossem outras pessoas. Quando o servidor público varre a rua, quem está limpando a cidade é o Esta- do-poder. Quando o Presidente da República expulsa estrangeiro do país, quem pratica o ato é o Estado-poder. Quando o juiz condena um criminoso, a sentença é do Estado-poder. Assim, pode-se dizer que esses indivíduos agem no lugar de outra pessoa (o Estado-po- der), que só existe em nossa imaginação. Essa pessoa imaginária é uma pessoa jurídica. O Estado-poder é uma pessoa jurídica. Para maior facilidade, passemos a chamá-lo simplesmente de Estado. O Estado, como pessoa que é, relaciona-se com os membros da sociedade. O Estado se relaciona com o criminoso, quando o condena à prisão; com a empresa, quando a contrata para fazer a limpeza de prédio público; com o servidor público, quando o demi- te do trabalho; com todos os indivíduos, quando edita normas jurí- dicas regendo suas vidas. Existirão regras estabelecendo os termos da convivência da pessoa Estado com os membros da sociedade? (Quando alguém pode ser condenado à prisão? Quais os direitos e deveres da empresa que contrata com o Estado? E possível demitir servidor público? Como deve ser feita a norma que vai reger a vida dos indivíduos?) O que regula tudo isso são normas jurídicas. Existem, portan- to, normas jurídicas para reger a relação da pessoa Estado com as demais pessoas. Interessante perceber que, sendo normas jurídicas, essas regras devem ser obedecidas, seja pelos indivíduos, seja pelo Estado. Daí a dúvida: se o Estado não cumprir as normas (condenando alguém indevidamente à prisão, deixando de pagar a empresa pelos servi- ços realizados, demitindo servidor que não podia ser dispensado, 24 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO editando normas sem observar os requisitos necessários), quem vai obrigá-lo a se submeter, usando até a força, se necessário? Veremos mais tarde que é o próprio Estado quem fará isto. Parece imprová- vel, à primeira vista, que o Estado constranja a si próprio, mas exis- tem mecanismos adequados para garantir o funcionamento do sis- tema. 4. Direito público e direito privado 10. Vimos até aqui que as relações dos membros da sociedade entre si (o marido com sua mulher, os comerciantes com os consu- midores, os empregados com seus patrões, o locador com o inquili- no) são regidas por normas jurídicas. E, também, as relações entre o Estado e os membros da sociedade (indivíduos em geral, empre- sas, servidores públicos) são regidas por normas jurídicas. O conjunto de todas essas normas forma o Direito. Para facili- tar seu estudo, vamos dividi-lo em dois grandes grupos: o direito público e o direito privado. Veremos mais tarde qual a utilidade e sentido exato dessa distinção. Por ora, podemos trabalhar com es- tas noções aproximativas (um tanto imprecisas, ainda): a) O direito privado é formado pelo conjunto de normas regen- do as relações dos indivíduos entre si, dentro do Estado-sociedade (relações de família, relações dos comerciantes entre si e entre co- merciantes e seus clientes, relações entre locador e inquilino, e ou- tras mais); b) O direito público é formado pelo conjunto de normas que regulam as relações entre Estado e indivíduos (relações Estado-ser- vidor, Estado-empresa etc.). 11. Podemos, agora, ampliar um pouco a idéia de direito públi- co, embora sem pretender um conceito científico. O Estado, sendo pessoa jurídica, é integrado por muitos indiví- duos, que realizam (cada qual como se fosse o próprio Estado) as várias atividades estatais: produzir leis (uma das espécies de nor- mas jurídicas), julgar os acusados de crimes, prestar os serviços pú- blicos (como os de transporte coletivo e iluminação urbana), e as- sim por diante. Chamamos esses indivíduos de agentes públicos (o governador de Roraima, o juiz de Piraçununga, o deputado federal REGULAÇÃO JURÍDICA DO PODER POLÍTICO 25 do Paraná, o fiscal de rendas, o procurador da república). É claro que os agentes públicos não escolhem, por sua vontade, a atividade estatal que vão desenvolver. Cada qual tem sua competência, sua atribuição. Vários agentes integram um órgão (os procuradores da república integram a Procuradoria Geral da República). A divisão de competências entre os vários agentes (O que faz um governa- dor? O que faz um fiscal?) e entre os vários órgãos (Qual a atribui- ção do Ministério da Fazenda? E da Secretaria da Segurança Públi- ca?) é estabelecida em nonnas jurídicas. Nonnas de direito público, é evidente, por tratarem da organização da pessoa jurídica Estado. Ainda mais. O Estado brasileiro trava relações com outros Es- tados (o argentino, o indiano, o italiano), celebrando tratados, tro- cando embaixadores, fazendo intercâmbio científico. Essas relações são regidas por normas de direito público. 12. Agregando-se essas referências, podemos dizer que o Di- reito Público é o ramo do Direito composto de nonnas jurídicas tra- tando: a) das relações do Estado com os indivíduos: b) da organização do próprio Estado, através da divisão de competências entre os vários agentes e órgãos; c) das relações entre Estados. Perceba como esses conceitos simples são apresentados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, um dos mais importantes ju- ristas que se dedicaram, no Brasil, ao estudo do direito público: "As nonnas jurídicas que organizam o Estado-poder e regulam a sua ação, seja em relação com outros Estados, seja em relação com a própria entidade, através dos seus órgãos, ou com outras pes- soas, que receberam o encargo de fazer as suas vezes, ou mesmo com terceiros, particulares, no Estado-sociedade, a fim de realizar o objetivo deste, são de valor social diferente das nonnas jurídicas prescritas para regerem as relações dos particulares, entre si, ou das comunidades por eles formadas. "Isto se explica porque ordenam institutos jurídicos para o Es- tado-poder alcançar o bem comum dos indivíduos coletivamente considerados, como elementos do Estado-sociedade, como partici- pantes de um todo político. Não se confundem com os oferecidos aos particulares para alcançarem imediatamente o seu bem indivi- 26 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO dual, de cada qual isoladamente considerado, nas suas relações re- cíprocas. "Fundamentam, destarte, a distinção do direito em dois ramos distintos: público e privado" (Princípios Gerais de Direito Admi- nistrativo, vol. I, p. 13). —^ 13. Voltando, agora, à idéia de poder político, é fácil constatar que o direito público compõe-se das normas jurídicas reguladoras do seu exercício. Definimos o poder político como aquele que, para obter os efeitos desejados (para obrigar os indivíduos a respeitarem suas determinações), tem o direito exclusivo de se servir da força e que não reconhece poder superior ao seu, interno ou externo. O di- reito público disciplina as relações entre o Estado (que detém o po- der político) e os indivíduos (que sofrem o poder político), organi- za a distribuição do poder político dentro da pessoa jurídica Estado (entre os diversos agentes e órgãos) e regula as relações entre os vários Estados (isto é, entre os detentores de poder político). 14. Nosso curso, de fundamentos do direito público, estuda a regulação jurídica do poder político, isto é, as nonnas jurídicas que disciplinam sua organização (dentro da pessoa jurídica Estado) e seu exercício, nas relações com quem sofre o poder (os indivíduos) e com os outrosEstados. Veja que não estudaremos o próprio poder político, mas as nor- mas jurídicas que o regulam. Portanto, não veremos a sociologia do poder, a história do poder, a psicologia do poder, mas apenas o di- reito do poder. Em suma, cuidaremos da ciência do direito público (estudo das normas que regulam o poder político). 15. Só se conhece o direito público depois de saber o modo como as normas regulam o poder político (É ele limitado? Como é dividido seu exercício? O indivíduo tem instrumentos jurídicos para se opor ao poder político? Um Estado obedece às leis do outro?). Até este momento, sabemos apenas qual será o objeto do estudo. Por isto, não podemos ainda definir o direito público: antes, preci- samos descobrir as características dele, em seus aspectos fundamen- tais. Também não há como indicar ainda o que o distingue, em es- sência, do direito privado. Qual a distinção entre um macaco e um REGULAÇÃO JURÍDICA DO PODER POLÍTICO 27 ganso? Certamente não é o fato de terem nomes diferentes; antes, ao contrário: têm nomes distintos porque têm características diversas. Em outras palavras, queremos dizer que a reunião, em dois conjuntos distintos (direito público/direito privado), de certas nor- mas jurídicas resulta de havermos constatado que as nonnas do con- junto que chamamos direito público regulam as relações delas ob- jeto (as relações do poder político) de modo radicalmente diverso do que as normas do conjunto direito privado disciplinam as rela- ções de que se ocupam (outras relações que não as envolvidas com o poder político). 5. Plano 16. Sendo certo que o Estado exerce o poder político, o estudo da regulação jurídica deste deve esmiuçar aquele, tanto em seu as- pecto estático (enquanto ser, enquanto instituição) quanto em seu aspecto dinâmico (enquanto ação). Partindo de rápida visão sobre o progresso, através dos tem- pos, da regulação jurídica do poder político - que servirá ao menos para vislumbrar as razões que encaminharam o Estado moderno a ser como é hoje em dia fixaremos o conceito de Estado Social e Democrático de Direito. Isso porque não nos interessa verificar o modo de ser do direito público de qualquer Estado, mas sim o do tipo de Estado no qual o brasileiro atual se classifica. Com esse pano de fundo, iniciaremos um percurso que nos leve a surpreender o poder político em seus aspectos quem?, o quê?, como? e para quem?. 17. A análise réveíará que o Estado é pessoa jurídica (dando significado à afirmação nesse sentido lançada um pouco acima), mostrando como se estnitura e como se relacionam seus agentes e órgãos. O primeiro ponto, então, consiste no exame do Estado en- quanto sujeito de direito. O segundo tópico destina-se a apontar o que faz o Estado, quais são suas atribuições. Relevante, aí, será não apenas conhecer as ati- vidades em si, como, sobretudo, saber de sua repercussão jurídica na vida social. Resultará, igualmente, uma nítida distinção entre o campo público de atividades (o setor das atividades reservadas ao 28 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO Estado) e o campo privado de atividades (o setor reservado aos in- divíduos). Prosseguindo, teremos noção de como se exerce o poder, das várias etapas que demanda a produção de um ato estatal e da ma- neira como os indivíduos podem participar. A seguir, será hora de verificar a posição em que o Estado se apresenta em face do indivíduo e este em face daquele. Em outras palavras, de saber quais são os termos das relações jurídicas entre eles. Descobriremos, então, que o direito público não é - como po- deria parecer, inicialmente, de um ramo jurídico relativo à discipli- na do poder político - um direito autoritário, mas certamente o oposto: um conjunto de nonnas cuja finalidade primordial é cercear o poder e, como conseqüência, proteger os indivíduos. 18. Delineado o painel inicial, poderemos aprofundar e tornar mais precisos nossos conhecimentos, o que faremos estudando em seqüência o direito e a ciência jurídica, a grande dicotomia direito público x direito privado, a função dos princípios no direito e, fi- nalmente, os princípios gerais do direito público. Capitulo 11 Evolução histórica da regulação do Poder Político 1. Introdução. 2. Pré-história. 3. Antigüidade. 4. Idade Média. 5. Abso- lutismo. 6. Idade Contemporânea. 1. Introdução 1. Um estudo jurídico do direito público há de ser feito a partir das nonnas vigentes em dado país, num certo momento. Os proble- mas jurídicos não se resolvem, de fato, senão com o exame do di- reito positivo. As cogitações históricas, políticas e ideológicas não são, enquanto tais, atribuição específica dos juristas. Contudo, o Direito é fruto de produção cultural, longamente sedimentada, sendo por vezes impossível compreendê-lo sem situá- lo dentro da história. Em outras palavras: o Direito consagra certos modelos cujo sentido advém do contexto histórico, ideológico ou político em que concebidos. Quando se fala, hoje, em direito públi- co, faz-se referência a um plexo de idéias consagradas moderna- mente, sobretudo após as Revoluções Americana e Francesa, em tomo das relações entre indivíduo e Estado, mas que nem sempre foram aceitas e aplicadas. Por isso, como introdução á análise jurí- dica do direito público e, em certa medida, como condição dela, faz- se necessário urarexame pré-jurídico, que revele seu significado cul- tural. 2. Pré-história 2. Nos primórdios - pensemos no homem das cavernas - as relações humanas também adotavam estnituras de poder. Evidente que o caçador, ao usar da força para impedir o outro de se apoderar do animal abatido, estabelece com ele relação de poder. 30 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO É difícil, porém, identificar poder político em um grupo pré- histórico nômade. Por razão muito simples: o emprego da força não era reservado a ninguém. Ao contrário, todos disputavam suas po- sições no grupo através da força. Eram instáveis, em conseqüência, as posições no grupo, dependendo do resultado das disputas físi- cas, que se sucediam. 3. Na medida em que o homem começa a se fixar na terra e os grupos vão se organizando em tomo de certas regras mais ou me- nos estáveis - sobretudo as que permitem a determinação de quem manda e quem obedece começa a surgir poder político, ainda que embrionário. Pensemos na comunidade indígena - o exemplo atual de socie- dade primitiva - e na existência de um cacique e um pajé: estes exercem poder político dentro do grupo. Há regulação jurídica do exercício desse poder? Em verdade, sim, porém de modo muito limitado. Realmente, observam-se re- gras de sucessão na posição de chefe (passando de pai para filho, por exemplo), de divisão de atribuições (indicando as do cacique, as do pajé), de solução de conflitos. As regras sobre o exercício do poder são, entretanto, em pequeno número, mesmo porque são pou- co extensas as atribuições dos chefes. Não há Estado em sociedade como esta, dada a extrema sim- plicidade da estrutura de poder e sua não-institucionalização. 3. Antigüidade 4. A cidade é a unidade política, não só dos gregos, como de toda antigüidade clássica. O grego é um cidadão, integrante da ci- dade, de cujos órgãos participa. A lei é elemento essencial da identificação do grego com a ci- dade: a coesão desta vem daquela. O grego sente orgulho de se sub- meter a uma ordem (à lei), não à vontade de um homem. Entretan- to, a concepção grega de lei - que vigorará por longos séculos - difere substancialmente da atual. A lei para os antigos era sagrada e imutável, sendo atribuída a um poder divino, e, desse modo, inte- grando a religião. Isso explica por que não se podiam identificar normas regulando o exercício do poder de editar leis (isto é, de edi- EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO 3 1 tar as nonnas disciplinando as relações dos indivíduos entre si, que hoje chamamos como nonnas de direito privado): ou não se reco- nheciaaos homens tal poder - embora, de fato, sempre tenha sido usado pelos poderosos - , ou se o reconhecia a título de exceção, ou era explicado pelo poder divino dos soberanos. 5. O julgamento dos conflitos envolvendo os indivíduos desde tempos imemoriais foi assumido pelas autoridades públicas, embo- ra sem a exclusão imediata de membros da comunidade em certas decisões. Conftido, isso não levou à identificação da atividade de julgar como regulada por um direito público, diverso do direito pri- vado que se visava aplicar. As normas regendo a atividade de julgar (que hoje incluímos no direito processual, um dos ramos do direito público) eram entendidas como parte do direito civil (ramo do di- reito privado). Os tribunais só conheciam das demandas entre cidadãos, não se cogitando do exame judicial de questões envolvendo o Poder Público. Vale dizer: não havia como questionar, perante um órgão julgador, o desrespeito pelos detentores do poder político das nor- mas que regulavam seu exercício. "Mesmo depois de passar a ser missão do Estado, a proteção dos direitos continuou circunscrevendo-se à proteção dos cidadãos entre si. Os tribunais públicos não podiam conhecer nem das pre- tensões do Estado ou contra o Estado nem das transgressões da or- dem sacra ou doméstica. O Estado se encontrava acima dos tribu- nais. A sanção dos crimes contra o Estado cabia apenas aos magis- trados competentes, com a intervenção, quando necessária, dos co- míciõs (iudicium publicum, provocatio adpopulum). A solução dos litígios entre o Estado e os particulares com relação aos contratos competia, do/nesmo modo que o exercício dos direitos públicos ad- ministrativ0s, aos funcionários que gozavam do necessário poder coer- citivo (çoercitio), sem fiscalização judicial e sem intervenção de jui- zes" (Robert Von Mayr, História dei Derecho Romano, v. I, p. 105). 6. A administração dos negócios públicos (recolhimento de impostos, policiamento da ordem na cidade etc.) sempre esteve con- fiada a certos agentes públicos. Contudo, freqüentemente, essa ati- vidade se confundiu com a de editar nonnas, estando ambas em po- der de um soberano. Em rigor, desconhecia a distinção entre as ati- 32 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO vidades legislativa e executiva, que só poderá ser feita com clareza quando, a partir sobretudo das idéias de Rousseau, afirmar-se o princípio da superioridade das leis. Ademais, não se podia cogitar de regras cogentes (de observância obrigatória) a regular o exercí- cio das funções administrativas, eis que não se conhecia a idéia de direito individual. Por isso, é totalmente descabido falar de um di- reito administrativo da época. 7. Cumpre ressaltar devidamente a inexistência, na antigüida- de, dos direitos individuais. E certo que, na Grécia, as idéias de liberdade e de igualdade ocupam espaço fundamental no pensamento político. Porém, são inconfundíveis as concepções grega e moderna de liberdade. A li- berdade para os helênicos era, essencialmente, a oportunidade de participar dos negócios públicos, de cumprir uma função na cidade, de se submeter à lei (liberdade política), e a não sujeição corporal de um cidadão a outro (liberdade civil). Como a cidade, enquanto instituição, era o instrumento da li- berdade, esta não seria oponível àquela. Inexistia um direito à liber- dade individual contra a autoridade. Fustel de Coulanges, demonstrando que os antigos não conhe- ceram o conceito individualista de liberdade, escreve: "Singular erro é, pois, entre todos os erros humanos, acreditar-se que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha, sequer, a mais ligeira concepção do que esta fosse. Ele não se julgava ca- paz de direitos, em face da cidade e dos deuses". E, mais adiante: "ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, poder ser arconte, a isto se chamou liberdade; mas o homem, no fundo, jamais deixou de ser escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da sociedade e isto, sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade se revestiu na origem" (A Cidade An- tiga, p. 185). 8. A distinção teórica entre direito público e privado foi for- mulada pelos romanos, que desenvolveram intensamente a doutrina privatista. Entretanto, inexistindo uma consciência clara, à época, da diferença entre o poder político e outras espécies de poderes, como acabamos de examinar, seria impossível levar muito longe os EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO estudos em tomo da regulação jurídica do poder político (do direito público), que teriam de aguardar muitos séculos até que pudessem adquirir feição. 4. Idade Média 9. O advento da Idade Média, com a dispersão da autoridade entre inúmeros centros de poder (os reis, a Igreja, os senhores feu- dais, as corporações de ofício etc.), torna mais complicada a identi- ficação de normas de direito público a regerem as relações entre os poderosos e os indivíduos. Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislati- va, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as corporações e explicadas com o recurso a idéias va- riadas. A aspiração da Igreja em erigir um Império da Cristandade e a conseqüente pretensão de interferir em assuntos temporais esta- rá fundada na religião. Os poderes militares, administrativos, fis- cais e jurisdicionais dos senhores feudais serão explicados pela situa- ção patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado. Dalmo Dallari bem analisa a situação do período: "Conjuga- dos os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo, a inva- são dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do Estado Medieval, mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multi- plicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comynal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender, era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe da criação do Estado Moderno" (Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 62). 5. Absolutismo 10. A Idade Moderna, com a centralização do poder em tomo de um soberano, permitirá enfim a identificação mais clara das re- gras a regerem as relações deste com seus súditos. 34 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO O período se caracteriza pela formação do Estado, de um po- der soberano dentro de certo território, sujeitando todos os demais. A idéia de soberania, formulada originalmente por Jean Bodin (Les Six Livres de la Republique, 1576), identificará a partir de então as nonnas ligadas ao exercício do poder político. De um lado, expli- cará a unificação do poder dentro de certo território, com a submis- são de todas as pessoas à mesma ordem jurídica e o não reconheci- mento de outras ordens - as vigentes em outros territórios - como aplicáveis. É a origem do Estado Moderno. De outro lado, a mesma concepção de soberania servirá para a justificação do absolutismo. O poder soberano não encontra limitação, quer interna, quer exter- na. Será, por isso, insuscetível de qualquer controle. Parecia, ao es- pírito da época, que quem detinha o poder - de impor normas, de julgar, de administrar - não poderia ser pessoalmente sujeito a ele: ninguém pode estar obrigado a obedecer a si próprio. 11. Tentando sintetizar as normas que então disciplinavam o exercício do poder político, podemos indicar as seguintes: a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é,sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida ape- nas aos súditos. O Poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandável pelo indivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a valida- de ou não dos atos daquele. Parecia ilógico que o Estado julgasse a si mesmo ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum contro- le externo. c) O Estado era inesponsável juridicamente: le roi nepeut mal faire, the king can do no wrong. Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pública. Í$ d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da épo- ca, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. Em conse- qüência, inexistiam direitos individuais contra o Estado (o indivíduo não podia exigir do Estado o respeito às normas regulando o exercí- cio do poder político), mas apenas direitos dos indivíduos nas suas recíprocas relações (o indivíduo podia exigir do outro indivíduo a ob- servância das normas reguladoras de suas relações recíprocas). EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os confli- tos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do soberano, que jamais o alienava. 12. Como se vê, o direito público (vale dizer, as regras que re- giam o exercício do poder político) poderia ser resumido, na época, a uma norma básica: o poder deve ser acatado e é ilimitado. O notável jurista argentino Agustín Gordillo explica por que seria impossível desenvolver-se, nesse clima, o estudo do direito público: >N "No Estado de Polícia, em conseqüência, ao reconhecer-se ao soberano um poder ilimitado quanto aos fins que poderia perseguir e quanto aos meios que poderia empregar, mal poderia desenvol- ver-se uma consideração científica desse poder. Não cremos que se possa afirmar, pura e simplesmente, que não existia um Direito Pú- blico, como por exemplo disse Mayer, pois inclusive este princípio do poder ilimitado e as normas que dele emanaram constituem um certo ordenamento positivo; porém, ao menos pode-se sustentar que não existia, em absoluto, um ramo do conhecimento jurídico em tor- no do mesmo" (Princípios Gerais de Direito Público, p. 28). 6. Idade Contemporânea 13. A transformação radical da regulação do poder político, dando-lhe a feição que tem hoje e ensejando a construção da ciên- cia do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo as Revoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resul- tantes) seus marcos históricos mais notáveis. y O que há de significativo neste novo período é que os sujeitos incumbidos de exercer o poder político deixarão de apenas impor normas aos outros, passando a dever obediência - no momento em que atuam - a certas nonnas jurídicas cuja finalidade é impor limi- tes ao poder e pennitir, em conseqüência, o controle do poder pelos seus destinatários. O exemplo mais remoto de norma jurídica imposta ao poder político para limitá-lo, com a finalidade de proteger os destinatários, é o da Magna Carta da Inglatena, que os barões e prelados ingleses 36 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO impuseram ao rei em 1215. O seu § 39 dispõe: "Nenhum homem livre poderá ser detido ou mantido preso, privado de seus bens, pos- to fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira molestado, e não procederemos contra ele nem o faremos vir, a menos que por julga- mento legítimo de seus pares e pela lei da terra". —P 14. Perceba como as normas sobre o exercício do poder se am- pliam. Até então, em todas as épocas anteriores, destinavam-se a impor - praticamente sem limites e sem controles - a obediência das pessoas às determinações do poder político. Agora, cuidarão ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, submeter-se-ão ao seu julgamento, obedecerão às leis por ele produzidas); mas também - e sobretudo - de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder (os cida- dãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz nor- mas para regular a cobrança de impostos pelo Executivo, um Tribu- nal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode mover uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos...). Cunha-se, a partir de então, o conceito de Estado de Direito, isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos. 15. Não há como conhecer o direito público moderno sem ter presente a noção de Estado de Direito. Por isso, vamos estudá-la com detalhes a seguir. Contudo, a evolução da disciplina jurídica do poder político não terminou aí. A idéia de Estado de Direito, sem perder o conteúdo inicial, foi sendo enriquecida até se chegar, hoje, ao Estado Social e Democrático de Direito. Saber o que seja um Estado ao mesmo tempo de Direito, democrático e social é o objeto do Capítulo seguinte. Capítulo III O Estado Social e Democrático de Direito 1. Estado de Direito: 1.1 Supremacia da Constituição - 1.2 Separação dos Poderes - 1.3 Superioridade da lei - 1.4 Garantia dos direitos indi- viduais. 2. Estado Democrático de Direito. 3. Estado social e democrá- tico de Direito. 1. Estado de direito 1. Terminamos o capítulo anterior indicando a noção Estado de Direito como fundamental ao conhecimento das características essenciais do direito público. Estudá-la significa descobrir princípios que estão estampados em cada norma de direito público. A idéia intuitiva a respeito - dada pelo próprio sentido literal da expressão - é aquela segundo a qual Estado de Direito é o que se subordina ao Direito, vale dizer, que se sujeita a normas jurídi- cas regúladoras de sua ação. O Estado Polícia apenas submetia os indivíduos ao Direito, mas não se sujeitava a ele. O professor português Afonso Rodrigues Queiró, após enfati- zar, como nós, que "o Estado de Direito não é uma noção secundá- ria e transcurável, mas essencial, primária, um postulado, um pres- suposto teórico do direito público", explica seu conceito em termos semelhantes. Confira: "Para nós, como conceito desse tipo de Esta- do, vale o de Stahl: 'o Estado deve ser Estado de Direito (...) deve assegurar inviolavelmente e perfeitamente determinar os confins e limites de sua atividade e as esferas de liberdade dos seus cidadãos na forma do Direito'. O Estado de Direito é, para Stahl, de certo modo, um conceito formal, e é nesta medida que na ciência do di- reito público deve ser acolhido. Todas as funções do Estado - e a administrativa in specie - se devem realizar na forma do Direito e as nonnas do Direito são o quadro da atividade do próprio Estado. 38 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO (...) A fórmula de Stahl, que perfilhamos, permite dizer que os fins do Estado devem 'tecnicizar-se nas formas do Direito' (Ravà) e é o que se não passa no outro tipo técnico e histórico, o chamado Esta- do-Polícia, que por isso se opõe como 'categoria', como 'espécie fixa logicamente' (Panunzio), ao Estado de Direito. Portanto: o Es- tado do Direito Público moderno é o Estado de Direito. A sua ativi- dade realiza-se dentro de normas, e precisamente de normas jurídi- cas; assim a justiça como a Administração" (Reflexões sobre a Teo- ria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, pp. 8 e 9). 2. Adotado este ponto de partida - o Estado de Direito define e respeita, através de normas jurídicas, seja os limites de sua ativida- de, seja a esfera da liberdade dos indivíduos- , podemos agregar ainda duas idéias, para chegarmos, finalmente, ao conceito que pro- curamos. De um lado, percebemos que a vinculação do Estado à lei, para ser efetiva, exige que, dentro dele, uma mesma autoridade não seja incumbida de fazer a lei e de, ao mesmo tempo, aplicá-la. Caso con- trário, ao fazer a aplicação, poderia alterar a lei anteriormente feita. Ainda: necessária a presença de outra autoridade, também diversa das demais, para julgar as eventuais irregularidades da lei e de sua aplicação. Em outras palavras, as funções de fazer as leis (legislar), aplicá-las (administrar) e resolver os conflitos (julgar) devem per- tencer a autoridades distintas e independentes. A isso denominamos separação dos Poderes. De outro lado, essa separação não pode ser mudada pelo legis- lador, através de lei, pois, do contrário, bastar-lhe-ia exercer sua ati- vidade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz. Também, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Es- tado se este pudesse suprimi-los através de lei. Em suma, deve ha- ver uma norma superior à lei (e, em conseqüência, superior ao Es- tado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo di- reitos aos indivíduos. A essa norma chamamos Constituição. Assim, definimos Estado de Direito como o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às de- mais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamen- O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 39 te observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de di- reitos, possam opô-los ao próprio Estado. Acompanhe como Norberto Bobbio constrói seu conceito em termos semelhantes: "Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que o regulam, salvo o direito do cidadão recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abu- so e o excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito refle- te a velha doutrina - associada aos clássicos e transmitida através das doutrinas políticas medievais - da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula lex facit re- gem, doutrina, essa, sobrevivente inclusive da idade do absolutis- mo, quando a máxima princeps legibus solutus é entendida no sen- tido de que o soberano não estava sujeito às leis positivas que ele próprio emanava, mas estava sujeito às leis divinas ou naturais e às leis fundamentais do reino. Por outro lado, quando se fala de Esta- do de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acres- centar à definição tradicional uma determinação ulterior: a consti- tucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação des- ses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verda- deiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito sig- nifica não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de al- guns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio 'invioláveis' (esse adjetivo se encon- tra no art. 2 a da Constituição italiana). "(...) "Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos cons- titucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exer- cício ilegal do poder" (Liberalismo e Democracia, p. 19). 3. As pedras de toque desse novo modo de conceber as rela- ções entre os indivíduos e o Estado - cuja falta faria desmoronar todo o edifício - são, portanto: 40 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO a) a supremacia da Constituição; b) a separação dos Poderes; c) a superioridade da lei; e d) a garantia dos direitos individuais. Vamos examinar cada uma, verificando seu funcionamento e relacionamento. 1.1 Supremacia da Constituição 4. Acima das leis, produzidas pelo Estado, existe uma norma jurídica fundamental, que não é feita nem alterada por ele, estabele- cendo os termos essenciais do relacionamento entre as autoridades e entre estas e os indivíduos: a Constituição (também chamada de Carta ou Lei Magna). O ordenamento jurídico (conjunto das normas jurídicas) pode ser visto graficamente como uma pirâmide. No topo dela encontra- se a Constituição, pairando sobre todas as demais normas. A Cons- tituição define quem pode fazer leis (quem tem competência legis- lativa), como deve fazê-las (qual o processo a ser seguido) e quais os limites da lei (p. ex.: os direitos individuais, que não podem ser prejudicados pela lei). Por isso se diz que a lei tira seu fundamento de validade da Constituição. Uma lei vale, deve ser obedecida - seja pelos Poderes Executivo e Judiciário, seja pelos indivíduos porque foi feita com base e na fonna da Constituição. Um ato do Presidente da República (a nomeação de funcionário, a doação de leite para crianças desnutridas) tira seu fundamento de validade da lei; este ato vale, deve ser acatado, por haver sido produzido na for- ma e com base na lei. A sentença do juiz (condenando um crimino- so, decretando o despejo de inquilino em débito) também tira seu fundamento de validade da lei. Por isso o ordenamento jurídico é uma pirâmide: o ato administrativo e a sentença valem se estiverem de acordo com a lei, que lhes é superior; a lei vale se estiver de acordo com a Constituição, que lhe é superior. Olhando no sentido inverso, verificamos que a Constituição é o fundamento de valida- de de todas as normas do ordenamento jurídico. Nisso consiste a supremacia da Constituição. A lei editada por alguém não autorizado pela Constituição, ou cujo conteúdo viole direito individual por ela assegurado, será in- O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 41 constitucional. A norma inconstitucional, como não encontra seu fundamento de validade na Constituição, não vale, não pode nem deve ser acatada. Para garantir que leis inconstitucionais não sejam aplicadas, com isto violando os direitos individuais, a própria Cons- tituição concebe um sistema para sua eliminação do mundo jurídi- co. E o chamado controle da constitucionalidade das leis, realizado no Brasil pelo Poder Judiciário, através de ações adequadas. 5. A Constituição é feita por um Poder Constituinte. A Carta brasileira de 1969 foi ditada por três pessoas: os chefes militares auto-investidos na função de constituintes. A Carta de 1988 foi pro- mulgada por Assembléia de representantes do povo, eleita para tal finalidade. Os militares, num caso, e a Assembléia, no outro, foram o Poder Constituinte. Inexistem normas jurídicas regulando o Poder Constituinte: ele é poder de fato, não jurídico. Exerce a função de constituinte quem tiver força para fazer respeitar o conjunto de regras de organização do Estado que houver concebido. Feita a Constituição, o Poder Constituinte desaparece. Surge o Estado, como criatura da Constituição. Podemos dizer, então, que o Estado brasileiro atual nasceu, no sentido jurídico, em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da vigente Carta. A Constituição opera papel importantíssimo na sujeição do Es- tado à ordem jurídica, eis que, como norma jurídica anterior a ele, supera a dificuldade de submetê-lo às normas que por si próprio crie. A Constituição não é feita pelo Estado. Ao contrário, o Estado é fruto da Constituição. O Estado, em conseqüência, é pessoa jurí- dica, criada e regida pelo direito constitucional, que o precede. Por isso, todo seu funcionamento haverá de atender às disposições cons- titucionais. "Nãosó estarão o Poder Executivo e o Poder Judiciário sub- metidos à lei, mas também estará o legislador submetido à Consti- tuição, cujos limites e princípios não poderá violar nem alterar ou desvirtuar. Desta maneira todos os órgãos do Estado, todas as ma- nifestações possíveis de sua atividade, inclusive as que outrora se puderam considerar como supremas, estão hoje submetidas a uma nova ordem jurídica superior. Este há de ser um passo de suma im- portância para o posterior desenvolvimento do Direito Público sobre 42 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO a base dos princípios constitucionais e não só legais ou regulamenta- res" (Agustín Gordillo, Princípios Gerais de Direito Público, p. 64). 1.2 Separação dos Poderes 6. Para ser real o respeito da Constituição e dos direitos indivi- duais por parte do Estado, é necessário dividir o exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlem mutuamente. A cada um desses órgãos damos o nome de Poder. Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. A separação dos Poderes esta- tais é elemento lógico essencial do Estado de Direito. Cada Poder (isto é, cada órgão) exerce uma espécie de função. Ao Legislativo cabe a função legislativa, correspondente à edição de normas gerais e abstratas (as leis), seja para regular os demais atos estatais, seja para regular a vida dos cidadãos. Ao Executivo cabe a função administrativa, isto é, a atividade de, em aplicação da lei anteriormente editada, cobrar tributos (dos quais o imposto é uma espécie), prestar serviços (como a distribuição de água enca- nada, de geração de energia elétrica, de transporte aéreo), ordenar a vida privada (multando indústrias poluidoras, controlando o trânsi- to de veículos pelas ruas, autorizando a construção de edifícios), e assim por diante. Ao Judiciário cabe a função jurisdicional: julga, sob provocação do interessado, os conflitos entre os indivíduos (a disputa em torno da propriedade de terreno, a cobrança de dívida, a ação de divórcio), ou entre indivíduos e Estado (a ação proposta por empresa para anular multa imposta pelo Executivo, ou por ci- dadão para se livrar de imposto cobrado de forma inconstitucional). -f Os Poderes exercem suas funções com independência em rela- ção aos demais. Cada um tem suas autoridades, que não devem res- peito hierárquico às autoridades do outro Poder. O Presidente da República é impotente para dar ordens ao juiz. O Presidente do Congresso Nacional não avoca para si atribuições dos Ministros do Executivo. A cada função corresponde uma espécie de ato (de norma) es- tatal: a lei (função legislativa), o ato administrativo (função admi- nistrativa) e a sentença (função jurisdicional). A lei se submete à Constituição. O ato administrativo e a sentença são inferiores à lei. A sentença pode anular (isto é, desfazer os efeitos, tirar do mundo jurídico) o ato administrativo ilegal. O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 43 Agora está solucionada dúvida surgida no Capítulo I: se o Es- tado deve se submeter às normas jurídicas e se o descumprimento delas é sancionado (punido) pelo próprio Estado, como evitar que ele escape à sanção? A resposta é simples: o Judiciário - órgão in- dependente e, por isso, imparcial - é quem, dentro do Estado, in- cumbe-se de velar pelo respeito dos demais Poderes à ordem jurídi- ca, negando efeito às leis inconstitucionais e anulando atos admi- nistrativos ilegais. Assim, o Estado se submete à lei porque se sub- mete à jurisdição. Esse ponto é especialmente destacado por Geral- do Ataliba em obra fundamental para o direito público brasileiro: "Assim também, para que se repute um Estado como de Direito é preciso que nele se reúna à característica da subordinação à lei, a da submissão à jurisdição, nos termos postulados por Giorgio Balla- dore Palieri (v. Diritto Costituzionale, 3a ed., Milão, Giuffrè, pp. 80 e ss. Especialmente p. 85). Este notável publicista milanês insiste que só é possível reconhecer Estado de Direito onde: a) o Estado se submete à jurisdição; b) a jurisdição deva aplicar a lei preexistente; c) a jurisdição seja exercida por uma magistratura imparcial (obvia- mente, independente), cercada de todas as garantias; d) o Estado a ela se submeta como qualquer pars, chamada a juízo em igualdade de condições com a outra pars" (República e Constituição, p. 120). Em resumo, à separação de órgãos (Poderes), corresponde uma distinção de atividades (funções), que produzem diferentes atos, como segue: Poder Legislativo - função legislativa - lei; Poder Exe- cutivo - função administrativa (ou Governo) - ato administrativo; Poder Judiciário - função jurisdicional (ou justiça) - sentença. 7. Percebe-se a importância da separação dos Poderes no con- trole do exercício do poder político. Cada Poder corresponde a um limite ao exercício das atividades do outro. Assim, o poder freia o poder, evitando a tirania. A formulação teórica da divisão dos Poderes e funções do Es- tado é de Montesquieu, em sua obra clássica Do Espírito das Leis, cuja citação é inevitável. "A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Esta- dos livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos gover- nos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos governos mode- rados: só existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas 44 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tenta- do a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites. "Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela dis- posição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite. (...). "Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legis- lativo, poder executivo das coisas que dependem do direito das gen- tes, e executivo das que dependem do direito civil. "Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tem- po ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra; envia ou recebe embaixadas, esta- belece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os cri- mes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último do poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. "A liberdade política, num cidadão, é esta tranqüilidade de es- pírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. "Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratu- ra o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranica- mente. "Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. "Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três po- deres: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos" {Do Espírito das Leis, pp. 148 e 149). O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 45 1.3 Superioridade da lei 8. A lei, que, até o período medieval, era vista como sagrada e imutável e, no período absolutista, como fruto de um querer divino (que o soberano expressava), ganha, com o Estado de Direito, ca- racterística humana: passa a ser a expressão da vontade geral. A lei, destinada a reger a vida dos homens, deve ser feita por eles. "As leisnão são, propriamente, mais do que as condições da associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da socie- dade", dirá Jean Jacques Rousseau, em seu Do Contrato Social. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, acolhendo sua doutrina, estabelecerá que "a lei é a expressão da vontade geral. To- dos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, para sua formação" (art. 6Ü). 9. Sendo expressão da vontade geral, a lei impor-se-á ao pró- prio Estado, quando este se ocupar do Governo e da Justiça. Nisto consiste a superioridade da lei: na virtude de ser superior - e, por- tanto, de condicionar - aos atos administrativos e às sentenças. Des- se modo, estabelecendo-se uma hierarquia entre a lei e os atos de sua execução (atos administrativos e sentenças), criam-se os meios técnicos indispensáveis ao funcionamento da separação dos Poderes. "Parece-nos que a idéia rousseauniana da superioridade da lei (vontade geral) postula a existência duma repartição orgânica das funções do Estado, pois só se concebe que a lei seja revestida de superioridade quando há órgãos que na realização das suas funções lhe devam obediência. Quer dizer: Rousseau é insuficiente por si e só ao lado de Montesquieu o seu pensamento adquire relevância para a ciência do direito público" (Afonso Rodrigues Queiró, ob. cit., pp. 8 e 9, nota 2). Em verdade, aqui temos uma via de mão du- pla: nem a superioridade da lei pode funcionar onde inexista separa- ção dos Poderes, nem esta é possível sem a superioridade da lei. O administrador e o juiz, ao exercerem suas atividades (produ- zindo atos administrativos e sentenças), apenas aplicam a lei, ape- nas realizam concretamente a vontade geral, sem que suas vontades particulares interfiram no processo. A atividade pública deixa, as- sim, de ser vista como propriedade de quem a exerce, passando a significar apenas o exercício de um dever-poder, indissoluvelmente 46 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO ligado a finalidade estranha ao agente. Ademais, ninguém exercerá autoridade pública que não emane da lei. 10. De outro lado, só a lei pode definir e limitar o exercício dos direitos individuais. O interesse individual só cede ante interes- ses públicos e estes são estabelecidos pela lei, não pela vontade iso- lada do príncipe. A propósito, a citada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabeleceu que os limites ao exercício dos direitos naturais de cada homem não poderiam ser determinados se- não pela lei (art. 4a), de modo que "tudo o que não está proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fa- zer o que ela não ordene". Com isso, os cidadãos se submetem ao governo da lei, vale di- zer, têm seus deveres regulados por uma norma geral e abstrata, emanada da Assembléia de seus representantes. "Por 'governo da lei' entendem-se duas coisas diversas embo- ra coligadas: além do governo sub lege, que é o considerado até aqui, também o governo per leges, isto é, mediante leis, ou melhor, através da emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) de normas gerais e abstratas. Uma coisa é o governo exercer o poder segundo leis preestabelecidas, outra coisa é exercê-lo mediante leis, isto é, não mediante ordens individuais e concretas" (Norberto Bo- bbio, O Futuro da Democracia - Uma Defesa das Regras do Jogo, p. 157). E essa nova concepção de lei que permitirá a construção de todo o direito público moderno. 1.4 Garantia dos direitos individuais 11. Também da Constituição resulta o reconhecimento de cer- tos direitos - os de liberdade e igualdade, sobretudo - que os indi- víduos titularizam independentemente de outorga estatal. As Decla- rações de Direitos, solenemente embutidas nas Constituições ame- ricana e francesa e depois repetidas e aumentadas em todas as Cons- tituições modernas, permitirão que os indivíduos oponham seus di- reitos ao próprio Estado. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, editada em 1787, afirmava: "Nós, o Povo dos Estados Unidos, a O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 47 fira de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, asse- gurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América". Contudo, o tex- to da Constituição se limitou a regular o funcionamento dos Pode- res Públicos. A enumeração de direitos individuais contra o Estado surgirá através da Primeira Emenda. Nela, prevê-se, por exemplo, que "o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma reli- gião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a li- berdade de manifestação ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a re- paração de seus agravos". A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de outubro de 1789, posteriormente mantida como preâmbulo da Cons- tituição francesa de 1791, afirmava, com eloqüência ainda maior: "Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacio- nal, considerando que o desconhecimento, o esquecimento ou o des- prezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governantes, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes relembre sem cessar os seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo momento comparados com a finalidade de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas em princípios claros e incontestáveis, sirvam sempre à manutenção da Constitui- ção e à felicidade de todos". Em seguida, em seus artigos l 2 e 22, estabelecia que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que a finalidade de toda associação política é a conserva- ção dos direitos naturais e imprescritíveis do homem: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Sendo de origem constitucional, tais direitos não poderão ser suprimidos pelo Estado, nem mesmo por via legislativa. Portanto, ainda que o interesse público prevaleça sobre o interesse particular, isso nunca poderá se dar em prejuízo dos direitos individuais pre- vistos na Constituição. A Declaração Francesa dos Direitos do Ho- 48 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO mem e do Cidadão dispôs, a propósito, que "a lei não tem o direito de proibir senão as ações prejudiciais à sociedade" (art. 5a) e que "a lei não deve estabelecer senão as penas estrita e evidentemente ne- cessárias" (art. 8a). Assim, o respeito aos direitos dos indivíduos passa a ser um dos fins do Estado, torna-se de interesse público. 12. Da garantia, contida na Constituição, de direitos em favor dos indivíduos surgirá a noção de direito subjetivo público, isto é, de um direito que o indivíduo titulariza contra o próprio Estado, ampliando o antigo conceito de direito subjetivo, até então circuns- crito às relações entre particulares. O direito de propriedade, que já era assegurado em Roma pelas leis civis, consistia, então, num di- reito subjetivo privado: o proprietário tinha a faculdade (o direito) de recorrer aos tribunais contra qualquer semelhante que invadisse seu imóvel. Mas não teria a mesma faculdade se a violência viesse do Estado; por isso, o direito de propriedade era apenas um direito subjetivo privado, não direito subjetivo público (isto é, oponível ao Estado). Contudo, quando a Constituição garante o direito de pro- priedade como direito individual, está conferindo ao proprietário um direito subjetivo público, que o Estado haverá
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