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CRÍTICA LITERÁRIA Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. SOBRE O AUTOR Débora Teresinha Mutter da Silva Edgar Roberto Kirchof Maria Alice Braga Jane Brodbeck Débora Teresinha Mutter da Silva é mestre em Literatura Comparada e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora do ensino presencial e a distân‐ cia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Edgar Roberto Kirchof. graduado em Letras Português/Alemão pela UNISINOS, Mestre em Comunicação e Semiótica pela UNISINOS, doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS e pós‐doutor em semiótica pela Universidade de Kassel. SUMÁRIO 1 FUNDAMENTOS DA CRÍTICA ........................................................................... 11 1.1 Dos limites e fronteiras da crítica ............................................................. 11 1.2 Origens e fundamentos ............................................................................ 12 1.3 Características das correntes da crítica ................................................... 17 Atividades .................................................................................................... 21 2 A CRÍTICA IMANENTE ..................................................................................... 23 2.1 O que é imanência? ................................................................................. 23 2.2 Fundamentos históricos da crítica imanente ............................................ 24 2.3 Crítica imanente a partir do século XX ...................................................... 26 Atividades .................................................................................................... 32 3 SOCIOCRÍTICA ............................................................................................... 34 3.1 Crítica literária e crítica sociológica ........................................................ 35 3.2. O que é Sociocrítica? ............................................................................. 36 3.3 As bases da sociocrítica .......................................................................... 39 3.4 Importância da sociocrítica ..................................................................... 39 Atividades .................................................................................................... 40 4 Estudos Culturais .......................................................................................... 42 4.1 Origem dos estudos culturais ................................................................... 43 4.2 Migração dos estudos culturais britânicos para os Estados Unidos ............ 44 4.3 A questão da identidade cultural ............................................................. 45 8 4.4 Diáspora ................................................................................................. 46 4.5 Grupos étnicos ........................................................................................ 46 4.6 Multiculturalismo ................................................................................... 47 4.7 Aplicabilidade dos estudos culturais ........................................................ 48 Atividades .................................................................................................... 49 5 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ................................................................................ 51 5.1 Alguns pressupostos teóricos da Estética da recepção .............................. 51 5.2 A história sem fim: uma análise do processo de leitura .............................. 53 5.3 O narrador .............................................................................................. 56 5.4 O leitor ................................................................................................... 58 5.5 O processo de leitura ............................................................................... 60 5.6 Considerações finais ............................................................................... 60 Atividades .................................................................................................... 61 6 CRÍTICA GENÉTICA ......................................................................................... 63 6.1 A crítica genética no Brasil ...................................................................... 63 6.2 O manuscrito .......................................................................................... 64 6.4 O rascunho ............................................................................................. 66 6.5 Crítica Genética e Semiótica ................................................................... 68 Atividades .................................................................................................... 72 7 LITERATURA E PSICANÁLISE ........................................................................... 74 7.1 Freud e a linguagem simbólica ................................................................. 75 7.3 Os sonhos de Dora, uma demonstração. ................................................... 80 Atividades .................................................................................................... 83 8 Crítica e Existencialismo ................................................................................ 85 8.1 Algumas questões preliminares ............................................................... 85 8.2 O que é o existencialismo, afinal? ............................................................ 86 8.3 Arte e literatura ...................................................................................... 87 9 8.4 Jean-Paul Sartre: Vida e obra ................................................................... 88 8.5 Uma proposta de periodização ................................................................. 89 8.6 A existência precede a essência .............................................................. 90 8.7 Liberdade e angústia ............................................................................... 92 8.8 Sartre: as artes e a literatura ................................................................... 93 Atividades .................................................................................................... 95 9 Cinema e literatura ........................................................................................ 97 9.1 As Origens .............................................................................................. 97 9.2 Áreas de contato ..................................................................................... 98 9.3 Brevíssima história do cinema ................................................................. 99 Atividades .................................................................................................. 105 10 CRÍTICA E INTERSEMIOTICIDADE ................................................................ 107 10.1 O que é semiótica? .............................................................................. 107 10.2 Signos icônicos e convencionais .......................................................... 108 10.3 Interartes ........................................................................................... 110 10.4 Literatura enquanto signo ................................................................... 112 10.5 Literaturahipertextual ........................................................................ 115 Atividades .................................................................................................. 117 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 119 GABARITO ...................................................................................................... 123 1 FUNDAMENTOS DA CRÍTICA Débora Teresinha Mutter da Silva O objetivo deste capítulo é apresentar uma visão panorâmica, bem como uma síntese do funcionamento da crítica ao longo de sua histó‐ ria. Ao mesmo tempo, permitirá ao aluno, a partir dos dados elementa‐ res e referências, um passo inicial para aprofundar o conhecimento dessa prática. Ao iniciarmos o estudo da crítica, necessitamos, previamente, conhecer seus limites, suas áreas de abrangências e suas fronteiras, pois essas são as distinções mais importantes (WELEK, p.37 2003). Posteriormen‐ te, para empreendermos a prática da crítica precisamos definir o nosso objeto de estudo. Desse modo, garantiremos um mínimo de segurança e autonomia, para escolhermos os nossos métodos de trabalho. 1.1 Dos limites e fronteiras da crítica A crítica caracteriza‐se como uma das três grandes áreas que embasam e definem os estudos literários: a teoria, a crítica e a história literária. A opção por situá‐la entre a teoria e a historiografia não é causal. Deve‐ se à sua natureza, em certa medida, ambivalente. A aproximação a qualquer uma dessas áreas de estudo exige o prévio deslindamento de suas fronteiras, de suas especificidades e de seus potenciais com rela‐ ção às demais. De qualquer forma, permeia o nosso percurso expositi‐ vo a convicção de que o isolamento entre elas é mais abstrato que efe‐ tivo como veremos na sequência deste capítulo. Sem problematizar excessivamente o debate em torno das atribuições de cada uma, pois este material destina‐se a alunos de graduação, o objetivo é introduzir as noções fundamentais e indispensáveis para o sereno desenvolvimento da disciplina. Por essa razão, desobriga‐se da enumeração exaustiva de conceitos, embora se oriente pela exposição sistemática de suas noções elementares. Desse modo, sua ambição é ser um guia basilar mínimo para o aprofundamento de futuros estudos. 12 Para começar, podemos lembrar que a literatura no sentido amplo está inserida em duas ordens: a sincrônica e a diacrônica. A ordem sincrô‐ nica diz respeito aos acontecimentos e à existência de eventos e obras em um mesmo tempo. É a ordem que observa a simultaneidade dos fatos1, ou seja, do surgimento das obras e seus efeitos em um mesmo tempo e/ou lugar. A ordem diacrônica, ao contrário, refere‐se aos even‐ tos dispostos em uma ordem sequencial, ou seja, alinhadas no decorrer do tempo e vinculadas ao processo histórico que organiza os fatos humanos (WELLEK, 2003). Por essa mesma razão, constamos que o interesse pela ordem diacrôni‐ ca caracteriza os estudos da área da história literária. É a prática dos estudos literários que, geralmente, adota, o critério causalista típico da prática histórica para a periodização dos fatos. Já os estudos de caráter sincrônicos dedicam‐se às obras isoladas ou em séries específicas a partir de critérios analógicos. Suas finalidades, embora possa parecer um tanto redutor, são preliminarmente descrever, classificar e deter‐ minar o valor estético. Em um segundo momento, os resultados desse processo inicial podem servir às outras duas áreas de estudos: a teoria ou a crítica. Por essa razão, tais práticas se definem como teoria e críti‐ ca respectivamente. A teoria vai deter‐se mais na descrição dos fenô‐ menos literários e na sua classificação com base nas teorias já existentes ou no sentido de ultrapassá‐las como todo processo científico. Já a crítica, entre um considerável número de probabilidades, vai buscar o estabelecimento de critérios de comparação e valor, tentando contribu‐ ir para o enriquecimento das interpretações literárias e seus nexos com a sociedade e com a tradição literária. Porém, o isolamento total entre as três áreas também não é rigoroso, havendo uma interdependência. Esta decorre da complementaridade que os métodos e a própria complexidade da literatura promovem, pois a arte literária, embora autônoma, nunca está desvinculada da história, do contexto social e intelectual ou mesmo das ordens discur‐ sivas que regem as sociedades e a vida humana em geral. 1.2 Origens e fundamentos A definição da palavra crítica pode começar pela etimologia do termo e sua evolução histórica. Ela nos orientará, inserindo‐nos nesse interes‐ 1 A história se ocupa de registrar fatos, eventos comprováveis. Para a historiografia da literatura um fato pode ser tanto o surgimento de um livro, sua reedição, sua fortuna crítica, sua classificação num critério de valor, sua classificação dentro de um movimento literário, etc. Quaisquer desses eventos podem ser considerados fatos literários. Naturalmente, a historiografia poderá deixar de fora ou omitir acontecimentos que futuros literários tornem dignos de entrar para a História Literária de um país. Vem daí a noção de que um fato histórico é apenas uma construção humana e, portanto, falível. 13 sante e movediço universo que caracteriza a área mais complexa dos estudos literários, como veremos na sequência deste capítulo. O termo crítica possui um significado prosaico e outro técnico. O sen‐ tido prosaico tem uma reconhecida carga negativa e outra que remete aos comentários veiculados em jornais e revistas sobre objetos e even‐ tos artísticos. Porém, quando se trata do sentido técnico, a palavra adquire vários nuances que dependem da área ou da finalidade à qual é aplicada. Tendo em conta essas questões. A base etimológica é o termo grego Kritikê, que significa arte de julgar, de criticar, arte crítica, que derivou para o adjetivo latino critìcus e também como substantivo critìca que significa ʹapreciação, julgamentoʹ. Nesse sentido, era aplicado às mais diversas finalidades. Para nós, o alvo resolve‐se com o adjetivo “literária”, pois, via de regra, adotamos a expressão como seu adjetivo: crítica literária. Mas, na sua evolução histórica, o termo teve, primeiro, influência do francês, criti‐ que, e depois do inglês criticism, envolvendo sempre a arte de avaliar e julgar produção literária, artística ou científica. O que não podemos perder de vista é que esse percurso histórico da palavra, nos respectivos idiomas referidos, informa também e em certa medida sobre as influências de diferentes correntes teóricas e sobre os desdobramentos da prática crítica como área do saber e como um fazer indispensável à sobrevivência e valorização da arte literária no ofício dos profissionais com ela envolvidos. É a partir daqui que precisamos agregar, às noções de ordem sincrôni‐ ca e diacrônica, típicas da literatura, o segundo critério distintivo. Trata‐se da diferenciação entre o estudo dos princípios e critérios da literatura e o estudo das obras literárias concretas. Tais distinções independem de estudarmos as obras literárias isolada‐ mente ou em uma série cronológica. Dentro desse cenário, no qual se inscreve o exercício da crítica, o ponto de discórdia gravita em torno da subjetividade. O conflito está no fato de a teoria e a história da literatura reivindicarem status de ciência imparcial, enquanto, sobre a crítica, recaem desconfianças de persona‐ 14 lismo e de falta de isenção no julgamento por parte daquele que a realiza. Da Antiguidade até a Idade Média,o exercício da crítica era indiferen‐ te a esses questionamentos, pois não existia como atividade definida no âmbito de uma área específica do conhecimento humano. Foi a partir do século XIX, com a segmentação do conhecimento em discipli‐ nas, que a Literatura separou‐se da História e da teoria. O mesmo processo histórico que iniciou com o Iluminismo2 e com o positivismo3 acabou gerando os conflitos entre os saberes científicos e os saberes ou as ciências menos “duras” (filosofia, psicologia, sociologia). Entretanto, desde o século XIX até os dias atuais, muitas convicções em torno da linguagem verbal e, em especial da escrita, foram relativizadas. Con‐ tribuiu para isso o avanço teórico nas áreas afins, o próprio processo histórico global, as relações entre as diferentes disciplinas e as formas de expressão artísticas que insistem em dialogar e mostrar que nada precisa ser excluído das ações e do pensamento humano. Sobre essa realidade, gravita a ideia de que nenhuma ação humana, máxime a prática crítica, por mais aparentemente imparcial, é isenta de algum grau de subjetividade e de discursividade (Todorov, 1980). Mesmo o critério de um historiógrafo da literatura, ao incluir determi‐ nadas obras na periodização literária de um país e não outras, ou de um teórico, ao escolher determinado critério para detectar certos prin‐ cípios, ou de um crítico ao escolher certa obra para trabalhar, é deter‐ minado por algum grau de subjetividade. Sob a acusação de subjetivismo pouco confiável, a crítica sofreu certo desprestígio com relação à teoria e à historiografia (práticas resguar‐ dadas por um saber científico), devido ao afã cientificista. Porém, com o aporte de outras áreas do conhecimento (linguística, antropologia, psicologia, sociologia, etc) ela conseguiu colocar‐se a salvo de seus detratores e também das práticas “impressionistas”. Atualmente, esse desprestígio tem mais valor histórico como podemos acompanhar a partir das diversas etapas e correntes que orientaram o fazer crítico desde o seu surgimento. O percurso mostra que a crítica saiu de um espaço que suscita questionamento e dúvida para um lugar de prestí‐ 2 O Iluminismo foi um movimento intelectual do século XVIII, que o caracterizou como o Século das Luzes. Suas marcas eram a centralidade na ciência e da racionalidade crítica e no questionamento filosófico. Tudo isso implica recusa a todas as formas de dogmatismo. Foi a base de doutrinas políticas, religiosas e filosóficas. Está relacionado às luzes do saber, à ilustração, ao esclarecimento, ao conhecimento. 3 O positivismo foi uma sistema criado por Auguste Comte (1798‐1857) e desenvolvido por inúmeros seguidores. Seu objetivo era ordenar as ciências experimentais, considerando‐as o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas. 15 gio e muito ambicionado por aqueles que se envolvem com literatura e sua interpretação. E tudo isso foi possível, precisamente, por evidenci‐ ar‐se a crítica como uma arte tão consciente de suas peculiaridades quanto de seus limites e potencialidades. Não raro, ouve‐se dizer que a missão da crítica é julgar o que é bom, o que é realmente arte. Porém, por detrás dessa proposição aparente‐ mente frívola há um intenso labor técnico de análise interpretativa. O crítico interpreta todo o contexto, todas as direções e todos vínculos aos quais uma obra de arte literária está ligada e aos quais ela diz res‐ peito. E nisso conjugam‐se duas vidas, a do autor e a do próprio críti‐ co, mas também a de uma sociedade por inteiro. Desde as representa‐ ções sociais, psíquicas, estéticas e outras inerentes à realidade humana até as afetivas estão contidas na literatura, constituem a nobre matéria que o crítico, a partir da obra, interpretará no seu profundo esforço humano de contribuir para o avanço das sociedades e de suas respec‐ tivas circunstâncias e épocas. Dentro desta perspectiva, podemos esta‐ belecer o seguinte gráfico: É nesse sentido que o trabalho do crítico como leitor privilegiado e consciente de sua função devolve tanto à sociedade como à própria literatura a sua contribuição. Ele pode auxiliar os agrupamentos hu‐ manos no processo de conhecimento de si mesmos e revelar estratégias adotadas pelos próprios artistas que, assim poderão empreender modi‐ ficações em suas futuras criações. Essa é uma das ideias previstas na estética da recepção sob o conceito de “circuito comunicativo”, quando a recepção entendida como noção estética, torna‐se um “ato de face dupla”. Dentre os vários modos de reação, o leitor crítico (ativo) ele pode “assumir ima interpretação reconhecida” ou “apresentar uma nova obra”, estabelecendo uma dinâmica interacional. Esse dinamismo entre a crítica a arte literária e a sociedade lhe dá um sentido além fronteiras da literatura (NITRINI, 1997). Mas, sem dúvida, o sentido maior da crítica está na expansão da própria linguagem literária a partir de um outro campo, que acaba atuando de forma muitas vezes inesperada sobre o campo literário. Distinguir os períodos, ou seja, a própria história da crítica serve de iniciação e auxilia o estudante a entender e fixar suas convicções sobre o conhecimento crítico, auxiliando‐o na elaboração de suas escolhas metodológicas tanto em suas pesquisas como na elaboração de suas 16 aulas. O domínio desse saber permite, além de entender como a crítica se estabelece e evolui, perceber o foco de valorização, a cada etapa, em algum dos elementos apresentados na tríade apresentada anteriormen‐ te: Autor – Obra – Leitor. Circunstância que reforça a ideia de que períodos diferentes nutrem concepções e convenções críticas diferentes (WELLEK, 2003) As diversas tendências críticas tendem a priorizar um desses elemen‐ tos, considerando‐se que, quando se trata de enfatizar o Autor e o Leitor, inserem‐se também seus universos ou contextos. Falar em mé‐ todo crítico pressupõe, necessariamente, um tipo de análise. A análise é a etapa que antecede à crítica. Não há crítica sem análise. É possível elaborar a análise de uma obra sem formular uma crítica. Porém, ja‐ mais elaboraremos uma crítica sem uma boa análise. Se assim for, não é crítica; é mera opinião, embora como já foi dito acima, seja sempre difícil evitar algum grau de subjetividade. Mas a importância da análi‐ se é vista desde Aristóteles, pois o grego jamais teria elaborado a sua Poética se não tivesse procedido, antes, uma profunda e exaustiva análise da tragédia e da epopeia grega. Foi a partir daí que teve inicio o arcabouço teórico que até hoje nos orienta. Portanto, ao falarmos de correntes, estaremos falando dos métodos de análise e suas bases teóri‐ cas específicas de acordo com as correntes disponíveis. A classificação de correntes e etapas poderia transformar‐se em uma enorme lista de nomes, dadas as variadas ênfases adotadas ao longo dos últimos 100 anos. Porém, para racionalizar a exposição, seleciona‐ mos as correntes de maior visibilidade que são a: Biográfica (Séc. XIX) Determinista Impressionista Formalista (Séx. XX) Estilística Nova Crítica Estruturalista/semiótica Sociológica Psicanalítica 17 Semiótica Estética da Recepção Genética Interdisciplinar: literatura e cinema Cultural Cada uma delas está relativamente ligada às teorias de outras áreas do conhecimento (ciência, filosofia, política, etc.) e correspondem ao pen‐ samento e às convicções teóricas de uma época. Constata‐se, a partir das característicasde cada uma das etapas e de suas abordagens, a prevalência de movimentos reativos em contraposição aos métodos adotados no período anterior. Como veremos a seguir, concorrem nessa disputa aquelas que podem ser agrupadas sob o título de corren‐ tes textualistas e as correntes contextualistas. Considerando a tríade autor‐obra‐leitor, vemos que as textualistas centram‐se na obra, consi‐ derando exclusivamente o que está no texto, atendo‐se aos elementos linguísticos. Já as correntes contextualistas distribuem sua atenção entre os demais elementos da tríade autor, leitor e contexto em geral, ou seja, todos os elementos extratextuais. Outro aspecto a observar nos ciclos da crítica é a origem das correntes. Inicialmente, há predominân‐ cia de teóricos franceses, posteriormente, uma força significativa de russos, seguidos de norte‐americanos. 1.3 Características das correntes da crítica A partir daqui, apresentamos uma síntese dos aspectos mais relevantes das correntes mais antigas: biográfica, determinista, impressionista, formalista, estilística, nova crítica, estruturalista, sociológica e psicana‐ lítica. Primeiro pelo valor histórico e pela contribuição que deram para a evolução do pensamento e do fazer crítico. Mas, em especial, porque elas não serão aprofundadas ao longo dos demais capítulos, que serão dedicados às práticas mais contemporâneas. A crítica biográfica foi um dos primeiros critérios adotados para expli‐ car as obras literárias. Destaca‐se como crítico nessa fase o francês Sainte‐Beuve. Ele teve grande força durante o romantismo e tentava interpretar a obra pela biografia do autor, mas mostrou‐se insuficiente e frágil com o advento do positivismo, por toda a carga cientificista que estimulou o período do Realismo. 18 Foram estes os fatores que fortaleceram a crítica determinista, que considerava a obra literária como produto da relação entre o homem e o seu meio (condições sociopolíticas e naturais). Prevaleciam a raça, o meio e o momento como fundamentais do período literário que ficou conhecido como naturalismo. O maior defensor dessa abordagem, que, apesar da base cientificista, tinha fortes matizes sociológicos, foi o também francês Hippolyte Taine. Porém, no final do século XIX, o excesso de objetividade gerou adver‐ sários a esse pensamento, e ressurge uma tendência a valorizar a subje‐ tividade. Foi essa atitude que estimulou o surgimento da crítica im‐ pressionista, na qual o crítico seguia livremente seus impulsos e des‐ cobertas pessoais. Alguns dos maiores defensores dessa corrente eram também escritores (Virgínia Woolf e Anatole France). A ênfase na personalidade do crítico, porém, não durou muito e, na segunda déca‐ da do século XX, a reação veio do Leste Europeu com os Formalistas russos. No início do Século XX, o Círculo Linguístico de Moscou, reagindo ao excesso de variantes extratextuais e subjetividade na avaliação das obras literárias, busca imparcialidade na linguística. Os teóricos russos criaram um movimento caracterizado pela recusa de elementos que não estivessem estritamente formalmente na obra. Um grupo de estu‐ diosos baseados exclusivamente na forma artística adotou um método descritivo e morfológico, que ficou conhecido como crítica formalista. O critério de julgamento era exclusivamente linguístico, para definir a literariedade nas obras literárias. Privilegiando a busca da estreita e coincidente relação entre o fundo e forma na criação de uma ima‐ gem/visão, os formalistas buscavam o desvio criativo, o estranhamento no efeito estético. Tal estranhamento era desejável, pois supunha a ruptura do automatismo da linguagem ordinária. A crítica formalista está embasada nas teorias de vários estudiosos que se dedicaram a explorar conceitos e técnicas de análise das categorias literárias: ima‐ gem (Chkloviski), tema, fábula, trama, motivo, motivação, herói, espa‐ ço, tempo, gêneros (Tomachevski); análise estrutural e função (Vladi‐ mir Propp); teoria da prosa, romance (Eikhembaum); evolução literária (Tynianov) e análise fonológica da poesia (Jakobson). Mais ou menos simultâneo a isso e amparada pelo modelo saussuria‐ no, também de base linguística, surgiu a crítica estilística4. A dicoto‐ 4 Um fato de estilo se dá a conhecer antes de tudo pelo seu modo de existência no texto e analisá‐lo exige uma atitude interdisciplinar, devido à complexidade de aspectos que se conjugam. Bally baseou a estilística ou a noção de fato estilístico nas expressões de afetividade, observando a sinonímia que, posteriormente, ficou a cargo da Semântica. Spitzer o vinculou tanto aos sentimentos quanto ao pensamento. A contribuição da Linguística com técnicas para análise das relações paradigmáticas 19 mia langue/parole5 é a sua base, observando as manifestações afetivas da língua como determinantes de um estilo. Há uma estilística da langue e uma da parole. A obra é vista como uma totalidade estruturada organicamente na qual entram em jogo as manifestações afetivas, reveladas pelo estilo adotado. É nesse momento que o psicologismo do autor e o biografismo acabam sendo novamente uma ameaça às tenta‐ tivas de imparcialidade do método linguístico, pois a análise estilística parte de uma intuição e da sensibilidade do crítico que se encontra com a intuição do autor. Os nomes mais destacados no seu surgimento foram o linguista francês Charles Bally, os alemães Karl Vossler, e Leo Spitzer e o espanhol Dámaso Alonso. A nova crítica foi a reação vinda dos Estados Unidos (Escolas do Sul – Kenneth Burke entre outros) contra os métodos metafísicos e subjeti‐ vos da crítica impressionista e intuitiva. Caracterizou‐se pelo academi‐ cismo científico e metodológico. Nela, predomina a exploração micros‐ cópica do texto para revelar as suas imanências. Nada que lhe seja exterior é considerado (contexto, história, biografia). Nessa etapa, há predominância do mundo acadêmico na prática crítica. O professor é visto como um pesquisador na superação da dicotomia fundo e forma. Contudo, isso gera dois novos riscos à almejada imparcialidade cientí‐ fica, pois a interpretação ontológica e hermenêutica, que busca a essên‐ cia insere a ameaça do viés romântico e impressionista. Também a noção de extensão x intenção (que pertence ao autor) como geradora da tensão poética, devolve, em parte, um viés romântico e impressionista aos estudos. Por outro lado, a interpretação sociológica ou histórica extrapola os limites do texto. É neste cenário que surge a crítica estruturalista. Conjugando e ampli‐ ando a herança dos métodos e conceitos formalistas e da linguística, sua base é a noção saussuriana de estrutura e sistema de relações entre elementos solidários e interdependentes na obra. A noção de desvio (Jakobson) e sintagmáticas (Riffaterre) sistematizou as implicações teóricas sobre as propriedades da linguagem. O fato estilístico atinge o leitor de uma ou de outra maneira, seja porque é demasiado frequente, seja porque é injustificado em seu contexto, seja porque é desmesuradamente acentuado, etc. Em qualquer caso, em todo enunciado linguístico há um certo número de leis, relações e imposições que não se explicam pelo mecanismo da língua, mas unicamente pelo mecanismo do discurso. Isso ocorre porque o texto é um sistema conotativo secundário relativamente a outro sistema de significação que lhe é exterior e anterior. Ao mesmo tempo, essa parcela discursiva impõeàs reflexões a presença da função retórica de qualquer texto, redividindo os estudos em Poética, cujo objeto seria o discurso literário, e Estilística, cujo objeto seria todos os discursos; domínio da antiga elocutio da Retórica. A partir dessa evidência, o estudo de Wayne Booth sobre a retórica da ficção adquire importância. 5 A oposição conceitual entre langue e parole, ou seja, entre língua e fala foi estabelecida por Ferdinand Suassure. A língua é o código linguístico, signos isolados (palavras morfemas) ou conjuntos de signos representativos dos sons e seus respectivos sentidos particulares. Enquanto a fala é a utilização, o emprego deste(s) código pelos sujeitos falantes de uma comunidade. É o uso que cada um faz da língua. Assim, diz‐ se que a língua é um fenômeno social, enquanto a fala individual. (DUCROT; TODOROV, 1972) 20 volta a ter importância a partir de Jean Cohen. Outros nomes destaca‐ dos são Tzvetan Todorov (categoria narrativas e discurso), Roman Jakobson (funções da linguagem) e Roland Barthes (funções narrati‐ vas). Essa ausência de consideração contextual originou uma reação de críticos de orientação marxista, fazendo com que o contexto social ganhasse relevância, dando surgimento à crítica sociológica. Para ela ,o romance é a forma privilegiada de análise e a obra é vista como o resultado de um momento e de uma realidade social como consciência coletiva. Os nomes mais destacados são Jorge Lukács e Lucien Gold‐ mann. Na crítica psicanalítica, o crítico como leitor fala não da obra, mas do que nela afetou o seu próprio sistema. Ela intensifica suas origens com as teorias de Jacques Lacan sobre o pensamento freudiano e sobre a linguagem. Sua base é a teoria do espelho que reflete o avesso da reali‐ dade. O instinto, o simbólico, o imaginário, a fantasia o desejo, e o desejo do Outro são as noções que se articulam para o crítico nesta seara. Segundo Wellek e Warren (2003), há distinções óbvias e de aceitação ampla. Uma delas é que , “a teoria literária é impossível, exceto com base em um estudo de obras literárias concretas,ou seja, o acervo da historiografia. Isso porque, é “impossível chegar a critérios, categorias e esquemas analíticos in vacuo” (p.38). Do mesmo modo, um estudo crítico totalmente isolado das outras duas áreas pode tornar‐se estéril do pondo de vista social. O que precisamos reter de todas as etapas e respectivos aspectos e enfoques da crítica é sua tripla função: estética, teórica e social. Estética porque, em princípio, ela se volta, primeiramente, para o valor artístico das obras literárias. Porém, via de regra, isso não ocorre sem uma sólida base teórica e sem os aportes da história da literatura), para as quais ela também irá contribuir. Essa espécie de retro‐alimentação mostra a importância da critica para a sobrevivência da própria litera‐ tura. Afinal, é o exercício da crítica, em especial a acadêmica, que mo‐ vimenta e alimenta as produções teóricas. Atualmente, a intrasponibi‐ lidade que havia entre o mundo acadêmico e a cultura popular e a imprensa está reduzido. É frequente encontrarmos estudos sérios de professores e pesquisadores em que jornais e revistas dediquem pági‐ nas a estudos críticos. Essa retroalimentação que envolve o público está instaurando um novo paradigma sobre as relações da crítica com as obras literárias. Contudo, numa realidade em que a demanda visual 21 e midiática tem urgência, é fácil imaginar que, sem crítica, as obras correm o risco de caírem no esquecimento. Por outro lado, é preciso estar alerta sobre as fontes, os critérios e os autores das elaborações críticas. As interpretações e os desvendamen‐ tos que uma crítica sólida e bem embasada podem trazer à luz exercem uma pressão social considerável tanto na perspectiva do público leitor quanto na dos próprios artistas contemporâneos, que nunca são insen‐ síveis a ela. Circunstância que pode alimentar reflexões e autocríticas em vários níveis. Essa é a tônica que motiva e justifica a prática crítica, pois a literatura contém em si o mundo, e a crítica o observa a partir desse lugar privi‐ legiado que é a ficção. Atividades 1) Assinale a alternativa verdadeira nas opções abaixo quanto às origens da crítica. a) A crítica como nós a conhecemos hoje, teve início com Aristó‐ teles. b) Foram os formalistas que realizaram os primeiros estudos crí‐ ticos. c) No final do século XIX, a crítica adquiriu independência de outras áreas. d) A crítica impressionista é a mais praticada desde sempre. 2) Assinale a alternativa verdadeira sobre as correntes da crítica. a) As correntes são definidas por um grupo de críticos prestigi‐ ados. b) As correntes da crítica são sensíveis a outras áreas do saber. c) As correntes da crítica nunca se opõem entre si. d) As correntes da crítica pertencem a seus respectivos países. 3) Assinale a alternativa verdadeira sobre as tendências da crítica. a) As tendências da crítica são aleatórias e dependem do crítico. b) As tendências mais importantes são as contextualistas. c) As tendências tendem a enfatizar ora o autor, a obra ou o lei‐ tor. d) Apenas as tendências que valorizam a obra são confiáveis. 4) Assinale a alternativa correta sobre tipos de correntes críticas. a) Os tipos de críticas distribuem‐se em três grandes grupos. b) As correntes textualistas ignoram o leitor e o autor. 22 c) As correntes textualistas nunca são imanentistas. d) As correntes contextualistas consideram apenas a obra. 5) Assinale a alternativa mais adequada com relação à função da crítica. a) Deve difundir o entendimento e as emoções do crítico. b) Interpretar criticamente as obras com métodos e recursos teó‐ ricos. c) Libertar a subjetividade e definir o que é que tem valor estéti‐ co. d) Estimular o mercado literário indicando o que deve ser lido. 2 A CRÍTICA IMANENTE Edgar Roberto Kirchof Neste capítulo, você estudará, de modo bastante panorâmico, algumas teorias da crítica que permitem realizar uma reflexão sobre a obra literária predominantemente a partir de suas estruturas imanentes, ou seja, a partir de critérios internos à própria obra. Esse tipo de crítica, portanto, prioriza reflexões em torno de questões ligadas às caracterís‐ ticas da linguagem literária e da composição, por vezes, procurando estabelecer critérios linguísticos para o valor literário. Aspectos ligados ao contexto social, cultural e histórico que circundam autor, leitor e representações da própria obra, nessa perspectiva, geralmente são considerados secundários. 2.1 O que é imanência? O termo imanente remonta à teoria filosófica de Immanuel Kant, no século XVIII. Em sua Crítica da razão pura, Kant estabeleceu uma dife‐ renciação entre duas faculdades do conhecimento: o entendimento, de um lado, e a razão, de outro. Para Kant, ao passo que o primeiro nos fornece conhecimentos a partir do próprio mundo empírico em que vivemos, a segunda nos permite chegar a certas conclusões, baseando‐ nos, para tanto, em princípios buscados já a partir das regras abstratas produzidas pelo entendimento. Seguindo essa divisão, Kant chegou à conclusão de que o conhecimento lógico e conceitual (que hoje nós denominaríamos, talvez, de conhecimento científico) decorre do en‐ tendimento, ao passo que nossos conhecimentos sobre a moral e a ética (sobre o que é bom ou mau, certo ou errado), por sua vez, ancoram‐se na razão. Em outros termos, o entendimento necessita da experiência dos objetos como fundamento. A razão, por sua vez, inicia seu processo cognitivo já com as regras fornecidas pelo entendimento,a partir das quais é 24 possível realizar conclusões.1 Nesse ponto, Kant afirma que todo co‐ nhecimento ligado ao entendimento é imanente, pois é buscado a partir da análise dos próprios objetos empíricos, ao passo que todo conheci‐ mento ligado à razão é transcendente, pois provém de um domínio que está além das determinações da natureza observada, apontando para o indeterminado. 2.2 Fundamentos históricos da crítica imanente No contexto da crítica literária e da teoria da literatura, o termo ima‐ nência é geralmente utilizado para caracterizar teorias que restringem seu campo de análise a aspectos que não ultrapassam as regras da própria obra literária. Nesse sentido, o crítico que se guia por uma concepção imanente procura permanecer no domínio da própria obra, compreendendo‐a como um objeto pertencente ao mundo sensível. Ao invés de estudar aspectos ligados ao contexto social e histórico (ou mesmo psicológico) do autor – e tampouco do leitor –, esse tipo de crítica busca estabelecer reflexões em torno do valor literário e estético da obra a partir da maneira como as regras e as estruturas de composi‐ ção e criação são utilizadas. Historicamente, pode‐se dizer que o primeiro pensador a realizar uma reflexão imanente sobre a literatura foi o filósofo grego Aristóteles, em sua Poética. Em termos muito simplificados, Aristóteles estabeleceu a verossimilhança e a necessidade como principais critérios para avaliar a qualidade de uma composição literária, chegando mesmo a apontar “defeitos” em algumas obras ou partes de obras, de um lado, e a elogi‐ ar a perfeição com que outras foram realizadas, de outro lado. Nesse sentido, é conhecida a preferência de Aristóteles pelas peças de Sófo‐ cles, especialmente o Édipo rei, em detrimento das peças de Eurípides, sendo que Aristóteles utiliza critérios de composição para realizar seus juízos. Ao longo da história literária, os conceitos imanentes desenvolvidos por Aristóteles, principalmente a versossimilhança, a mimese e a catarse, foram utilizados por diferentes escolas literárias, servindo, muitas vezes, como critérios restritivos e normativos imputados aos artistas. Essa tendência teve, como primeiro representante, já no século I d.C, o romano Horácio, que, interpretando Aristóteles, passou a postular que o artista deveria sempre guiar suas produções artísticas pela constru‐ ção de uma harmonia semelhante àquela encontrada na natureza. A mimese mais perfeita seria, portanto, aquela que gerasse o maior efeito de realidade, fazendo com que o leitor/espectador tenha a sensação de 1 KANT, 1997, p. 315. 25 que está diante de fatos reais e não ficcionais. Essa seria a lógica neces‐ sária a partir da qual se deve construir a verossimilhança na literatura, de acordo com Horácio. Para tanto, o autor deveria compor a obra imitando ações plausíveis de um ponto de vista realista. O século XVIII foi o período em que as concepções imanentes desen‐ volvidas por Aristóteles e Horácio chegaram ao seu apogeu. Nessa época, o crítico francês Jean Chapelain, por exemplo, chegou a afirmar que as melhores obras eram aquelas em que a mimese é tão perfeita que o leitor/espectador tem a impressão de que não há “nenhuma diferença entre a coisa imitada e a que imita, pois o principal efeito da imitação é apresentar os objetos ao espírito como se fossem verdadei‐ ros e presentes, para purgá‐lo de suas paixões desregradas”.2 Vale notar que é justamente no século XVIII que surge, inclusive, uma dis‐ ciplina destinada a estabelecer as regras para a composição das obras de arte, de forma que delas se gere o conhecimento e não apenas meras ilusões. Trata‐se da disciplina estética, fundada por Alexander Gottlieb Baumgarten. No quinto parágrafo de seu livro Aesthetica, por exemplo, Baumgarten chega a afirmar que é necessário ditar regras para o pen‐ samento sensível (fonte da imaginação e da fantasia, da qual se serve o artista para criar suas obras) a fim de que dele não surjam erros.3 Por outro lado, é necessário esclarecer que, mesmo no século XVIII, os artistas jamais chegaram a realmente seguir, de forma completamente rígida, essas regras fixas ditadas pela crítica literária e pela disciplina estética. Os melhores dramaturgos franceses dessa época, Corneille, Racine e Molière, por exemplo, embora tenham seguido as regras aris‐ totélicas e horacianas da mimese e da verossimilhança, em termos globais, também inseriram certas mudanças, muitas vezes sutis, fazen‐ do uso da liberdade criadora. Nas palavras de Roger, “as obras magis‐ trais do classicismo, a despeito de sua adequação global às regras, foram frequentemetne responsáveis pelo surgimento de cabalas e controvérsias [...], em decorrência da liberdade que exibiram na pró‐ pria utilização daquelas regras”.4 Assim sendo, é importante esclarecer que um exercício de crítica literá‐ ria que se guia por critérios imanentes não deve tomar as regras de composição que utiliza para análise como um critério absoluto, pois, ao longo da história literária, sempre que essa atitude prevaleceu, os próprios artistas se encarregaram de subverter tais regras. Ademais, mesmo que, até hoje, sejam utilizados, com frequência, conceitos aris‐ 2 CHAPELAIN, apud Jérôme Roger, 2002, p. 20. 3 KIRCHOF, 2003, p. 34. 4 ROGER, 2002, p. 23. 26 totélicos para discutir a composição literária, não existe consenso nem entre críticos guiados por concepções imanentes – e muito menos entre os artistas – a respeito de quais regras de composição realmente seriam capazes de garantir o valor literário e estético de uma obra. Note que os critérios imanentes para definir o valor variam muito ao longo da história da literatura, o que pode ser percebido facilmente quando avaliamos as diferentes escolas literárias. No Classicismo, por exem‐ plo, valorizava‐se sobremaneira a cópia da natureza e a imitação dos clássicos, ao passo que, a partir do Romantismo, passaram a ser valori‐ zados principalmente aspectos ligados à liberdade e à criatividade. 2.3 Crítica imanente a partir do século XX O Formalismo Russo No século XX, uma das linhas pioneiras no que tange à crítica imanen‐ te foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores russos, que, devi‐ do ao fato de priorizarem critérios formais para análise da obra literá‐ ria, passaram a ser denominados de formalistas. Trata‐se de um grupo formado em torno do Círculo Linguístico de Moscou e da Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ). O fundamento ima‐ nentista dessa corrente pode ser percebido, entre outros, através da seguinte formulação de um de seus principais representantes, Eicken‐ baum: O objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específi‐ cas dos objetos literários que os distinguem de qualquer outra matéria, e is‐ to independentemente do fato de, pelos seus traços secundários, esta maté‐ ria poder dar pretexto e direito de a utilizarem noutras ciências como obje‐ to auxiliar. 5 Uma das principais contribuições do formalismo russo para a crítica é o conceito de literariedade, ou seja, o conjunto de todas as características formais e estruturais que determinam a singularidade do discurso literário em comparação com os demais tipos de discursos e lingua‐ gens. Em outros termos, trata‐se de uma busca pelas regras da lingua‐ gem literária, aquilo que permite defini‐la em oposição ao que não é literário. De um lado, esse projeto se assemelha aos projetos já realiza‐ dos anteriormente porAristóteles, Horácio e outros críticos interessa‐ dos nas características imanentes do fenômeno literário. De outro lado, contudo, os formalistas deram início a um procedimento diferenciado, na medida em que buscaram, primeiro, na linguística e, posteriormen‐ te, na semiótica, os fundamentos teóricos a partir dos quais pretendiam 5 EIKHENBAUM, 1999, p. 37. 27 investigar os processos formais de composição e de evolução das for‐ mas literárias. Dentro desse contexto, um dos formalistas mais influen‐ tes, sem dúvida, foi Roman Jakobson. Roman Jakobson Apesar de ser hoje geralmente mais conhecido por suas descobertas no campo da linguística (especialmente sua definição do fonema e das funções da linguagem), Jakobson, em sua atividade intelectual, sempre esteve fortemente ligado aos estudos da literatura e, de forma não tão intensa, de outras artes, como a pintura e o cinema. De fato, Jakobson sustenta a tese de que não há razão para separar literatura e linguística: se a primeira constitui a arte da criação verbal, a segunda é, por exce‐ lência, a ciência encarregada de estudar a linguagem verbal, em todas as suas manifestações. Jakobson foi amigo pessoal de artistas como Khliébnikov, Maiakovski, Maliévitch, sendo que o grupo OPOIAZ (1914‐5), que ajudou a criar, também contava com a participação de Pasternak, Mandelshtam, Assi‐ éiev, além do próprio Maiakovski. Na década de 20, quando já atuava no Círculo Linguístico de Praga, tornou‐se amigo do poeta tcheco Nezval e estabeleceu relações com o diretor de teatro E. F. Burian, tendo, inclusive, colaborado com a preparação de um roteiro cinema‐ tográfico, juntamente com Svatava Pirkova e Nezval. A partir dessa preocupação simultânea com a teoria da literatura e com a linguística, Jakobson mantém, ao longo de toda a sua produção inte‐ lectual, a concepção – já postulada desde os tempos de sua participa‐ ção no Círculo Linguístico de Moscou e na Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ) – de que os estudos literários e estéticos devem ocorrer sob um prisma semiolinguístico. Como os demais formalistas, Jakobson também condena o tipo de estudo literário que se ocupa dos “traços secundários” ou não imanen‐ tes da literatura (como questões sociológicas, psicológicas, filosóficas), deixando de lado aquilo que possui de mais central e específico: a linguagem verbal. Em um artigo dedicado ao tema do realismo artísti‐ co, Jakobson chegou a afirmar que, antes de sua ligação com a linguís‐ tica e com a semiótica, a história da literatura não podia ser considera‐ da uma ciência, pois se caracterizaria como uma mera causerie6: “Não faz muito tempo, a história da arte e, em particular, a história da litera‐ tura, não era uma ciência, mas uma causerie. [...] Passava alegremente 6 Causerie, do francês, pode ser traduzido como conversa superficial. 28 de um tema a outro, e a torrente lírica de palavras sobre a elegância e a forma dava lugar às anedotas retiradas da vida do artista.” 7 Jakobson afirma que, infelizmente, essa atitude pouco rigorosa tem sido dominante no estudo da literatura. Por isso, numa atitude provo‐ cativa, chega a propor o fim da crítica literária e sua substituição por uma “nova” disciplina: a poética, principalmente devido às confusões terminológicas geradas pela postura impressionista de muitos críticos8. Jakobson, juntamente com os demais formalistas, reivindica para a linguística “o direito e o dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a sua amplitude e em todos os seus aspectos”.9 Além disso, também postula uma divisão própria das ciências destinadas a tratar da linguagem, de forma geral, e da literatura, de forma específi‐ ca. Como ciência mais geral, o autor propõe a semiótica, compreendida como a teoria de todos os signos; a linguística, por sua vez, faz parte da semiótica, mas se restringe ao estudo do sistema dos signos verbais: “o objeto da semiótica é a comunicação de mensagens, enquanto o campo da linguística se restringe à comunicação de mensagens verbais.”10 A poética, por sua vez, é um dos vários domínios da linguística: aquele cujo fim é o estudo da literatura enquanto arte verbal. Diagrama com a proposta de divisão de disciplinas segundo Roman Jakobson SEMIÓTICA LINGUÍSTICA POÉTICA Estudo de todos os sistemas de signos verbais e não‐ verbais Estudo do sistema dos signos verbais Estudo da literatura enquanto sistema de signos verbais Em outros termos, para Jakobson, a poética compreende a “análise científica e objetiva da arte verbal”, dividida a partir de “dois grupos de problemas: sincronia e diacronia”.11 Seu objetivo principal é definir e explicar por que uma mensagem verbal artística é diferente de men‐ sagens artísticas não‐verbais, de um lado, e, de outro, por que é dife‐ rente de mensagens verbais não artísticas: em suma, trata‐se de buscar “as differentia specifica entre a arte verbal e as outras artes e espécies de condutas verbais”.12 Ao procurar pelas differentia da literatura, de um lado, Jakobson dá continuidade a grande parte das preocupações já 7 JAKOBSON, s.d., p. 159. 8 Sobre a questão da confusão criada pela crítica em relação aos termos idealismo e realismo, verificar Jakobson: El realismo artístico, p. 160s. 9 JAKOBSON, 1995, p. 161. 10 JAKOBSON, 1995, p. 20. 11 JAKOBSON, 1995, 121. 12 JAKOBSON, 1995, p. 119. 29 tratadas pelos demais formalistas russos, principalmente a descoberta de que a poesia se constrói linguisticamente a partir da relação moti‐ vada que estabelece entre o som e o sentido; de outro lado, contudo, confere‐lhes uma fundamentação linguística e semiótica, buscada, de forma pluralista, nas teorias que vai estudando ao longo de sua vida, desde o estruturalismo saussuriano, a teoria da informação e da comu‐ nicação até o pragmatismo americano de Charles Sanders Peirce, entre outras. Já desde o tempo de sua colaboração com o círculo de Moscou, Jakob‐ son sustenta a tese de que a essência linguística da poesia reside na relação de semelhança que é capaz de estabelecer entre o som e o sen‐ tido. Mais tarde, essa relação é ampliada para além do nível sonoro, englobando todos os demais níveis da linguagem, principalmente a gramática. Após seu contato com as teses de Saussure, Jakobson ex‐ pande o alcance de sua descoberta, redefinindo a linguagem poética como aquela que “projeta o princípio de equivalência do eixo de sele‐ ção sobre o eixo de combinação”.13 Influenciado pela teoria da comuni‐ cação, Jakobson reformulou essa proposição afirmando que a função poética é aquela em que a mensagem se dirige à própria mensagem14; por fim, nos termos da semiótica peirciana, para a linguagem poética, a “correspondência diagramática [ou seja, icônica] entre o significante e o significado é patente e obrigatória.”15 Essa correspondência gera aquilo que Jakobson denomina de auto‐reflexividade (o referente da mensagem é a própria mensagem), que acaba gerando, como conse‐ quência, a ambiguidade (a mensagem literária sempre veicula mais do que um significado ao mesmo tempo). Mais tarde, influenciado por Peirce, Jakobson passa a questionar o postulado comumente aceito entre os estruturalistas, segundo o qual a relação entre significante e significado é sempre arbitrária, como pre‐ tendia Saussure. Jakobson passa a definir a mensagem poética como aquela em que predominam as relações motivadas ou icônicas da lin‐ guagem (e não arbitrárias). Dentre dois tiposde iconismo postulados por Peirce, a imagem e o diagrama, Jakobson acredita que é o segundo que prevalece na poesia. É importante observar, por fim, que, ao contrário do que afirmaram alguns opositores da poética formalista‐estruturalista, sua proposta não é estática tampouco anistórica, pois Jakobson, apesar de ter sido fortemente influenciado pelas categorias linguísticas opositivas de 13 JAKOBSON, 1995, p. 130. 14 JAKOBSON, 1995, p. 127. 15 JAKOBSON, 1995, p. 112. 30 Saussure, redefine‐as em termos de complementaridade, o que lhe permite tratar da literatura – bem como de qualquer outro sistema de signos – tanto do ponto de vista sincrônico quanto diacrônico. Ressalte‐se, ainda, que a linguagem poética, apesar de receber uma definição acurada, não deve ser vista como uma essência linguística, mas como uma função, presente de forma mais ou menos intensa nas mais diversas mensagens. Nos termos do próprio autor, ela “não se confina à poesia. Há somente uma diferença na hierarquia: tal função pode estar subordinada a outras funções, ou ao contrário, aparecer como a função central, organizadora, da mensagem”.16 Umberto Eco e a semiótica literária De certo modo, pode‐se dizer que todos os críticos de literatura inte‐ ressados em realizar discussões a partir dos referenciais semiolinguís‐ ticos de Ferdinand Saussure ou nos referenciais semióticos de Charles Sanders Peirce formam uma das correntes imanentistas mais fortes e influentes em nossos dias: a semiótica literária. Nesse sentido, os for‐ malistas russos e, principalmente, Roman Jakobson, podem ser consi‐ derados uma espécie de precursores da crítica literária realizada a partir da semiótica. Vários autores poderiam ser apresentados aqui como parte dessa tradição, como Roland Barthes, Algirdas J. Greimas, Julia Kristeva, Iuri Lotman, Claude Bremmond, Jacques Derrida, entre outros. A seguir, serão apresentadas, de forma muito breve, algumas ideias de um dos mais conhecidos semioticistas de nossa época, Um‐ berto Eco, que tem realizado um trabalho intenso não apenas de crítica como também de produção literária, inspirado por um referencial semiótico próprio. Desde que iniciou sua vida acadêmica, em 1954, até os dias de hoje, Umberto Eco tem refletido sobre questões relativas à estética, às artes e à literatura, tendo passado por algumas fases ao longo de seu pensa‐ mento. Nas décadas de 50 e 60, Eco estudou a historiografia medieval e, principalmente, a estética de Tomás de Aquino. Seu romance mais famoso, O nome da rosa, certamente deve muitas de suas ideias aos estudos realizados nessa época. Na metade da década de 60, Umberto Eco passou a estudar a estética da cultura das mídias voltadas para grandes massas, a partir de filmes hollywoodianos, cartoons, revistas em quadrinhos, entre outros. Seu livro mais importante desse período é Obra aberta, cujo principal interesse, para a crítica literária, reside no fato de Eco utilizar conceitos que permitem estabelecer semelhanças e diferenças estéticas entre o que nós consideramos a literatura canônica, 16 JAKOBSON, 1995, p. 21. 31 de um lado, dotada de valor literário, e a arte voltada para as massas, de outro lado, cujo principal valor é o consumo rápido e imediato. A partir de 1968, com a publicação de A estrutura ausente, bem como com a publicação do Tratado Geral de Semiótica, de 1975, Umberto Eco elabora uma teoria semiótica própria, que utiliza para discutir também questões ligadas à arte e à literatura. Por fim, a partir da década de 80, em obras como Lector in fabula, Seis passeios pelos bosques da ficção e Os limites da interpretação, Umberto Eco passa a realizar uma teorização da literatura mais orientada pela teoria do texto e da pragmática, discu‐ tindo principalmente o papel do leitor na fruição. Deve‐se destacar, no âmbito da crítica, uma série de artigos publicados, em 2002 – Sulla Letteratura (2002); [Sobre a literatura (2003)] – em que Eco retoma suas principais concepções semióticas para discutir grandes autores como Dante, Wilde, Borges, entre outros. Visto não ser possível abordar aqui todas as ideias de Umberto Eco sobre a literatura, a seguir, apresentaremos apenas um de seus princi‐ pais conceitos utilizados para definir a obra literária: o idioleto estético. Segundo Eco, a literatura, assim como todas as demais artes, articu‐ lam‐se em torno de uma contradição aparente, pois, de um lado, não podem ser reduzidas a uma única regra de composição ou de estrutu‐ ra, que permitiria definir com exatidão o seu valor. Por outro lado, contudo, toda obra “deve ter uma estrutura¸ pois de outro modo não haveria comunicação, mas pura estimulação ocasional de respostas aleatórias.” (Eco: 1976, p. 60) Para resolver esse aparente paradoxo, Umberto Eco desenvolve o conceito de idioleto estético. A ideia do idioleto foi desenvolvida sob a influência dos conceitos de ambiguidade e auto‐reflexividade, de Jakobson. Nessa perspectiva, toda mensagem estética e literária se estrutura de modo ambíguo com rela‐ ção ao sistema de expectativas que é o código a que pertence. Essa ambiguidade se transforma em auto‐reflexividade quando a mensa‐ gem estética se articula segundo um sistema particular de relações, homólogo à própria língua ou ao código literário, mas que possui suas características próprias. Para exemplificar, poderíamos dizer que cada período literário cria uma espécie de idioleto, na medida em que pode‐ mos reconhecer características tanto formais quanto temáticas próprias do Classicismo, do Romantismo, do Realismo etc, embora cada um desses estilos esteja dentro do código da linguagem literária, que se diferencia de outros códigos, como o científico, o religioso, o filosófico etc. Além disso, cada autor, individualmente, também constrói um idioleto, que o diferencia, também em termos formais e de conteúdo, em relação ao código do período em que está inserido. 32 Em poucos termos, o idioleto nos permite refletir sobre este aparente paradoxo que parece vigorar nas artes e na literatura: de um lado, existem regras e estruturas de composição; de outro lado, essas regras e estruturas são constantemente violadas pelos escritores de diferentes períodos estéticos e literários, bem como uns em relação aos outros do próprio período. Para concluir, podemos dizer que Umberto Eco acre‐ dita que a linguagem estética, característica da literatura e das artes, possui uma função cognitiva muito importante, pois, uma vez que sua ambiguidade inerente nos oferece várias possibilidades de interpreta‐ ção, o leitor é convidado a preencher os significantes com significados sempre novos, transformando continuamente as denotações em cono‐ tações. Dessa forma, “a mensagem estética compele‐nos a experimen‐ tar sobre si léxicos e códigos sempre diferentes.” (Eco: 1976, p. 68) Esse processo exigente de interpretação leva o destinatário, de um lado, a uma experiência emotiva ou prazerosa e, de outro, a um incremento contínuo de seu próprio conhecimento bem como de sua visão de mundo. Atividades 1) Qual das alternativas abaixo possui a melhor definição para crítica imanente? a) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias a partir de seu contexto histórico. b) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias principalmente a partir da ideologia que determina a época dos autores. c) A crítica imanente procura refletirsobre as obras literárias a partir de suas características internas ou inerentes. d) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias a partir de suas ligações com o contexto sociocultural. 2) Qual dos pensadores abaixo pode ser considerado o precursor de uma crítica imanente? a) Aristóteles. b) Horácio. c) Boileau. d) Umberto Eco. 3) Dentre as alternativas abaixo, qual a melhor definição para literari‐ edade? a) Literariedade é sinônimo de polissemia. b) Literariedade pode ser explicada como um exemplo de auto‐ reflexividade. 33 c) Literariedade é o conceito utilizado pelos formalistas russos para determinar o valor estético da literatura. d) Trata‐se das características imanentes do discurso literário. 4) Qual dos conceitos abaixo foi postulado por Roman Jakobson para explicar os vários sentidos de uma obra literária? a) Auto‐reflexividade. b) Ambiguidade. c) Imanência. d) Literariedade. 5) Qual a melhor explicação para o conceito idioleto estético, de Um‐ berto Eco? a) O idioleto é idêntico à auto‐reflexividade, conforme o concei‐ to de Jakobson. b) O idioleto é idêntico à ambiguidade, conforme o conceito de Jakobson. c) O idioleto caracteriza um desvio em relação ao código de ex‐ pectavivas, o que confere a cada obra seu caráter singular. d) O idioleto caracteriza um código de expectativas ligado a um estilo de época ou de período literário. 3 SOCIOCRÍTICA Maria Alice Braga Diante dos textos modernos, a crítica deixa de lado sua função tradici‐ onal e explicativa, renunciando, inclusive, aos estudos voltados para o autor, sua biografia, já que em tais textos o sujeito é apenas um sujeito da enunciação, produto do próprio enunciado, para, então, posicionar‐ se ante uma mudança radical. Ao escolher a modernidade, a crítica ficaria com duas funções: a científica e a escritura. Com a primeira, a crítica pode descrever os textos, valendo‐se, pois, do aparato conceitual e metodológico da semiologia. Já com a escritura, a crítica privilegiará a produção de novos sentidos a partir de sentidos prévios. Entre os dois pólos destacados, situam‐se, de acordo com a professora e pesqui‐ sadora Leyla Perrone‐Moisés (2005, p. 20): [...] os discursos ancorados nas ciências humanas. Esses discursos utilizam a linguagem como instrumento de conhecimento e, como tal, não pertencem mais a uma área especificamente literária, tendendo a ser anexados às diferentes ciências sobre as quais se apoiam, como aplicações dessas ciências a um domínio particular da atividade humana. Os dois caminhos referem‐se ao próprio texto; a semiologia porque visa à leitura, no seu estado imanente, e a escritura porque se vale da linguagem plena, que é a poesia. Nessa perspectiva, voltamos aos antigos conceitos de crítica, que sem‐ pre oscilaram entre a ciência e a arte. Assim, a modernidade opera com grandes revoluções em todas as áreas do saber, não havendo mais a possibilidade de separar ciência e arte – existe uma comunicação direta e natural entre os dois pólos. Hoje, a ciência, baseada na criatividade, está mais próxima da arte. Quando o estudo de documentos pertence a discursos variados, como Literatura, História, Sociologia e Cultura de um povo, oferecendo, pois, subsídios para inserir o autor no seu tempo e no seu espaço, po‐ de‐se recorrer à Sociocrítica. 35 3.1 Crítica literária e crítica sociológica O crítico literário Antonio Candido, na obra Literatura e sociedade (1985) afirma que a crítica sociológica deve destacar os elementos sociais como partes da estrutura do texto. Por exemplo: o conto A cartomante, de Machado de Assis, mostra dimensões sociais claras como lugar, moda no vestir, tipo de transporte, costumes, enfim, de uma época. Isso não se constitui em atividade crítica. O tema do conto de Machado refere‐se ao triângulo amoroso entre Rita, Vilela e Camilo, dentro de uma sociedade rígida quanto aos conceitos sociais. A falência do casa‐ mento por causa do envolvimento entre Rita e Camilo, reforçada pela crença nas cartas demonstra as fragilidades pessoais e sociais. O conto retrata as relações de casamento, que deveriam fundar‐se nos princípios do amor, entretanto, tornam‐se degradadas pela traição. A leitura crítica possibilita ao leitor uma visão maior não só quanto à estética, mas quanto aos traços literários, que são o ponto e objetivo principais, tudo partindo dos aspectos sociais que o texto recupera na sua estrutura. Sob esse viés, a crítica sociológica, segundo Candido (1985), não deve ser fechada, pois o crítico deve considerar as possibilidades linguísti‐ cas, psicológicas, religiosas, temáticas, etc, que enriquecem a interpre‐ tação do texto, ampliando, assim, o universo dialógico entre lei‐ tor/texto. Obra e sociedade Antonio Candido reforça a ideia de que a arte sofre influência da soci‐ edade na mesma medida em que a influencia, aparecendo tanto na superfície do texto (descrição de cidades, casas, vestuário, costumes, etc.), quanto na caracterização de personagens e na estrutura profunda do texto. A obra interfere na sociedade porque os indivíduos lêem o texto e recebem do mesmo traços que podem mostrar‐se na prática, alterando, de alguma formar, o comportamento de tais leitores. No entanto, é importante lembrar que a influência provém do livro, ou seja, vem de dentro da obra, não depende do autor ter tido ou não a intenção de produzir efeitos. Candido (1985) propõe uma subdivisão da obra literária em dois gru‐ pos: arte de agregação e arte de segregação. A primeira seria um tipo inspi‐ rado “na experiência coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis” (CANDIDO, 1985, p. 23). A ideia do crítico refere que a arte deseja ser 36 compreendida pelo maior número possível de leitores. Seria uma leitu‐ ra previsível, aquela em que o leitor já antecipa o desfecho dos aconte‐ cimentos, posto que está acostumado com determinado tipo de texto. O leitor não suportaria alterações significativas tanto na ideologia da obra como na sua linguagem, rejeitando, assim, as mudanças. A arte de segregação é aquela preocupada em inovar o sistema de símbolos. As transformações mágicas ocorridas com algum persona‐ gem são motivo para que logo se busque a causa e a solução para o problema surgido. Por exemplo, um personagem que se transforma em um inseto, ou algo semelhante, como nos contos de fada, procura re‐ verter a situação para que tudo volte à normalidade. É importante destacar que somente a leitura pode derrubar o mito do texto muito difícil, como é o caso da obra de Guimarães Rosa, que tanto desconforto causa no leitor – a arte apresenta novidades, as quais são desafios para o desenvolvimento da competência da leitura. Para que novos esquemas se estabeleçam, é preciso inovar e deixar que novos sistemas simbólicos sejam absorvidos pelo nosso imaginário. 3.2. O que é Sociocrítica? Uma definição para a crítica sociológica ou sociocrítica é um discussão que pode gerar muitas páginas, pois as definições sempre são discutí‐ veis. De qualquer modo, a professora Marisa Corrêa Silva (2005, p. 141) em seus estudos nessa área afirma que a crítica sociológica “é aquela que procura ver o fenômeno da literatura como parte de um contexto maior: uma sociedade, uma cultura”. Podemos pensar a literatura como um fenômeno vinculado, direta‐ mente, à vida social. Portanto, a literatura não se constitui em um fe‐ nômeno independente; a obra de arte literária é criada dentro de um contexto; em uma determinada língua, em espaço e tempo definidos, enfim, onde se pensa de um determinado modo; assim, a obra carregaem si os traços desse contexto. Ao estudar tais marcas dentro da litera‐ tura, percebemos como a sociedade, na qual o texto foi produzido, se estrutura e quais seus valores. Entretanto, não podemos confundir uma crítica que visa à história de vida do autor com a crítica sociológica ou sociocrítica. A crítica socio‐ lógica ou sociocrítica objetiva estudar os grupos sociais aos quais o autor pertenceria, por exemplo, diferente da crítica biográfica, que focaliza momentos da vida do autor, ainda que estes sejam de caráter social. 37 Podemos ilustrar: a crítica biográfica focalizaria a vida do escritor nordestino Graciliano Ramos, destacando aspectos como a prisão do escritor durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, na sua obra Memó‐ rias do cárcere. Já a sociocrítica, partindo da mesma obra, do mesmo autor, isto é, com os mesmos dados, analisaria de modo diferente, pois os fatos não são vistos como individuais, mas coletivos. O relato de um homem passa a ser o depoimento simbólico de uma sociedade. Em Memórias do cárcere o sofrimento narrado é a história de homens e de mulheres de uma época (Estado Novo). Nesse viés, mais importante que um romance autobiográfico é verificar, pela leitura, que a obra estabelece um elo estético entre a realidade social, coletiva com a representação artística. O valor do romance advém da obra em si e não do autor da mesma, pois a obra exprime os mecanismos de repressão vigentes no país daquela época (Estado Novo). O papel da sociocrítica Pierre Barbéris, crítico francês, destaca que a sociocrítica possui o papel de fazer com que cada leitor passe a observar o mundo que nos cerca e perceba o processo de transformação da sociedade ao longo dos tem‐ pos, pois os hábitos, crenças, valores, enfim, não surgem espontanea‐ mente, tampouco duram uma vida inteira. A sociedade é o reflexo de sua época e tudo muda constantemente, deixando rastros para as no‐ vas gerações. Assim, as verdades que julgamos imutáveis, muitas vezes, não passam de convenções arbitrárias. Alguns textos podem reforçar as ideias já consagradas de seu tempo, valorizando preconceitos, enquanto outros mostram a realidade nem sempre de modo claro, mas inserida nas entrelinhas da estrutura tex‐ tual. Para o crítico francês Pierre Barbéris, a sociocrítica é uma ciência que visa ao texto como um espaço onde acontece certa socialidade. Para ele, a realidade enquanto história manifesta‐se de três formas: história pode ser a realidade e o processo histórico empiricamente reconhecí‐ veis; história como um discurso histórico que propõe uma interpreta‐ ção da realidade e do processo histórico, a história oficial; e a história enquanto narrativa ficcional que proporciona uma interpretação fora de ideologia, mas em relação com o sujeito que pensa e escreve e com o público por nascer. Barbéris explica, ainda, que a leitura sociocrítica e a sócio‐história une a história e a sociologia em um mesmo movimento já aceito e disponí‐ 38 vel. Então, a sociocrítica não pode funcionar como uma bula com sen‐ tido redutor, ela está atenta ao novo e, mais do que isso, ela contribui para uma nova maneira de escrever e de narrar, considerando o ho‐ mem no seu tempo e no seu espaço. Pierre Barbéris completa: Por isso a crítica moderna habilitou o fragmento e o rascunho, o pré‐texto ou o peritexto, e já não se limita às obras‐primas grandiosas das instituições. Ela se prende à noção de discurso, seja qual for sua roupagem. (1997, p. 164) De acordo com o ponto de vista do crítico francês, a sociocrítica enri‐ quece e destaca a questão do sujeito, ou seja, ela “institui o homem concreto no contexto, mas à margem de uma humanidade concreta.” (1997, p. 165) Os implícitos e a leitura Um texto não é composto somente por questões claras, ao contrário, é um objeto que expressa aspectos sócio‐históricos, morais, religiosos e filosóficos, podendo parecer apenas estético. Ao lermos Madame Bovary, de Gustave Flaubert, não podemos reduzir tudo ao adultério, sob pena de minimizarmos pontos importantes na obra de Flaubert. O autor confere um tratamento cru ao romance, em‐ pregando o tema do adultério e criticando o clero e a burguesia. Do mesmo modo, personagens conduzem a narrativa e cada um possui traços definidores para as ações dentro do texto, por exemplo, o men‐ digo cego, de Madame Bovary, é também um poeta e um voyeur, na medida em que as opacidades contrastam com a clareza do fio que conduz a narração, a vida. Aquele que não enxerga, faz emergir frus‐ trações ou alienações, aparentemente existenciais ou mesmo relativas, que remetem a crises na realidade sócio‐histórica. Também Emma Bovary constitui‐se emblematicamente nas amputações do ser e a bus‐ ca de soluções que envolvem o leitor. Flaubert obrigou‐se a enfrentar dificuldades técnicas, entretanto, pro‐ curou vencer o romantismo exacerbado da época, tendo angariado críticas severas a sua obra prima, que nem por isso deixou de ser o ponto de partida para uma nova estética literária. As grandes representações críticas, os mitos modernos, como Emma Bovary e outros tantos que conhecemos, como Hamlet, de Shakespeare ou Dom Quixote, de Cervantes, combinam e recuperam o universal particular, os diversos inconscientes que compõem o imaginário. As‐ 39 sim, o legível deve ser percebido e interpretado ao redor de pólos presentes no texto – os implícitos. 3.3 As bases da sociocrítica A sociocrítica fundamenta‐se na sociedade, pois todo leitor, segundo Barbéris (1997, p. 172) “pertence a uma sociedade e a uma socialidade que, a um só tempo, determinam‐lhe a leitura e lhe abrem espaços de interpretação, condicionam‐no e tornam‐no livre e inventivo.” O crítico francês também destaca que “todo leitor é um eu, oriundo de relações paternas e simbólicas, as quais também o determinam e lhe abrem espaços de pesquisa e de interpretação.” (p. 172) A respeito das afirmações acima, podemos inferir que estão presentes no texto buscas e invenções, pois as fantasias encontram‐se no nível dos signos, já que a linguagem constitui‐se em um instrumento e meio de relação entre o texto e o eu histórico e a história vivida pelo eu. A crítica sociológica está imersa em uma sócio‐história que a determi‐ na, mas que, ao mesmo tempo, inventa e se distancia, estando, pois, envolvida em discursos e signos preexistentes (e não fixos) à própria crítica. Nessa perspectiva, há pontos que devemos destacar, os quais seguem abaixo: a crítica sociológica busca textos que se referem à realidade histó‐ rica, social e política; a sociocrítica focaliza a história e a socialidade de textos que, apa‐ rentemente, não foram trabalhados de modo claro. Assim, podemos observar, nas palavras do crítico Pierre de Barbéris, que: “A leitura sociocrítica não é, portanto, um acessório de um pro‐ gressismo simplista e ingênuo. É uma das formas da lucidez”. (1997, p. 176) A crítica sociológica realiza uma leitura das virtualidades da his‐ tória, bem como observa, na escrita, todos os espaços para a descoberta da expressão social e histórica, pois vê nesses aspectos campo fértil de todos os problemas recorrentes e renovados da vida e da condição humana. 3.4 Importância da sociocrítica A sociocrítica, sem dúvida, realiza a leitura dos implícitos. Nesse pon‐ to, esbarramos na seguinte questão: nós não estamos preparados para ler a nossa própria história, incluindo nossa socialidade, afetos e moral, 40 pois guardamos e resguardamos impondo sempre barreiras de segu‐ rança. Desse modo, é difícil fazer crítica, especialmente a criança na escola, onde o professor
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