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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE NACIONAL DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO JUNE CIRINO DOS SANTOS CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA Uma fundamentação radical para pensar crime e gênero Rio de Janeiro 2018 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE NACIONAL DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO JUNE CIRINO DOS SANTOS CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA Uma fundamentação radical para pensar crime e gênero Rio de Janeiro 2018 Dissertação apresentada à banca de defesa de mestrado, como requisito final de avaliação do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Sabadell Aos meus pais e à Gigi: a distância nos furtou os abraços cotidianos, mas nunca o amor. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 4 I. REPRESENTAÇÃO FEMININA NO DISCURSO CRIMINOLÓGICO ......... 8 1. Prólogo: a inspiração da criminologia moderna .................................... 11 2. Do positivismo à virada sociológica ...................................................... 15 2.1. Mulheres delinquentes ....................................................... 16 2.2. Etiologia socioestrutural .................................................... 20 3. Interacionismo, rotulação e reação social .............................................. 26 3.1. Teorias do consenso .......................................................... 28 3.2. Teorias do conflito ............................................................. 36 II. CRIMINOLOGIA CRÍTICA .............................................................................. 43 1. Resgate à concepção materialista da história ......................................... 45 1.1. Novas velhas descobertas .................................................. 48 1.2. Delimitando os fundamentos da crítica ............................. 52 2. Crítica criminológica ............................................................................. 55 2.1. Criminalização e controle social ....................................... 56 2.2. Sistema carcerário ............................................................. 57 2.3. Política criminal alternativa ............................................... 59 3. Desenvolvimentos consequentes à crítica .............................................. 62 III. CRÍTICA FEMINISTA À CRIMINOLOGIA ................................................ 66 1. Revisão criminológica através de uma crítica feminista ........................ 68 1.1. Determinismo biológico e androcentrismo ....................... 71 1.2. Patriarcado e violência penal ............................................. 76 1.3. Discurso jurídico, experiência e realidade ......................... 81 2. Perspectivas criminológicas feministas ................................................. 83 2.1. Primeiras manifestações: criminologia feminista liberal .. 85 2.2. Exploração pelo capital, subordinação ao patriarcado ...... 92 IV. CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA ............................................ 104 1. Contribuições e limites da perspectiva feminista ................................. 109 1.1. Gênero em evidência ....................................................... 111 1.2. A tragédia do conteúdo e a farsa da forma ...................... 114 2. Campo de disputa: apesar de um direito burguês e sexista .................. 117 2.1. Observações sobre controle social ................................... 118 2.2. Digressões sobre o sistema carcerário ............................. 119 2.3. Advertências sobre uma política criminal alternativa ..... 120 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 123 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 126 4 INTRODUÇÃO É inevitável admitir que a criminologia crítica sofreu inúmeras transformações teóricas desde seu surgimento – independente do juízo valorativo que se ofereça por elas, não se pode desconsiderar as contribuições que vêm não somente da perspectiva feminista, mas também das críticas raciais, da vitimologia, da perspectiva do condenado ou dos desdobramentos pós-estruturais. Essas mudanças não têm somente no aspecto teórico relevância, mas se constituem também como transformações na própria política criminal, irmã militante da criminologia, uma vez que iniciativas reformistas a curto prazo já não podem ser desprezadas, apesar de a mira ainda estar apontada na direção do abolicionismo. Para além das definições tradicionais do que é uma criminologia crítica, é preciso pensar em formas de definição que entendam o fenômeno do crime segundo as desigualdades de classes, de raça e de gênero que constituem a formação socioeconômica e determinam as relações sociais. Não se trata de pensar nas falhas individuais ou de grupos específicos que geram o crime, mas de pensar nas falhas de uma sociedade que força e sustenta a criação de indivíduos que cometem crimes. As diferenças de distribuição de poder e de recursos materiais, bem como o entendimento que a solução para a questão do crime está nas transformações estruturais de uma sociedade, são ponto de partida para a unificação de um projeto criminológico crítico. Ou seja, a criminologia não pode ser nada menos do que uma disciplina informada pelo posicionamento político do criminólogo (ANIYAR DE CASTRO, 1977) – e nem é desejável que não o seja. Neste sentido, a primeira advertência sobre o presente trabalho está na definição de seus marcos teóricos: ao longo dos próximos quatro capítulos, faz-se um esforço para tornar evidentes as razões pelas quais se elege o materialismo histórico para trabalhar crime e gênero. Isso significa que se defende uma criminologia crítica de inspiração marxista, que trabalha com uma teoria materialista do desvio e da criminalização, e uma perspectiva crítica de gênero, que compreende que a opressão 5 feminina está vinculada à separação entre as esferas públicas e privadas, estruturalmente determinadas pelo patriarcado e materialmente fundadas na divisão sexual do trabalho. A segunda advertência decorre da primeira: a eleição de determinados marcos teóricos implica na exclusão de outros; assim, por uma questão metodológica e científica, opta-se por não trabalhar com perspectivas pós- estruturalistas em criminologia ou em gênero, embora elas possam surgir ao longo do trabalho para fins de ilustração ou para reconhecer a existência de perspectivas diversas. Estas advertências funcionam não só para guiar a leitura, mas também para esclarecer a adjetivação utilizada no subtítulo do presente trabalho. O objetivo central dessa investigação é facilitar o diálogo entre a criminologia crítica e o feminismo para pensar crime e gênero; assim, os três primeiros capítulos operam como fundamentos para o último, que se realiza como uma tentativa de cumprir este objetivo. Em momento algum esta exposição é pretensiosa a ponto de querer esgotar toda a produção científica sobre o assunto, mas, dentro dos limites implicados no marco teórico, busca apresentar as mais relevantes reflexões sobre crime e gênero no pensamento criminológico, com o cuidado de tentar desconstituir alguns mitos em relação à possibilidade de uma perspectiva feminista crítica em criminologia. O percurso instituído vai da criminologia ao feminismo para então realizar um retorno à criminologia crítica. Assim, o primeiro capítulo busca expor a insípida representação teóricadas mulheres na história da criminologia: desde as considerações positivistas iniciais, que utilizava um discurso etiológico essencialista e determinista para explicar o crime praticado pelas mulheres, passando pela virada sociológica, que permitiu o começo de uma abordagem relativamente esclarecida sobre as mulheres criminosas, mas que não atinge o potencial de superar os discursos biologicistas herdados da etiologia individual, e culminando nas mais progressistas manifestações de uma criminologia liberal, que já era capaz de perceber a disparidade de gênero nas estatísticas criminais sob uma nova luz, mas que ainda se limitava a uma análise superficial sobre a socialização individual, não sendo ainda capaz de captar as determinações estruturais que condicionam o gênero. 6 O segundo capítulo dedica-se a uma apresentação da criminologia crítica, uma vez que representa uma ruptura radical com aquilo que se identifica como criminologia tradicional. Inicia-se o capítulo com uma exposição dos ensaios fundantes da criminologia crítica, introduzindo não somente o pensamento dos autores que trazem a dialética marxista para a criminologia, mas também delimitando as bases que constituem a criminologia crítica e delimitando o que se pode compreender por essa denominação. Em seguida são pinceladas as críticas mais relevantes que derivam desse novo paradigma criminológico, nomeadamente sobre controle social e processos de criminalização, sobre sistema carcerário e sobre política criminal. Neste capítulo também se apresentam alguns dos desenvolvimentos mais modernos da criminologia crítica, buscando justificar a opção por trabalhar crime e gênero segundo essa concepção. O terceiro capítulo se concentra em demonstrar como o feminismo se debruça sobre a criminologia como um todo. Inicia-se por um processo de apresentação das críticas gerais que a teoria feminista investe no direito, em geral, e no pensamento criminológico, em específico, explicando como essas ponderações estão vinculadas a distintas perspectivas feministas. No segundo momento do capítulo, será apresentado aquilo que se entende por criminologia feminista, traçando um percurso do seu desenvolvimento a partir da exposição das mais relevantes teorias que se encaixam sob esta denominação, demonstrando novamente como elas se vinculam a diferentes correntes das teorias feministas. Por fim, o capítulo final procura fazer um balanço sobre a própria criminologia feminista, no qual é avaliada a importância das suas contribuições para o pensamento criminológico, bem como são feitas algumas observações sobre as limitações de se ter um quadro teórico ideologicamente tão diversificado que se firme com um único título – o de criminologia feminista. Este é o momento do trabalho em que se reflete acerca da necessidade da criminologia crítica de assumir teoricamente uma posição crítica sobre o gênero para disputar esse campo de análise, enriquecendo suas críticas originárias e ampliando e reforçando os fundamentos da criminologia crítica. 7 A criminologia crítica é definitivamente um movimento teórico, mas ela não se limita à academia. Isso significa dizer que qualquer resultado prático-político oferecido pela criminologia é fundamentado por investigação científica; fazer criminologia é, antes de mais nada, fazer ciência, por mais que ela possa posteriormente se realizar nos movimentos sociais ou se manifestar culturalmente. É exatamente essa sua característica que sustenta a necessidade de aprofundar a perspectiva de gênero: não é mais possível permitir que os movimentos feministas, homogeneizados e desvinculados de um referencial teórico rigoroso, tomem da criminologia crítica o papel de pensar política criminal; inversamente, não se pode mais permitir que a criminologia crítica ignore as transformações sociais que colocam o gênero em evidência, ou que continue marginalizando qualquer tentativa de inserir uma perspectiva crítica de gênero nos discursos criminológicos. A hipótese aqui defendida é de que é preciso, então, que a criminologia retome seu lugar para pensar teoricamente soluções políticas para uma problemática que necessariamente perpassa o gênero – e, para isso, ela precisa abraçar as categorias criadas pelas perspectivas feministas críticas e trabalha-las com o fim de uma prática a um só tempo transformadora das relações sociais e contentora do poder punitivo. 8 I. REPRESENTAÇÃO FEMININA NO DISCURSO CRIMINOLÓGICO Na reconstrução histórica das origens da disciplina que hoje se reconhece como criminologia há uma série de momentos que são identificados como relevantes para pensar a questão criminal da mulher. Documentos como o Maleus maleficarum (KRAMER, SPRENGER, 2014), guia da inquisição medieval, dedicavam-se, de fato, a detectar as mulheres cujo comportamento seria objeto de reprovação por parte do tribunal inquisitório sob a acusação de bruxaria ou feitiçaria. De fato, a inquisição centraliza seus esforços no controle social1 da mulher (ANITUA, 2008). Afirmar, entretanto, que a criminologia inicia com o estudo da mulher criminosa é um equívoco histórico perigoso (SABADELL, 2014): embora seja inegável a centralidade da mulher para os processos inquisitórios, a criminologia não se firma como ciência antes do século XVIII, quando juristas passaram a buscar uma fundamentação filosófica para a ciência penal e, algum tempo depois, pesquisadores positivistas naturalistas se debruçaram sobre a investigação das causas do comportamento criminoso de indivíduos condenados. A partir do momento que a autonomia da criminologia, enquanto ciência, passa a ser reivindicada, como território transdisciplinar de estudo do fenômeno criminal, identifica-se habitualmente dois paradigmas fundamentais: o paradigma etiológico, sobre o qual está assentada aquela que se convencionou chamar de criminologia tradicional – portanto, uma criminologia que se desenvolve a partir de uma perspectiva positivista, cujo objetivo, em linhas gerais, é a observação das causas do crime –, e o paradigma da reação social, que edifica toda a crítica criminológica do século XX – que, apesar de ramificar-se em diferentes tendências, tem em comum o traço de não reconhecer o crime como dado pré-constituído (BARATTA, 1999a). Em verdade, sob uma perspectiva histórica, a criminologia se configura como um acúmulo de discursos bastante heterogêneos cujo coeficiente único é o fato 1 Por controle social entende-se as formas pelas quais a sociedade responde de maneira institucional (formal) ou difusa (informal) às pessoas tidas como desviantes ou aos comportamentos normativamente indesejados. 9 de se ocuparem da questão criminal (ANIYAR DE CASTRO, 1977). Isso significa dizer, é claro, que embora se convencione a distinção entre os dois paradigmas mencionados, não houve a superação de um pelo outro – porque, é lógico, a história não é um processo de evolução linear. Em vista disso, para compreender tanto o desenvolvimento da criminologia, quanto aquilo que hoje é produzido no saber criminológico, é preciso perceber que aquilo que será tratado aqui é uma disciplina eivada de permanências manifestas e latentes, ainda que adaptadas à transformação da realidade (ANITUA, 2008) – sendo que, dessas permanências, aquela que é mais significativa ou constante é o próprio positivismo, que continua tão atual quanto nunca (MALAGUTI BATISTA, 2012). A criminologia, enquanto disciplina, desde o princípio explora também com certo interesse os crimes cometidos pelas mulheres. Na investigação sobre as causas individuais do fenômeno do crime a mulher também foi objeto de fascínio para alguns pesquisadores, embora não tivesse a mesma centralidade que o homem (SMART, 1976). Neste período de busca dos fundamentos biopsicossociaisdo crime, o foco eram os criminosos presos, portanto para grande parte dos pesquisadores não havia apelo em compreender a questão da mulher, não só por não comporem as estatísticas criminais, mas também pelo status social que elas ocupavam, fundado em uma concepção jusnaturalista de subordinação da mulher. Isso porque, se, por um lado, a mulher gozou de ampla liberdade, particularmente na França, durante os períodos revolucionários do século XVIII, por outro não houve uma emancipação real, uma vez que após a reorganização da sociedade ela retorna a uma posição subserviente e, o que é mais relevante para este ponto, juridicamente subordinada ao homem. A existência da mulher continuou sendo determinada pela tutela masculina à qual ela se submetia como forma de garantir a hierarquia social – ou seja, não era percebida como sujeito livre e autônomo (BEAUVOIR, 2013). Em parte, isso se dava por terem elas sido majoritariamente representantes de sua classe, não de seu sexo, durante o período em que se operou essa reorganização 10 social, apesar de relevantes exceções (GOLDMAN, 2014) – mas também porque a maneira como se concebeu politicamente a nova organização social e o modo como se desenvolveu a ciência buscava legitimar a condição real de subordinação social da mulher, adaptando argumentos de cunho jusnaturalista aos postulados da formação social iluminista (SABADELL, 2012). Somente com o desenvolvimento industrial do século XIX e com a necessidade do trabalho fabril feminino, que se configura como o surgimento de um local de disputa para as mulheres na vida pública, torna-se inevitável rever a subordinação feminina no âmbito formal (BEAUVOIR, 2013). Surge espaço para a promoção da igualdade jurídica e política, principais pautas reivindicadas pelo movimento feminista liberal de primeira onda, que possibilita, ainda que lenta e gradualmente, uma transformação na percepção da mulher enquanto ser social autônomo. Mas mesmo a partir do momento em que se consolida essa mudança na concepção da mulher enquanto indivíduo social, o foco da criminologia continuou quase exclusivamente masculino e o fato de existir um gênero dominante no padrão empírico das pesquisas realizadas era raramente questionado. O que a crítica feminista indica, muito tempo depois, é que há uma série de “oportunidades perdidas” (COOK, 2016) em explorar o fenômeno criminal de um ponto de vista que colocasse a diferença de gênero em evidência e permitisse compreender a predominância masculina nas estatísticas criminais. De fato, a partir de um determinado momento histórico, é possível identificar em algumas escolas criminológicas lacunas no que tange a compreensão das questões de gênero; mas o desenvolvimento da criminologia como disciplina é anterior ao advento de uma perspectiva feminista sobre o direito, então parece um pouco forçoso, de um ponto de vista científico, dizer que desde o princípio houve momentos em que a criminologia perdeu a oportunidade de construir um discurso unicamente voltado para as questões relativas às mulheres, ainda que algumas destas questões já tivessem sido identificadas empiricamente 11 Assim, o que se pretende a partir deste momento é promover uma exposição desta sequência de “oportunidades perdidas”: ao longo da historiografia tradicional do pensamento criminológico, identificar os momentos em que o gênero foi apresentado ou deixou de ser considerado nos discursos, antes de ser introduzida uma específica perspectiva feminista para pensar a questão do crime e da criminalização tendo a mulher como figura central. É importante revelar e examinar criticamente o quadro de representação ideológico em que se situam os estudos criminológicos tradicionais que se debruçam sobre a mulher, porque o ponto em comum entre todas essas teorias é uma perspectiva acrítica acerca dos estereótipos de gênero. Uma consequência disso é a tomada das percepções mais estereotípicas sobre o crime praticado pelas mulheres, informadas particularmente pelos estudos positivistas clássicos, sem que haja uma comprovação científica dessas características que são entendidas como inerentemente femininas. Assim, não surpreende que alguns mitos, como a fragilidade física, a instabilidade emocional e a destreza da mulher má permeiem até hoje o imaginário criminológico (SMART, 1976). A exposição que se fará a seguir, no entanto, pelo menos neste momento, se limitará ao pensamento criminológico desenvolvido dentro de uma perspectiva teórica de consenso2 – isso porque tanto a criminologia crítica quanto a criminologia feminista surgem em um mesmo momento histórico e em condições no mínimo complementares, exigindo um debate mais detalhado, que será realizado adiante. 1. Prólogo: a inspiração da criminologia moderna O desenvolvimento de discursos sobre a questão criminal, em geral, e da criminologia, em especial, corre paralelo às mudanças estruturais que ocorrem a partir do século XIII na Europa. Embora esses discursos ainda não se firmassem como ciência, o nascimento do Estado e da noção de soberania, o confisco dos conflitos interpessoais e o surgimento da burocracia (como governo de especialistas), informam 2 A distinção entre teorias criminológicas do conflito e do consenso se dá a partir da compreensão da sociedade que cada uma delas assume a partir da coincidência ou não entre os valores sociais e as normas vigentes, bem como os mecanismos disponíveis para a consolidação destes valores. Essa distinção será explicada em maior detalhe no momento oportuno. 12 mudanças concretas na política criminal que conformam o poder punitivo estatal (ANITUA, 2008). Mas é somente a partir das revoluções burguesas e em função das profundas alterações estruturais que elas provocam na ordem capitalista que se pode identificar uma tentativa de criação de uma ciência criminal. Por essa razão o primeiro momento de definição de uma ciência integrada sobre a questão criminal pode ser identificado a partir das revoluções burguesas, com o desenvolvimento de teorias que buscavam limitar o poder punitivo do Estado a partir de uma fundamentação filosófica para o estudo do crime e das penas (BARATTA, 1999a). A chamada escola clássica do direito penal, exatamente por seu objetivo de contenção do poder de punir, serviu em grande medida de inspiração para as escolas sociológicas que se desenvolvem a partir da década de 1930. Para o presente objetivo de construir uma narrativa que busca pontuar os momentos onde o discurso criminológico “perdeu a oportunidade” de tentar compreender as disparidades de gênero empiricamente verificáveis, iniciar por este ponto pode parecer contra producente, uma vez que se trata de uma escola que ainda não reconhece a criminologia como disciplina específica, mas que antes entende as ciências criminais de maneira integrada (como a união entre direito penal, processo penal, política criminal e criminologia). Entretanto, por sua posterior importância para o desenvolvimento do discurso criminológico, parece interessante tecer alguns comentários, ainda que breves, especialmente sobre a aparente ausência de interesse sobre a mulher. Em curta síntese, a escola clássica do direito penal reuniu uma geração pós- revolucionária de juristas e filósofos que se dispuseram a pensar as ciências penais, o crime e a pena a partir de uma fundamentação filosófico-política baseada no liberalismo clássico, no contratualismo e no utilitarismo. Ela se erige como crítica teórica à prática penal do ancien régime, alçada pelo que Baratta identifica como ideologia da defesa social (BARATTA, 1999a) como fundamento para a implementação de uma política criminal assinalada por princípios de cunho liberal. Sua finalidade, como opositora ao absolutismo, era justamente a limitação do poder 13 punitivodo Estado, o que tornou seus expoentes3 uma inspiração para a criminologia moderna, particularmente a partir do século XX. A grande obra da escola liberal clássica, Dei delitti e delle pene, apesar de ser assinada pelo italiano Cesare Beccaria, é na verdade a mais extraordinária expressão do pensamento iluminista europeu, na qual se desenvolve uma teoria jurídica do delito, da pena e do processo penal, cuja medida é tomada a partir das ideias de dano social e defesa social (BARATTA, 1999a). O Iluminismo traz para as ciências criminais a racionalização do castigo como instrumento que ao mesmo tempo protege a sociedade e o cidadão delinquente. Ou seja, se configura uma ciência que garante o indivíduo e democratiza e limita o poder do Estado exatamente para ampliar sua efetividade (ANITUA, 2008). Reivindicando o princípio da legalidade, o delito passa a ser considerado um ente jurídico, resultante da livre escolha do agente delinquente que, enquanto indivíduo, não se diferencia por sua natureza do sujeito não delinquente (BARATTA, 1999a). Significa dizer: não se tratava de entender o criminoso ou as causas do fenômeno do crime. É precisamente por isso, por estar fundamentada na filosofia liberal clássica, que concebe o delito unicamente como conceito jurídico, e não como ente natural, e que vê na liberdade de agir do cidadão a realização da sua própria racionalidade, que à escola clássica do direito penal não cabia um olhar particular sobre o sujeito feminino. Se o delito era um conceito jurídico realizado por livre vontade de cidadãos racionais, em uma sociedade onde a mulher não é percebida sequer como indivíduo autônomo, sempre dependente da subordinação a uma figura masculina, quanto mais como cidadão livre e racional, não havia sentido em enfrentar a temática. 3 Porque ela nasce como crítica filosófica liberal ao poder absoluto dos Estados, e não como mera reação a um regime absolutista específico, a escola clássica tem representantes tanto na Europa continental, em especial Anselm von Feuerbach na Alemanha e Cesare Beccaria na Itália, quanto no Reino Unido, onde a grande influência era Jeremy Bentham – embora não se limitem a estes os filósofos e juristas que se colocaram a pensar a questão do crime e da pena no iluminismo. 14 A definição de um conceito jurídico de crime e o desenvolvimento de uma teoria da pena e do processo, no contexto de uma sociedade europeia do século XVIII, prescinde da figura da mulher. As categorias científicas e jurídicas não eram construídas a partir da mulher, mas de um indivíduo livre e autônomo – que, naquele momento, só poderia ser o homem. Ou seja: ao passo que o interesse sobre a figura feminina é afastado da investigação nas ciências criminais, se desenvolve uma ciência liberal do direito penal, que garante as liberdades individuais e que limita e racionaliza o poder punitivo do Estado, e que, de fato, não tem qualquer efeito para metade da população europeia (MENDES, 2014) – não porque ali não foi aproveitada a oportunidade, mas porque trata-se de um momento histórico em que a palavra “feminismo” sequer existia e, embora já houvesse uma notável reivindicação pelos direitos das mulheres 4 , ainda que embrionária de um movimento feminista (GOLDSTEIN, 1982), a racionalidade iluminista desesperadamente tentava legitimar a subordinação das mulheres filosófica, biológica e juridicamente. Assim, embora a escola liberal clássica do direito penal não tenha necessária pertinência para explorar a relevância da figura feminina no discurso criminológico, parece importante trazê-la ao debate não somente como contraponto ao paradigma criminológico positivista que se desenvolverá em seguida. A sua distinção está assentada principalmente na honestidade histórica de perceber que é justamente o resgate desse pensamento, apesar de fundado no liberalismo clássico, que é imprescindível para o desenvolvimento da criminologia moderna, inclusive aquela de base marxista. 4 O termo “feminismo” é cunhado no início do século XIX e é creditado ao socialista utópico francês Charles Fourier. O debate sobre a igualdade social e política entre homens e mulheres é ainda um pouco anterior, tendo sua primeira grande expoente no seio da Revolução Francesa, Mary Wollstonecraft, e, pouco mais tarde, no também socialista utópico francês, Conde Claude Henri de Saint-Simon (GOLDSTEIN, 1982). 15 2. Do positivismo à virada sociológica Se no século XVIII ainda não se podia reconhecer a centralidade de uma reivindicação dos direitos das mulheres, o desenvolvimento industrial do século XIX implica numa nova reorganização social que lança as mulheres aos espaços de trabalho fabril, o que implica na ocupação de um espaço na vida pública que estimula as demandas por igualdade. Por outro lado, o esforço em manter a mulher em sua posição de submissão se torna claro com a deliberada opção jurídica pela hierarquia entre os sexos durante os processos de codificação (BEAUVOIR, 2013). Mas, mais do que isso, o apelo à razão iluminista mostra-se insuficiente para o argumento da igualdade entre homens e mulheres, uma vez que os filósofos iluministas devolveram à concepção de natureza humana tudo aquilo que não podiam – ou não lhes agradava – explicar racionalmente (MILL, 2017). E é precisamente na esteira do desenvolvimento de uma ciência baseada na natureza humana, ainda que por um caráter positivista, que ao fim do século XIX se conduz nas ciências criminais uma reação ao conceito abstrato de indivíduo que a escola clássica havia imposto, e que culmina na criação de uma disciplina que se ocupa efetiva e unicamente do criminoso e das causas do crime – ou seja, uma disciplina que faz a etiologia do fenômeno criminal. Isso implicou na adoção de um critério então considerado estritamente científico e no aparente afastamento dos aspectos políticos da disciplina, resultando no surgimento do paradigma positivista e no nascimento oficial da criminologia (ANITUA, 2008). Nesta contraposição à escola liberal clássica, embora o crime ainda seja concebido como ente jurídico, ele também é um fato qualificado pela ação humana: ou seja, não pode ser considerado de maneira apartada da história biológica e psicológica do indivíduo que realiza a ação, nem deve ser isolado da totalidade natural e social na qual ele existe (BARATTA, 1999a). A etiologia, portanto, nunca será estritamente individual ou estritamente socioestrutural, mas uma busca das causas do crime tomando como ponto de partido o indivíduo e o ambiente em que se encontra. 16 O pressuposto básico para a explicação do fenômeno criminal se localiza, num momento inicial do paradigma etiológico, majoritariamente no indivíduo – ou, especificamente, na anormalidade do indivíduo, sobretudo as de natureza biológica, que convertem-se no estereótipo do “homem delinquente” (ANITUA, 2008). Mais adiante, já na virada para o século XX, se opera uma transferência no peso do interesse criminológico do indivíduo para as causas socioestruturais do crime, que, apesar de compartilhar do cientificismo do positivismo, se caracteriza como uma primeira revisão crítica da criminologia, mesmo que ainda à guisa de um paradigma etiológico (BARATTA, 1999a). 2.1. Mulheres delinquentes Por suas origens científicas fincadas no determinismo, não surpreende, também, que o positivismo criminológico tenha acompanhado o apogeu do racismo e da dominação imperialista (ANITUA, 2008). Ideologicamente, o positivismo coloca a criminologia a serviço do escravismo, do colonialismo e dos processos periféricos de expansão do capitalismo, de modo que, para legitimar as classes dominantes e fortalecer as oligarquias coloniais, a etiologia individual ganha especial força na América Latina5,configurando o poder punitivo local até os dias de hoje e garantindo a dominação (material e ideológica) pelos países hegemônicos (OLMO, 2004). O retorno ao delito como fenômeno natural necessário e independente do livre arbítrio do sujeito, e a busca de suas causas nos defeitos do indivíduo, encontram em Cesare Lombroso o comissário das ideias de quase um século de determinismo biológico. Mas longe de ser um representante unânime, sua mais conhecida obra, L’uomo delinquente, foi alvo de intensa crítica mesmo à sua época (ANITUA, 2008), particularmente porque sua tese central era costurada de aparentes contradições, que 5 Especificamente, e também para corroborar a tese sobre a importância do positivismo criminológico para o colonialismo, o destaque brasileiro é o médico Raimundo Nina Rodrigues, cuja produção reforçava a partir de fundamentos evolucionistas a supremacia europeia ou caucasiana sobre as populações indígenas ou de origens africanas, criticando a legislação penal brasileira por não dar conta destas especificidades (PEDRINHA, 2009). 17 colocavam o delinquente ao mesmo tempo como um sujeito antropologicamente não adaptado, mas também psicologicamente debilitado e conformado à sua condição atávica (LOMBROSO, 2007). O que é especialmente interessante é que o mais emblemático representante do positivismo criminológico se dedica não só ao estudo do homem delinquente, mas tem especial interesse também na investigação da mulher delinquente (LOMBROSO; FERRERO, 2013). Aliando a técnica médica a um discurso que ora se faz jurídico, ora se faz moral, Lombroso e Ferrero forçam uma distinção biológica entre a mulher moral, a criminosa e a prostituta a partir da análise de características fisiológicas e estatísticas recolhidas também por outros pesquisadores. Identificando o crime como um fenômeno essencialmente masculino, notam uma aproximação entre a mulher delinquente e o homem e, embora elas apresentassem anomalias em menor número do que os homens, seriam acometidas de patologias ou defeitos descomunais se comparáveis àqueles dos homens delinquentes, uma vez que seriam provocadas pelos males do útero e dos óvulos. Uma grande influência também exerceu Otto Pollak (1950) ao tentar compreender a razão pela qual o crime praticado pelas mulheres não alcança as estatísticas criminais oficiais. Ele entende que as mulheres são maliciosas por natureza, resgatando concepções do determinismo biológico normalmente associado somente a Lombroso. Fundamenta sua análise com uma concepção deturpada e acrítica acerca dos papéis sociais exercidos pelas mulheres, entendendo que seu domínio das esferas privadas oferece a possibilidade do cometimento de crimes que permanecem ocultos. Os crimes cometidos pelas mulheres, segundo ele, refletem sua natureza enganosa e são sublinhados por fatores sexuais e psicológicos. Por entender a mulher como um indivíduo naturalmente dotado de malícia, rejeita a discrepância das estatísticas criminais entre homens e mulheres com o argumento do crime que permanece oculto e inventa o mito do cavalheirismo do judiciário. Em parte, sua análise tem certo mérito na medida em que o confinamento aos espaços públicos de fato obriga as mulheres a adaptarem suas condutas às suas limitações sociais. No 18 entanto, não comprova empiricamente sua visão sobre a natureza feminina e força premissas sexistas apenas para validação da teoria (KLEIN, 2012). Naturalmente todas essas classificações e distinções cumprem aqui apenas um papel alegórico, de ilustração de uma das mais afamadas produções criminológicas da modernidade dedicadas ao indivíduo do sexo feminino. Diversas outras explicações pretensamente científicas, de cunho biológico raramente apartado de uma carga moral, foram desenvolvidas para justificar o comportamento criminoso feminino: oscilações hormonais, insuficiências fisiológicas e, ainda, incapacidades cognitivas que as levavam a não saber distinguir comportamentos ou a agir conforme a norma (LEMGRUBER, 1983). O que importa é notar que aquilo que efetivamente se consolida nesse momento é um discurso médico e jurídico legitimante do exercício do controle social sobre a mulher, reforçando os papéis sexuais a partir de dados ontológicos naturais (PEDRINHA, 2009). Mas no século que viu o apogeu das instituições totais, quer sejam as prisões, quer sejam os conventos, os manicômios, os asilos ou outras entidades de internamento (MALAGUTI BATISTA, 2012), o controle social penal da mulher ainda é excepcional, especialmente porque a mulher criminosa sempre foi considerada uma anomalia mais grave do que o homem criminoso. A reação social sobre a mulher publicamente condenada sempre foi mais intensa e mais ameaçadora do que aquela que recaía sobre o homem, e talvez isso possa ser parcialmente explicado pelo fato de que o controle social exercido a partir do direito penal foi desenvolvido tendo em consideração o homem, enquanto o controle social feminino foi historicamente informal e, quando formal, era por excelência exercido no âmbito da psiquiatria – ou seja, se a construção do homem delinquente é o criminoso, a construção do estereótipo da mulher delinquente é a louca (DAVIS, 2003). A transferência de foco que o positivismo criminológico provoca nas ciências criminais permite adequar o grau de periculosidade individual à punição, ao mesmo tempo em que garante a necessidade de defesa social. Assim, a punição é elastecida, permitindo o controle social também por meio da ideia de tratamento, que 19 surge no século XIX, legitimando os sistemas punitivos a partir de explicações de caráter biologicista que, na verdade, se traduziam em um evolucionismo etno e androcêntrico – algo impensável para o liberalismo e racionalismo do pensamento ilustrado (ANITUA, 2008). Assim, na virada do século XIX para o século XX florescem teorias criminológicas interdisciplinares, que não somente flertavam com a psicanálise, como também surgiam do próprio campo das chamadas ciências psi. Constroem-se pelo menos duas vertentes distintas de teorias psicanalíticas: sobre o crime e sobre a sociedade punitiva (BARATTA, 1999a). O amparo do positivismo criminológico nos saberes médicos, particularmente a psiquiatria, criou a estrutura perfeita para inserir nos domínios jurídico-penais o exercício do controle social da mulher por meio da gestão da saúde mental – ou, pelo menos, esse se configurou como o discurso oficial. A imposição deste tipo de intervenção para o controle social feminino está relacionado a uma percepção de que, subjacente à prática delitiva feminina, está necessariamente uma condição patológica ou uma desordem mental (MIRALLES, 2015b). Mas a verdadeira razão para a institucionalização medico-psiquiátrica das mulheres tinha muito mais a ver com um controle da sexualidade e do corpo do que efetivamente uma preocupação com a saúde mental, permitindo um controle social muito mais sofisticado e eficaz sobre a mulher do que aquele exercido pela religião ou pela família (PEDRINHA, 2009). Uma vez que se estabelecia um padrão de normalidade vinculado aos estereótipos de feminilidade, criava-se um discurso médico científico que associava a mulher a um comportamento submisso, caracterizado por uma natural e biológica fragilidade, sensibilidade e docilidade. A qualquer desvio do padrão comportamental estabelecido era imposto um diagnóstico patologizante que dava espaço às recentes descobertas da psiquiatria e da psicanálise: não somente a loucura, mas também a neurose, a psicose, a depressão, a epilepsia, a ninfomania e, particularmente, a histeria (PEDRINHA, 2009). 20 Para além da institucionalização de mulheres como forma de controle social alternativo ao meio jurídico, as ramificações e alastramento do positivismo criminológico também abriuespaço ao higienismo no Brasil. Assim, travestido novamente em um discurso médico, ações sanitaristas supostamente desprovidas de caráter político foram forçadas nas grandes cidades, devastando morros e cortiços – e atuando como controle social específico sobre as mulheres que se encaixavam nas categorias de desviantes sexuais, porque se configurava como repressão oficial à prostituição (PEDRINHA, 2009). Ao longo de todo o desenvolvimento das teorias etiológicas individuais, a natureza criminosa ou desviante do comportamento jamais foi confrontada a partir de uma análise das relações socioeconômicas e políticas que condicionam os processos de criminalização (BARATTA, 1999a). O enfoque era estritamente segundo a natureza feminina, tratando como reflexo desta qualquer aspecto social do comportamento da mulher criminosa e ignorando a distinção entre sexo e gênero (MIRALLES, 2015b). Da mesma maneira, as relações sociais de cunho patriarcal que determinam a opressão das mulheres e que permeavam as análises sobre as mulheres desviantes não são tomadas em consideração. Embora houvesse uma consideração inicial de que o gênero pudesse ser um fator determinante do crime, as análises ainda estavam comprometidas com uma compreensão de que as mulheres eram inferiores aos homens e, portanto, seus desvios seriam oriundos de suas especiais condições biopsicológicas. 2.2. Etiologia socioestrutural É somente a partir do desenvolvimento da teoria estrutural-funcionalista da anomia, introduzida inicialmente por Durkheim ao fim do século XIX, que a criminologia faz a virada sociológica que a caracteriza até hoje e que representa a primeira crítica – ou, pelo menos, a primeira alternativa – ao modelo criminológico que buscava a causa do fenômeno criminal nos defeitos biopsicológicos do indivíduo (BARATTA, 1999a). Não representa um necessário rompimento, porém: a lógica cartesiana do positivismo ainda se aplica. Apesar de ainda buscar as causas do crime, 21 já não é o indivíduo o foco da investigação criminológica, mas a ruptura cultural que determina a violação das normas jurídicas (MALAGUTI BATISTA, 2012). Ao longo de toda a primeira metade do século XX, o que se reconhecia como “sociologia criminal”, especialmente aquela produzida nos Estados Unidos após a recepção de pensadores europeus em função da relativa estabilidade política, iria se dedicar a alterar a perspectiva criminológica que coadunou com os genocídios no velho continente e com o higienismo nos países dependentes (ANITUA, 2008). A abordagem funcionalista sobre o crime introduzida por Émile Durkheim se constrói sobre a noção de que os fatos sociais refletem os valores morais e jurídicos de uma sociedade. Partindo da ideia de normalidade e patologia, identifica o crime como um fato social normal, visto que presente em todas as sociedades, ainda que sob outras formas – sua perspectiva deriva exatamente da noção de que, considerar o delito como um fato social patológico, ficaria suprimida qualquer distinção entre patologia e normalidade, visto que a patologia social seria derivada da própria constituição humana (ANITUA, 2008). Anômico ou patológico seria o crime somente quando (e se) ultrapassasse determinados limites, que desvalidaria todo o sistema de normas estabelecidas e levaria à desorganização social, sem que tenha se firmado ainda um novo sistema normativo. Do contrário, o comportamento desviante é não somente útil para o equilíbrio e desenvolvimento social, como também necessário: isso porque a função do desvio é a de provocar uma reação que estabiliza e mantém a coesão social em torno da consciência coletiva sobre a validade das normas, ao mesmo tempo que torna possível a transformação da estrutura social. Dessa maneira, o sujeito desviante – o criminoso – passa a ser percebido como agente regulador da vida social (BARATTA, 1999a). O sucesso do funcionalismo durkheimiano no âmbito das ciências sociais levou a inúmeras interpretações e desenvolvimentos6, mas a que mais importa na criminologia é a de Robert Merton, que interpreta o desvio como um produto da 6 Sobre isto, relevante citar Vilfredo Pareto, Talcott Parsons, Niklas Luhmann, entre outros. 22 própria estrutura econômico-social, tão normal quanto a conformação às regras (ANITUA, 2008). O efeito da estrutura social sobre o comportamento individual pode ser tanto negativo quanto positivo. Mas o que dá origem ao desvio é uma desproporção ou contradição entre sociedade e cultura: enquanto a estrutura cultural dita metas que servem de motivação para o comportamento individual, que deve seguir modelos institucionalizados e ser conduzido por meios tidos como legítimos, a estrutura econômico social oferece as possibilidades de acesso aos modelos institucionalizados de comportamento e aos meios legítimos para alcance das metas impostas – tudo de acordo com a posição do indivíduo na estratificação social (MERTON, 2012). É a diferença entre os fins culturais válidos e os meios legítimos disponíveis que dá origem ao comportamento desviante – essa diferença (ou crise da estrutura cultural) se caracteriza como elemento funcional intrínseco à estrutura econômico- social, mas quando exacerbada é reconhecida como anomia. A resposta individual a essa tensão estrutural entre cultura e sociedade vai variar de acordo com a adesão ou separação do indivíduo a uma ou outra estrutura, do que são inferidos cinco modelos de adequação: a conformidade, como resposta positiva aos fins culturais e aos meios disponíveis e que gera coesão social; a inovação, como respeito aos fins culturais e uma resposta negativa aos meios institucionais, que caracteriza o comportamento criminoso típico; o ritualismo, como respeito aos meios institucionais, sem consideração pelos fins culturais; a apatia, como resposta negativa a ambos; e a rebelião, que não somente é uma resposta negativa, como também uma afirmação de meios e fins alternativos (BARATTA, 1999a). Ainda complementar para os fundamentos da criminologia do século XX foi a contribuição de John Dewey e de George Mead. Suas influências foram particularmente virtuosas para o interacionismo simbólico, uma vez que consideravam o indivíduo a partir da sua interação com a esfera pública. A pertinência da comunicação e da linguagem para a explicação dos fenômenos sociais permitiu o desenvolvimento de teorias sobre o controle social e sobre o papel do indivíduo e sua representação na sociedade. A pesquisa sociológica produzida especialmente por Mead passa a se relacionar com as pesquisas empíricas sobre os espaços urbanos, 23 abrindo espaço para uma concepção plural de sociedade que seria mais tarde apropriada pelas escolas ecológicas (ANITUA, 2008). Como último ponto adicional para compreender as fundações sobre as quais se erigem os discursos criminológicos a partir desse momento, sobretudo aqueles com fundamento na reação social, importa lembrar também de William Thomas, cujo teorema fundamental formula que situações definidas como reais serão reais nas suas consequências (BARATTA, 1999a). Além disso, também é imprescindível apontar este foi o mesmo autor de trabalhos notadamente sexistas7, baseados no darwinismo social (ANITUA, 2008), que tinha como objetivo distinguir a mulher criminosa a partir de suas características fisiológicas e análises comportamentais. Apesar de Thomas marcar a transição das explicações exclusivamente biopsicológicas do positivismo para análises mais sofisticadas sobre o delito feminino que abarcam também fatores socioestruturais, sua pesquisa ainda tem graves contradições, na medida em que utiliza teorias sociais para dar conta da complexidade das interações entre indivíduo e sociedade, ao mesmo tempo em que parte de premissas biológicas manipuláveis para a construção do argumento(KLEIN, 2012). Para ele, por um lado, os homens teriam uma natureza catabólica, destrutiva e criativa, enquanto as mulheres seriam anabólicas, passivas e inertes; por outro lado, a delinquência feminina seria uma resposta normal em determinadas condições sociais, dirigidas por instintos ou desejos primários que deveriam ser controlados pelas instituições, como a família, no processo de socialização. A solução estaria numa manipulação do indivíduo a partir das instituições para que este mude a forma como percebe sua situação – não se trata de mudar a situação de opressão das mulheres, portanto, mas de mudar a sua definição acerca da opressão, convencendo-as a tomar outra atitude. Além disso, o sucesso dos processos de socialização dos indivíduos pressupõe uma sublimação da necessidade de responder aos seus instintos naturais (KLEIN, 2012). 7 “The unadjusted girl: with cases and standpoint for behavior analysis” foi publicado em 1923 como título da revista do The American Institute of Criminal Law and Criminology. 24 Assim, seu trabalho se configura como uma extraordinária contradição, na medida em que prioriza a reabilitação e a prevenção ao delito à punição pelo comportamento criminoso, ainda que o ser humano não seja dotado de plena autonomia sobre suas condutas (KLEIN, 2012). Thomas representa o conflito entre o liberalismo criminológico e o conservadorismo de gênero, o que torna sua tese central sobre a valorização da reação social contraditória com a crença em uma natureza humana determinada – indemonstrável em suas observações acerca do crime feminino (SMART, 1976). No entanto, ao contrário do que pretendem alguns autores (MENDES, 2014), embora caiba lembrar das teorias sobre o crime feminino e criticar suas premissas ultrapassadas e conclusões equivocadas, a importância de Thomas não pode ser diminuída em função disso. De fato, ele reforça o mito da mulher manipuladora, calculista e vaidosa, bem como naturaliza a violência perpetrada pelos homens como impulsos incontroláveis de satisfação de seus desejos animalescos (KLEIN, 2012). Sua crença de que a reação social é mais relevante que a realidade objetiva é fundamental para o desenvolvimento da criminologia macrossociológica, mas se traduz na sua obra pela redução de problemas sociais a problemas individuais (SMART, 1976). Apesar dessas limitações, estritamente criminológicas ou relativas à compreensão do gênero, ele é responsável por desenvolver um dos mais determinantes axiomas da criminologia moderna – parece equivocado confundir a ontologia por ele produzida com a epistemologia que o autor representa. Ainda dentro de um paradigma estrutural-funcionalista, outro relevante autor que empreendeu esforços investigativos para a análise da mulher criminosa foi Kingsley Davis (1961), com sua pesquisa acerca da prostituição que é tida ainda contemporaneamente como uma análise clássica da temática, que trabalha com uma natureza orgânica dos homens e das mulheres. A prostituição é compreendida como uma necessidade estrutural, cujas origens podem ser traçadas até os instintos primitivos do ser humano que, ao contrário dos demais primatas, exerce uma sexualidade que não tem mera função reprodutiva. Entende que a prostituta compõe uma classe particular de mulheres que só poderiam exercer essa função por serem 25 inerentemente más. Com base em teorias psicanalíticas sobre a sexualidade, entende a prostituição como uma perversão da natureza feminina, mas que cumpre uma função estabilizadora da ordem social – ou seja, entende a opressão de gênero estrutural e a exploração sexual de mulheres como expressão de funcionamento saudável do sistema social. Sua contemplação da prostituição é desvinculada de qualquer contexto histórico ou social que possam imprimir diferenças fundamentais na maneira como a prostituição é exercida em uma sociedade (KLEIN, 2012). A maior parte dos estudos criminológicos sobre a prostituição e o estupro tomam esses fenômenos como aberrações pontuais, situações individuais e até mesmo patologias sociais. Ignoram, no entanto, como no caso de Davis, que esses fenômenos que entendem como um desvio da sexualidade feminina na verdade são interpretações estruturais da repressão, limitação, exploração e objetificação que o patriarcado impõe à sexualidade e às próprias mulheres (SMART, 1976). Mas a relevância dessas teorias estrutural-funcionalistas está justamente em perceber que as características biopsicológicas do indivíduo não são decisivas para o comportamento criminoso e, muito mais substancial para compreender o fenômeno criminal, a partir da virada sociológica, é a estrutura da sociedade e o local de pertencimento do indivíduo a ela. E, apesar de alguns dos autores mencionados não terem se debruçado especificamente sobre a questão criminal, é exatamente por trabalharem com a ideia de estrutura que essas teorias se tornam tão importantes para o desenvolvimento de boa parte da criminologia do século XX – e a razão pela qual coube a elas um espaço, ainda que muito reduzido, nesta apresentação. Neste momento, note-se, alguns termos compartilhados pelas teorias feministas começam a fazer parte do vocabulário criminológico para a composição de categorias e conceitos – como o papel do indivíduo ou a distinção entre as esferas públicas e privadas. Particularmente relevante para este trabalho é a noção de estrutura: a análise da estrutura patriarcal e da maneira como ela informa e é conformada pelo Direito é exatamente o que vai permitir que se faça uma crítica, sob um ponto de vista feminista, à criminologia, a partir da década de 1960. A exposição 26 até aqui realizada, embora aparentemente inócua, trata de estabelecer os fundamentos para a criminologia que se desenvolve a seguir, inclusive a crítica de viés feminista que identifica as falhas da criminologia até então pensada. A razão pela qual as teorias etiológicas sobre o crime feminino, tanto de cunho biológico, quanto de cunho social, parecem tão contraditórias entre si, variando a concepção acerca da natureza feminina entre a bondade e a maldade, o carinho e a malícia, ou entre o cavalheirismo e o rigor das instituições no controle social das mulheres, é exatamente porque estão fundadas num conceito que nunca é examinado cientificamente ou verificado empiricamente – isso é fundamental para a compreensão de toda a criminologia etiológica, mas fica particularmente evidente quando o objeto de investigação é a mulher (SMART, 1976). 3. Interacionismo, rotulação e reação social A expansão do modelo norte-americano de capitalismo e o dinamismo que acompanha essa mais complexa manifestação da estrutura socioeconômica determinam a necessidade de repensar o controle social. Com esse objetivo, o desenvolvimento de teorias criminológicas com fundamento nas ideias de anomia, heterogeneidade cultural, controle social, organização e interação entre indivíduo e esfera pública, torna-se proeminente nos Estados Unidos e, em particular, na Universidade de Chicago. Essas teorias são respostas ao seu próprio tempo, aos problemas concretos que a empiria colocava aos criminólogos, produzindo resultados sobre pesquisas em ambientes específicos e não hegemônicos da sociedade norte- americana. Esse é um momento de concomitante complexificação e refinamento da criminologia. A introdução das ideias do interacionismo simbólico e da fenomenologia social foi o que permitiu devolver um aspecto político à definição da disciplina criminológica como o estudo de construção das leis, de violação das leis e da reação 27 social a elas 8 (SUTHERLAND; CRESSEY, 1978). E, embora o sexo já seja reconhecido neste momento como o mais importante critério estatístico de caracterização do indivíduo criminoso, é possível afirmar que este elemento aindanão era questionado de forma crítica ou compreendido como relevante para a consideração das causas do crime. Entretanto, estudos específicos sobre mulheres surgem nesse contexto também, particularmente para analisar a conduta de meninas no interior de gangues ou gangues específicas de mulheres, ainda que sob uma perspectiva etiológica9. A partir da virada sociológica, é possível identificar o desenvolvimento da criminologia em duas orientações distintas, embora ambas trabalhem com categorias muito similares. O que as diferencia é, na verdade, o fundamento sobre os quais elas constroem suas concepções de organização social: por um lado, uma criminologia que se desenvolve a partir da noção de que a sociedade é o produto harmônico de um consenso geral, em que as normas vigentes coincidem com os valores sociais de modo a permitir o convívio social; por outro lado, uma criminologia que compreende que o conflito necessariamente perpassa a dinâmica social e a atuação estatal tem o papel de reprimi-lo, porque o conteúdo das normas representa os interesses e valores de um estrato social específico e quantitativamente não majoritário – ou seja, há, por definição, o desenvolvimento de uma criminologia do consenso e de uma criminologia do conflito (ALMEIDA, 2017). Na verdade, é somente a partir do momento que surge a criminologia do conflito, porque ela se reivindica como tal, que se pode identificar toda a criminologia liberal 10 residual como uma criminologia do consenso – é uma distinção 8 “Criminology is the body of knowledge regarding juvenile delinquency and crime as social phenomena. It includes within its scope the processes of making laws, of breaking laws, and of reacting toward the breaking of laws.” (SUTHERLAND, CRESSEY, 1978, p. 3). 9 Por uma opção metodológica, neste capítulo serão apresentados somente de maneira superficial os estudos criminológicos referidos; aqueles considerados mais relevantes para o desenvolvimento de uma perspectiva de gênero dentro da criminologia serão mais detalhadamente trabalhados. 10 Por criminologia liberal entende-se o conceito dado por BARATTA (1999a, p. 47): “Trata-se, principalmente, de teorias inseridas no campo da sociologia criminal burguesa e que, para distingui-las das mais recentes teorias inseridas na assim chamada criminologia ‘crítica’(em parte, de inspiração marxista), se denominam, frequentemente, como teorias ‘liberais’, segundo uma particular acepção que, no mundo anglo-saxão, adquiriu o termo ‘liberal’. Com estes termos se denotam teorias que, 28 epistemológica que permite uma ruptura com a tradição criminológica até então existente. Embora não haja uma clareza nos contornos das classificações, tendo em vista os inúmeros estudos desenvolvidos sob o quadro teórico de cada uma das escolas que se agregam a uma ou outra perspectiva criminológica, parece sensato sistematizar da seguinte forma: ao passo que as teorias desenvolvidas na escola de Chicago, a teoria da associação diferencial e as teorias das subculturas criminais agrupam-se em torno da criminologia do consenso, todas as correntes que negam o pressuposto fundamental de uma sociedade harmônica, incluindo, aqui, teorias que vão desde a reação social até a criminologia crítica, são fundadas na ideia de conflito social – particularmente o interacionismo do labeling approach e a criminologia do conflito stricto sensu (SHECAIRA, 2004). É a partir destas duas orientações que serão apresentadas, na sequência, o desenvolvimento criminológico a partir da sua integração com as ciências sociais. A advertência que cabe aqui é a seguinte: no que tange a criminologia do conflito, neste momento serão trabalhadas somente as teorias que ainda não se vinculam ao marxismo. Isso porque, pela natureza deste trabalho e pelo marco teórico eleito, cabe um olhar particular à criminologia crítica uma vez que, ainda que também seja construída com base em uma concepção conflitual de sociedade, ela se filia à específica perspectiva das lutas de classes, categoria fundamental que a distingue das demais teorias conflituais porque representa verdadeiro antagonismo social, não mero conflito gerado pela hegemonia de poder. 3.1. Teorias do consenso As teorias criminológicas desenvolvidas sob o regaço do consenso partem da sociologia funcionalista. Significa dizer que compreendem a sociedade como um mecanismo que funciona harmonicamente com todos os seus elementos, em que as transformações se dão de maneira gradativa de acordo com limites institucionais diferenciando-se ainda que cronologicamente das teorias liberais clássicas dos séculos precedentes, se caracterizam, no interior do pensamento burguês contemporâneo, por uma atitude racionalista, reformista e, geralmente, progressista”. 29 previamente estabelecidos – qualquer crise ou conflito que ocorra, neste cenário, é considerado disfuncional, como a manifestação de uma patologia social (SABADELL, 2013). Quando transposta para a questão criminal, a perspectiva do consenso torna-se o fundamento das engrenagens de todo o sistema penal e legitima a ordem social a partir da repressão de comportamentos lesivos com o objetivo de manter o convívio social harmônico – pressupondo, por sua inaptidão em perceber as lutas e contradições da realidade, que mesmo o indivíduo que viola a norma a aceita e entende a punição como medida de justiça (ALMEIDA, 2017). Como resultado, os mecanismos de criminalização tornam-se naturalizados e resta justificado qualquer projeto político- criminal conservador. Essa orientação do desenvolvimento da criminologia tem como particularidade um enfoque multifatorial11 sobre o fato desviante. Por esta abordagem, o fato desviante é a expressão da singularidade do autor e das circunstâncias externas que o cercam (BERGALLI, 2015); ou seja, o crime não é influenciado somente por disposições individuais, mas também por fatores ambientais – o que se tornará muito evidente nas pesquisas criminológicas desenvolvidos particularmente nos Estados Unidos. Sob uma tradição empírica, a escola de Chicago, especificamente, converte a influência positivista de Comte e Spencer12 em respostas pragmáticas a problemas particulares. A preponderância das ciências naturais traduzida na sociologia e na criminologia possibilita o desenvolvimento de pesquisas com fundamento em uma teoria social baseada em ideias de matriz biológica, como organismo, função e ambiente, mas rejeitando o determinismo biopsicológico característico da criminologia até então (ANITUA, 2008). O legado da escola de Chicago se manifesta como um arcabouço teórico que no nome se refere às suas origens acadêmicas, mas que 11 A abordagem multifatorial é uma tese originalmente sugerida nos primeiros tempos de desenvolvimento da criminologia tanto por Enrico Ferri quanto por Franz von Liszt – como já foi brevemente mencionado neste trabalho – mas é resgatada pela criminologia europeia e estadunidense até o segundo pós-guerra mundial. 12 A sociologia norte-americana neste momento é fortemente influenciada pelo positivismo sociológico francês de Auguste Comte e pela antropologia determinista de Herbert Spencer; mais sobre isto em BERGALLI (2015) e ANITUA (2008). 30 ultrapassa as fronteiras do estado de Illinois e também é conhecido como teorias da ecologia criminal ou da desorganização social (SHECAIRA, 2004). Apesar do ecletismo metodológico dessas pesquisas, grande parte delas utilizavam questionários ou inquéritos sociais e priorizavam as estatísticas oficiais para a produção das investigações acerca do fenômeno criminal. Uma característica notável, também, é que o focosituacional das pesquisas ecológicas induziu os pesquisadores a se referirem ao mapa da cidade para conferir os resultados obtidos na investigação – isso porque entendiam que as diferenças sociais eram produzidas pela própria geografia urbana. A centralidade da cidade, portanto, é o ponto de partida para a escola de Chicago, que via nela um complexo corpo de costumes e comportamentos organizados; mais do que um meio físico artificial, a cidade tem um papel fundamental na construção da realidade social e a vida no meio urbano é resultado de um processo interativo de adaptação individual a essa realidade. Nos grandes aglomerados urbanos impõe-se um permanente anonimato como resposta social à sobrecarga cognoscitiva, o que cria ao mesmo tempo um isolamento individual e uma liberdade pessoal. A impossibilidade de um rigoroso controle externo por parte das instituições públicas propicia maior controle do indivíduo sobre as suas próprias responsabilidades, o que implica um comportamento segmentado e funcional, na medida em que o indivíduo precisa desenvolver mecanismos de seleção para fundar suas relações sociais, que por sua vez também funcionam como controle informal de sua conduta. A limitada mobilidade de um grande centro urbano também funciona como um mecanismo de controle social informal. Assim, na distribuição geográfica da cidade formam-se bolsões de aglomerações de indivíduos com interesses e sentimentos comuns (SHECAIRA, 2004). A partir dessa concepção ambiental, as teorias ecológicas entendem que a desorganização social é o fator primário que condiciona as condutas delitivas. A ruptura de vínculos sociais e as restrições impostas pelos recursos urbanos são responsáveis por uma fatal destruição da capacidade de controle social formal por parte das instituições oficiais do Estado. Normalmente, a organização e desorganização social nutrem uma relação de reciprocidade, pela qual a 31 desorganização social reestrutura as relações sociais e condutas humanas, promovendo a organização. As zonas em que há maior atividade e aglomeração de pessoas, por outro lado, costumam ter uma maior incidência de delitos, criando áreas de delinquência na geografia urbana que acabam expulsando indivíduos de maior poder aquisitivo e atraindo um contingente humano mais carente, o que por sua vez acaba degradando o espaço e tornando o local menos compatível com as exigências materiais de vida (SHECAIRA, 2004). Ou seja: todos os problemas sociais, segundo as teorias ecológicas, podem ser avaliados segundo a distribuição populacional de uma cidade em áreas de delinquência que seguem uma regra de desequilíbrio ecológico e suprimem as relações de solidariedade (BERGALLI, 2015). Seguindo essa lógica fundamental de uma leitura ecológica, as investigações criminológicas se detém em áreas determinadas para explicar problemas sociais específicos dos centros urbanos, criando propostas materiais para a sua solução. A importância da lógica ecológica se estende para a grande miríade de estudos sobre gangues que foram realizados, particularmente nos Estados Unidos, buscando explicar a relação entre o comportamento individual, suas interações sociais e ambientais. As propostas das teorias ecológicas, porque fundadas numa abordagem multifatorial sobre o crime, foram fundamentais para o desenvolvimento de outras teorias talvez mais relevantes para o quadro criminológico geral. Interessado também na noção de que o crime é expressão da desorganização social – que vai denominar de organização social diferencial –, Sutherland (2012), embora ainda admita a importância de teorias de cunho biológico para a explicação do comportamento criminoso, conclui que a reação do indivíduo frente à situação que o coloca em possibilidade delitiva é fundamental. O segundo fator que é definidor para a violação de uma norma penal está relacionado às habilidades e inclinações que o indivíduo adquire ao longo da vida, de modo que o crime ocorre quando uma situação tida como apropriada pelo indivíduo se faz presente. Para ele, portanto, o comportamento criminoso é fruto do aprendizado, não uma qualidade inerente, que é adquirido através de um processo comunicativo, a partir da interação entre o indivíduo e outras pessoas, 32 pertencentes a um mesmo grupo relativamente íntimo que o indivíduo, que já detém as habilidades e conhecimentos necessários para a prática delitiva. Esse processo de aprendizagem inclui a absorção de técnicas, motivos, racionalizações e atitudes, mas particularmente diz respeito à forma como o indivíduo deve definir aquela situação em termos de códigos legais favoráveis ou não. Isso depende, portanto, de uma interpretação individual e social acerca da legitimidade da norma; ou seja, o processo de assimilação de condutas depende da cultura na qual o indivíduo se insere, mesmo em termos microssociais. O princípio da associação diferencial é justamente o acúmulo de definições sobre a norma penal que favoreçam a sua violação – em nada se distingue essencialmente o aprendizado do comportamento criminoso do aprendizado de qualquer outro comportamento social, uma vez que os valores e as necessidades impostos por uma sociedade influenciam tanto o comportamento conforme quanto o desviante (SUTHERLAND, 2012). A relevância da teoria da associação diferencial desenvolvida por Sutherland (2012) está fundamentalmente ligada à sua desconfiança das amostras legais do fenômeno criminal e à incapacidade das teorias anteriores em explicar os crimes praticados pelos extratos economicamente favorecidos da população, especificamente o crime do colarinho branco. Sua crítica é de que a criminologia baseada nas estatísticas criminais tem resultados muito restritos e distorcidos porque não consegue perceber a cifra oculta das estatísticas criminais, que somente explicitam os crime praticados pelas camadas empobrecidas da sociedade. Isso figura numa generalização falaciosa de que o fenômeno criminal está largamente associado à pobreza e aos defeitos da socialização na infância. Ademais, entende que as teorias convencionais sequer dão conta de explicar o crime das classes baixas (SUTHERLAND, 1983). É interessante ressaltar que, embora identifique a cifra oculta relativa aos crimes das classes superiores, Sutherland não questiona a existência ou não de uma cifra oculta com relação aos crimes cometidos pelas mulheres. Por isso, quando trata do delito feminino, ele reconhece que a diferença entre as taxas femininas e 33 masculinas nas estatísticas criminais pode variar segundo alguns critérios específicos, como a localidade, o período histórico, a posição social de ambos os sexos, os diferentes grupos analisados ou a faixa etária; entretanto, ao reconhecer que o sexo é o indicador mais importante para distinguir o criminoso do não-criminoso nas estatísticas, afirma que a diferença é tão grande que seria possível considerar que o único fator relevante para uma diminuição ou aumento dessa diferença é a posição social das mulheres em relação aos homens, como determinante da frequência de oportunidade para prática de crimes. O que determina essas oportunidades é a socialização diferenciada que recebem as mulheres e os homens durante a infância, concluindo que o sexo só é determinante para a produção do crime na medida em que afeta outras relações sociais (SUTHERLAND; CRESSEY, 1978). É claro que ainda não há uma análise crítica sobre os papéis de gênero e a maneira como eles atravessam as desiguais relações de gênero fundadas na dominação masculina, mas Sutherland peca ao sequer questionar as estatísticas criminais, que é seu grande mérito no desenvolvimento da teoria da associação diferencial. Porque reconhece a importância dos mecanismos de aprendizagem e da diferenciação das relações sociais, a teoria da associação diferencial impulsiona o avanço deoutras teorias criminológicas para a explicação das subculturas delitivas. Particularmente, Cohen, que analisa a subcultura das gangues de jovens, descreve um sistema de crenças e valores construído a partir da interação social das gangues que serve como mecanismos de adaptação às soluções indisponíveis da cultura dominante (BARATTA, 1999a). Segundo a teoria das subculturas criminais, o comportamento delitivo dos jovens inseridos numa lógica de gangues não é motivado por uma racionalidade utilitária, mas pelos valores e crenças próprios do grupo, que são uma espécie de distorção das normas da sociedade. A conduta, portanto, torna-se legítima segundo os padrões da própria subcultura, muitas vezes exatamente porque representam uma inversão dos valores culturais da sociedade. A subcultura que cresce no interior dessas gangues muitas vezes se constitui como um elemento que separa esses jovens do restante da sociedade, permitindo a eles um senso de pertencimento, lealdade e solidariedade que não encontram na sociedade em geral (COHEN, 2012). 34 Enquanto os estudos sociológicos sobre subculturas desenvolvem muito a percepção sobre o crime masculino, particularmente de jovens, que permite a retirada de um caráter essencialista sobre o delito, os estudos sobre o crime praticado por mulheres ou meninas ainda mantém um caráter de etiologia individual, ampliando a causa dos desvios femininos não só para sua interação social, mas também para defeitos individuais. É notável que trabalhos que se atenham às estatísticas criminais deformam a percepção acerta da mulher ou da jovem desviante – isso se explica também pelo fato de que as estatísticas ofereciam uma visão distorcida sobre a conduta delitiva feminina, reduzida a crimes de alguma forma sexualizáveis, como a prostituição, ou restrito ao âmbito privado de reprodução da vida material, como pequenos furtos em lojas (SMART, 1976). A permanência da etiologia individual mesmo fica evidente com os trabalhos de Gisela Konopka e de Cowie, Cowie e Slater. Konopka faz um trabalho descritivo, com ênfase nas experiências individuais e fatores pessoais que levaram meninas institucionalizadas à prática delitiva, notando a influência das meninas na conduta delitiva masculina. O ponto central do seu trabalho é que a delinquência feminina é uma resposta emocional à solidão e à dependência, mas toma essas características como inerentemente femininas (KLEIN, 2012). Ela não percebe, no entanto, os fatores socioestruturais que costuram aquilo que entende por particularidades femininas da conduta delitiva (SMART, 1976). Cowie, Cowie e Slater, por outro lado, tratam os defeitos da mulher criminosa como fatores de predisposição constitutivos do indivíduo, propondo uma explicação cromossômica para a delinquência (KLEIN, 2012). O único fator externo que reconhecem é determinado por privações da infância, porque entendem que as mulheres são menos afetadas por fatores sociais ou ambientais do que os homens. Isso significa que, enquanto admitem a necessidade de uma avaliação multifatorial para explicar o comportamento delitivo masculino, limitam à família, portanto ao espaço privado de reprodução da vida material, o único fator social que poderia influenciar o comportamento feminino. É contraditório, portanto, que assumam uma lombrosiana determinação biológica sobre o sexo e uma imutabilidade de gênero, incapazes de 35 perceber a determinação dos papéis de gênero segundo uma lógica patriarcal (SMART, 1976). Essas teorias criminológicas, particularmente a percepção sobre as cifras ocultas do crime e a identificação de práticas delitivas exercidas pelos detentores do poder político, compreendem um dos principais marcos históricos da criminologia, porque permitem o deslocamento da atenção da disciplina para os próprios mecanismos de reação e de seleção criminalizante (ANIYAR DE CASTRO, 1977). A contribuição dessas teorias criminológicas, como consequência do funcionalismo, está na relativização dos valores dominantes de uma sociedade e das normas penais que impõem uma adequação do indivíduo a estes valores. A normalização do fenômeno do crime, em oposição à sua patologização, implica num reconhecimento da sua importância para o funcionamento normal e saudável da sociedade, bem como na percepção de que a socialização para o desvio não difere da socialização para a conformidade a não ser pela consideração pelos valores sociais. Entretanto, estas teorias ainda não são capazes de problematizar os fatores econômicos e políticos que fundamentam as normas sociais e os mecanismos de controle, nem questionam as mediações que ocorrem entre a estrutura socioeconômica e as relações sociais através das instituições do direito e do Estado. Ao deter sua análise a um nível microssociológico, chegam somente a resultados superficiais e fenomênicos, limitando-se a uma descrição dos valores, situações e condições sociais a que se referem. Falta, portanto, uma crítica teórica acerca da desigualdade entre os grupos sociais, das definições sobre crime e criminalização e da própria formação econômico- social em que se inserem (BARATTA, 1999a). Além disso, as teorias criminológicas neste ponto ainda estão abertas a uma possibilidade de mobilidade individual entre os estratos sociais. Servem, portanto, somente à hegemonização da ideologia dominante de base capitalista e patriarcal porque adotam uma postura unicamente observacional das camadas sociais subalternas (MALAGUTI BATISTA, 2012). Da mesma maneira, no que tange a investigação acerca das condutas delitivas femininas, sem a crítica sobre a cifra oculta das estatísticas oficiais do crime e sem uma crítica às definições sobre crime e sobre gênero, as conclusões são 36 inevitavelmente rasas porque somente alcançam uma percepção da mulher como desviante sexual ou como indivíduos que praticam desvios com implicações sexuais (SMART, 1976). A criminologia tradicional tende a perceber a natureza do comportamento criminoso feminino como acentuadamente sexual, o que torna a sexualidade feminina o fundamento do próprio problema do crime, refletindo e reforçando sua condição de reprodutora da vida material (KLEIN, 2012). Isso talvez seja reflexo de uma percepção sobre a sexualidade feminina como um desvio em si mesma, consequência de um padrão moral de conduta diferenciado que define o conceito de feminilidade e determina a submissão das mulheres (SMART, 1976). 3.2. Teorias do conflito Muito embora a oposição entre criminologia do consenso e criminologia do conflito identifique nesta última toda a produção criminológica a partir da reação social, incluindo a criminologia crítica, neste ponto serão apresentados somente duas correntes específicas: o pensamento desenvolvido no eixo rotulacionista do interacionismo simbólico e a criminologia baseada na sociologia do conflito. Em essência, o que diferencia a criminologia crítica do que aqui se identifica como criminologia do conflito (lato e strictu sensu), é que a abordagem conflitual desvia de uma aproximação teórica com o marxismo e compreende a centralidade da esfera política e da hegemonia do poder para as relações sociais, tanto na produção quanto na solução dos conflitos (ALMEIDA, 2017). A partir da década de 1960 começa a se formar um novo paradigma criminológico, fundado no interacionismo e na reação social, que tem como tese central as teorias da rotulação ou do etiquetamento, também conhecido como labeling approach. Este novo paradigma erige-se sob duas correntes sociológicas: o interacionismo simbólico, pelo qual se identifica na sociedade interações concretas entre os indivíduos implicadas em processos de etiquetamento que conferem a eles significados que se estendem através da linguagem, e a etnometodologia, que percebe a sociedade como produto de uma construção social mediada pelos
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