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CRIMINOLOGIA FEMINISTA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
FACULDADE NACIONAL DE DIREITO 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
JUNE CIRINO DOS SANTOS 
 
 
 
 
CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA 
Uma fundamentação radical para pensar crime e gênero 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2018 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
FACULDADE NACIONAL DE DIREITO 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
JUNE CIRINO DOS SANTOS 
 
 
 
 
CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA 
Uma fundamentação radical para pensar crime e gênero 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2018 
Dissertação apresentada à banca de defesa de 
mestrado, como requisito final de avaliação 
do Programa de Pós-Graduação em Direito 
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 
 
Orientadora: 
Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Sabadell 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Aos meus pais e à Gigi: 
a distância nos furtou os abraços cotidianos, 
mas nunca o amor. 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 4 
I. REPRESENTAÇÃO FEMININA NO DISCURSO CRIMINOLÓGICO ......... 8 
 1. Prólogo: a inspiração da criminologia moderna .................................... 11 
 2. Do positivismo à virada sociológica ...................................................... 15 
 2.1. Mulheres delinquentes ....................................................... 16 
 2.2. Etiologia socioestrutural .................................................... 20 
 3. Interacionismo, rotulação e reação social .............................................. 26 
 3.1. Teorias do consenso .......................................................... 28 
 3.2. Teorias do conflito ............................................................. 36 
II. CRIMINOLOGIA CRÍTICA .............................................................................. 43 
 1. Resgate à concepção materialista da história ......................................... 45 
 1.1. Novas velhas descobertas .................................................. 48 
 1.2. Delimitando os fundamentos da crítica ............................. 52 
 2. Crítica criminológica ............................................................................. 55 
 2.1. Criminalização e controle social ....................................... 56 
 2.2. Sistema carcerário ............................................................. 57 
 2.3. Política criminal alternativa ............................................... 59 
 3. Desenvolvimentos consequentes à crítica .............................................. 62 
 
III. CRÍTICA FEMINISTA À CRIMINOLOGIA ................................................ 66 
 1. Revisão criminológica através de uma crítica feminista ........................ 68 
 1.1. Determinismo biológico e androcentrismo ....................... 71 
 1.2. Patriarcado e violência penal ............................................. 76 
 1.3. Discurso jurídico, experiência e realidade ......................... 81 
 2. Perspectivas criminológicas feministas ................................................. 83 
 2.1. Primeiras manifestações: criminologia feminista liberal .. 85 
 2.2. Exploração pelo capital, subordinação ao patriarcado ...... 92 
IV. CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU FEMINISTA ............................................ 104 
 1. Contribuições e limites da perspectiva feminista ................................. 109 
 1.1. Gênero em evidência ....................................................... 111 
 1.2. A tragédia do conteúdo e a farsa da forma ...................... 114 
 2. Campo de disputa: apesar de um direito burguês e sexista .................. 117 
 2.1. Observações sobre controle social ................................... 118 
 2.2. Digressões sobre o sistema carcerário ............................. 119 
 2.3. Advertências sobre uma política criminal alternativa ..... 120 
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 123 
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 126 
 
 4 
INTRODUÇÃO 
 
 É inevitável admitir que a criminologia crítica sofreu inúmeras 
transformações teóricas desde seu surgimento – independente do juízo valorativo que 
se ofereça por elas, não se pode desconsiderar as contribuições que vêm não somente 
da perspectiva feminista, mas também das críticas raciais, da vitimologia, da 
perspectiva do condenado ou dos desdobramentos pós-estruturais. Essas mudanças não 
têm somente no aspecto teórico relevância, mas se constituem também como 
transformações na própria política criminal, irmã militante da criminologia, uma vez 
que iniciativas reformistas a curto prazo já não podem ser desprezadas, apesar de a 
mira ainda estar apontada na direção do abolicionismo. 
 Para além das definições tradicionais do que é uma criminologia crítica, é 
preciso pensar em formas de definição que entendam o fenômeno do crime segundo as 
desigualdades de classes, de raça e de gênero que constituem a formação 
socioeconômica e determinam as relações sociais. Não se trata de pensar nas falhas 
individuais ou de grupos específicos que geram o crime, mas de pensar nas falhas de 
uma sociedade que força e sustenta a criação de indivíduos que cometem crimes. As 
diferenças de distribuição de poder e de recursos materiais, bem como o entendimento 
que a solução para a questão do crime está nas transformações estruturais de uma 
sociedade, são ponto de partida para a unificação de um projeto criminológico crítico. 
Ou seja, a criminologia não pode ser nada menos do que uma disciplina informada 
pelo posicionamento político do criminólogo (ANIYAR DE CASTRO, 1977) – e nem 
é desejável que não o seja. 
 Neste sentido, a primeira advertência sobre o presente trabalho está na 
definição de seus marcos teóricos: ao longo dos próximos quatro capítulos, faz-se um 
esforço para tornar evidentes as razões pelas quais se elege o materialismo histórico 
para trabalhar crime e gênero. Isso significa que se defende uma criminologia crítica 
de inspiração marxista, que trabalha com uma teoria materialista do desvio e da 
criminalização, e uma perspectiva crítica de gênero, que compreende que a opressão 
 5 
feminina está vinculada à separação entre as esferas públicas e privadas, 
estruturalmente determinadas pelo patriarcado e materialmente fundadas na divisão 
sexual do trabalho. A segunda advertência decorre da primeira: a eleição de 
determinados marcos teóricos implica na exclusão de outros; assim, por uma questão 
metodológica e científica, opta-se por não trabalhar com perspectivas pós-
estruturalistas em criminologia ou em gênero, embora elas possam surgir ao longo do 
trabalho para fins de ilustração ou para reconhecer a existência de perspectivas 
diversas. Estas advertências funcionam não só para guiar a leitura, mas também para 
esclarecer a adjetivação utilizada no subtítulo do presente trabalho. 
 O objetivo central dessa investigação é facilitar o diálogo entre a 
criminologia crítica e o feminismo para pensar crime e gênero; assim, os três primeiros 
capítulos operam como fundamentos para o último, que se realiza como uma tentativa 
de cumprir este objetivo. Em momento algum esta exposição é pretensiosa a ponto de 
querer esgotar toda a produção científica sobre o assunto, mas, dentro dos limites 
implicados no marco teórico, busca apresentar as mais relevantes reflexões sobre 
crime e gênero no pensamento criminológico, com o cuidado de tentar desconstituir 
alguns mitos em relação à possibilidade de uma perspectiva feminista crítica em 
criminologia. 
 O percurso instituído vai da criminologia ao feminismo para então realizar 
um retorno à criminologia crítica. Assim, o primeiro capítulo busca expor a insípida 
representação teóricadas mulheres na história da criminologia: desde as considerações 
positivistas iniciais, que utilizava um discurso etiológico essencialista e determinista 
para explicar o crime praticado pelas mulheres, passando pela virada sociológica, que 
permitiu o começo de uma abordagem relativamente esclarecida sobre as mulheres 
criminosas, mas que não atinge o potencial de superar os discursos biologicistas 
herdados da etiologia individual, e culminando nas mais progressistas manifestações 
de uma criminologia liberal, que já era capaz de perceber a disparidade de gênero nas 
estatísticas criminais sob uma nova luz, mas que ainda se limitava a uma análise 
superficial sobre a socialização individual, não sendo ainda capaz de captar as 
determinações estruturais que condicionam o gênero. 
 6 
 O segundo capítulo dedica-se a uma apresentação da criminologia crítica, 
uma vez que representa uma ruptura radical com aquilo que se identifica como 
criminologia tradicional. Inicia-se o capítulo com uma exposição dos ensaios 
fundantes da criminologia crítica, introduzindo não somente o pensamento dos autores 
que trazem a dialética marxista para a criminologia, mas também delimitando as bases 
que constituem a criminologia crítica e delimitando o que se pode compreender por 
essa denominação. Em seguida são pinceladas as críticas mais relevantes que derivam 
desse novo paradigma criminológico, nomeadamente sobre controle social e processos 
de criminalização, sobre sistema carcerário e sobre política criminal. Neste capítulo 
também se apresentam alguns dos desenvolvimentos mais modernos da criminologia 
crítica, buscando justificar a opção por trabalhar crime e gênero segundo essa 
concepção. 
 O terceiro capítulo se concentra em demonstrar como o feminismo se 
debruça sobre a criminologia como um todo. Inicia-se por um processo de 
apresentação das críticas gerais que a teoria feminista investe no direito, em geral, e no 
pensamento criminológico, em específico, explicando como essas ponderações estão 
vinculadas a distintas perspectivas feministas. No segundo momento do capítulo, será 
apresentado aquilo que se entende por criminologia feminista, traçando um percurso 
do seu desenvolvimento a partir da exposição das mais relevantes teorias que se 
encaixam sob esta denominação, demonstrando novamente como elas se vinculam a 
diferentes correntes das teorias feministas. 
 Por fim, o capítulo final procura fazer um balanço sobre a própria 
criminologia feminista, no qual é avaliada a importância das suas contribuições para o 
pensamento criminológico, bem como são feitas algumas observações sobre as 
limitações de se ter um quadro teórico ideologicamente tão diversificado que se firme 
com um único título – o de criminologia feminista. Este é o momento do trabalho em 
que se reflete acerca da necessidade da criminologia crítica de assumir teoricamente 
uma posição crítica sobre o gênero para disputar esse campo de análise, enriquecendo 
suas críticas originárias e ampliando e reforçando os fundamentos da criminologia 
crítica. 
 7 
 A criminologia crítica é definitivamente um movimento teórico, mas ela 
não se limita à academia. Isso significa dizer que qualquer resultado prático-político 
oferecido pela criminologia é fundamentado por investigação científica; fazer 
criminologia é, antes de mais nada, fazer ciência, por mais que ela possa 
posteriormente se realizar nos movimentos sociais ou se manifestar culturalmente. É 
exatamente essa sua característica que sustenta a necessidade de aprofundar a 
perspectiva de gênero: não é mais possível permitir que os movimentos feministas, 
homogeneizados e desvinculados de um referencial teórico rigoroso, tomem da 
criminologia crítica o papel de pensar política criminal; inversamente, não se pode 
mais permitir que a criminologia crítica ignore as transformações sociais que colocam 
o gênero em evidência, ou que continue marginalizando qualquer tentativa de inserir 
uma perspectiva crítica de gênero nos discursos criminológicos. A hipótese aqui 
defendida é de que é preciso, então, que a criminologia retome seu lugar para pensar 
teoricamente soluções políticas para uma problemática que necessariamente perpassa o 
gênero – e, para isso, ela precisa abraçar as categorias criadas pelas perspectivas 
feministas críticas e trabalha-las com o fim de uma prática a um só tempo 
transformadora das relações sociais e contentora do poder punitivo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 8 
I. REPRESENTAÇÃO FEMININA NO DISCURSO CRIMINOLÓGICO 
 
 Na reconstrução histórica das origens da disciplina que hoje se reconhece 
como criminologia há uma série de momentos que são identificados como relevantes 
para pensar a questão criminal da mulher. Documentos como o Maleus maleficarum 
(KRAMER, SPRENGER, 2014), guia da inquisição medieval, dedicavam-se, de fato, 
a detectar as mulheres cujo comportamento seria objeto de reprovação por parte do 
tribunal inquisitório sob a acusação de bruxaria ou feitiçaria. De fato, a inquisição 
centraliza seus esforços no controle social1 da mulher (ANITUA, 2008). Afirmar, 
entretanto, que a criminologia inicia com o estudo da mulher criminosa é um equívoco 
histórico perigoso (SABADELL, 2014): embora seja inegável a centralidade da 
mulher para os processos inquisitórios, a criminologia não se firma como ciência antes 
do século XVIII, quando juristas passaram a buscar uma fundamentação filosófica 
para a ciência penal e, algum tempo depois, pesquisadores positivistas naturalistas se 
debruçaram sobre a investigação das causas do comportamento criminoso de 
indivíduos condenados. 
 A partir do momento que a autonomia da criminologia, enquanto ciência, 
passa a ser reivindicada, como território transdisciplinar de estudo do fenômeno 
criminal, identifica-se habitualmente dois paradigmas fundamentais: o paradigma 
etiológico, sobre o qual está assentada aquela que se convencionou chamar de 
criminologia tradicional – portanto, uma criminologia que se desenvolve a partir de 
uma perspectiva positivista, cujo objetivo, em linhas gerais, é a observação das causas 
do crime –, e o paradigma da reação social, que edifica toda a crítica criminológica do 
século XX – que, apesar de ramificar-se em diferentes tendências, tem em comum o 
traço de não reconhecer o crime como dado pré-constituído (BARATTA, 1999a). 
 Em verdade, sob uma perspectiva histórica, a criminologia se configura 
como um acúmulo de discursos bastante heterogêneos cujo coeficiente único é o fato 
 
1 Por controle social entende-se as formas pelas quais a sociedade responde de maneira institucional 
(formal) ou difusa (informal) às pessoas tidas como desviantes ou aos comportamentos 
normativamente indesejados. 
 9 
de se ocuparem da questão criminal (ANIYAR DE CASTRO, 1977). Isso significa 
dizer, é claro, que embora se convencione a distinção entre os dois paradigmas 
mencionados, não houve a superação de um pelo outro – porque, é lógico, a história 
não é um processo de evolução linear. Em vista disso, para compreender tanto o 
desenvolvimento da criminologia, quanto aquilo que hoje é produzido no saber 
criminológico, é preciso perceber que aquilo que será tratado aqui é uma disciplina 
eivada de permanências manifestas e latentes, ainda que adaptadas à transformação da 
realidade (ANITUA, 2008) – sendo que, dessas permanências, aquela que é mais 
significativa ou constante é o próprio positivismo, que continua tão atual quanto nunca 
(MALAGUTI BATISTA, 2012). 
 A criminologia, enquanto disciplina, desde o princípio explora também com 
certo interesse os crimes cometidos pelas mulheres. Na investigação sobre as causas 
individuais do fenômeno do crime a mulher também foi objeto de fascínio para alguns 
pesquisadores, embora não tivesse a mesma centralidade que o homem (SMART, 
1976). Neste período de busca dos fundamentos biopsicossociaisdo crime, o foco 
eram os criminosos presos, portanto para grande parte dos pesquisadores não havia 
apelo em compreender a questão da mulher, não só por não comporem as estatísticas 
criminais, mas também pelo status social que elas ocupavam, fundado em uma 
concepção jusnaturalista de subordinação da mulher. 
 Isso porque, se, por um lado, a mulher gozou de ampla liberdade, 
particularmente na França, durante os períodos revolucionários do século XVIII, por 
outro não houve uma emancipação real, uma vez que após a reorganização da 
sociedade ela retorna a uma posição subserviente e, o que é mais relevante para este 
ponto, juridicamente subordinada ao homem. A existência da mulher continuou sendo 
determinada pela tutela masculina à qual ela se submetia como forma de garantir a 
hierarquia social – ou seja, não era percebida como sujeito livre e autônomo 
(BEAUVOIR, 2013). 
 Em parte, isso se dava por terem elas sido majoritariamente representantes 
de sua classe, não de seu sexo, durante o período em que se operou essa reorganização 
 10 
social, apesar de relevantes exceções (GOLDMAN, 2014) – mas também porque a 
maneira como se concebeu politicamente a nova organização social e o modo como se 
desenvolveu a ciência buscava legitimar a condição real de subordinação social da 
mulher, adaptando argumentos de cunho jusnaturalista aos postulados da formação 
social iluminista (SABADELL, 2012). 
 Somente com o desenvolvimento industrial do século XIX e com a 
necessidade do trabalho fabril feminino, que se configura como o surgimento de um 
local de disputa para as mulheres na vida pública, torna-se inevitável rever a 
subordinação feminina no âmbito formal (BEAUVOIR, 2013). Surge espaço para a 
promoção da igualdade jurídica e política, principais pautas reivindicadas pelo 
movimento feminista liberal de primeira onda, que possibilita, ainda que lenta e 
gradualmente, uma transformação na percepção da mulher enquanto ser social 
autônomo. 
 Mas mesmo a partir do momento em que se consolida essa mudança na 
concepção da mulher enquanto indivíduo social, o foco da criminologia continuou 
quase exclusivamente masculino e o fato de existir um gênero dominante no padrão 
empírico das pesquisas realizadas era raramente questionado. O que a crítica feminista 
indica, muito tempo depois, é que há uma série de “oportunidades perdidas” (COOK, 
2016) em explorar o fenômeno criminal de um ponto de vista que colocasse a 
diferença de gênero em evidência e permitisse compreender a predominância 
masculina nas estatísticas criminais. De fato, a partir de um determinado momento 
histórico, é possível identificar em algumas escolas criminológicas lacunas no que 
tange a compreensão das questões de gênero; mas o desenvolvimento da criminologia 
como disciplina é anterior ao advento de uma perspectiva feminista sobre o direito, 
então parece um pouco forçoso, de um ponto de vista científico, dizer que desde o 
princípio houve momentos em que a criminologia perdeu a oportunidade de construir 
um discurso unicamente voltado para as questões relativas às mulheres, ainda que 
algumas destas questões já tivessem sido identificadas empiricamente 
 11 
 Assim, o que se pretende a partir deste momento é promover uma 
exposição desta sequência de “oportunidades perdidas”: ao longo da historiografia 
tradicional do pensamento criminológico, identificar os momentos em que o gênero foi 
apresentado ou deixou de ser considerado nos discursos, antes de ser introduzida uma 
específica perspectiva feminista para pensar a questão do crime e da criminalização 
tendo a mulher como figura central. É importante revelar e examinar criticamente o 
quadro de representação ideológico em que se situam os estudos criminológicos 
tradicionais que se debruçam sobre a mulher, porque o ponto em comum entre todas 
essas teorias é uma perspectiva acrítica acerca dos estereótipos de gênero. Uma 
consequência disso é a tomada das percepções mais estereotípicas sobre o crime 
praticado pelas mulheres, informadas particularmente pelos estudos positivistas 
clássicos, sem que haja uma comprovação científica dessas características que são 
entendidas como inerentemente femininas. Assim, não surpreende que alguns mitos, 
como a fragilidade física, a instabilidade emocional e a destreza da mulher má 
permeiem até hoje o imaginário criminológico (SMART, 1976). A exposição que se 
fará a seguir, no entanto, pelo menos neste momento, se limitará ao pensamento 
criminológico desenvolvido dentro de uma perspectiva teórica de consenso2 – isso 
porque tanto a criminologia crítica quanto a criminologia feminista surgem em um 
mesmo momento histórico e em condições no mínimo complementares, exigindo um 
debate mais detalhado, que será realizado adiante. 
 
1. Prólogo: a inspiração da criminologia moderna 
 O desenvolvimento de discursos sobre a questão criminal, em geral, e da 
criminologia, em especial, corre paralelo às mudanças estruturais que ocorrem a partir 
do século XIII na Europa. Embora esses discursos ainda não se firmassem como 
ciência, o nascimento do Estado e da noção de soberania, o confisco dos conflitos 
interpessoais e o surgimento da burocracia (como governo de especialistas), informam 
 
2 A distinção entre teorias criminológicas do conflito e do consenso se dá a partir da compreensão da 
sociedade que cada uma delas assume a partir da coincidência ou não entre os valores sociais e as 
normas vigentes, bem como os mecanismos disponíveis para a consolidação destes valores. Essa 
distinção será explicada em maior detalhe no momento oportuno. 
 12 
mudanças concretas na política criminal que conformam o poder punitivo estatal 
(ANITUA, 2008). Mas é somente a partir das revoluções burguesas e em função das 
profundas alterações estruturais que elas provocam na ordem capitalista que se pode 
identificar uma tentativa de criação de uma ciência criminal. Por essa razão o primeiro 
momento de definição de uma ciência integrada sobre a questão criminal pode ser 
identificado a partir das revoluções burguesas, com o desenvolvimento de teorias que 
buscavam limitar o poder punitivo do Estado a partir de uma fundamentação filosófica 
para o estudo do crime e das penas (BARATTA, 1999a). 
 A chamada escola clássica do direito penal, exatamente por seu objetivo de 
contenção do poder de punir, serviu em grande medida de inspiração para as escolas 
sociológicas que se desenvolvem a partir da década de 1930. Para o presente objetivo 
de construir uma narrativa que busca pontuar os momentos onde o discurso 
criminológico “perdeu a oportunidade” de tentar compreender as disparidades de 
gênero empiricamente verificáveis, iniciar por este ponto pode parecer contra 
producente, uma vez que se trata de uma escola que ainda não reconhece a 
criminologia como disciplina específica, mas que antes entende as ciências criminais 
de maneira integrada (como a união entre direito penal, processo penal, política 
criminal e criminologia). Entretanto, por sua posterior importância para o 
desenvolvimento do discurso criminológico, parece interessante tecer alguns 
comentários, ainda que breves, especialmente sobre a aparente ausência de interesse 
sobre a mulher. 
 Em curta síntese, a escola clássica do direito penal reuniu uma geração pós-
revolucionária de juristas e filósofos que se dispuseram a pensar as ciências penais, o 
crime e a pena a partir de uma fundamentação filosófico-política baseada no 
liberalismo clássico, no contratualismo e no utilitarismo. Ela se erige como crítica 
teórica à prática penal do ancien régime, alçada pelo que Baratta identifica como 
ideologia da defesa social (BARATTA, 1999a) como fundamento para a 
implementação de uma política criminal assinalada por princípios de cunho liberal. 
Sua finalidade, como opositora ao absolutismo, era justamente a limitação do poder 
 13 
punitivodo Estado, o que tornou seus expoentes3 uma inspiração para a criminologia 
moderna, particularmente a partir do século XX. 
 A grande obra da escola liberal clássica, Dei delitti e delle pene, apesar de 
ser assinada pelo italiano Cesare Beccaria, é na verdade a mais extraordinária 
expressão do pensamento iluminista europeu, na qual se desenvolve uma teoria 
jurídica do delito, da pena e do processo penal, cuja medida é tomada a partir das 
ideias de dano social e defesa social (BARATTA, 1999a). O Iluminismo traz para as 
ciências criminais a racionalização do castigo como instrumento que ao mesmo tempo 
protege a sociedade e o cidadão delinquente. Ou seja, se configura uma ciência que 
garante o indivíduo e democratiza e limita o poder do Estado exatamente para ampliar 
sua efetividade (ANITUA, 2008). 
 Reivindicando o princípio da legalidade, o delito passa a ser considerado 
um ente jurídico, resultante da livre escolha do agente delinquente que, enquanto 
indivíduo, não se diferencia por sua natureza do sujeito não delinquente (BARATTA, 
1999a). Significa dizer: não se tratava de entender o criminoso ou as causas do 
fenômeno do crime. 
 É precisamente por isso, por estar fundamentada na filosofia liberal 
clássica, que concebe o delito unicamente como conceito jurídico, e não como ente 
natural, e que vê na liberdade de agir do cidadão a realização da sua própria 
racionalidade, que à escola clássica do direito penal não cabia um olhar particular 
sobre o sujeito feminino. Se o delito era um conceito jurídico realizado por livre 
vontade de cidadãos racionais, em uma sociedade onde a mulher não é percebida 
sequer como indivíduo autônomo, sempre dependente da subordinação a uma figura 
masculina, quanto mais como cidadão livre e racional, não havia sentido em enfrentar 
a temática. 
 
3 Porque ela nasce como crítica filosófica liberal ao poder absoluto dos Estados, e não como mera 
reação a um regime absolutista específico, a escola clássica tem representantes tanto na Europa 
continental, em especial Anselm von Feuerbach na Alemanha e Cesare Beccaria na Itália, quanto no 
Reino Unido, onde a grande influência era Jeremy Bentham – embora não se limitem a estes os 
filósofos e juristas que se colocaram a pensar a questão do crime e da pena no iluminismo. 
 14 
 A definição de um conceito jurídico de crime e o desenvolvimento de uma 
teoria da pena e do processo, no contexto de uma sociedade europeia do século XVIII, 
prescinde da figura da mulher. As categorias científicas e jurídicas não eram 
construídas a partir da mulher, mas de um indivíduo livre e autônomo – que, naquele 
momento, só poderia ser o homem. Ou seja: ao passo que o interesse sobre a figura 
feminina é afastado da investigação nas ciências criminais, se desenvolve uma ciência 
liberal do direito penal, que garante as liberdades individuais e que limita e racionaliza 
o poder punitivo do Estado, e que, de fato, não tem qualquer efeito para metade da 
população europeia (MENDES, 2014) – não porque ali não foi aproveitada a 
oportunidade, mas porque trata-se de um momento histórico em que a palavra 
“feminismo” sequer existia e, embora já houvesse uma notável reivindicação pelos 
direitos das mulheres 4 , ainda que embrionária de um movimento feminista 
(GOLDSTEIN, 1982), a racionalidade iluminista desesperadamente tentava legitimar a 
subordinação das mulheres filosófica, biológica e juridicamente. 
 Assim, embora a escola liberal clássica do direito penal não tenha 
necessária pertinência para explorar a relevância da figura feminina no discurso 
criminológico, parece importante trazê-la ao debate não somente como contraponto ao 
paradigma criminológico positivista que se desenvolverá em seguida. A sua distinção 
está assentada principalmente na honestidade histórica de perceber que é justamente o 
resgate desse pensamento, apesar de fundado no liberalismo clássico, que é 
imprescindível para o desenvolvimento da criminologia moderna, inclusive aquela de 
base marxista. 
 
 
 
 
4 O termo “feminismo” é cunhado no início do século XIX e é creditado ao socialista utópico francês 
Charles Fourier. O debate sobre a igualdade social e política entre homens e mulheres é ainda um 
pouco anterior, tendo sua primeira grande expoente no seio da Revolução Francesa, Mary 
Wollstonecraft, e, pouco mais tarde, no também socialista utópico francês, Conde Claude Henri de 
Saint-Simon (GOLDSTEIN, 1982). 
 15 
2. Do positivismo à virada sociológica 
 Se no século XVIII ainda não se podia reconhecer a centralidade de uma 
reivindicação dos direitos das mulheres, o desenvolvimento industrial do século XIX 
implica numa nova reorganização social que lança as mulheres aos espaços de trabalho 
fabril, o que implica na ocupação de um espaço na vida pública que estimula as 
demandas por igualdade. Por outro lado, o esforço em manter a mulher em sua posição 
de submissão se torna claro com a deliberada opção jurídica pela hierarquia entre os 
sexos durante os processos de codificação (BEAUVOIR, 2013). Mas, mais do que 
isso, o apelo à razão iluminista mostra-se insuficiente para o argumento da igualdade 
entre homens e mulheres, uma vez que os filósofos iluministas devolveram à 
concepção de natureza humana tudo aquilo que não podiam – ou não lhes agradava – 
explicar racionalmente (MILL, 2017). 
 E é precisamente na esteira do desenvolvimento de uma ciência baseada na 
natureza humana, ainda que por um caráter positivista, que ao fim do século XIX se 
conduz nas ciências criminais uma reação ao conceito abstrato de indivíduo que a 
escola clássica havia imposto, e que culmina na criação de uma disciplina que se 
ocupa efetiva e unicamente do criminoso e das causas do crime – ou seja, uma 
disciplina que faz a etiologia do fenômeno criminal. Isso implicou na adoção de um 
critério então considerado estritamente científico e no aparente afastamento dos 
aspectos políticos da disciplina, resultando no surgimento do paradigma positivista e 
no nascimento oficial da criminologia (ANITUA, 2008). 
 Nesta contraposição à escola liberal clássica, embora o crime ainda seja 
concebido como ente jurídico, ele também é um fato qualificado pela ação humana: ou 
seja, não pode ser considerado de maneira apartada da história biológica e psicológica 
do indivíduo que realiza a ação, nem deve ser isolado da totalidade natural e social na 
qual ele existe (BARATTA, 1999a). A etiologia, portanto, nunca será estritamente 
individual ou estritamente socioestrutural, mas uma busca das causas do crime 
tomando como ponto de partido o indivíduo e o ambiente em que se encontra. 
 16 
 O pressuposto básico para a explicação do fenômeno criminal se localiza, 
num momento inicial do paradigma etiológico, majoritariamente no indivíduo – ou, 
especificamente, na anormalidade do indivíduo, sobretudo as de natureza biológica, 
que convertem-se no estereótipo do “homem delinquente” (ANITUA, 2008). Mais 
adiante, já na virada para o século XX, se opera uma transferência no peso do interesse 
criminológico do indivíduo para as causas socioestruturais do crime, que, apesar de 
compartilhar do cientificismo do positivismo, se caracteriza como uma primeira 
revisão crítica da criminologia, mesmo que ainda à guisa de um paradigma etiológico 
(BARATTA, 1999a). 
 
2.1. Mulheres delinquentes 
 Por suas origens científicas fincadas no determinismo, não surpreende, 
também, que o positivismo criminológico tenha acompanhado o apogeu do racismo e 
da dominação imperialista (ANITUA, 2008). Ideologicamente, o positivismo coloca a 
criminologia a serviço do escravismo, do colonialismo e dos processos periféricos de 
expansão do capitalismo, de modo que, para legitimar as classes dominantes e 
fortalecer as oligarquias coloniais, a etiologia individual ganha especial força na 
América Latina5,configurando o poder punitivo local até os dias de hoje e garantindo 
a dominação (material e ideológica) pelos países hegemônicos (OLMO, 2004). 
 O retorno ao delito como fenômeno natural necessário e independente do 
livre arbítrio do sujeito, e a busca de suas causas nos defeitos do indivíduo, encontram 
em Cesare Lombroso o comissário das ideias de quase um século de determinismo 
biológico. Mas longe de ser um representante unânime, sua mais conhecida obra, 
L’uomo delinquente, foi alvo de intensa crítica mesmo à sua época (ANITUA, 2008), 
particularmente porque sua tese central era costurada de aparentes contradições, que 
 
5 Especificamente, e também para corroborar a tese sobre a importância do positivismo criminológico 
para o colonialismo, o destaque brasileiro é o médico Raimundo Nina Rodrigues, cuja produção 
reforçava a partir de fundamentos evolucionistas a supremacia europeia ou caucasiana sobre as 
populações indígenas ou de origens africanas, criticando a legislação penal brasileira por não dar conta 
destas especificidades (PEDRINHA, 2009). 
 17 
colocavam o delinquente ao mesmo tempo como um sujeito antropologicamente não 
adaptado, mas também psicologicamente debilitado e conformado à sua condição 
atávica (LOMBROSO, 2007). 
 O que é especialmente interessante é que o mais emblemático representante 
do positivismo criminológico se dedica não só ao estudo do homem delinquente, mas 
tem especial interesse também na investigação da mulher delinquente (LOMBROSO; 
FERRERO, 2013). Aliando a técnica médica a um discurso que ora se faz jurídico, ora 
se faz moral, Lombroso e Ferrero forçam uma distinção biológica entre a mulher 
moral, a criminosa e a prostituta a partir da análise de características fisiológicas e 
estatísticas recolhidas também por outros pesquisadores. Identificando o crime como 
um fenômeno essencialmente masculino, notam uma aproximação entre a mulher 
delinquente e o homem e, embora elas apresentassem anomalias em menor número do 
que os homens, seriam acometidas de patologias ou defeitos descomunais se 
comparáveis àqueles dos homens delinquentes, uma vez que seriam provocadas pelos 
males do útero e dos óvulos. 
 Uma grande influência também exerceu Otto Pollak (1950) ao tentar 
compreender a razão pela qual o crime praticado pelas mulheres não alcança as 
estatísticas criminais oficiais. Ele entende que as mulheres são maliciosas por 
natureza, resgatando concepções do determinismo biológico normalmente associado 
somente a Lombroso. Fundamenta sua análise com uma concepção deturpada e 
acrítica acerca dos papéis sociais exercidos pelas mulheres, entendendo que seu 
domínio das esferas privadas oferece a possibilidade do cometimento de crimes que 
permanecem ocultos. Os crimes cometidos pelas mulheres, segundo ele, refletem sua 
natureza enganosa e são sublinhados por fatores sexuais e psicológicos. Por entender a 
mulher como um indivíduo naturalmente dotado de malícia, rejeita a discrepância das 
estatísticas criminais entre homens e mulheres com o argumento do crime que 
permanece oculto e inventa o mito do cavalheirismo do judiciário. Em parte, sua 
análise tem certo mérito na medida em que o confinamento aos espaços públicos de 
fato obriga as mulheres a adaptarem suas condutas às suas limitações sociais. No 
 18 
entanto, não comprova empiricamente sua visão sobre a natureza feminina e força 
premissas sexistas apenas para validação da teoria (KLEIN, 2012). 
 Naturalmente todas essas classificações e distinções cumprem aqui apenas 
um papel alegórico, de ilustração de uma das mais afamadas produções criminológicas 
da modernidade dedicadas ao indivíduo do sexo feminino. Diversas outras explicações 
pretensamente científicas, de cunho biológico raramente apartado de uma carga moral, 
foram desenvolvidas para justificar o comportamento criminoso feminino: oscilações 
hormonais, insuficiências fisiológicas e, ainda, incapacidades cognitivas que as 
levavam a não saber distinguir comportamentos ou a agir conforme a norma 
(LEMGRUBER, 1983). O que importa é notar que aquilo que efetivamente se 
consolida nesse momento é um discurso médico e jurídico legitimante do exercício do 
controle social sobre a mulher, reforçando os papéis sexuais a partir de dados 
ontológicos naturais (PEDRINHA, 2009). 
 Mas no século que viu o apogeu das instituições totais, quer sejam as 
prisões, quer sejam os conventos, os manicômios, os asilos ou outras entidades de 
internamento (MALAGUTI BATISTA, 2012), o controle social penal da mulher ainda 
é excepcional, especialmente porque a mulher criminosa sempre foi considerada uma 
anomalia mais grave do que o homem criminoso. A reação social sobre a mulher 
publicamente condenada sempre foi mais intensa e mais ameaçadora do que aquela 
que recaía sobre o homem, e talvez isso possa ser parcialmente explicado pelo fato de 
que o controle social exercido a partir do direito penal foi desenvolvido tendo em 
consideração o homem, enquanto o controle social feminino foi historicamente 
informal e, quando formal, era por excelência exercido no âmbito da psiquiatria – ou 
seja, se a construção do homem delinquente é o criminoso, a construção do estereótipo 
da mulher delinquente é a louca (DAVIS, 2003). 
 A transferência de foco que o positivismo criminológico provoca nas 
ciências criminais permite adequar o grau de periculosidade individual à punição, ao 
mesmo tempo em que garante a necessidade de defesa social. Assim, a punição é 
elastecida, permitindo o controle social também por meio da ideia de tratamento, que 
 19 
surge no século XIX, legitimando os sistemas punitivos a partir de explicações de 
caráter biologicista que, na verdade, se traduziam em um evolucionismo etno e 
androcêntrico – algo impensável para o liberalismo e racionalismo do pensamento 
ilustrado (ANITUA, 2008). 
 Assim, na virada do século XIX para o século XX florescem teorias 
criminológicas interdisciplinares, que não somente flertavam com a psicanálise, como 
também surgiam do próprio campo das chamadas ciências psi. Constroem-se pelo 
menos duas vertentes distintas de teorias psicanalíticas: sobre o crime e sobre a 
sociedade punitiva (BARATTA, 1999a). O amparo do positivismo criminológico nos 
saberes médicos, particularmente a psiquiatria, criou a estrutura perfeita para inserir 
nos domínios jurídico-penais o exercício do controle social da mulher por meio da 
gestão da saúde mental – ou, pelo menos, esse se configurou como o discurso oficial. 
A imposição deste tipo de intervenção para o controle social feminino está relacionado 
a uma percepção de que, subjacente à prática delitiva feminina, está necessariamente 
uma condição patológica ou uma desordem mental (MIRALLES, 2015b). Mas a 
verdadeira razão para a institucionalização medico-psiquiátrica das mulheres tinha 
muito mais a ver com um controle da sexualidade e do corpo do que efetivamente uma 
preocupação com a saúde mental, permitindo um controle social muito mais 
sofisticado e eficaz sobre a mulher do que aquele exercido pela religião ou pela família 
(PEDRINHA, 2009). 
 Uma vez que se estabelecia um padrão de normalidade vinculado aos 
estereótipos de feminilidade, criava-se um discurso médico científico que associava a 
mulher a um comportamento submisso, caracterizado por uma natural e biológica 
fragilidade, sensibilidade e docilidade. A qualquer desvio do padrão comportamental 
estabelecido era imposto um diagnóstico patologizante que dava espaço às recentes 
descobertas da psiquiatria e da psicanálise: não somente a loucura, mas também a 
neurose, a psicose, a depressão, a epilepsia, a ninfomania e, particularmente, a histeria 
(PEDRINHA, 2009). 
 20 
 Para além da institucionalização de mulheres como forma de controle social 
alternativo ao meio jurídico, as ramificações e alastramento do positivismo 
criminológico também abriuespaço ao higienismo no Brasil. Assim, travestido 
novamente em um discurso médico, ações sanitaristas supostamente desprovidas de 
caráter político foram forçadas nas grandes cidades, devastando morros e cortiços – e 
atuando como controle social específico sobre as mulheres que se encaixavam nas 
categorias de desviantes sexuais, porque se configurava como repressão oficial à 
prostituição (PEDRINHA, 2009). 
 Ao longo de todo o desenvolvimento das teorias etiológicas individuais, a 
natureza criminosa ou desviante do comportamento jamais foi confrontada a partir de 
uma análise das relações socioeconômicas e políticas que condicionam os processos de 
criminalização (BARATTA, 1999a). O enfoque era estritamente segundo a natureza 
feminina, tratando como reflexo desta qualquer aspecto social do comportamento da 
mulher criminosa e ignorando a distinção entre sexo e gênero (MIRALLES, 2015b). 
Da mesma maneira, as relações sociais de cunho patriarcal que determinam a opressão 
das mulheres e que permeavam as análises sobre as mulheres desviantes não são 
tomadas em consideração. Embora houvesse uma consideração inicial de que o gênero 
pudesse ser um fator determinante do crime, as análises ainda estavam comprometidas 
com uma compreensão de que as mulheres eram inferiores aos homens e, portanto, 
seus desvios seriam oriundos de suas especiais condições biopsicológicas. 
 
2.2. Etiologia socioestrutural 
 É somente a partir do desenvolvimento da teoria estrutural-funcionalista da 
anomia, introduzida inicialmente por Durkheim ao fim do século XIX, que a 
criminologia faz a virada sociológica que a caracteriza até hoje e que representa a 
primeira crítica – ou, pelo menos, a primeira alternativa – ao modelo criminológico 
que buscava a causa do fenômeno criminal nos defeitos biopsicológicos do indivíduo 
(BARATTA, 1999a). Não representa um necessário rompimento, porém: a lógica 
cartesiana do positivismo ainda se aplica. Apesar de ainda buscar as causas do crime, 
 21 
já não é o indivíduo o foco da investigação criminológica, mas a ruptura cultural que 
determina a violação das normas jurídicas (MALAGUTI BATISTA, 2012). Ao longo 
de toda a primeira metade do século XX, o que se reconhecia como “sociologia 
criminal”, especialmente aquela produzida nos Estados Unidos após a recepção de 
pensadores europeus em função da relativa estabilidade política, iria se dedicar a 
alterar a perspectiva criminológica que coadunou com os genocídios no velho 
continente e com o higienismo nos países dependentes (ANITUA, 2008). 
 A abordagem funcionalista sobre o crime introduzida por Émile Durkheim 
se constrói sobre a noção de que os fatos sociais refletem os valores morais e jurídicos 
de uma sociedade. Partindo da ideia de normalidade e patologia, identifica o crime 
como um fato social normal, visto que presente em todas as sociedades, ainda que sob 
outras formas – sua perspectiva deriva exatamente da noção de que, considerar o delito 
como um fato social patológico, ficaria suprimida qualquer distinção entre patologia e 
normalidade, visto que a patologia social seria derivada da própria constituição 
humana (ANITUA, 2008). 
 Anômico ou patológico seria o crime somente quando (e se) ultrapassasse 
determinados limites, que desvalidaria todo o sistema de normas estabelecidas e 
levaria à desorganização social, sem que tenha se firmado ainda um novo sistema 
normativo. Do contrário, o comportamento desviante é não somente útil para o 
equilíbrio e desenvolvimento social, como também necessário: isso porque a função 
do desvio é a de provocar uma reação que estabiliza e mantém a coesão social em 
torno da consciência coletiva sobre a validade das normas, ao mesmo tempo que torna 
possível a transformação da estrutura social. Dessa maneira, o sujeito desviante – o 
criminoso – passa a ser percebido como agente regulador da vida social (BARATTA, 
1999a). 
 O sucesso do funcionalismo durkheimiano no âmbito das ciências sociais 
levou a inúmeras interpretações e desenvolvimentos6, mas a que mais importa na 
criminologia é a de Robert Merton, que interpreta o desvio como um produto da 
 
6 Sobre isto, relevante citar Vilfredo Pareto, Talcott Parsons, Niklas Luhmann, entre outros. 
 22 
própria estrutura econômico-social, tão normal quanto a conformação às regras 
(ANITUA, 2008). O efeito da estrutura social sobre o comportamento individual pode 
ser tanto negativo quanto positivo. Mas o que dá origem ao desvio é uma desproporção 
ou contradição entre sociedade e cultura: enquanto a estrutura cultural dita metas que 
servem de motivação para o comportamento individual, que deve seguir modelos 
institucionalizados e ser conduzido por meios tidos como legítimos, a estrutura 
econômico social oferece as possibilidades de acesso aos modelos institucionalizados 
de comportamento e aos meios legítimos para alcance das metas impostas – tudo de 
acordo com a posição do indivíduo na estratificação social (MERTON, 2012). 
 É a diferença entre os fins culturais válidos e os meios legítimos disponíveis 
que dá origem ao comportamento desviante – essa diferença (ou crise da estrutura 
cultural) se caracteriza como elemento funcional intrínseco à estrutura econômico-
social, mas quando exacerbada é reconhecida como anomia. A resposta individual a 
essa tensão estrutural entre cultura e sociedade vai variar de acordo com a adesão ou 
separação do indivíduo a uma ou outra estrutura, do que são inferidos cinco modelos 
de adequação: a conformidade, como resposta positiva aos fins culturais e aos meios 
disponíveis e que gera coesão social; a inovação, como respeito aos fins culturais e 
uma resposta negativa aos meios institucionais, que caracteriza o comportamento 
criminoso típico; o ritualismo, como respeito aos meios institucionais, sem 
consideração pelos fins culturais; a apatia, como resposta negativa a ambos; e a 
rebelião, que não somente é uma resposta negativa, como também uma afirmação de 
meios e fins alternativos (BARATTA, 1999a). 
 Ainda complementar para os fundamentos da criminologia do século XX 
foi a contribuição de John Dewey e de George Mead. Suas influências foram 
particularmente virtuosas para o interacionismo simbólico, uma vez que consideravam 
o indivíduo a partir da sua interação com a esfera pública. A pertinência da 
comunicação e da linguagem para a explicação dos fenômenos sociais permitiu o 
desenvolvimento de teorias sobre o controle social e sobre o papel do indivíduo e sua 
representação na sociedade. A pesquisa sociológica produzida especialmente por 
Mead passa a se relacionar com as pesquisas empíricas sobre os espaços urbanos, 
 23 
abrindo espaço para uma concepção plural de sociedade que seria mais tarde 
apropriada pelas escolas ecológicas (ANITUA, 2008). 
 Como último ponto adicional para compreender as fundações sobre as quais 
se erigem os discursos criminológicos a partir desse momento, sobretudo aqueles com 
fundamento na reação social, importa lembrar também de William Thomas, cujo 
teorema fundamental formula que situações definidas como reais serão reais nas suas 
consequências (BARATTA, 1999a). Além disso, também é imprescindível apontar 
este foi o mesmo autor de trabalhos notadamente sexistas7, baseados no darwinismo 
social (ANITUA, 2008), que tinha como objetivo distinguir a mulher criminosa a 
partir de suas características fisiológicas e análises comportamentais. Apesar de 
Thomas marcar a transição das explicações exclusivamente biopsicológicas do 
positivismo para análises mais sofisticadas sobre o delito feminino que abarcam 
também fatores socioestruturais, sua pesquisa ainda tem graves contradições, na 
medida em que utiliza teorias sociais para dar conta da complexidade das interações 
entre indivíduo e sociedade, ao mesmo tempo em que parte de premissas biológicas 
manipuláveis para a construção do argumento(KLEIN, 2012). 
 Para ele, por um lado, os homens teriam uma natureza catabólica, destrutiva 
e criativa, enquanto as mulheres seriam anabólicas, passivas e inertes; por outro lado, a 
delinquência feminina seria uma resposta normal em determinadas condições sociais, 
dirigidas por instintos ou desejos primários que deveriam ser controlados pelas 
instituições, como a família, no processo de socialização. A solução estaria numa 
manipulação do indivíduo a partir das instituições para que este mude a forma como 
percebe sua situação – não se trata de mudar a situação de opressão das mulheres, 
portanto, mas de mudar a sua definição acerca da opressão, convencendo-as a tomar 
outra atitude. Além disso, o sucesso dos processos de socialização dos indivíduos 
pressupõe uma sublimação da necessidade de responder aos seus instintos naturais 
(KLEIN, 2012). 
 
7 “The unadjusted girl: with cases and standpoint for behavior analysis” foi publicado em 1923 como 
título da revista do The American Institute of Criminal Law and Criminology. 
 24 
 Assim, seu trabalho se configura como uma extraordinária contradição, na 
medida em que prioriza a reabilitação e a prevenção ao delito à punição pelo 
comportamento criminoso, ainda que o ser humano não seja dotado de plena 
autonomia sobre suas condutas (KLEIN, 2012). Thomas representa o conflito entre o 
liberalismo criminológico e o conservadorismo de gênero, o que torna sua tese central 
sobre a valorização da reação social contraditória com a crença em uma natureza 
humana determinada – indemonstrável em suas observações acerca do crime feminino 
(SMART, 1976). 
 No entanto, ao contrário do que pretendem alguns autores (MENDES, 
2014), embora caiba lembrar das teorias sobre o crime feminino e criticar suas 
premissas ultrapassadas e conclusões equivocadas, a importância de Thomas não pode 
ser diminuída em função disso. De fato, ele reforça o mito da mulher manipuladora, 
calculista e vaidosa, bem como naturaliza a violência perpetrada pelos homens como 
impulsos incontroláveis de satisfação de seus desejos animalescos (KLEIN, 2012). Sua 
crença de que a reação social é mais relevante que a realidade objetiva é fundamental 
para o desenvolvimento da criminologia macrossociológica, mas se traduz na sua obra 
pela redução de problemas sociais a problemas individuais (SMART, 1976). Apesar 
dessas limitações, estritamente criminológicas ou relativas à compreensão do gênero, 
ele é responsável por desenvolver um dos mais determinantes axiomas da criminologia 
moderna – parece equivocado confundir a ontologia por ele produzida com a 
epistemologia que o autor representa. 
 Ainda dentro de um paradigma estrutural-funcionalista, outro relevante 
autor que empreendeu esforços investigativos para a análise da mulher criminosa foi 
Kingsley Davis (1961), com sua pesquisa acerca da prostituição que é tida ainda 
contemporaneamente como uma análise clássica da temática, que trabalha com uma 
natureza orgânica dos homens e das mulheres. A prostituição é compreendida como 
uma necessidade estrutural, cujas origens podem ser traçadas até os instintos 
primitivos do ser humano que, ao contrário dos demais primatas, exerce uma 
sexualidade que não tem mera função reprodutiva. Entende que a prostituta compõe 
uma classe particular de mulheres que só poderiam exercer essa função por serem 
 25 
inerentemente más. Com base em teorias psicanalíticas sobre a sexualidade, entende a 
prostituição como uma perversão da natureza feminina, mas que cumpre uma função 
estabilizadora da ordem social – ou seja, entende a opressão de gênero estrutural e a 
exploração sexual de mulheres como expressão de funcionamento saudável do sistema 
social. Sua contemplação da prostituição é desvinculada de qualquer contexto histórico 
ou social que possam imprimir diferenças fundamentais na maneira como a 
prostituição é exercida em uma sociedade (KLEIN, 2012). 
 A maior parte dos estudos criminológicos sobre a prostituição e o estupro 
tomam esses fenômenos como aberrações pontuais, situações individuais e até mesmo 
patologias sociais. Ignoram, no entanto, como no caso de Davis, que esses fenômenos 
que entendem como um desvio da sexualidade feminina na verdade são interpretações 
estruturais da repressão, limitação, exploração e objetificação que o patriarcado impõe 
à sexualidade e às próprias mulheres (SMART, 1976). 
 Mas a relevância dessas teorias estrutural-funcionalistas está justamente em 
perceber que as características biopsicológicas do indivíduo não são decisivas para o 
comportamento criminoso e, muito mais substancial para compreender o fenômeno 
criminal, a partir da virada sociológica, é a estrutura da sociedade e o local de 
pertencimento do indivíduo a ela. E, apesar de alguns dos autores mencionados não 
terem se debruçado especificamente sobre a questão criminal, é exatamente por 
trabalharem com a ideia de estrutura que essas teorias se tornam tão importantes para o 
desenvolvimento de boa parte da criminologia do século XX – e a razão pela qual 
coube a elas um espaço, ainda que muito reduzido, nesta apresentação. 
 Neste momento, note-se, alguns termos compartilhados pelas teorias 
feministas começam a fazer parte do vocabulário criminológico para a composição de 
categorias e conceitos – como o papel do indivíduo ou a distinção entre as esferas 
públicas e privadas. Particularmente relevante para este trabalho é a noção de 
estrutura: a análise da estrutura patriarcal e da maneira como ela informa e é 
conformada pelo Direito é exatamente o que vai permitir que se faça uma crítica, sob 
um ponto de vista feminista, à criminologia, a partir da década de 1960. A exposição 
 26 
até aqui realizada, embora aparentemente inócua, trata de estabelecer os fundamentos 
para a criminologia que se desenvolve a seguir, inclusive a crítica de viés feminista 
que identifica as falhas da criminologia até então pensada. A razão pela qual as teorias 
etiológicas sobre o crime feminino, tanto de cunho biológico, quanto de cunho social, 
parecem tão contraditórias entre si, variando a concepção acerca da natureza feminina 
entre a bondade e a maldade, o carinho e a malícia, ou entre o cavalheirismo e o rigor 
das instituições no controle social das mulheres, é exatamente porque estão fundadas 
num conceito que nunca é examinado cientificamente ou verificado empiricamente – 
isso é fundamental para a compreensão de toda a criminologia etiológica, mas fica 
particularmente evidente quando o objeto de investigação é a mulher (SMART, 1976). 
 
3. Interacionismo, rotulação e reação social 
 A expansão do modelo norte-americano de capitalismo e o dinamismo que 
acompanha essa mais complexa manifestação da estrutura socioeconômica 
determinam a necessidade de repensar o controle social. Com esse objetivo, o 
desenvolvimento de teorias criminológicas com fundamento nas ideias de anomia, 
heterogeneidade cultural, controle social, organização e interação entre indivíduo e 
esfera pública, torna-se proeminente nos Estados Unidos e, em particular, na 
Universidade de Chicago. Essas teorias são respostas ao seu próprio tempo, aos 
problemas concretos que a empiria colocava aos criminólogos, produzindo resultados 
sobre pesquisas em ambientes específicos e não hegemônicos da sociedade norte-
americana. 
 Esse é um momento de concomitante complexificação e refinamento da 
criminologia. A introdução das ideias do interacionismo simbólico e da fenomenologia 
social foi o que permitiu devolver um aspecto político à definição da disciplina 
criminológica como o estudo de construção das leis, de violação das leis e da reação 
 27 
social a elas 8 (SUTHERLAND; CRESSEY, 1978). E, embora o sexo já seja 
reconhecido neste momento como o mais importante critério estatístico de 
caracterização do indivíduo criminoso, é possível afirmar que este elemento aindanão 
era questionado de forma crítica ou compreendido como relevante para a consideração 
das causas do crime. Entretanto, estudos específicos sobre mulheres surgem nesse 
contexto também, particularmente para analisar a conduta de meninas no interior de 
gangues ou gangues específicas de mulheres, ainda que sob uma perspectiva 
etiológica9. 
 A partir da virada sociológica, é possível identificar o desenvolvimento da 
criminologia em duas orientações distintas, embora ambas trabalhem com categorias 
muito similares. O que as diferencia é, na verdade, o fundamento sobre os quais elas 
constroem suas concepções de organização social: por um lado, uma criminologia que 
se desenvolve a partir da noção de que a sociedade é o produto harmônico de um 
consenso geral, em que as normas vigentes coincidem com os valores sociais de modo 
a permitir o convívio social; por outro lado, uma criminologia que compreende que o 
conflito necessariamente perpassa a dinâmica social e a atuação estatal tem o papel de 
reprimi-lo, porque o conteúdo das normas representa os interesses e valores de um 
estrato social específico e quantitativamente não majoritário – ou seja, há, por 
definição, o desenvolvimento de uma criminologia do consenso e de uma criminologia 
do conflito (ALMEIDA, 2017). 
 Na verdade, é somente a partir do momento que surge a criminologia do 
conflito, porque ela se reivindica como tal, que se pode identificar toda a criminologia 
liberal 10 residual como uma criminologia do consenso – é uma distinção 
 
8 “Criminology is the body of knowledge regarding juvenile delinquency and crime as social 
phenomena. It includes within its scope the processes of making laws, of breaking laws, and of 
reacting toward the breaking of laws.” (SUTHERLAND, CRESSEY, 1978, p. 3). 
9 Por uma opção metodológica, neste capítulo serão apresentados somente de maneira superficial os 
estudos criminológicos referidos; aqueles considerados mais relevantes para o desenvolvimento de 
uma perspectiva de gênero dentro da criminologia serão mais detalhadamente trabalhados. 
10 Por criminologia liberal entende-se o conceito dado por BARATTA (1999a, p. 47): “Trata-se, 
principalmente, de teorias inseridas no campo da sociologia criminal burguesa e que, para distingui-las 
das mais recentes teorias inseridas na assim chamada criminologia ‘crítica’(em parte, de inspiração 
marxista), se denominam, frequentemente, como teorias ‘liberais’, segundo uma particular acepção 
que, no mundo anglo-saxão, adquiriu o termo ‘liberal’. Com estes termos se denotam teorias que, 
 28 
epistemológica que permite uma ruptura com a tradição criminológica até então 
existente. Embora não haja uma clareza nos contornos das classificações, tendo em 
vista os inúmeros estudos desenvolvidos sob o quadro teórico de cada uma das escolas 
que se agregam a uma ou outra perspectiva criminológica, parece sensato sistematizar 
da seguinte forma: ao passo que as teorias desenvolvidas na escola de Chicago, a 
teoria da associação diferencial e as teorias das subculturas criminais agrupam-se em 
torno da criminologia do consenso, todas as correntes que negam o pressuposto 
fundamental de uma sociedade harmônica, incluindo, aqui, teorias que vão desde a 
reação social até a criminologia crítica, são fundadas na ideia de conflito social – 
particularmente o interacionismo do labeling approach e a criminologia do conflito 
stricto sensu (SHECAIRA, 2004). 
 É a partir destas duas orientações que serão apresentadas, na sequência, o 
desenvolvimento criminológico a partir da sua integração com as ciências sociais. A 
advertência que cabe aqui é a seguinte: no que tange a criminologia do conflito, neste 
momento serão trabalhadas somente as teorias que ainda não se vinculam ao 
marxismo. Isso porque, pela natureza deste trabalho e pelo marco teórico eleito, cabe 
um olhar particular à criminologia crítica uma vez que, ainda que também seja 
construída com base em uma concepção conflitual de sociedade, ela se filia à 
específica perspectiva das lutas de classes, categoria fundamental que a distingue das 
demais teorias conflituais porque representa verdadeiro antagonismo social, não mero 
conflito gerado pela hegemonia de poder. 
 
3.1. Teorias do consenso 
 As teorias criminológicas desenvolvidas sob o regaço do consenso partem 
da sociologia funcionalista. Significa dizer que compreendem a sociedade como um 
mecanismo que funciona harmonicamente com todos os seus elementos, em que as 
transformações se dão de maneira gradativa de acordo com limites institucionais 
 
diferenciando-se ainda que cronologicamente das teorias liberais clássicas dos séculos precedentes, se 
caracterizam, no interior do pensamento burguês contemporâneo, por uma atitude racionalista, 
reformista e, geralmente, progressista”. 
 29 
previamente estabelecidos – qualquer crise ou conflito que ocorra, neste cenário, é 
considerado disfuncional, como a manifestação de uma patologia social (SABADELL, 
2013). Quando transposta para a questão criminal, a perspectiva do consenso torna-se 
o fundamento das engrenagens de todo o sistema penal e legitima a ordem social a 
partir da repressão de comportamentos lesivos com o objetivo de manter o convívio 
social harmônico – pressupondo, por sua inaptidão em perceber as lutas e contradições 
da realidade, que mesmo o indivíduo que viola a norma a aceita e entende a punição 
como medida de justiça (ALMEIDA, 2017). Como resultado, os mecanismos de 
criminalização tornam-se naturalizados e resta justificado qualquer projeto político-
criminal conservador. 
 Essa orientação do desenvolvimento da criminologia tem como 
particularidade um enfoque multifatorial11 sobre o fato desviante. Por esta abordagem, 
o fato desviante é a expressão da singularidade do autor e das circunstâncias externas 
que o cercam (BERGALLI, 2015); ou seja, o crime não é influenciado somente por 
disposições individuais, mas também por fatores ambientais – o que se tornará muito 
evidente nas pesquisas criminológicas desenvolvidos particularmente nos Estados 
Unidos. 
 Sob uma tradição empírica, a escola de Chicago, especificamente, converte 
a influência positivista de Comte e Spencer12 em respostas pragmáticas a problemas 
particulares. A preponderância das ciências naturais traduzida na sociologia e na 
criminologia possibilita o desenvolvimento de pesquisas com fundamento em uma 
teoria social baseada em ideias de matriz biológica, como organismo, função e 
ambiente, mas rejeitando o determinismo biopsicológico característico da criminologia 
até então (ANITUA, 2008). O legado da escola de Chicago se manifesta como um 
arcabouço teórico que no nome se refere às suas origens acadêmicas, mas que 
 
11 A abordagem multifatorial é uma tese originalmente sugerida nos primeiros tempos de 
desenvolvimento da criminologia tanto por Enrico Ferri quanto por Franz von Liszt – como já foi 
brevemente mencionado neste trabalho – mas é resgatada pela criminologia europeia e estadunidense 
até o segundo pós-guerra mundial. 
12 A sociologia norte-americana neste momento é fortemente influenciada pelo positivismo 
sociológico francês de Auguste Comte e pela antropologia determinista de Herbert Spencer; mais 
sobre isto em BERGALLI (2015) e ANITUA (2008). 
 30 
ultrapassa as fronteiras do estado de Illinois e também é conhecido como teorias da 
ecologia criminal ou da desorganização social (SHECAIRA, 2004). 
 Apesar do ecletismo metodológico dessas pesquisas, grande parte delas 
utilizavam questionários ou inquéritos sociais e priorizavam as estatísticas oficiais 
para a produção das investigações acerca do fenômeno criminal. Uma característica 
notável, também, é que o focosituacional das pesquisas ecológicas induziu os 
pesquisadores a se referirem ao mapa da cidade para conferir os resultados obtidos na 
investigação – isso porque entendiam que as diferenças sociais eram produzidas pela 
própria geografia urbana. A centralidade da cidade, portanto, é o ponto de partida para 
a escola de Chicago, que via nela um complexo corpo de costumes e comportamentos 
organizados; mais do que um meio físico artificial, a cidade tem um papel fundamental 
na construção da realidade social e a vida no meio urbano é resultado de um processo 
interativo de adaptação individual a essa realidade. Nos grandes aglomerados urbanos 
impõe-se um permanente anonimato como resposta social à sobrecarga cognoscitiva, o 
que cria ao mesmo tempo um isolamento individual e uma liberdade pessoal. A 
impossibilidade de um rigoroso controle externo por parte das instituições públicas 
propicia maior controle do indivíduo sobre as suas próprias responsabilidades, o que 
implica um comportamento segmentado e funcional, na medida em que o indivíduo 
precisa desenvolver mecanismos de seleção para fundar suas relações sociais, que por 
sua vez também funcionam como controle informal de sua conduta. A limitada 
mobilidade de um grande centro urbano também funciona como um mecanismo de 
controle social informal. Assim, na distribuição geográfica da cidade formam-se 
bolsões de aglomerações de indivíduos com interesses e sentimentos comuns 
(SHECAIRA, 2004). 
 A partir dessa concepção ambiental, as teorias ecológicas entendem que a 
desorganização social é o fator primário que condiciona as condutas delitivas. A 
ruptura de vínculos sociais e as restrições impostas pelos recursos urbanos são 
responsáveis por uma fatal destruição da capacidade de controle social formal por 
parte das instituições oficiais do Estado. Normalmente, a organização e 
desorganização social nutrem uma relação de reciprocidade, pela qual a 
 31 
desorganização social reestrutura as relações sociais e condutas humanas, promovendo 
a organização. As zonas em que há maior atividade e aglomeração de pessoas, por 
outro lado, costumam ter uma maior incidência de delitos, criando áreas de 
delinquência na geografia urbana que acabam expulsando indivíduos de maior poder 
aquisitivo e atraindo um contingente humano mais carente, o que por sua vez acaba 
degradando o espaço e tornando o local menos compatível com as exigências materiais 
de vida (SHECAIRA, 2004). Ou seja: todos os problemas sociais, segundo as teorias 
ecológicas, podem ser avaliados segundo a distribuição populacional de uma cidade 
em áreas de delinquência que seguem uma regra de desequilíbrio ecológico e 
suprimem as relações de solidariedade (BERGALLI, 2015). Seguindo essa lógica 
fundamental de uma leitura ecológica, as investigações criminológicas se detém em 
áreas determinadas para explicar problemas sociais específicos dos centros urbanos, 
criando propostas materiais para a sua solução. A importância da lógica ecológica se 
estende para a grande miríade de estudos sobre gangues que foram realizados, 
particularmente nos Estados Unidos, buscando explicar a relação entre o 
comportamento individual, suas interações sociais e ambientais. 
 As propostas das teorias ecológicas, porque fundadas numa abordagem 
multifatorial sobre o crime, foram fundamentais para o desenvolvimento de outras 
teorias talvez mais relevantes para o quadro criminológico geral. Interessado também 
na noção de que o crime é expressão da desorganização social – que vai denominar de 
organização social diferencial –, Sutherland (2012), embora ainda admita a 
importância de teorias de cunho biológico para a explicação do comportamento 
criminoso, conclui que a reação do indivíduo frente à situação que o coloca em 
possibilidade delitiva é fundamental. O segundo fator que é definidor para a violação 
de uma norma penal está relacionado às habilidades e inclinações que o indivíduo 
adquire ao longo da vida, de modo que o crime ocorre quando uma situação tida como 
apropriada pelo indivíduo se faz presente. Para ele, portanto, o comportamento 
criminoso é fruto do aprendizado, não uma qualidade inerente, que é adquirido através 
de um processo comunicativo, a partir da interação entre o indivíduo e outras pessoas, 
 32 
pertencentes a um mesmo grupo relativamente íntimo que o indivíduo, que já detém as 
habilidades e conhecimentos necessários para a prática delitiva. 
 Esse processo de aprendizagem inclui a absorção de técnicas, motivos, 
racionalizações e atitudes, mas particularmente diz respeito à forma como o indivíduo 
deve definir aquela situação em termos de códigos legais favoráveis ou não. Isso 
depende, portanto, de uma interpretação individual e social acerca da legitimidade da 
norma; ou seja, o processo de assimilação de condutas depende da cultura na qual o 
indivíduo se insere, mesmo em termos microssociais. O princípio da associação 
diferencial é justamente o acúmulo de definições sobre a norma penal que favoreçam a 
sua violação – em nada se distingue essencialmente o aprendizado do comportamento 
criminoso do aprendizado de qualquer outro comportamento social, uma vez que os 
valores e as necessidades impostos por uma sociedade influenciam tanto o 
comportamento conforme quanto o desviante (SUTHERLAND, 2012). 
 A relevância da teoria da associação diferencial desenvolvida por 
Sutherland (2012) está fundamentalmente ligada à sua desconfiança das amostras 
legais do fenômeno criminal e à incapacidade das teorias anteriores em explicar os 
crimes praticados pelos extratos economicamente favorecidos da população, 
especificamente o crime do colarinho branco. Sua crítica é de que a criminologia 
baseada nas estatísticas criminais tem resultados muito restritos e distorcidos porque 
não consegue perceber a cifra oculta das estatísticas criminais, que somente explicitam 
os crime praticados pelas camadas empobrecidas da sociedade. Isso figura numa 
generalização falaciosa de que o fenômeno criminal está largamente associado à 
pobreza e aos defeitos da socialização na infância. Ademais, entende que as teorias 
convencionais sequer dão conta de explicar o crime das classes baixas 
(SUTHERLAND, 1983). 
 É interessante ressaltar que, embora identifique a cifra oculta relativa aos 
crimes das classes superiores, Sutherland não questiona a existência ou não de uma 
cifra oculta com relação aos crimes cometidos pelas mulheres. Por isso, quando trata 
do delito feminino, ele reconhece que a diferença entre as taxas femininas e 
 33 
masculinas nas estatísticas criminais pode variar segundo alguns critérios específicos, 
como a localidade, o período histórico, a posição social de ambos os sexos, os 
diferentes grupos analisados ou a faixa etária; entretanto, ao reconhecer que o sexo é o 
indicador mais importante para distinguir o criminoso do não-criminoso nas 
estatísticas, afirma que a diferença é tão grande que seria possível considerar que o 
único fator relevante para uma diminuição ou aumento dessa diferença é a posição 
social das mulheres em relação aos homens, como determinante da frequência de 
oportunidade para prática de crimes. O que determina essas oportunidades é a 
socialização diferenciada que recebem as mulheres e os homens durante a infância, 
concluindo que o sexo só é determinante para a produção do crime na medida em que 
afeta outras relações sociais (SUTHERLAND; CRESSEY, 1978). É claro que ainda 
não há uma análise crítica sobre os papéis de gênero e a maneira como eles atravessam 
as desiguais relações de gênero fundadas na dominação masculina, mas Sutherland 
peca ao sequer questionar as estatísticas criminais, que é seu grande mérito no 
desenvolvimento da teoria da associação diferencial. 
 Porque reconhece a importância dos mecanismos de aprendizagem e da 
diferenciação das relações sociais, a teoria da associação diferencial impulsiona o 
avanço deoutras teorias criminológicas para a explicação das subculturas delitivas. 
Particularmente, Cohen, que analisa a subcultura das gangues de jovens, descreve um 
sistema de crenças e valores construído a partir da interação social das gangues que 
serve como mecanismos de adaptação às soluções indisponíveis da cultura dominante 
(BARATTA, 1999a). Segundo a teoria das subculturas criminais, o comportamento 
delitivo dos jovens inseridos numa lógica de gangues não é motivado por uma 
racionalidade utilitária, mas pelos valores e crenças próprios do grupo, que são uma 
espécie de distorção das normas da sociedade. A conduta, portanto, torna-se legítima 
segundo os padrões da própria subcultura, muitas vezes exatamente porque 
representam uma inversão dos valores culturais da sociedade. A subcultura que cresce 
no interior dessas gangues muitas vezes se constitui como um elemento que separa 
esses jovens do restante da sociedade, permitindo a eles um senso de pertencimento, 
lealdade e solidariedade que não encontram na sociedade em geral (COHEN, 2012). 
 34 
 Enquanto os estudos sociológicos sobre subculturas desenvolvem muito a 
percepção sobre o crime masculino, particularmente de jovens, que permite a retirada 
de um caráter essencialista sobre o delito, os estudos sobre o crime praticado por 
mulheres ou meninas ainda mantém um caráter de etiologia individual, ampliando a 
causa dos desvios femininos não só para sua interação social, mas também para 
defeitos individuais. É notável que trabalhos que se atenham às estatísticas criminais 
deformam a percepção acerta da mulher ou da jovem desviante – isso se explica 
também pelo fato de que as estatísticas ofereciam uma visão distorcida sobre a conduta 
delitiva feminina, reduzida a crimes de alguma forma sexualizáveis, como a 
prostituição, ou restrito ao âmbito privado de reprodução da vida material, como 
pequenos furtos em lojas (SMART, 1976). 
 A permanência da etiologia individual mesmo fica evidente com os 
trabalhos de Gisela Konopka e de Cowie, Cowie e Slater. Konopka faz um trabalho 
descritivo, com ênfase nas experiências individuais e fatores pessoais que levaram 
meninas institucionalizadas à prática delitiva, notando a influência das meninas na 
conduta delitiva masculina. O ponto central do seu trabalho é que a delinquência 
feminina é uma resposta emocional à solidão e à dependência, mas toma essas 
características como inerentemente femininas (KLEIN, 2012). Ela não percebe, no 
entanto, os fatores socioestruturais que costuram aquilo que entende por 
particularidades femininas da conduta delitiva (SMART, 1976). 
 Cowie, Cowie e Slater, por outro lado, tratam os defeitos da mulher 
criminosa como fatores de predisposição constitutivos do indivíduo, propondo uma 
explicação cromossômica para a delinquência (KLEIN, 2012). O único fator externo 
que reconhecem é determinado por privações da infância, porque entendem que as 
mulheres são menos afetadas por fatores sociais ou ambientais do que os homens. Isso 
significa que, enquanto admitem a necessidade de uma avaliação multifatorial para 
explicar o comportamento delitivo masculino, limitam à família, portanto ao espaço 
privado de reprodução da vida material, o único fator social que poderia influenciar o 
comportamento feminino. É contraditório, portanto, que assumam uma lombrosiana 
determinação biológica sobre o sexo e uma imutabilidade de gênero, incapazes de 
 35 
perceber a determinação dos papéis de gênero segundo uma lógica patriarcal 
(SMART, 1976). 
 Essas teorias criminológicas, particularmente a percepção sobre as cifras 
ocultas do crime e a identificação de práticas delitivas exercidas pelos detentores do 
poder político, compreendem um dos principais marcos históricos da criminologia, 
porque permitem o deslocamento da atenção da disciplina para os próprios 
mecanismos de reação e de seleção criminalizante (ANIYAR DE CASTRO, 1977). A 
contribuição dessas teorias criminológicas, como consequência do funcionalismo, está 
na relativização dos valores dominantes de uma sociedade e das normas penais que 
impõem uma adequação do indivíduo a estes valores. A normalização do fenômeno do 
crime, em oposição à sua patologização, implica num reconhecimento da sua 
importância para o funcionamento normal e saudável da sociedade, bem como na 
percepção de que a socialização para o desvio não difere da socialização para a 
conformidade a não ser pela consideração pelos valores sociais. Entretanto, estas 
teorias ainda não são capazes de problematizar os fatores econômicos e políticos que 
fundamentam as normas sociais e os mecanismos de controle, nem questionam as 
mediações que ocorrem entre a estrutura socioeconômica e as relações sociais através 
das instituições do direito e do Estado. Ao deter sua análise a um nível 
microssociológico, chegam somente a resultados superficiais e fenomênicos, 
limitando-se a uma descrição dos valores, situações e condições sociais a que se 
referem. Falta, portanto, uma crítica teórica acerca da desigualdade entre os grupos 
sociais, das definições sobre crime e criminalização e da própria formação econômico-
social em que se inserem (BARATTA, 1999a). Além disso, as teorias criminológicas 
neste ponto ainda estão abertas a uma possibilidade de mobilidade individual entre os 
estratos sociais. Servem, portanto, somente à hegemonização da ideologia dominante 
de base capitalista e patriarcal porque adotam uma postura unicamente observacional 
das camadas sociais subalternas (MALAGUTI BATISTA, 2012). 
 Da mesma maneira, no que tange a investigação acerca das condutas 
delitivas femininas, sem a crítica sobre a cifra oculta das estatísticas oficiais do crime e 
sem uma crítica às definições sobre crime e sobre gênero, as conclusões são 
 36 
inevitavelmente rasas porque somente alcançam uma percepção da mulher como 
desviante sexual ou como indivíduos que praticam desvios com implicações sexuais 
(SMART, 1976). A criminologia tradicional tende a perceber a natureza do 
comportamento criminoso feminino como acentuadamente sexual, o que torna a 
sexualidade feminina o fundamento do próprio problema do crime, refletindo e 
reforçando sua condição de reprodutora da vida material (KLEIN, 2012). Isso talvez 
seja reflexo de uma percepção sobre a sexualidade feminina como um desvio em si 
mesma, consequência de um padrão moral de conduta diferenciado que define o 
conceito de feminilidade e determina a submissão das mulheres (SMART, 1976). 
 
3.2. Teorias do conflito 
 Muito embora a oposição entre criminologia do consenso e criminologia do 
conflito identifique nesta última toda a produção criminológica a partir da reação 
social, incluindo a criminologia crítica, neste ponto serão apresentados somente duas 
correntes específicas: o pensamento desenvolvido no eixo rotulacionista do 
interacionismo simbólico e a criminologia baseada na sociologia do conflito. Em 
essência, o que diferencia a criminologia crítica do que aqui se identifica como 
criminologia do conflito (lato e strictu sensu), é que a abordagem conflitual desvia de 
uma aproximação teórica com o marxismo e compreende a centralidade da esfera 
política e da hegemonia do poder para as relações sociais, tanto na produção quanto na 
solução dos conflitos (ALMEIDA, 2017). 
 A partir da década de 1960 começa a se formar um novo paradigma 
criminológico, fundado no interacionismo e na reação social, que tem como tese 
central as teorias da rotulação ou do etiquetamento, também conhecido como labeling 
approach. Este novo paradigma erige-se sob duas correntes sociológicas: o 
interacionismo simbólico, pelo qual se identifica na sociedade interações concretas 
entre os indivíduos implicadas em processos de etiquetamento que conferem a eles 
significados que se estendem através da linguagem, e a etnometodologia, que percebe 
a sociedade como produto de uma construção social mediada pelos

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