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Nº11 - Ano 2008 - 4€ | Julho/Agosto/Setembro Revista trimestral de ciência e investigação em saúde Abordagem autónoma do enfermeiro na dor Neuromodulação cerebral Tratamento Médico da Epilepsia A evolução na Farmacoterapia 2 AF Anuncio 2 ISAVE 2008 path 13/06/2008 14:59 Page 1 Composite C M Y CM MY CY CMY K 1 Editorial «Quem tem coragem, é; Quem sabe, actua; Quem acredita, inova». Agostinho da Silva Foi com coragem que o ISAVE e a Ser Saúde ganharam esta forma, cresceram em vida, experiência e humanidade. Foi actuando diariamente, com paixão, em respeito pelos valores e pela ética que transformamos a educação em desenvolvimento e o trabalho em liberdade. Foi a acreditar que inovamos. No ensino, na ciência, nas pessoas, na Ser Saúde. Inovamos nos meios com a construção de um dos mais modernos institutos portugueses na área da saúde, inserido em meio rural, equipado com as últimas tecnologias. Inovamos no futuro ao proporcionarmos aos nossos alunos o ensino de valores e da excelência. Acreditamos e inovamos em múltiplos momentos, em todos, e será sempre esta a nossa forma de actuar, de ser, de estar… continuamos a sonhar, a acreditar nas pessoas, em Portugal e no mundo. A saber e a actuar. Sabemos que o nosso caminho, criado em bases sólidas e que se estendem pelo mundo, tem amanhã e perdura pela qualidade dos valores humanos que estruturam toda a nossa razão de ser e estar. Acreditamos que o saber não tem fronteiras e é na junção de saberes que a ciência se descobre nessa humildade de uma sabedoria de incerteza constante. Entregamos o prémio Ser Saúde/ISAVE de ciência e investigação em saúde. Queremos deste modo contribuir para o desenvolvimento do conhecimento de Portugal e do mundo. Neste caminho, sempre connosco, um Homem: Monsenhor Cónego Doutor Eduardo de Melo Peixoto. “Quando a perda se reporta aos afectos, resta-nos a memória de um Homem único, maravilhoso… Obrigado Monsenhor. Adeus Amigo, até à Eternidade…”. José Manuel dos Santos Henriques Presidente do ISAVE 2 16 Ramiro Délio Borges de Meneses Juramento de Hipócrates Entre o sentido e o valor O ethos médico foi, desde longa data, expresso em juramentos e códigos, que ao mesmo tempo orientavam e protegiam o médico, proporcionavam confiança ao doente e à sociedade. Entre eles, merece especial relevo o célebre Juramento de Hipócrates, verdadeiro programa de inúmeras gerações de médicos e que, ainda hoje, é usado em algumas universidades, adaptado sob o nome de Declaração de Genebra. 32 Paulo Linhares Neuromodulação cerebral A neuromodulação cerebral é uma área em desenvolvimento crescente havendo cada vez mais indicações para a sua utilização. Perfeitamente estabelecida nalgumas patologias, permanece ainda em fase experimental em muitas das novas indicações. O melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças e a melhoria das técnicas cirúrgicas têm-na tornado numa cirurgia segura e eficaz, sendo uma ferramenta fundamental na neurocirurgia moderna. 42 Entrevista a Mário Simões Para o cérebro, pensar e imaginar é o mesmo que fazer Somos capazes, hoje, utilizando somente estados hipnoidais, de fazer realmente projectos de cura, por exemplo, na dor crónica, fobias, problemas de relações interpessoais, diminuir alguns sintomas de doenças graves, que não curamos, como cancros, neoplasias, mas melhoramos a qualidade de vida, aumentamos a sobrevida, porque vamos estimular no imaginário, através de visualização, defesas do indivíduo, tipo imunológico, através do ponto de vista imaginário. 56 Gilberto Alves, Nulita Lourenço, Amílcar Falcão Tratamento Médico da Epilepsia (Parte I) A evolução na Farmacoterapia A epilepsia não é uma condição patológica única, mas antes uma família de diversas perturbações do cérebro, de etiologias variadas, que têm em comum uma predisposição aumentada para interrupções recorrentes e imprevisíveis da função cerebral normal, designadas crises epilépticas. Poster Carla Susana Oliveira, Eduarda Bastos, Flávia Silva Onde está o exemplo? Reunião de Formação de Pediatria: Nutrição 3 68 Ana Azevedo, Isabel Maia, João Pedro, Jorge Ribeiro, Marta Barbosa Abordagem autónoma do enfermeiro na dor A singularidade e individualidade de cada pessoa confere ao fenómeno dor um carácter subjectivo e único que depende da percepção individual, da percepção do utente, influenciada por vários factores mas, também, da percepção do enfermeiro, sendo, mais uma vez, fundamental salientar a importância da sensibilização para este fenómeno e do desenvolvimento de uma relação terapêutica que irá consolidar a comunicação e a confiança entre enfermeiro/utente, pilar preponderante para o estabelecimento do plano terapêutico. 86 Felipe José Aidar, André Carneiro, António Silva, Victor Reis, Nuno Garrido, Rui Vieira Paralisia Cerebral e actividades aquáticas: aspectos ligados à saúde e função social A Paralisia Cerebral, segundo a World Health Organization, é denominada também como encefalopatia crónica não progressiva da infância. Os distúrbios caracterizam-se pela falta de controlo sobre os movimentos, isto devido a modificações adaptativas musculares, comprimento muscular e até com deformações ósseas. O quadro tende a comprometer o processo de aquisição de habilidades, com possibilidade de prejudicar actividades quotidianas realizadas por crianças durante o seu desenvolvimento. 96 Carla Cristina Alves da Silva, Sandra Maria Alves Branco Miguel Exercícios físicos no pós‑parto O período de puerpério, também conhecido como período pós-parto, dura cerca de seis semanas. Em nenhuma outra fase da vida da mulher as modificações físicas são tão grandes e acontecem em tão curto espaço de tempo. 106 Carlos Manuel de Sousa Albuquerque, Ana Paula Soares de Matos Área de formação e dimensões psicológicas: Um estudo com jovens estudantes universitários Reportando-nos aos resultados obtidos na nossa investigação, numa tentativa de elaborar o perfil dos estudantes com formação académica superior na área da saúde (comparativamente com os que não a têm) podemos dizer que, duma forma geral, se caracterizam por serem jovens para quem a vida faz sentido a nível cognitivo e emocional, que aceitam e dão sentido às experiências negativas tentando ultrapassá- las, que acham que vale a pena investir nos problemas e exigências do dia a dia (que são desafios bem vindos e não ameaças a ser evitadas) e que acreditam que os resultados relacionados com a saúde não são contingentes à acção de outras pessoas mas que dependem sobretudo deles próprios, revelando-se mais autónomos e mais independentes de terceiros (familiares, amigos, etc.) na manutenção da sua saúde. 4 ISAVE desenvolve protector bucal Para além do desenvolvimento de trabalhos em prótese removível e fixa, o Laboratório de Prótese Dentária do ISAVE trabalha na criação de dispositivos desportivos para modalidades de forte contacto físico, os protectores bucais. A ct ua lid ad e 5 O protector bucal é um dispositivo utili- zado em algumas modalidades desportivas e que, pela sua importância, deveria ser mais valorizado e consequentemente mais utili- zado. Quando se fala em protectores bucais, normalmente associamos sempre a sua utiliza- ção ao Boxe, Kick-boxing e Rugby, mas para além destas actividades desportivas existem outras modalidades em que os atletas estão sujeitos a grandes impactos físicos, como é o caso do hóquei em patins e do andebol. A realidade de uso destes dispositivos noutros países é muito diferente em relação à utilização em Portugal, que é muito baixa ou quase inexistente. No Reino Unido, todo o desporto univer- sitário em que o contacto físico entre atletas esteja presente, o uso deste equipamento é obrigatório. Em Portugal, a falta de informa- ção e motivação sobre a prática de utilização de protectores bucais, faz com que o uso desses dispositivos não esteja tão patente nas nossasmodalidades, dado que os atletas não estão sensibilizados para os perigos que podem ocorrer e desconhecem os riscos que alguns desportos oferecem. A saúde deve começar pela prevenção e não pelo tratamento e, em Portugal, não existe esta cultura. É necessário divulgar e o desporto é uma boa maneira de promover a saúde, não só para os participantes como para os seus simpatizantes. Um estudo feito nos Estados Unidos demonstra resultados impressionantes. Mais de 5 milhões de dentes são perdidos todos os anos em actividades desportivas naquele país. São mais de 13 700 dentes por dia. A American Dental Association estima ainda que mais de 200 000 traumas orais são prevenidos anual- mente devido ao uso de protectores bucais. Para além de protegerem os dentes, os protectores bucais redistribuem as forças de impacto evitando fracturas do ângulo ou côndilo da mandíbula, hemorragias cerebrais, desmaios e lesões do pescoço, sendo que o grande papel destes protectores é evitar que o maxilar inferior choque com violência contra o maxilar superior. As características referidas anteriormente são as mais importantes, mas é importante salientar o factor psicológico do atleta quando o está a utilizar, o que faz com que se sinta mais seguro e com confian- ça reforçada para o confronto e impacto do choque durante o tempo de competição. Licenciada em Prótese Dentária, pós-graduação em Ciências da Educação,Coordenadora do Curso de Prótese Dentária do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Marisa Oliveira 6 Evidentemente, este objecto não apresenta apenas vantagens, tem algumas limitações. A dificuldade de comunicação com os compa- nheiros de equipa e um desconforto sentido pelo atleta numa região um pouco sensível são as principais limitações destes dispositivos, mas que são facilmente ultrapassadas. Desta forma, treinadores, médicos e fisioterapeutas de uma equipa devem incentivar o uso deste equipamento. Quando um atleta usa um protector bucal tem de ter alguns cuidados. Deve ser lavado em água corrente, fria, pois o calor danifica o material, deve ser guardado em caixas perfu- radas, e antes de uma nova utilização, deve ser novamente passado por água corrente fria. Quando o atleta usa este tipo de protec- tor, sendo criança ou adolescente, deve ser controlado periodicamente a sua adaptação na boca, devido ao seu crescimento e erupção dentária. A ct ua lid ad e Tipos de Protector Bucal O protector bucal tem diversas formas de comercialização, sendo uns encontrados em lojas de desporto e outros confeccionados em laboratório de Prótese Dentária. Estima-se que cerca de 90% dos protectores bucais utilizados são adquiridos nas lojas de desporto, sendo apenas 10% diagnosticados, encomendados e confeccionados por um profissional de saúde nos referidos laboratórios. Esta discrepância de valores deve-se à falta de divulgação nos departamentos médicos dos clubes e aos próprios atletas. Podemos encontrar, três tipos de protectores bucais disponíveis no mercado: standard ou pré-fabricado, termoplásticos e individuais. 7 Protector Bucal Standard ou Pré‑fabricado Este tipo de protector poderá ser encon- trado em lojas de desporto, e disponível em três tamanhos: pequeno, médio e grande. De todos os tipos de protectores é o que tem menor retenção e é fixado na boca sob pressão oclusal. É desconfortável, exerce fraca protecção, interfere na respiração e na fala do atleta, são extremamente volumosos e têm uma retenção mínima, fazendo com que este protector bucal seja o menos aceitável e o menos protector. A principal vantagem é o seu preço acessível e está pronto a ser usado após a compra, pois não necessita de preparação adicional. Protector Bucal Termoplástico O protector bucal termoplástico é molda- do e ajustável pelo utilizador. É de qualidade superior ao protector standard ou pré-fabri- cado, pois tem maior retenção e o seu valor comercial é de igual modo reduzido. Sendo constituído por um material termo- plástico, deve ser previamente aquecido e depois moldado na boca do atleta. À primeira vista pode ser interpretada como sendo uma vantagem, mas muitas vezes torna-se incó- modo, pois o atleta pode sofrer queimaduras na mucosa durante a adaptação do material. Outra grande desvantagem é o facto de poder ser feita uma má moldagem à boca o que implicará futuros problemas oclusais e a maior parte deste tipo de protectores não cobre por completo a arcada do indivíduo, mais precisamente a zona posterior. Este tipo de protector bucal é o mais procurado no mercado e encontra-se disponível por tama- nhos base. Uma característica que se mantém, compa- rando com o protector anteriormente referido, é o facto de serem alteradas as propriedades do material por modificações feitas pelos seus utilizadores. São estes tipos de protectores que proporcionam um sentido falso de protecção, devido à diminuição significativa da espessura oclusal do equipamento, quando moldado à boca do atleta. Para além de protegerem os dentes, os protectores bucais redistribuem as forças de impacto evitando fracturas do ângulo ou côndilo da mandíbula, hemorragias cerebrais, desmaios e lesões do pescoço. 8 Protector Bucal Individual Dentro dos protectores bucais individuais há dois modelos de protectores confeccionados, os protectores bucais individuais realizados em sistema de vácuo e individuais realizados em sistema de vácuo sob baixa pressão. O protector bucal individual é confeccio- nado em silicone e pode ser feito com várias espessuras, quanto maior esta espessura maior será a protecção. Este tipo de dispositivo já pode ser adaptado a pacientes sujeitos a trata- mento ortodôntico e com dentes em erupção. É considerado o mais elaborado e de melhor qualidade disponível no mercado, pois recobre todas as superfícies oclusais, previne lesões na ATM e a fractura mandibular. Este dispositivo é confeccionado num modelo de gesso, réplica da boca do atleta, a confecção é feita por adaptação de uma ou mais placas de silicone ao modelo numa máquina de vácuo. Tem a vantagem de poder ser modificado por adição de placas até que tenha uma espessura desejada para o atleta e a modalidade em questão. Máxima protecção Protector para desportos de alto impacto e/ou que envolvam a utilização de stiks. Constituído por 3 camadas: 1ª - 2 mm flexí- vel, 2ª - 0,8 mm rígida, 3ª - 4 mm flexível. Exemplo: Rugby, kickboxing, boxe, hóquei, squash, etc. Excelente protecção/máximo conforto. Protector para desportos de alto impacto e/ou que envolvam a utilização de stiks. Constituído por 3 camadas: 1ª - 2 mm flexí- vel, 2ª - 0,8 mm rígida, 3ª - 2 mm flexível. Exemplo: Rugby, kickboxing, hóquei, karaté, basquetebol, andebol, etc. A ct ua lid ad e 9 Medium – média protecção Protector para a generalidade dos desportos onde haja risco de impacto com superfícies largas (braços, cabeças, etc.). Constituído por 2 camadas: 1ª - 2 mm Flexível, 2ª - 4 mm flexível. Exemplo: Basquetebol, andebol, luta livre, judo, etc. Light – leve protecção Protector para crianças com idade inferior a 10 anos e/ou desportos onde haja risco de impactos dos dentes inferiores com os supe- riores. Constituído por 2 camadas: 1ª - 2 mm flexível, 2ª - 2 mm flexível. Exemplo: Motocross, btt, etc. A criar, a inovar, o Laboratório de Prótese Dentária do ISAVE assume-se como pioneiro na criação de protectores bucais desenvol- vidos conforme as necessidades de cada atleta. Feitos à medida, o Laboratório sabe que protege e cria um elemento fundamental para a protecção e saúde de atletas. O Laboratório de Prótese Dentária do ISAVE é único em Portugal no desenvolvimento de protectores bucais à medida de cada atleta. O protector bucal individual é confeccionado em silicone e pode ser feito com várias espessuras… pode ser adaptado a pacientes sujeitos a tratamento ortodôntico e com dentes em erupção. É considerado o mais elaborado ede melhor qualidade disponível no mercado, pois recobre todas as superfícies oclusais, previne lesões na ATM e a fractura mandibular. Revista Trim estral de ciência e investigação em saúde 4 15 15 Colégio 7 Fontes Quinta do Cedro - Sete Fontes S. Victor 4710-348 Braga Telefone - 253.263.096/097 Fax - 253.263.098 colegio7fontes@gmail.com www.colegio7fontes.pt Futuro Modernidade Qualidade Rigor Tradição Ar te s Ci ên ci as Ci vi lid ad e De sp or to Lí ng ua s Colégio 7 Fontes Academias: Do Berço à Universidade, a Educar o seu Filho. Colégio 7 Fontes www.colegio7fontes.pt 12 Conselho Científico Ser Saúde Adelino Correia Adília Rebelo Adrian Llerena A. Fernandes da Fonseca Alberto Salgado Albina Silva Alexandre Antunes Alexandre Castro Caldas Alexandre Quintanilha Almerinda Pereira Alves de Matos Amílcar Falcão Ana Preto António Miranda António Paiva António Rosete Armando Almeida Arminda Mendes Costa Artur Manuel Ferreira Berta Nunes Carla Matos Carlos Alberto Bastos Ribeiro Carlos Albuquerque Carlos Pedro Castro Carlos Pereira Alves Carlos Valério Carmen de la Cuesta Catarina Tavares Célia Cruz Célia Franco Constança Paúl Daniel Montanelli Daniel Pereira da Silva Daniel Serrão Delminda Lopes de Magalhães Dinora Fantasia Duarte Pignatelli Eduarda Abreu Elsa Pinto Eurico Monteiro Fátima Francisco Faria Fátima Martel Fernando Azevedo Fernando Duarte Fernando Schmitt Fernando Ventura Freire Soares Guilherme Macedo Gustavo Afonso Gustavo Valdigem Helena Alves Helena Martins Henrique de Almeida Henrique Lecour Isabela Vieira João Costa João Luís Silva Carvalho João Pedro Marcelino João Queiroz João Ramalho Santos Joaquim Faias Jónatas Pego Jorge Correia Pinto Jorge Delgado Jorge Ferreira Jorge Marques 13 Jorge Soares Jorge Sousa Pinto José Amarante José Carlos Lemos Machado José Eduardo Cavaco José Eduardo Lima Pinto da Costa José Luís Dória José Manuel Araújo José Matos Cruz José M. Schiappa José Rueff Laura Simão Liliana Osório Lisete Madeira Lucília Norton Luís Basto Luís Cunha Luís Martins Luiza Kent-Smith Madalena Nunes Manuel Antunes Manuel Domingos Manuel Mendes Silva Manuel Teixeira Veríssimo Manuela Vieira da Silva Marco Oliveira Margarida Soveral Gonçalves Mari Mesquita Maria Júlia Silva Lopes Maria Manuela Rojão Maria Margarida Dias Marina Pereira Pires Mário Rui Araújo Mário Simões Marta Marques Marta Pinto Miguel Álvares Pereira Paulo Daniel Mendes Pedro Azevedo Pedro Vendeira Piedade Barros Querubim Ferreira Ramiro Délio Borges de Menezes Ramiro Veríssimo Raquel Andrade Regina Gonçalves Rosa Martins Rui L. Reis Rui de Melo Pato Rui Nunes Sandra Cardoso Sandra Clara Soares Sérgia Rocha Sérgio Branco Sérgio Gonçalves Sérgio Nabais Sónia Magalhães Susana Magadán Tiago Barros Tiago Osório de Barros Wilson Abreu Veloso Gomes Victor Machado Reis Virgílio Alves 31 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 1 2 3 4 S T Q Q S S D The 25th International Literature and Psychology Conference 02 de Julho Lisboa Genetic manipulations in the fruit fly fight club: love and war in a single gene and other stories 04 de Julho Lisboa 18º Congresso Internacional de Szondi 10 de Julho Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Na Fronteira da Ciência – Na fronteira do universo – Em busca do fim da idade das trevas 16 de Julho Fundação Calouste Gulbenkian Julho AG EN DA Julho - Agosto - Setembro 14 Director Eugénio Pinto sersaude@isave.pt revistasersaude@gmail.com Editores Isabela Vieira Rui Castelar Joana Sousa Dias Director de arte e grafismo Ângelo Mendes angelo.silva.mendes@gmail.com Fotografia entrevista Jorge Gomes Publicidade Celmira Dias Propriedade Ensinave Educação e Ensino Superior do Alto Ave, SA Campus Académico do ISAVE Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso NIF – 504 983 300 Impressão Orgal, impressores Rua do Godim, 272 4300-236 Porto Tiragem 5 mil exemplares / trimestral Nº de Registo na ERC 124994 ISSN 1646‑5229 Depósito Legal 246971/06 Contactos Ser Saúde Campus Académico do ISAVE Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253 639 800 Fax – 253 639 801 www.isave.pt epinto@isave.pt revistasersaude@gmail.com _____________________________________ Os artigos publicados nesta edição da Ser Saúde são da responsabilidade dos autores. Proibida a reprodução parcial ou total, sob qualquer forma, sem prévia autorização escrita. Caminhos de futuro novos mapas para as ciências sociais e humanas 19 de Agosto Coimbra 6th Intenational Congress on Autoimmunity 03 de Setembro Centro de Congressos e Exposições Alfândega, Porto 7th International Conference On Disability, Virtual Reality And Associated Technologies 08 de Setembro Fórum Maia Transportes Transmembranares 10 de Setembro FMUP 9th International Symposium on Aeromonas and Plesiomonas 10 de Setembro UTAD e Hotel Miracorgo 5.ª Conferência de Actualização em Farmacoterapia 12 de Setembro Auditório do Hospital Fernando da Fonseca, Amadora/Sintra 6.ª Conferência de Actualização em Farmacoterapia 19 de Setembro Auditório do Hospital Fernando da Fonseca, Amadora/Sintra Centros de competência e redes de referência para as doenças raras na UE: estaremos nós à altura das expectativas? 25 de Setembro Auditório do INSA, Lisboa Feridas Crónicas 26 de Setembro Setúbal AGOSTO SETEMBRO 15 Ramiro Délio Borges de Meneses Professor do Instituto Politécnico de Saúde do Norte, Gandra; Investigador do Instituto de Bioética, Universidade Católica Portuguesa, Porto Juramento de Hipócrates Entre o sentido e o valor 17 Desde Hipócrates que os médicos vêm fazendo o juramento, que é o acto mais sole- ne e importante da sua actividade clínica. Será apresentado como Código Deontológico, que inclui valores da ética e do humanismo. A prática sanitária planeia exemplos reais como a relação profissional/doente, a confidencialidade e o segredo profissional, o consentimento informado, a aceitação de participar em ensaios clínicos, a justa distri- buição de recursos e o esforço para evitar a massificação na assistência. As deficiências éticas, nestas situações, são tão habituais que no final são credíveis como normais, porque dos costumes se fazem as leis. A palavra ética significa, na sua origem, costume, e chegou a designar a ciência que trata dos ideais das correlações humanas, sendo uma reflexão categoricamente normativa sobre o agir humano. Com o tempo, mudam os costumes, muito embora seja a essência da ética a mesma, a sua relação com a conduta dos indivíduos, na sociedade actual, é distinta, porque os valores sociais se modificam. Tais mudanças históricas denominam-se dinâmica dos valores sociais ou ética dinâ- mica. Esta transforma o nível intelectual, ao mesmo tempo que diminui a flexibilidade. As causas são múltiplas, mas entre elas está a nova mentalidade da cidadania, que mudou esta auréola em normas morais. López-Aranguren refere-se à moral como ética vivida e à ética uma moral pensada. A conduta do médico deverá pautar-se por um conjunto de valores, que norteiam a relação médico/doente, com nova leitura axiológica e sentido estético, que classificam a nossa conduta normativa do agir humano. O Juramento de Hipócrates contém uma afirmação e uma negação testemunhada. É a afirmação do compromisso de assumir determinadas condutas morais e a negação de realizar acções punitivas. A reprovação estará na consciência e na perda da auto-estima e consideração pelos demais. No juramento evidencia-se a dignidade profissional, o respeito ao mestre, a veneração pela pessoa total, particularmente a sua saúde e a sua vida e o segredo médico. O Juramento Hipocrático é um código deontológico, pelo qual o médico faz promessa clínica,que embora rotineiro não deixa de ser algo mais importante do seu serviço como acto, cuja simbologia só é verdadeiramente compreen- dida pelos mais humanistas. 19 1. Hipócrates (460 a.C. – 360 a.C.) foi um médico grego, neto e filho de médicos, que eliminou as explicações sobrenaturais da origem das doenças e desenvolveu um sistema racional baseado na observação. Atribui-se- lhe o Iusiurandum Hippocraticum, que era um código profissional de ética, que praticavam os iniciados na confraria de Asclépio. O Juramento contém uma afirmação ética testemunhada. Refere o compromisso de assumir determinadas condutas morais e a negação de realizar acções maléficas, filoso- ficamente a reprovação estava na consciência pela perda de auto-estima. No juramento, evidencia-se a dignidade profissional, o respeito pelo médico e pelo doente, em especial pela saúde e pela sua vida, bem como o “segredo médico”. 2. Juro pelo Apolo Médico (Deus do Sol, da razão e da Medicina), Asclépio, Higea, Panaceia e por todos os deuses e deusas, tomando-os por testemunhas, que cumprirei este juramento e ofereço a cumprir com todas as minhas forças e entendimento. Tributarei ao meu mestre de Medicina o mesmo respeito que aos meus pais, partilhan- do a minha vida com ele e socorrendo-os se necessário seja. Tratarei os seus filhos como meus irmãos, se quiserem aprender a ciência, ensiná-los-ei, quando estiver falto de meios, eu lhes porei à disposição, estimarei a sua família como se meus irmãos fossem; e lhes ensinarei a arte, se carecerem de apreendê-la sem salário e nem contrato; proporcionarei ensinamentos escritos, orais e de toda a outra espécie, aos meus filhos e aos do meu mestre e aos alunos inscritos, que prestam juramento segundo a lei médica e a mais ninguém. Instruirei com preceitos, lições orais e demais modos de ensino os meus filhos, os do meu mestre e os discípulos, que se me unam sob o convénio e juramento, que determina a lei médica e a mais ninguém. Usarei tratamentos para ajudar os que sofrem, segundo as minhas forças e o meu entender, evitando toda a injúria e toda a injustiça. Não darei veneno mortal algum a quem mo pedir, nem fornecerei tal conselho, abstendo- me igualmente de aplicar às mulheres pessários abortivos. Passarei a minha vida e exercerei a minha profissão com inocência e pureza. Não matarei e operarei os calculosos, deixando tal operação aos que se dedicam a praticá-la. Em qualquer casa que entre, vindo para auxiliar os doentes, livrando-me de cometer voluntariamente faltas injuriosas ou acções corruptas e evitando, sobretudo, abusar dos corpos de mulheres ou jovens, livres ou escravos. 20 Aquilo que eu vir e ouvir no exercício da minha profissão, ou mesmo fora dela, na vida corrente, que não convier divulgar, calá-lo-ei, entendendo que se não deve dizer, conside- rando o segredo como um dever sagrado. Se eu cumprir, com rigor, este juramento e não o violar, seja-me concedido que ganhe, para sempre, fama, pela minha vida e pela minha arte, entre os homens. Se quebrar, sou perjuro, e caia sobre mim a sorte contrária1. 3. O ethos médico foi, desde longa data, expresso em juramentos e códigos, que ao mesmo tempo orientavam e protegiam o médico, proporcionavam confiança ao doen- te e à sociedade. Entre eles, merece especial relevo o célebre Juramento de Hipócrates, verdadeiro programa de inúmeras gerações de médicos e que, ainda hoje, é usado em algu- mas universidades, adaptado sob o nome de Declaração de Genebra (1948). O Juramento de Hipócrates reflecte os princípios universais da ética profissional médica. Foi apresentado como a primeira síntese deontológica para a classe dos médicos. Esta síntese de ética profissional não se sabe se terá sido influenciada pelo pensamento moral de Aristóteles, particularmente, porque o filósofo cita, numa obra, o fundador da Escola de Cós. 21 A Declaração de Genebra foi aprovada pela Assembleia-Geral da Associação Médica Mundial (1948) e referenciada em Sidney (1968), podendo enunciar-se da forma seguinte: Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da humanidade, outorgar aos meus mestre o respeito e a beatitude que mere- cem; exercer a minha profissão dignamente e com consciência; velar solicitamente, antes de tudo, pela saúde do meu doente; guardar e respeitar o segredo profissional; manter incó- lume, por todos os meios ao meu alcance, a honra e as nobres tradições da profissão médi- ca; considerar como irmãos os meus colegas; não fazer caso de credos políticos e religiosos, nacionalidades, raças, posição social e econó- mica, evitando que se entreponham entre os meus serviços profissionais e o meu doente; manter o máximo respeito pela vida humana, desde o mesmo momento da concepção e não utilizar – incluso por ameaça – os meus conhecimentos médicos para infringir as leis da humanidade. Solene e espontaneamente, sob a minha palavra de honra, prometo cumprir tudo aquilo que foi dito anteriormente. Tratou-se, assim, de uma generalização do Iusiurandum Hippocraticum. 4. Este pequeno, mas profundo documento hipocrático, é um hino à vida, tal como referiu João Paulo II, “sicut iam, illud semperque validum confirmavit Hippocratis Iusiurandum, secundum quod cuique medico est ad laborandum pro absoluta vitae humanae reverentia eiusque sacra índole.”2, e que contribuiu para fazer da Medicina uma das mais nobres profissões, porque se apresen- ta, hoje e sempre, como a arte e a ciência do curar. Outros ditames morais terão influen- ciado este texto, nomeadamente os provenientes de Pitágoras (Samos, 570-489 a.C.) e de Aristóteles (Estagira, 384-322 a.C.), que os discípulos ou anteriores a Hipócrates utilizaram na redacção do Juramento. Segundo Ackernecht, Hipócrates foi o símbolo do primeiro período criativo da Medicina Grega, rompendo com a Medicina Sacerdotal, dos Asclepíades, seguindo-se, após a sua morte, a Medicina Diagnóstica. O Juramento de Hipócrates contém uma afirmação e uma negação testemunhada. É a afirmação do compromisso de assumir determinadas condutas morais e a negação de realizar acções punitivas. A reprovação estará na consciência e na perda da auto-estima e consideração pelos demais. 22 5. Alguns dos princípios éticos funda- mentais, que constituem a principiologia contemporânea, encontram-se a fundamentar códigos médicos, no domínio ético, como é o caso do Iusiurandum. O princípio da beneficência vem referen- ciado na conclusão ou cláusula final. O bonum est faciendum, que encontramos na Ética a Nicómaco, será o princípio ético primeiro das actuações médicas. Tal como se vincula moralmente, neste Iusiurandum, o princípio da beneficência obriga o profissional de saúde a usar a máxima ao atender o doente e fazer tudo quanto possa para melhorar a saúde. Trata-se, desde Hipócrates, em sentido etimo- lógico, de um princípio básico, que se aplica não só ao doente, como também a outros, que poderão beneficiar do progresso clínico. Este tem como obrigação a “confidencialidade”. A designação hipocrática, que vem no Corpus Hippocraticum é: primum non nocere, na versão latina de Anuntius Frösius, de Frankfurt-am-Main, em 1624, que hoje em dia se qualifica como não-malificência, segun- do Beauchamp e Childress. Estes consideram este princípio distinto do da “beneficência”, já que o dever de não causar dano é mais obrigatório do que a exigência de promover o bem. Para Hipócrates, o primum non nocere vem integrado no anterior princípio, tal como se refere nos Aforismos, seguindo o sentido da aretologia nicomaqueia: bonum est faciendum malumque vitandum (… e nunca para o seu mal, ao aplicar medicamentos), daqui teremos como obrigação a “fidelidade”3. O princípio da autonomia, não se encontra expresso no hipoeratismo ético, já que ele surgiu com I. Kant e passou, nos nossos dias, para a principiologia clínica. O paternalismo, na sociedade grega do tempo de Hipócrates,era um modo natural de tratar os doentes. Este paternalismo surge, sobretudo, nos escri- tos tardios do Corpus Hippocraticum. Segundo o pensamento hipocrático, o médico deve querer o maior bem para o doente, mas sem contar com a sua vontade, dado que ao doente falta, em princípio, a autonomia moral. Assim, surgem, na obra hipocrática – Decência – e, em muitas outras, os variados sentidos. A atitude do médico hipocrático é paterna- lista, no sentido em que considera os doentes como incapazes mentais, sendo pessoas que não podem nem devem decidir sobre a sua própria doença. Tal como se caracteriza no livro – Epidemia –, o paternalismo assume-se como algo de materno. K. Deichgraeber definiu o médico hipocrático com o título de medicus gratiosus, em virtude do termo grego, na obra referida. Segundo o pensamento kantiano, o princí- pio da autonomia baseia-se na convicção de que o ser humano deve ser livre do controlo exterior e ser respeitado nas suas decisões vitais. Trata-se de um princípio ético, enrai- zado na cultura ocidental, que tarda em ter repercussão na actividade clínica4. 23 6. O conceito de justiça, analisado por Aristóteles, no quinto livro da “Ética a Nicómaco”, definida como “equidade”, foi sistematizada, no século III, por Ulpiano, insti- tia est constans at perpetua voluntas ius suum cuique tribuere, atravessa, como fundamento, todo o Iusiurandum Hippocraticum, tendo como obri- gação a privacidade, da qual se fala, aquando do siggilum. Para Hipócrates, a justiça será um modo de ser da physis (natura per se), sendo esta um bem através da operação do médico, quer pela theoretica quer pela practica do Jusiurandum. A justiça é um conceito natural e ético, dado que a saúde é um estado vital justo. A justiça apresenta-se como elemento que defi- ne a condição da physis do homem. O médico sabe conduzir de novo ao que no corpo é natureza e justiça. Para o médico hipocrático, a doença é, de algum modo, uma injustiça. A justiça, no Juramento, abarca a distributiva, a cumulativa e a legal, tal como se verifica na aretologia teleológica. Para um grego, o bem moral não é possível sem a saúde. Olhando para o ajustamento das qualidades físicas, a equidade adequada deter- mina a justiça moral. Pelo sentido hipocrático, a justiça consiste, segundo o pensamento socrático, no ajusta- mento da ordem da natureza, seja física, seja moral. O médico deve abster-se de causar um dano ou uma injustiça. O conceito de justiça surge em muitas obras do Corpus Hippocraticum. No Juramento hipocrático, a justiça insere-se na terceira parte, denominada habitus, porque, no serviço clínico, está sempre presente a virtude. Sem esta, nem a phrônesis funciona, surgindo um mau exercício da Medicina5. O ethos médico foi, desde longa data, expresso em juramentos e códigos, que ao mesmo tempo orientavam e protegiam o médico, proporcionavam confiança ao doente e à sociedade. Entre eles, merece especial relevo o célebre Juramento de Hipócrates, verdadeiro programa de inúmeras gerações de médicos e que, ainda hoje, é usado em algumas universidades, adaptado sob o nome de Declaração de Genebra. 24 7. O Juramento de Hipócrates enumera alguns procedimentos clínicos, que carecem de reflexão ética, correspondendo àquilo a que chamamos Bioética, nos dias de hoje (Van Potter) e estando integrados na vida hospitalar, e são eles: • Farmacovigilância e Farmacodinamia, em ordem à cura da doença, não provocando outras, desde um remédio mortal (veneno), segundo a toxicologia, aos fármacos; • O planeamento familiar, segundo a prática de substâncias não abortivas, para não permi- tir a morte fetal, seguindo-se métodos, que se conheciam desde a civilização egípcia (os métodos mecânicos e os químicos sugerem a condenação do aborto); • Há uma referência à eutanásia activa e indirectamente à forma passiva (conselho que leve o doente à morte): “não darei qualquer droga fatal a uma pessoa”. Desta forma, a escola hipocrática já se posicionou contra o que hoje denominamos como eutanásia e suicídio assistido. A mesma posição assumiram Pitágoras e Aristóteles. Não se referencia a distanásia e a cacotanásia. Era natural que estas referências não surjam nos Conselhos de Asclépio, mas estariam presentes em civilizações circunvizinhas. A cirurgia nunca foi grande apanágio da Escola de Cós, até porque muito se perdeu sobre os escritos hipocráticos, em virtude da extracção de cálculos, deixando a alguém que saiba cirurgia. Na interpelação deste ponto, surge a promessa de não praticar a cirurgia da litíase vesicular. Assim, Edelstein refere a aversão dos pitagóricos e da Escola de Cós à Cirurgia6. 8. No Juramento, múltiplas são as refe- rências, quer directas, quer indirectas no âmbito da ética profissional, a começar pela responsabilidade. O termo spondere (spondeo) define etimologicamente um compromisso com alguém, possuindo um carácter religio- so. No idioma grego, significa a “obrigação”, que deriva do rito. Segundo Hipócrates, as ocupações (cirurgia) estavam sujeitas à responsabilidade jurídica, enquanto as profis- sões (a arte de curar) estão sob orientação da responsabilidade moral. O profissionalismo responsável, na altura, era impune. Mas, o médico exerce, profissionalmente, uma procla- mação e promete um sacerdócio fisiológico. O Juramento, no domínio da ética profis- sional, refere-se ao segredo, que poderá ter vários sentidos, desde o segredo religioso ou sacerdotal até ao familiar. Assim diz o texto: “tudo o que vir e ouvir no exercício da minha profissão e no comércio da vida comum e que não deva ser divulgado, conservar-se-á como segredo”. 25 No exercício da sua profissão, o médico terá de cumprir deveres perante o doente, em relação com os outros médicos e frente à physis, que estão indirectamente expressos no Juramento e escritos noutros textos do Corpus Hippocraticum, que são matéria de Ética Profissional. O médico favorece o doente, quando, para tratar dele, escolhe os melhores recursos tera- pêuticos, ao seu alcance, e assim executa recta e belamente, quando é assíduo nas visitas e sabe respeitar o decoro do doente. A intuição do terapeuta terá em conta, além da saúde, a – euskhemosyne – do doente, porque na boa aparência resplandece a perfei- ção da physis. Logo, procedendo assim, o médico obser- va, com reverência, um decreto inabalável da divina natureza ao aceitar os limites da sua arte e o seu próprio limite, evitando um pecado da Hybris. Um ponto fundamental da relação ética, entre o médico e o doente, no aspecto profis- sional, refere-se aos “honorários”. Nos escritos hipocráticos, vitupera-se o lucro desonesto (diskhrokerdeie) e afirmam-se os riscos ao acreditar na força do dinheiro para comprar a cura. Segundo os “Preceitos” a relação económica entre o médico hipocrático e os seus doentes teve de se ajustar às seguintes normas: • Para o médico hipocrático, servidor da natureza, os honorários só se justificarão etica- mente, quando a conduta profissional procura a perfeição na arte, que pratica. Não se pensa no salário, sem o desejo de buscar instruções. O bom médico deverá ser sempre aprendiz da sua arte, isto é, o que, em última análise, justifi- caria a sua ganância; • O médico honrado, segundo a rapidez do mal, não deverá buscar o que lhe dá proveito, mas aquilo que lhe dá glória; • O médico deverá ter em conta, ao estabe- lecer a quantia dos seus honorários, a situação económica do doente, sem abusar na exigên- cia e na ausência de humanidade; • Muitas vezes, o médico prestará serviços gratuitamente, ora na recordação de um favor recebido, ora para conseguir fama. Assim, deverá proceder o médico, quando o doente for estrangeiro ou pobre. É neste contexto que surge a frase: onde há amor ao homem, surgirá o amor à arte7. Segundo a ética profissional hipocrática, a assistência gratuita, ao doente, tinha dois motivos fundamentais: ânsia de fama e o amorao homem-doente. E, através deste, o amor à natureza. Resumidamente, diríamos que se trata de uma “filantropia fisiológica”. 26 9. O Juramento começa, desde logo, com uma evocação mitológica, na qual se define o “apolinischer Artz” e se apela aos deuses da saúde, para que o clínico cumpra, ora, segundo a norma objectiva da moralidade (recta ratio), ora, de acordo com a norma subjectiva, as virtudes noéticas. Já de si o preâmbulo, como cláusula inicial, inclui uma pedagogia e antro- pologia clínicas. O sentido pedagógico e antropológico do Juramento encontra-se delineado no empe- nho. Estimarei, como meus pais, aqueles que me ensinaram esta arte… e ensinar-lhe-ei a mesma, sem retribuição e sem promessa escrita. Aqui se refere ao ensino da Medicina, muito particularmente à Semiologia e Semióptica clínicas, apanágio do prognóstico da Escola de Cós, em oposição ao método de ensino da Escola de Cnide. No Iusiurandum, encontramos os três níveis de conhecimento clínico de P. Entralgo, isto é, conhecimento expositivo, conhecimento etiológico e conhecimento interpretativo. Assim surge a preocupação e a obrigação de ensinar e transmitir conhecimentos sobre a arte de curar. A saúde e a doença, na arte de curar, serão uma obrigação, não jurídica, mas religiosa e moral. O texto hipocrático cria uma obrigação, sendo uma espécie de promessa solene. Daqui se traduz o sentido da primeira parte do compromisso8. 10. O Juramento, um dos mais célebres textos médicos de todos os tempos, contém os preceitos essenciais da deontologia profissio- nal e clínica. Naturalmente, J. Jouanna salienta que este texto alia a elevação das ideias da arte de curar e a sobriedade da forma, onde a moral pagã atingiu de uma só vez o cume. Por isso, segundo este especialista da História da Medicina Grega, foi integralmente retomado pelos árabes e pelos cristãos, que se conten- taram em substituir as divindades invocadas (Apolo Médico, Asclépio, Higeia e Panaceia, bem como todos os deuses e deusas) pelo seu Deus, uno e trino. Este texto, que marcou, durante dois mil trezentos e cinquenta anos, a civilização ocidental, é uma summula tão perfeita que continua na base dos juramentos dos gradu- ados em Medicina, em uso, em vários países, incluindo o nosso. Com efeito, qualquer alteração substancial, que se faça na sua deontologia, logo denun- cia uma mudança no paradigma de uma civilização. 27 Com o Jusiurandum, que se completa com outros escritos do Corpus Hippocraticum, fica bem clara a existência de escolas, onde se fazem estudos conducentes a uma profissão específica. Contudo, não fica esclarecida a exigência de qualificações legalmente reco- nhecidas. Tudo parece indicar que a frequência de centros, como Cós ou Cnide, era uma condição de preferência para a escolha no concurso ao lugar de médico da cidade/esta- do, auto-governada. Logo, comprovaram-no, como observou G. R. Lloyd, as inscrições a partir da época helenística. Note-se, pois, que já no século IV a.C., existiam decretos honoríficos, promul- gados pelas cidades, em honra dos vencedores: médicos da cidade ou médicos públicos. Aqui surge um cargo que apresenta algumas seme- lhanças com as práticas hodiernas. Entretanto, era a Assembleia do Povo, onde estavam representadas várias profissões, que procedia à escolha. Assim se revela num texto de Platão-Geórgias (514 a.C.), que compro- va, quando Sócrates dialoga com Cálicles: o mesmo se dirá de todas as outras coisas, por exemplo, se ambos decidíssemos candidatar-se a um lugar público como médicos compe- tentes, não deixaríamos de nos examinar mutuamente. Pelos deuses, dirias ter, vejamos, que tal está Sócrates a respeito da saúde e se, além disso, já curou alguém, escravo ou homem livre. Eu procederia, certamente, da mesma maneira contigo. E se não achássemos ninguém, estrangeiro ou ateniense, homem Segundo o pensamento kantiano, o princípio da autonomia baseia-se na convicção de que o ser humano deve ser livre do controlo exterior e ser respeitado nas suas decisões vitais. Trata-se de um princípio ético, enraizado na cultura ocidental, que tarda em ter repercussão na actividade clínica. 28 ou mulher, que tivesse recuperado a saúde por nosso intermédio, então Cácicles, por Deus, não seria verdadeiramente ridículo conceber uma pretensão tão insensata. Propriamente, mais do que especificar, sugerem-se aqui algumas das condições da aceitação. Uma era a saúde do candidato, como prova da sua capacidade de saber mantê-la, outra o êxito da sua terapêutica. Ao exemplificar com alguns doentes (escra- vos ou homens atenienses) eliminam-se muitos possíveis equívocos que, com a tendência para transferir para épocas passadas, as preocupa- ções da nossa, chamaríamos discriminação social, do género ou de raça. A simples leitura das obras do Corpus Hippocraticum, como os tratados sobre as Epidemias, mostra que tais distinções não existiam. Recordemos ainda outro lado importante que nos é fornecido casualmente por um discurso do orador Antifone: ao médico não era imputada responsabilidade criminal, se o doente falecesse. Estes médicos da cidade estavam portanto, até certo ponto, dependentes da arte oratória, como se existissem. Esta circunstância explica que tenham redigido obras que ensinavam, também, a arte de refutar, como a retórica. Na verdade, havia outras oportunidades em que o médico deveria mostrar publicamente a sua capacidade de persuasão. Assim, era numa outra forma do exercício da Medicina, a dos chamados médicos itinerantes, que iam, de terra em terra, por conveniência ou para se tornarem conhecidos ou, ainda, para observa- rem os climas e as doenças locais. O exemplo mais clarividente deste último tipo de interesse será aquele que nos revela o tratado – Ares, Águas e Lugares –, onde se contrastam os povos da Europa com os da Ásia, relacionando as suas características e aptidões, com a influência do meio ambiente, como 29 No exercício da sua profissão, o médico terá de cumprir deveres perante o doente, em relação com os outros médicos e frente à physis, que estão indirectamente expressos no Juramento e escritos noutros textos do Corpus Hippocraticum, que são matéria de Ética Profissional. 30 Bibliografia 1. Cf. M. HELENA DA ROCHA PEREIRA – Helade, tradução e adaptação de textos, 7ª edição, Imprensa Coimbra, Coimbra, 1998, pp. 225-226. 2. Cf. R. LUCAS (direc.) – Comentario Interdisciplinar a la Evangelium Vitae, B.A.C., Madrid, 1996, pp.185-186. 3. Cf. T. L. BEAUCHAMP; J. F. CHILDRESS – Principles of Biomedical Ethics, Oxford University Press, Oxford, 1994, pp. 150-230. 4. Cf. I. KANT – Fundamentação de Metafísica dos Costumes, Edições 70, Lisboa, 1995, pp. 85-87. 5.Cf. D. GARCIA – Fundamentos de Bioética, Eudema, Madrid, 1989, pp. 30-60. 6. Cf. R. D. BORGES DE MENESES – “Juramento de Hipócrates: implicações éticas e pedagógicas”, in: Medicina e Morale, 6 (2005, Roma), p. 120. 7. Cf. É. LITTRÉ – Ouvres Complètes d’Hippocrate, I volume, Belles Lettres, Paris, 1839, pp. 30-75. 8. Cf. J. A. ESPERANÇA PINA – A Responsabilidade dos Médicos, 2ª edição, Lidel, Lisboa, 1998, pp. 21-26. 9. Cf. P. L. ENTRALGO – La Medicina Hipocrática, Alianza Editorial, Madrid, 1987, pp. 380-390. 10. Cf. J. JOUANNES – Hippocrate, Belles Lettres, Paris, 1969, p. 184. 11. Cf. D. SERRÃO; R. NUNES (coord.) – Ética em Cuidados de Saúde, 3ª edição, Porto Editora, Porto, 1990, pp. 11-20. 31 se refere numa das obras célebres do Corpus Hippocraticum. Outros textos descrevem os cuidados que o médico deve ter com a sua apresentação, vestuário e gestos, bem como o modo de falar ou de lidar com o doente9. 11. O Juramento de Hipócrates delimita- se como documento sacerdotal, não típico dos conselhos de Esculápio das Asclépiades, com um conteúdo moral, que vai do espírito apolíneo (Deichgraeber), não se limitando ao pitagórico (Edelstein). O Juramento confron- ta-secom o espírito dionisíaco das práticas médicas, segundo F. Nietzsche. O médico é o homem distinto – Origem da Tragédia –, no exercício da arte de curar, guiado pelos ditames éticos, aqui professados. Este jura- mento constitui o paradigma, não só de ética clínica, como também de ética profissional. O médico hipocrático surge, ao abrigo deste documento, e por força da sociedade grega da época, como um sacerdote da natureza e não como sacerdote religioso. O Juramento deverá colocar-se mais ao nível da Medicina/ profissão, do que da Medicina/sacerdócio10. O ideal moral do Juramento atinge o seu ápice, quando, no primeiro parágrafo, se diz que a actividade do médico será Kalos kai Kagathos. Trata-se de um texto de ética racio- nal e humanista. A excelência do homem, no mundo homérico, pela Kalokagathía, não será o aspecto físico ou moral das classes nobres; mas, antes, a virtude acessível, daqueles que praticam uma arte, no caso a arte de curar. O Iusiurandum é a expressão ética de uma axiologia humanista e de uma areto- logia racional11. Revela-se na dualidade do espírito apolíneo e no espírito dionisíaco, pela leitura do pensamento de Nietzsche, na Origem da Tragédia. O médico, no processo de humanização, poderá associar o sentido e o valor pela besta loira e o homem distinto, no “Uebermensch”. Após esta reflexão sobre os elementos morais do Iusiurandum, poderemos afirmar, com Veatch, que nenhuma profissão foi tão consciente, desde a antiguidade, dos proble- mas éticos no seu exercício, como a arte e a ciência do curar. O ethos médico foi assinalado, ao longo de séculos, em códigos, sendo o seu mais lídimo representante dado no Juramento de Hipócrates. O ethos do Juramento situa- se na consciência moral do médico como plena Vontade de Poder, segundo a leitura de Nietzshe. Pelo Juramento de Hipócrates, está presente de um lado, o espírito apolíneo e, de outro, o espírito dionisíaco. 32 Neuromodulação cerebral Assistente hospitalar de Neurocirurgia, Serviço de Neurocirurgia, Hospital de São João, Porto; Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Paulo Linhares A neuromodulação cerebral é a modificação reversível e ajustável da actividade cerebral por estímulos eléctricos externos. Evoluiu das técnicas ablativas, que foi substituindo progressivamente baseando-se no conceito de áreas cerebrais responsáveis por funções específicas, cujo funcionamento pode ser ajustado por estímulos excitatórios ou inibitórios. 33 Introdução A neuromodulação cerebral é a modifica- ção reversível e ajustável da actividade cerebral por estímulos eléctricos externos. Evoluiu das técnicas ablativas, que foi substituindo progressivamente baseando-se no conceito de áreas cerebrais responsáveis por funções espe- cíficas, cujo funcionamento pode ser ajustado por estímulos excitatórios ou inibitórios. A alteração anatómica irreversível das neuroto- mias foi substituída pela alteração funcional com preservação anatómica da neuromodu- lação. Os progressos constantes levam à sua utilização num número cada vez maior de patologias com resultados bastante encoraja- dores e desempenham um papel fundamental na medicina moderna. 34 A história e as patologias As doenças do movimento foram uma das primeiras patologias a ser alvo do interesse da modulação cerebral. As técnicas ablativas inicia- ram-se nos anos 30 com a excisão de partes do córtex motor para controlo do tremor e dos movimentos distónicos nos doentes com doença de Parkinson, mas foram rapidamente abandonadas pela pouca eficácia e elevadas complicações, com taxas de mortalidade signi- ficativas. O aprofundamento do conhecimento das estruturas cerebrais ligadas aos movimen- tos involuntários, com o reconhecimento da importância dos núcleos cinzentos da base, acrescentou novos alvos de lesão, determi- nados por técnicas de localização puramente anatómicas até à introdução da estereotaxia. A utilização dos núcleos cinzentos da base surgiu em 1953 quando Cooper durante uma pedunculotomia num doente pós-encefalítico lesou acidentalmente uma artéria coroideia anterior necessitando de a laquear. Do conse- quente enfarte do pallidum resultou uma melhoria considerável dos sintomas motores da doença. Daí ao início da lesão destas estruturas foi um pequeno passo; primeiro por acesso intraventricular, depois por acesso transcortical, e posteriormente, por técnicas estereotáxicas. Concomitantemente com os estudos efectua- dos na doença de Parkinson, outras doenças do movimento foram sendo alvo da atenção dos investigadores e a neuromodulação cerebral passou a ser utilizada no tremor essencial e na distonia, nos anos 90. A neuromodulação não parou nas doenças do movimento. Nos anos 50 começou a ser usada no tratamento da dor crónica, com Heath, em 1954, a reportar o alívio doloroso por estimulação directa da região septal. Tal como nas doenças do movimento, também na dor, não estão cabalmente esclarecidos os mecanismos fisiopatológicos envolvidos difi- cultando a determinação da melhor técnica e do melhor alvo. Se não existe afinidade entre as doenças do movimento e a dor, excepto no seu tratamento, também só a mesma afinidade se encontra no terceiro grupo de doenças passíveis de neuro- modulação cerebral, as doenças psiquiátricas, onde tem havido um crescente entusiasmo na sua aplicação. A doença obsessivo-compulsiva e a depressão grave são duas áreas onde a psicoci- rurgia tem rejuvenescido. Apesar dos substratos patológicos destas doenças serem bem compre- endidos e as suas manifestações geralmente incluírem achados físicos e neurológicos, as bases biológicas de muitas das doenças psiqui- átricas permanecem pouco compreendidas e a sua expressão envolve sintomas mentais sem sinais físicos objectivos. 10% dos doentes com 35 doença obsessivo-compulsiva apresentam um curso progressivo independente, apesar dos tratamentos farmacológicos. Baseado em estu- dos experimentais com cães, Bueckhardt, nos fins do século XIX, reportou uma série cirúr- gica em que efectuou orifícios na cabeça de seis doentes psiquiátricos agitados graves. Apesar de ter sucesso em três casos e sucesso parcial em dois, a pressão dos colegas obrigou-o a aban- donar esta técnica. Baseando-se no conceito de que malius anceps quem nullum, melhor um tratamento desconhecido do que nada, iniciou a guerra da psicocirurgia. No início do século XX, Fulton e Jacobsen mostraram alterações do comportamento com diminuição dos esta- dos de ansiedade em chimpanzés após ablação de áreas frontais e Moniz, após análise crítica desta ideia, associou os comportamentos dos doentes psiquiátricos com substratos neurais anatomicamente normais mas funcionalmen- te desajustados, o que poderia ser corrigido cirurgicamente, desenvolvendo com Almeida Lima a leucotomia pré-frontal. Também uma pequena percentagem de doentes com depressão crónica major permanece mal apesar do tratamento médico e psicoterapêutico, o que levou à extensão da psicocirurgia a esta patologia cada vez mais prevalente. Estas são as duas entidades particulares em que a neuro- modulação cerebral tem ganho terreno com resultados cada vez mais promissores. Se não existe afinidade entre as doenças do movimento e a dor, excepto no seu tratamento, também só a mesma afinidade se encontra no terceiro grupo de doenças passíveis de neuromodulação cerebral, as doenças psiquiátricas, onde tem havido um crescente entusiasmo na sua aplicação. 36 Os alvos Tão importante como a técnica cirúrgica é o estabelecimento do melhor alvo. Dois factores são cruciais, o controlo dos sintomas e a redução dos efeitos laterais e mortalidade. Lesões bilaterais estavam associadas a compli- cações severas e, se o controlo do tremor era facilmente conseguido, o mesmo não aconte- cia com os outros sintomas motores da doença de Parkinson. O alvo talâmico inicial, o VIM, conseguia um controlo do tremor em mais de 70% doscasos, mas os efeitos na rigidez e na bradicinésia eram muito limitados. Também a talamotomia bilateral estava associada a graves complicações numa percentagem elevada de casos, tendo a maior parte dos tratamentos que ser unilateral. Os estudos efectuados por Leksell e, posteriormente, adoptados por Laitinen e Hariz, levaram à adopção do globo pálido interno como novo alvo terapêutico na doença de Parkinson. Não só era controlado o tremor como existia um claro benefício no controlo das discinésias, muito frequentes nestes doentes, passando a ser o alvo de eleição. Contudo, a palidotomia bilateral apresentava riscos reportando-se alterações da fala, do equilíbrio e da marcha, alterações dos campos visuais e défices cognitivos, continuando a necessidade de encontrar alvos e técnicas mais seguros. Nos anos 90 Benabid introduziu o núcleo subtalâmico, mostrando um benefício maior com menos efeitos laterais, tornando-se o principal alvo actualmente. Historicamente referem-se três alvos para o tratamento da dor. A substância cinzenta periaquedutal e que pelos seus efeitos late- rais evoluiu para a estimulação do tálamo medial adjacente. O tálamo somato-sensitivo (VPM-VPL), estimulado inicialmente por Hosobuchi num caso de anestesia dolorosa e a estimulação talâmica ventrobasal intermitente para o tratamento da dor central. A multipli- cidade de origens da dor e dos mecanismos envolvidos quer na sua génese quer na sua percepção tornam difícil a sua classificação e tratamento. A dor neuropática resultante da lesão primário ou da disfunção do sistema nervoso e a dor nociceptiva resultante da activação dos receptores periféricos parece serem os dois principais candidatos à neuro- modulação cerebral. Em 1991 Tsubokawa introduziu a estimulação cortical para o tratamento da dor. Mais uma vez permanece incerto o mecanismo de acção, parecendo o efeito terapêutico dever-se à activação dos neurónios sensitivos não-nociceptivos que se crê exercerem um efeito inibitório nos noci- ceptivos e que persiste após a desactivação do neuroestimulador. Tão importante como a técnica cirúrgica é o estabelecimento do melhor alvo. Dois factores são cruciais, o controlo dos sintomas e a redução dos efeitos laterais e mortalidade. 37 As doenças psiquiátricas continuam em acesa discussão quer quanto à real indicação para cirurgia quer quanto aos alvos cerebrais envolvidos. O braço anterior da cápsula inter- na, o núcleo accumbens e zonas intermédias têm sido tentados para o tratamento da doença obcessivo-compulsiva grave. Também a depressão major resistente ao tratamento médico parece ter benefício com a esti- mulação destas áreas, mas a este momento ainda não existe o alvo ideal, permanecendo este tratamento em fase experimental. Pelo menos dois grupos europeus, um belga e um sueco e um grupo canadiano têm trabalhado em estreita colaboração na determinação do melhor alvo a estimular. A neuromodulação cerebral é uma área em desenvolvimento crescente havendo cada vez mais indicações para a sua utilização. Perfeitamente estabelecida nalgumas patologias, permanece ainda em fase experimental em muitas das novas indicações. O melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças e a melhoria das técnicas cirúrgicas têm-na tornado numa cirurgia segura e eficaz, sendo uma ferramenta fundamental na neurocirurgia moderna. 38 As técnicas Não só a técnica cirúrgica foi modificando como, e principalmente, o conceito, sendo o avanço mais importante a substituição da lesão estrutural pela estimulação eléctrica em 1993. A reversibilidade e a adjustabilidade da neuroestimulação transformaram-na na técni- ca de eleição para o tratamento sintomático das doenças do movimento, estendendo-se progressivamente a todas as outras patologias. A leucotomia pré-frontal foi desenvolvida e modificada, nem sempre da melhor forma, e tal como nas doenças do movimento com o aparecimento da DOPA, o surgimento da clorpromazina, em 1954, levou ao declínio da psicocirurgia. O renascimento surgiu com a estereotaxia com Spiegel e Wycis a fazerem a primeira talamotomia dorsomedial. Estava aberto o caminho para a neuromodulação cerebral nas doenças psiquiátricas, sendo a estimulação precedida pela cingulotomia, a capsulotomia, a tractotomia subcaudada e a leucotomia límbica. Hoje são as técnicas estereotáxicas que predominam na estimulação cerebral profunda e as técnicas de neuronavegação na estimula- ção cortical. Tão importante como a técnica cirúrgica em si, é a determinação correcta da localização do alvo escolhido. Existem vários programas informáticos que facilitam esta tare- fa, não se justificando, hoje em dia, o recurso à velha ventriculografia. Os núcleos da base são identificados por dois métodos comple- mentares. Uma primeira aproximação é feita tendo em conta o referencial comissura ante- rior – comissura posterior e as coordenadas estereotáxicas determinadas por atlas anató- micos sendo corrigidas em pormenor pela visualização directa dos núcleos em imagem de RMN. Efectuada a colocação do quadro estereotáxico, é realizada uma TAC ou RMN estereotáxicas. Exame de todo o crânio no plano axial com cortes de 2 mm de espessura. È feita de seguida a fusão da imagem com a de RMN previamente efectuada. È utilizado um protocolo de imagem que inclui a reali- zação de RMN cerebral em aparelho de 1,5 Tesla nos dias prévios à cirurgia nas sequências T1 com GAD axial e T2 axial e coronal. As imagens são então introduzidas numa esta- ção de tratamento com o software Framelink onde é realizada a fusão da imagem de TC estereotáxico com a imagem de RMN, o que permite a obtenção de imagem de RMN cerebral de alta resolução com os pontos de esterotaxia que vão permitir a determina- ção da comissura anterior e da comissura posterior para a determinação indirecta do núcleo e a visualização do núcleo subtalâmico para a confirmação directa do alvo. Após a 39 determinação das coordenadas estereotáxicas são introduzidos os eléctrodos para registo e estimulação, que permitem a confirmação electrofisiológica e clínica do alvo. Novamente no bloco operatório e também sob anestesia local é realizado um buraco de trépano frontal de 14 mm de diâmetro e abertura da dura mater. São introduzidos os eléctrodos para a realização de micro-registo, electro-fisiológico e micro-estimulação. A avaliação clínica intra- operatória confirma o alvo definitivo. Após a verificação do benefício obtido com a estimulação é colocado o eléctrodo definitivo e a bateria. A colocação do gerador Kinetra é efectuada sob anestesia geral, numa bolsa subcutânea infraclavicular esquerda. A estimulação cortical é utilizada especial- mente no tratamento da dor. A estimulação é efectuada na circunvolução pré-central na região suprassilviana na dor predominante- mente da face e membro superior e na região paramediana na dor com predomínio no tronco e membro inferior. A identificação do sulco central é feita com técnicas de neuro- navegação e monitorização intra-operatória dos potenciais evocados somato-sensitivos (inversão N20 e P 20) e por estimulação eléc- trica cortical. É então colocado o eléctrodo de estimulação e conectado à bateria. Este tipo de estimulação cortical passou também a fazer parte das opções cirúrgicas da doença de Parkinson nos poucos casos em que a DBS está contra-indicada. A técnica utilizada na estimulação cerebral profunda para o tratamento das doenças psiquiátricas é similar à das doenças do movi- mento do movimento. Outro tipo de neuromodulação cerebral que tem ganho adeptos é a estimulação magnética transcraniana. Actua de forma transitória e não-invasiva e pode servir de teste à eficácia da estimulação cortical. Pode ser utilizada em casos de dor neuropática e na depressão grave. 40 Os resultados No tremor essencial o VIM continua a ser o alvo de eleição, com melhorias superiores a 80%. Casos mais complicados detremor como, por exemplo, os associados à esclerose múltima ou tremor cerebeloso também têm sido submetidos com algum sucesso a esta técnica, embora havendo uma maior variabi- lidade nos resultados. As formas primárias generalizadas de disto- nia respondem à estimulação do GPi com melhorias médias de 50% relativamente aos resultados pré-operatórios avaliados pela escala de distonias de Burke-Fahn-Marsden. Efectuada uma metanálise para avaliação dos resultados da estimulação subtalâmica na doença de Parkinson verificou-se uma redu- ção do UPDRS II (actividades da vida diária) e III (avaliação motora) sem medicação de 13,35 e 27,55, respectivamente, ou seja, uma melhoria de 50% e 52% relativamente à linha de base. A redução da dose de DOPA- equivalente foi em média de 55,9% e as discinésias após a cirurgia reduziram-se em 69,1% e houve uma redução dos períodos off diários de 68,2%. Na dor uma resposta positiva surge em 44% a 100% dos doentes tratados e a principal indicação para esta técnica é a dor crónica neuropática refractária à analgesia convencio- nal, estando a tornar-se o tratamento cirúrgico preferencial da dor neuropática central. Referências Krack P, Batir A, Van Blercom N, e tal. Five-year follow-up of bilat- eral stimulation of the subthalamic nucleus in advanced Parkinson’s disease. N Engl J Med 2003; 349: 1925-34. Goetz C, Poewe W, Rascol O, Sampaio C. 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Nos doentes com alterações afectivas major a cingulotomia foi eficaz em 65%, a tractotomia subcaudada em 68%, a leucotomia límbica em 78% e a cápsulotomia em 55%. Não podemos esquecer que se tratam de séries pequenas e de doentes criteriosamente seleccionados. A estimulação da substância branca do cíngulo e de áreas adjacentes também tem sido utilizada no tratamento da depressão grave resistente à terapêutica médica e a lesão tem sido progres- sivamente substituída pela estimulação, sendo que 25 a 50% dos doentes poderão beneficiar com esta técnica, com resultados ainda inci- pientes mas promissores. Esta é uma área onde as questões éticas se põem de forma marca- da e os avanços são lentos e cautelosos. No presente, os resultados ainda são limitados e existe também uma indefinição relativamente aos alvos como a cápsula interna, o núcleo accumbens ou a base anterior. Há ainda evidência de que a estimulação da região talâmica adjacente ao núcleo centro- mediano pode ter benefício nos doentes com síndrome de Tourette. De forma ocasional têm sido reportados casos de epilepsia refractária tratados com estimulação cerebral profunda com taxas de redução das crises da ordem dos 50%, não sendo ainda esta uma indicação formal. As conclusões A neuromodulação cerebral é uma área em desenvolvimento crescente havendo cada vez mais indicações para a sua utilização. Perfeitamente estabelecida nalgumas patolo- gias, permanece ainda em fase experimental em muitas das novas indicações. O melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças e a melhoria das técnicas cirúrgicas têm-na tornado numa cirurgia segura e eficaz, sendo uma ferramenta fundamental na neurocirur- gia moderna. Mário Simões, 59 anos, director do curso de pós-graduação em Hipnose Clínica e Experimental, professor de Psiquiatria e de Ciências da Consciência na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Numa das salas da Casa do Médico, no Porto, onde decorre o 7º Simpósio da Fundação Bial, Aquém e Além do Cérebro, Mário Simões fala dos Estados Modificados de Consciência. Em gestos que transportam palavras, uma certa musicalidade no tempo, diz que o marcou o ensino das ciências naturais junto ao mar, na serra, nas arribas a ver fósseis. Marcaram-no determinados professores que foram exemplo para a sua carreira futura. E na vida profis- sional, quando vai para a Suiça, e contacta com as áreas novas de fronteira, os Estados Modificados de Consciência, inicia-se nesse mundo de novos sonhos, novas naus. Entrevista a Mário Simões Os Estados Modificados de Consciência abrem novas naus de conhecimento. Num apelo a memórias corporais e psicológicas de bem-estar, num imaginário vivido, sabe-se que através dos Estados Modificados de Consciência não se curam determinadas doenças, mas, em mais de 70%, cura-se a totalidade de sintomas e melhora-se a qualidade de vida. As próximas grandes descobertas em saúde, em ciência, podem nascer através desses estados que lidam com a emoção. Para o cérebro, pensar e imaginar é o mesmo que fazer 43 44 E são essas áreas de fronteira que definem toda a sua vida? Escolhi psiquiatria por motivações filosóficas. Ouvia histórias contadas pelos pacientes com grande veemência, crença noutros mundos. Pensei: ou fico louco também ou tento estar próximo deles para os perceber na crença noutros mundos. Foi isso que me levou para psiquiatria. Onde estive, na Suiça, o projecto era estudar modelos experimentais da psicose, na altura estudava-se os Estados Alterados de Consciência, com a utilização de drogas, ficar na privação sensorial e silêncio total, ter a esti- mulação sensorial em sobrecarga, a meditação, a hipnose, tudoservia para modificar a cons- ciência e criar situações semelhantes ao início de uma esquizofrenia, de uma psicose. Vi que havia um apelo grande como experimentação mas também vi o potencial terapêutico. Como ciência de fronteira, foi essa possibilidade de potencial terapêutico que o levou a seguir este caminho? Claro. Fiz doutoramento ligado à esquizo- frenia, à consciência do eu, que é o reactor nuclear da esquizofrenia. Depois a investigação que se seguiu sobre os Estados Modificados ou Alterados de Consciência, com apoio da Fundação Bial, foi um tempo muito cria- tivo, e continua a ser, embora tenha estado mais envolvido na preparação de provas de agregação. O que é um EMC (Estado Modificado de Consciência)? Modificado é em relação a este estado em que estamos agora, acordados. Neste momen- to temos uma consciência vigil. Quando modificamos esta consciência achamos que está modificado. Se esse estado modificado é demasiado profundo, no sentido em que fico um pouco sonolento, um pouco desconcen- trado, a palavra passa a ser mais forte e digo Estado Alterado de Consciência. Mas hoje prefiro chamar modificado, pois já não se utili- zam drogas para proporcionar estes estados. Que descobriu desde que se iniciou estes estudos até hoje? O que houve de evolução? Foram abandonados os recursos a químicos e o que evolui foi o modo de os provocar, de os produzir. Passou a utilizar-se, por exemplo, a meditação, a hipnose, a respiração holotró- pica (respirar profundamente e rapidamente), a dança, meios mais suaves para modificar a consciência. Outra situação que evoluiu não foi só o aspecto experiencial para ver como é, o que é isso, mas a utilização deles para actividades curativas, isto é, psicoterapia sob EMC. Estas foram as grandes evoluções que aconteceram nos últimos tempos. Explique‑me um caso onde possa ser utilizado um EMC para fim terapêutico. A utilização da meditação transcendental, para estados de relaxamento, de paz, de auto- descoberta. No sentido da cura, sem recorrer 45 a drogas alucinogéneas, utilizamos a hipnose. A hipnose é um EMC. A pessoa percebe a reali- dade de outro modo, sente que está diferente, mas continua acordada, pode abrir os olhos, nota que está a ter percepções diferentes das que tinha habitualmente. Somos capazes, hoje, utilizando somente estados hipnoidais, de fazer realmente projectos de cura, por exemplo, na dor crónica, fobias, problemas de relações interpessoais, diminuir alguns sintomas de doenças graves, que não curamos, como cancros, neoplasias, mas melhoramos a qualidade de vida, aumentamos a sobrevida, porque vamos estimular no imaginário, atra- vés de visualização, defesas do indivíduo, tipo imunológico, através do ponto de vista imagi- nário. Passamos a utilizar estes EMC para algumas situações mais ligadas à psiquiatria e psicologia. Quanto à medicina, temos a dor crónica, melhoria da qualidade de vida e da sobrevida em alguns casos, situações dermato- lógicas, verrugas, eczemas difíceis de tratar. Tudo através do imaginário. Como se cria esse imaginário? Primeiro, fazemos apelo a memórias que a pessoa tem, não só abstractas, mas corporais, de bem-estar. Vamos fazer a pessoa recuar no tempo, apelar a memórias corporais e psicoló- gicas de bem-estar. Vamos recordar ao corpo, ao cérebro, esse bem-estar que a pessoa teve. Esse é o primeiro passo. Depois, introduzimos elementos do imaginário, como, por exemplo, uma infusão com soro, com estrelinhas, com uma capacidade de anticorpo fabulosa, capaz de reconhecer células cancerosas. Pomos um Somos capazes, hoje, utilizando somente estados hipnoidais, de fazer realmente projectos de cura, por exemplo, na dor crónica, fobias, problemas de relações interpessoais, diminuir alguns sintomas de doenças graves, que não curamos, como cancros, neoplasias, mas melhoramos a qualidade de vida, aumentamos a sobrevida, porque vamos estimular no imaginário, através de visualização, defesas do indivíduo, tipo imunológico, através do ponto de vista imaginário. 46 outro soro, tudo imaginário, um imaginário que a pessoa vive, uma cor rubra, mesmo roxo, que vai ter uma apetência para as células cancerosas. No soro vão estrelinhas com capa- cidade de anticorpo que vão matar as células más. É com este imaginário, que a pessoa vive intensamente, que este processo decorre. Outras vezes é à própria pessoa que digo: fale com o seu terapeuta interior, ele conhece-a melhor do que eu. O que é que ele lhe diz para curar? Estou a lembrar-me de uma senhora que tinha uma doença auto-imune. Perguntei-lhe o que dizia a sua terapeuta interior. Ela responde-me: Ela ataca as células porque não sabe que são minhas. Sabe? Vou pegar num carimbo e vou carimbar as células todas que o lúpus anda a atacar. Deixei-a meia hora a carimbar com o nome dela, Sofia. Fazia o gesto com a mão, como estivesse a carimbar alguma coisa. E já acabou? Ainda faltam mais 20 ou 30 células. Até hoje, já se passaram mais de 10 meses, não teve mais nenhum episódio de lúpus. É de atribuir à terapia? Penso que não, provavelmente trata-se da evolução da própria doença. O que é certo é que a pessoa nunca mais se queixou. Conte‑me mais casos. Fiz uma reunião de trabalho para a Associação de Doentes com Células Falciformes, uma doença do sangue, heredi- tária, onde as células dos glóbulos vermelhos ficam com a forma de foice, alteram-se. E com aquela forma de foice não deslizam bem pelos vasos, encostam-se umas às outras e causam dores terríveis nas extremidades dos ossos onde circulam. As pessoas têm de ser tratadas com morfina, levam transfusões, é uma doen- ça gravíssima que não podemos curar. Os exemplos que me dá podem ser considerados especulativos? Estou a dar exemplos de utilização, que diria, especulativa destes EMC para doenças que sabemos que não vão ser curadas. O que diminuímos foi o número de recaídas, o recurso às urgências, o absentismo no trabalho, porque comparamos com os anos anteriores e as pessoas, a fazer os tratamentos que faziam, melhoraram. E então dizia uma pessoa assim: é fácil, quando as células começarem a ficar esquisitas, logo que sinta que vem aí a crise, elas estão encos- tadinhas aos vasos, eu pego numa mangueira dos bombeiros e lavo o chão junto às artérias para as descolar dos vasos. Dizia outra: quando elas ficam assim todas paradas, encostadas umas outras, ponho- as a dançar, ficam quentinhas, e assim sinto-me melhor. Outra dizia: o que a gente tem de fazer é tirar aquela casca à volta do glóbulo vermelho, pelar o glóbulo vermelho, para ele ficar com aquela segun- da pele, e fica mais móvel. Fizemos estas reuniões duas vezes e, porque tínhamos esse controlo, o número de vezes de crises e de absentismo, diminuiu significativamente. 47 As pessoas estavam num EMC? As pessoas estiveram num estado de hipnose e nesse estado de hipnose viajaram para falar com o seu ou sua terapeuta. E nesse estado quem lhes diz o que fazer é o terapeuta. A partir daí vão por isso em prática em casa quando sentem que vem a crise. É uma subjectividade com um efeito objectivo? Passa a ter. Não cura, mas ajuda, melhora a qualidade de vida. Temos visto que em algu- mas pessoas, não em todas, conseguimos que as pessoas deixassem de fumar mas ao fim de seis, sete sessões. É como se necessitasse de vacinas injectadas psicologicamente. Como se faz? Temos de dar um imaginário de um futuro imaginado sem tabaco, a respirar bem, e volta para casa e os filhos dizem «pai que alegria nos deste por teres deixado de fumar», os amigos a dizer «podes ficar aqui, não precisas de ir para a varanda». Criamos futuros dessa imagem, pomos a pessoa a visualizar algo que fica como sinal pós-hipnótico. Depois da hipnose, se olhar para um maço de tabaco, fica com a visão turva, está a pegar no tabaco e o tabaco cai-lhe das mãos, e se colocar o cigarro na boca fica com o sabor a gasolina na boca. Temos de criar muitas
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