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Introdução à Hidrologia 1-1 Manual de Hidrologia 1 INTRODUÇÃO À HIDROLOGIA 1.1 IDEIAS GERAIS SOBRE A HIDROLOGIA 1.1.1 Objecto da hidrologia A Hidrologia trata da ocorrência, circulação e distribuição da água na Terra, das suas propriedades físicas e químicas, da sua interacção com o meio, de acordo com a definição apresentada em 1982 pela Organização Meteorológica Mundial e que é aceite de forma generalizada. Embora a Hidrologia abranja o conhecimento da água tanto nos continentes como na atmosfera e nos oceanos, o estudo dos ramos aéreo e oceânico é feito nas disciplinas específicas de Meteorologia e Oceanografia, ficando a Hidrologia propriamente dita dedicada ao ramo terrestre. A Hidrologia da Engenharia (Engineering Hydrology na terminologia inglesa corrente) é uma parte restrita da Hidrologia que inclui as áreas pertinentes ao planeamento, projecto e exploração de obras de engenharia visando o controlo e a utilização da água para satisfação das necessidades humanas. O seu enfoque é, por isso, o da aplicação da ciência na solução de problemas de engenharia. 1.1.2 A Hidrologia como disciplina do curso de Engenharia Civil A Hidrologia da Engenharia, apesar do seu carácter aplicado, apresenta diferenças muito significativas no seu tratamento em relação à maioria das restantes disciplinas do curso de Engenharia Civil. Se, a título de exemplo, quisermos confrontar a Hidrologia com as disciplinas da área de Estruturas (Resistência de Materiais, Teoria das Estruturas, Pontes), podemos constatar: a) o objecto de estudo das disciplinas de Estruturas engloba estruturas artificiais construídas em grande medida com materiais fabricados pelo Homem, sendo bastante bem previsíveis os comportamentos quer dos materiais quer das estruturas. No caso da Hidrologia, o objecto de estudo é o ciclo hidrológico nas suas várias componentes, que são fenómenos da Natureza e, por conseguinte, processos essencialmente aleatórios. b) as diferenças no objecto de estudo traduzem-se em grandes diferenças no controlo sobre o mesmo que é grande no caso das Estruturas e pequeno ou nulo no caso dos processos que integram o ciclo hidrológico. c) no que se refere aos métodos de análise, as disciplinas de Estruturas utilizam uma teoria matemática formal, baseada em hipóteses próximas da realidade, e ainda recorrem à análise experimental relativamente pouco dispendiosa. No caso da Hidrologia, há (ainda) um peso grande de empirismo para enfrentar fenómenos demasiado complexos para serem analisados com métodos matemáticos relativamente simples. Verifica-se a necessidade duma grande acumulação de informações (dados hidrológicos). A experimentação é, em Introdução à Hidrologia 1-2 Manual de Hidrologia geral, muito dispendiosa. d) no que respeita aos processos de cálculo, ambas as áreas têm beneficiado imenso do acesso a computadores cada vez mais potentes que, por sua vez, possibilitam o desenvolvimento e a utilização de programas de cálculo sempre mais sofisticados e o tratamento de quantidades crescentes de informação. No caso da Hidrologia, as ferramentas mais utilizadas são a análise estatística e os modelos de simulação hidrológica das componentes da fase terrestre do ciclo hidrológico, desde a precipitação até ao escoamento. 1.1.3 Objectivos da disciplina de Hidrologia Os objectivos do estudo da disciplina de Hidrologia correspondem às necessidades de: • aprofundar o conhecimento do ramo terrestre do ciclo hidrológico; • utilizar os conhecimentos adquiridos em aplicações práticas como, por exemplo, - no dimensionamento de obras hidráulicas (descarregadores de barragens, secções de vazão de pontes, etc.); - no dimensionamento de sistemas de drenagem de regadios e áreas urbanas; - na determinação de necessidades de rega; - na gestão dos recursos hídricos; - na protecção do meio ambiente. Nas aplicações, a Hidrologia liga-se estreitamente às disciplinas antecedentes de Hidráulica Geral e às disciplinas subsequentes de Abastecimento de Água, Drenagem e Saneamento, Obras Hidráulicas. 1.1.4 Breve referência à História da Hidrologia Sugere-se a leitura do excelente livro de A.K. Biswas, "History of Hydrology", no qual o autor faz uma interessante recapitulação dos principais marcos no progresso da Hidrologia, desde a Antiguidade aos fins do século XIX. Os elementos que a seguir se apresentam foram extraídos desse livro e do "Handbook of Applied Hydrology" de Ven Te Chow. 1.1.4.1 A Hidrologia na Antiguidade Oriental (Egipto, Mesopotâmia, China) A civilização egípcia floresceu à volta do Nilo. Para além das extensivas obras de irrigação do tempo dos Faraós, há a referir a barragem de Saad-El-Kafara, datada de cerca de 2800 a.c. e cujos encontros permaneceram até aos nossos dias. A importância dada à água, em particular às obras de irrigação e controle de cheias, na China Antiga era tão grande que, diz a lenda, um engenheiro que dirigiu grandes obras hidráulicas acabou Introdução à Hidrologia 1-3 Manual de Hidrologia por se tornar o imperador Yü, o Grande. Se a Hidráulica, pelo impacto directo das obras, ocupava o primeiro plano, a necessidade de conhecimentos sobre a ocorrência e a distribuição da água tornava-se também muito importante. Sendo a irrigação no Nilo feita por inundação, a medição dos níveis nesse rio foi desde logo sendo feita, através dos "nilómetros" (cisternas com escalas graduadas ligadas ao rio por condutas subterrâneas). O nilómetro de Roda, próximo do Cairo, tem um registo contínuo de níveis de 641 d.c. a 1890 d.c., constituindo a mais longa série hidrológica do mundo. A Mesopotâmia (nome que significa "entre rios") era uma região fértil, atravessada pelos rios Tigres e Eufrates, ambos de regime muito irregular, obrigando a grandes cuidados com os diques de protecção contra cheias e obras de irrigação. Essa preocupação aparece bem explícita no famoso Código de Hamurabi, imperador da Babilónia (cerca de 1700 a.c.) 1.1.4.2 A Hidrologia na Antiguidade Clássica - Grécia e Roma As primeiras tentativas de explicação da circulação da água (donde surgem os rios?) aparecem com os filósofos gregos. Platão apresenta o conceito dum mar subterrâneo (Tartarus) com inúmeras ligações à superfície, dando origem aos rios, lagos e mares. Aristóteles defendia que o frio transformava o ar em água e isso acontecia tanto nas altas montanhas como no interior da terra, sendo essa a origem dos rios. Note-se que os Gregos dispunham de observações limitadas de muitos fenómenos e da sua interligação o que de certa forma explica a sua incapacidade de descobrirem o conceito do ciclo hidrológico. Apesar disso, filósofos como Anáxagoras e Teófrasto apresentaram hipóteses próximas da concepção moderna do ciclo hidrológico, infelizmente caídas no esquecimento devido à influência dominante de Aristóteles. A civilização romana não foi tão fértil como a grega em pensadores, tendo no entanto produzido grandes obras de engenharia através da aplicação empírica da experiência adquirida. Apesar disso, Vitruvius apresenta no seu livro "De architectura libridecem" um conceito bastante claro do ciclo hidrológico, com a precipitação dando origem ao escoamento e a evaporação como fonte das nuvens. Há a referir ainda Hero de Alexandria que escreve que o caudal depende da área e da velocidade mas este conceito não se impôs até ao século XVI. 1.1.4.3 A Hidrologia na Idade Média A Idade Média na Europa foi dominada ideologicamente pela Igreja que se opôs fortemente à pesquisa experimental, baseando-se nos dogmas e na escolástica, para evitar o aparecimento de heresias. Foi um período de cerca de 13 séculos de fraco desenvolvimento científico com o correspondente reflexo na Hidrologia. Introdução à Hidrologia 1-4 Manual de Hidrologia 1.1.4.4 A Hidrologia no Renascimento - Século XVI O Renascimento corresponde ao desabrochar definitivo do pensamento científico e da experimentação. A partir do século XVI, a Hidrologia, com as ciências irmãs da Hidráulica e daMeteorologia não parou de se desenvolver. Leonardo da Vinci, conhecido sobretudo como um pintor de génio, tinha nos seus cadernos de notas conceitos essencialmente correctos sobre o ciclo hidrológico, sobre o escoamento em superfície livre e sobre a distribuição de velocidades numa secção. Bernard Palissy, um cientista francês, apresentou a primeira formulação clara e completa do ciclo hidrológico, baseada em observações. Apresentou também ideias sobre o escoamento subterrâneo. 1.1.4.5 A Hidrologia nos Séculos XVII e XVIII O século XVII é o século de Galileo, Kepler, Newton, Harvey, Descartes, Van Leeuwenhoek. No domínio da Hidrologia salientam-se os nomes de Perrault e Halley. Benedeto Castelli apresenta uma explicação clara da relação entre caudal, secção transversal e velocidade, sistematizando ideias anteriores de Hero e Leonardo da Vinci. Perrault, no seu livro "Da origem das fontes", demonstra brilhantemente que o escoamento no rio Sena (cabeceiras) podia ser totalmente explicado a partir da precipitação, apresentando um balanço hídrico rudimentar. Mariotte realizou experiências similares e outras respeitantes à medição de velocidades. Halley, muito conhecido pelos seus trabalhos de Astronomia, tomou como exemplo o mar Mediterrâneo e mostrou que a evaporação dos mares era amplamente suficiente para justificar os escoamentos dos rios. Os desenvolvimentos dos conceitos do ciclo hidrológico no século XVII e seguintes estão ligados às medições de precipitação, evaporação e caudal. É assim que começam a surgir os primeiros instrumentos hidrométricos modernos: udómetros, tinas de evaporação. O século XVIII testemunha o florescimento das medições hidrológicas e do desenvolvimento teórico. Podem referir-se como marcos fundamentais a medição de velocidade com o tubo de Pitot, a equação de Bernouilli (conservação de energia) e a fórmula de Chézy para o cálculo do caudal numa secção transversal dum escoamento. 1.1.4.6 A Hidrologia no Século XIX A ciência da Hidrologia avançou muito rapidamente durante o século XIX. Verificaram-se progressos importantes na medição de variáveis hidrológicas, nomeadamente com a introdução de udógrafos para registo contínuo da precipitação e de molinetes para a medição de velocidades em rios e canais. Nos países mais industrializados, iniciou-se a colheita sistemática de dados Introdução à Hidrologia 1-5 Manual de Hidrologia hidrológicos e a sua análise. Em termos de conceptualização teórica, os marcos mais significativos a registar são: - o estudo de perfis de velocidade em canais, por Darcy e Bazin; - a equação de Manning para o cálculo de caudais em escoamentos turbulentos uniformes; - a fórmula racional para a determinação de caudais de cheia, por Thomas Mulvaney; - a teoria do escoamento em meio poroso por Darcy, Dupuit, Thiem e Forcheimer; - o diagrama de Rippl para cálculo de capacidades de albufeiras; - a fórmula de Hagen – Poiseuille para o escoamento laminar. 1.1.4.7 A Hidrologia na actualidade Os progressos alcançados na Hidrologia durante o século XX são numerosos e representam um avanço qualitativo na direcção dum conhecimento científico dos fenómenos. Ven Te Chow considerou três períodos para caracterizar o desenvolvimento da Hidrologia no século XX até à actualidade: - período do empirismo (1900-1930) com uma grande abundância de fórmulas empíricas, criação de organismos para a recolha sistemática de dados hidrológicos, criação da Associação Internacional de Ciências Hidrológicas (nome actual); - período da racionalização (1930-1950), caracterizados pelo aparecimento das teorias fundamentais da Hidrologia moderna, nomeadamente as teorias do hidrograma unitário, de Sherman; da infiltração, de Horton; do escoamento em meio poroso para poços em regime variável, de Theis; a análise estatística de fenómenos extremos, proposta por Gumbel; e do transporte de sedimentos, de Einstein; - finalmente, um período de teorização (1950 - ), em que a Hidrologia faz cada vez mais uso de métodos matemáticos avançados e dos modernos conceitos de Mecânica de Fluidos e da Termodinâmica, em paralelo com uma utilização massiva de computadores como ferramenta básica de trabalho. A moderna Hidrologia, e em particular a Hidrologia da Engenharia, faz uma integração que se procura sempre mais perfeita, entre as teorias dos processos hidrológicos e a informação disponível, em termos de registos de precipitação, caudais e de outras variáveis hidrológicas fundamentais. 1.2 RESERVAS HÍDRICAS NA TERRA A água é o líquido mais abundante na Terra. De facto, existe uma quantidade enorme, estimada em cerca de 1,600 x 106 km3. Aproximadamente 15 % desta água está quimicamente “presa” na crusta terrestre. A quantidade de água livre é cerca de 1,386 x 106 km3 (1,386 x 1015 m3). Poderia parecer que a quantidade de água na Terra fosse quase ilimitada. Contudo, esta imagem muda bastante se considerar a possibilidade de utilizar essa água. Para tal, pode-se analisar o Quadro 1.1, que mostra a importância das diferentes reservas hídricas. Introdução à Hidrologia 1-6 Manual de Hidrologia Quadro 1.1. Importância das diversas reservas hídricas (cf. UNESCO, 1978) Volume (103 km3) Volume de água total (%) Volume de água doce (%) Oceanos e mares Lagos: doce salgados Pântanos Rios Humidade do solo Água subterrânea: doce salgada Gelo e neve Calotes polares Água na atmosfera Água biológica 1,338,000 91.0 85.4 11.5 2.1 16.5 10,530 12,870 340.6 24,023.5 12.9 1.1 96.5 0.007 0.006 0.0008 0.0002 0.0012 0.76 0.93 0.025 1.7 0.001 0.0001 - 0.26 - 0.03 0.006 0.05 30.1 - 1.0 68.6 0.04 0.003 TOTAL DE ÁGUA ÁGUA DOCE 1,385,985 35,029 100 2.5 100 Deste quadro ressalta imediatamente a pequeníssima fracção de água utilizável pelo Homem em relação à totalidade da água existente no planeta. Vê-se que cerca de 97.5 % é água salgada e 1.7 % corresponde às zonas polares. Além disso, uma boa parte da água subterrânea está situada a enormes profundidades o que torna o seu aproveitamento antieconómico nas condições actuais. A parcela correspondente às águas superficiais e ás águas subterrâneas pouco profundas, aquela que efectivamente pode ser utilizada com mais facilidade, é de facto bastante pequena, apenas cerca de 0.3 % da água que existe na Terra! Introdução à Hidrologia 1-7 Manual de Hidrologia O tempo de residência é o valor que se obtêm dividindo o volume da reserva pelo volume médio do correspondente fluxo de renovação. Assim, o tempo de residência representa o tempo médio que uma gota de água permanece numa certa reserva de água antes de passar para uma outra reserva. O quadro 1.2 apresenta valores do tempo de residência para as várias reservas hídricas. Quadro 1.2. Tempo de residência para as várias reservas hídricas Volume (103 km3) Tempo de residência (ordem de grandeza) Oceanos e mares Lagos e albufeiras Pântanos Rios Humidade do solo Água subterrânea: Gelos e glaciares Atmosfera 1,338,000 176.4 11.5 2.1 16.5 23,400 24,364 12.9 ≈4000 anos ≈10 anos ≈1-10 anos ≈2 semanas ≈2 semanas - 1 ano ≈2 semanas - 10,000 anos ≈10 - 1000 anos ≈10 dias Note-se que, enquanto para as águas superficiais, especialmente para os rios, esses tempos são curtos, para os oceanos, glaciares e águas subterrâneas profundas esses tempos contam-se por centenas ou milhares de anos. Note-se também que as reservas representam uma imagem estática, um "instantâneo" das disponibilidades de água e pouco tem a ver com a sua importância para o ciclo hidrológico (que representa uma imagem dinâmica) onde a contribuição dos rios ou da atmosfera, por exemplo, é muito superior ao seu volume total instantâneo. O tempo de residência também tem relevância no âmbito de poluição de recursos hídricos. Por exemplo, um rio com água poluída poderá, em princípio, ser limpo em relativamente pouco tempo (teoricamente, em apenas algumas semanas), quando as fontes poluentes deixam de existir. Nocaso dum lago grande, a sua limpeza já será um processo de muitos anos. Introdução à Hidrologia 1-8 Manual de Hidrologia 1.3 O CICLO HIDROLÓGICO 1.3.1 Conceito de ciclo hidrológico. Diagrama de Horton O conceito de ciclo hidrológico é extremamente útil para se iniciar o estudo da Hidrologia. O ciclo hidrológico pode ser descrito como um conjunto de arcos que representam os diversos caminhos através dos quais a água na natureza circula e se transforma, constituindo um sistema de enorme complexidade. O ciclo hidrológico não tem início ou fim mas é habitual partir-se da evaporação da água dos oceanos e sua incorporação na atmosfera. Os processos que em seguida se desenrolam estão apresentados sob forma gráfica no diagrama de Horton, figura 1.1. Figura 1.1 Diagrama de Horton O vapor de água resultante da evaporação nos oceanos acumula-se na atmosfera e é transportado por massas de ar em movimento. Sob condições adequadas, o vapor condensa-se para formar nuvens que, por sua vez, podem dar origem a precipitação, quer sobre a terra quer sobre os oceanos. A precipitação que cai sobre a terra pode seguir caminhos diversos: - parte evapora-se durante a queda; - parte é interceptada por árvores, vegetação ou telhados de casas e volta a evaporar-se; - parte atinge a superfície do solo, infiltrando-se ou ficando retida em depressões superficiais. Introdução à Hidrologia 1-9 Manual de Hidrologia A parte retida em depressões superficiais divide-se numa componente que se evapora e noutra que origina escorrimento superficial. A parte que se infiltra contribui, por um lado, para alimentar o processo de transpiração das plantas e de evaporação a partir do solo; por outro, por efeito da gravidade, vai alimentar as toalhas de água subterrânea. As águas subterrâneas contribuem para alimentar a vegetação, a evaporação a partir do solo e os escoamentos dos rios. Por efeito da gravidade, parte das águas subterrâneas vai ter directamente ao oceano. O escorrimento superficial sobre o solo dá origem a linhas de água que se fundem em rios os quais, devido à gravidade, vão descarregar no oceano, alimentando no seu percurso lagos, pântanos e albufeiras. Em todo este processo, há continuamente evaporação da água da mesma forma que pode haver precipitação directamente sobre os rios e lagos. Também os rios contribuem muitas vezes para alimentar as toalhas de água subterrânea com que comunicam. Com a descarga da água no oceano por escoamento superficial ou escoamento subterrâneo fecha- se o ciclo hidrológico. O "motor" deste ciclo é a energia solar que, no processo de passagem de partículas de água para atmosfera por evaporação, lhes transmite a energia potencial necessária para o seu regresso ao oceano, actuadas pela gravidade a partir da precipitação. A figura 1.2 faz uma outra representação do ciclo hidrológico. Aí estão indicadas os três ramos normalmente considerados no ciclo hidrológico: o ramo oceânico, objecto da Oceanografia; o ramo aéreo ou atmosférico, objecto da Meteorologia; e o ramo terrestre, objecto da Hidrologia. Figura 1.2 O Ciclo Hidrológico A figura 1.3 é ainda uma representação descritiva do ciclo hidrológico mas na qual se faz já uma avaliação quantitativa das variáveis envolvidas. P, E, ET, I, G e Q representam respectivamente a precipitação, a evaporação, a evapotranspiração, a infiltração, o escoamento subterrâneo e o escoamento superficial. As percentagens estão expressas em termos da precipitação total anual média que se estima em cerca de 860 mm. Introdução à Hidrologia 1-10 Manual de Hidrologia Figure 1.3 Representação quantitativa do Ciclo Hidrológico 1.3.2 Irregularidade espacial e temporal É preciso salientar que as quantidades de precipitação, evaporação, escoamento e outras variáveis hidrológicas apresentam enormes irregularidades quer na sua distribuição geográfica quer na sua distribuição temporal. O facto de poder haver grandes variações destas quantidades de ano para ano num mesmo local significa que a sua caracterização apenas é possível numa base estatística a partir de longas séries de valores observados. Em Moçambique, há dois organismos que desempenham um papel central na recolha e registo de dados relativos às variáveis hidrológicas. São eles: - O Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique (INAM) que colecta dados de precipitação e evaporação, para além de outros relativos a variáveis climáticas (temperatura, humidade relativa, vento, radiação solar, etc.) que influem nas grandezas hidrológicas; - a Direcção Nacional de Águas (DNA) que recolhe dados de precipitação, evaporação, água subterrânea e escoamento superficial. Outros organismos como o Instituto Nacional de Investigação Agronómica (INIA) e algumas grandes empresas do sector agrícola possuem também informação hidrológica com interesse, sobretudo registos de precipitação, evaporação, evapotranspiração. Introdução à Hidrologia 1-11 Manual de Hidrologia 1.4 BALANÇO HÍDRICO Se se considerar uma certa região geográfica durante um determinado período de tempo, o movimento da água obedece ao princípio da conservação da massa traduzido pela equação da continuidade. Essa equação pode escrever-se como dt ds=O -I na sua forma contínua ou como s=tO)-(I ∆∆ na sua forma discreta em que I representa a entrada de água no sistema por unidade de tempo, O é a saída de água do sistema também por unidade de tempo e •S é a variação do volume armazenado no interior do sistema. Designa-se por balanço hídrico a equação da continuidade aplicada a uma certa região e escrita em função das variáveis do ciclo hidrológico. Figure 1.4 Representação conceptual do balanço hídrico As regiões em que fazem estudos de balanços hídricos são definidas normalmente em função do objectivo que se pretende alcançar, podendo, no entanto, existir restrições de carácter político e administrativo à livre definição dessas regiões. A figura 1.4, uma versão mais abstracta do ciclo hidrológico duma região, é útil porque permite uma tradução fácil do balanço hídrico em termos matemáticos. Na figura 1.4, as variáveis têm o seguinte significado: P precipitação; Q1, Q2 escoamento superficial que entra e sai da região; G1, G2 escoamento subterrâneo que entra e sai da região; Ss, Sso, Saq volume armazenado à superfície, no solo e no aquífero (água subterrânea); E evaporação a partir de águas superficiais e do solo; Introdução à Hidrologia 1-12 Manual de Hidrologia T transpiração das plantas; rso, raq água do solo e água subterrânea que reaparecem à superfície (ressurgência); I infiltração (no solo); R recarga (percolação para os aquíferos). Conforme a região que se considere, assim se podem estabelecer os correspondentes balanços hídricos. Por exemplo, se se considerar toda a região representada na figura 1.4, ter-se-á a seguinte equação: (P + Q1 + G1) - (Q2 + G2 + E + T) = •S em que •S representa a variação total do volume armazenado. Note-se que nesta equação não aparecem a infiltração, a recarga e a ressurgência que, por serem processos "interiores" à região em estudo, não afectam o respectivo balanço hídrico. Se agora se considerar apenas a superfície da terra, o balanço hídrico será: (P + Q1 + r) - (Q2 + E + T + I) = •Ss O balanço hídrico para um (único) aquífero será: (G1 + R) - (G2 + raq) = •Saq É um exercício relativamente simples estabelecer os balanços hídricos para outras regiões como, por exemplo, a camada superficial do solo ou do aquífero. Tenha-se em atenção que todas as variáveis que intervêm nas equações de balanços hídricos são expressas como volumes por unidade de tempo. A equação do balanço hídrico pode ser consideravelmente simplificada quando a região considerada é a bacia hidrográfica e quando se adoptem longos períodos de tempo (pelo menos um ano). Numa bacia hidrográfica, não há, em condições naturais, outra entrada de água além da precipitação e há uma única saída de água. Por outro lado, num longo período de tempo a variação do volumearmazenado pode ser desprezada perante os valores acumulados das outras variáveis. Assim, a equação do balanço hídrico passa a ser nessas condições: P - (Q2 + E + T) = 0 O maior obstáculo na resolução de problemas práticos com utilização do balanço hídrico reside principalmente na dificuldade de medir ou estimar adequadamente as variáveis intervenientes. Por exemplo, a precipitação é medida pontualmente fazendo-se depois a extrapolação para toda a área envolvida1. Os caudais em rios podem ser medidos com razoável precisão excepto durante as cheias. As maiores dificuldades surgem, no entanto, associadas à medição ou estimação dos valores de infiltração, recarga, escoamento subterrâneo, evaporação, transpiração e volumes armazenados no solo e em aquíferos. 1 ver o capítulo sobre precipitação Introdução à Hidrologia 1-13 Manual de Hidrologia O balanço hídrico é uma ferramenta muito útil e que pode ser utilizada numa grande variedade de situações como, por exemplo: • determinação do valor duma variável hidrológica quando todas as restantes que entram no balanço são conhecidas; • estimação do erro global cometido na medição ou estimação das variáveis hidrológicas, quando todas as que entram no balanço hídrico são conhecidas; • operação de albufeiras; • avaliação das necessidades de rega. O balanço hídrico é também a componente central dos modelos de simulação hidrológica - modelos matemáticos em que se procura reproduzir as características principais do movimento de água numa região a partir do momento em que ela precipita. 1.5 ANO HIDROLÓGICO As variáveis hidrológicas, como a precipitação, o escoamento ou a evaporação, são claramente influenciadas por uma ciclicidade anual. Em Moçambique, isto é bem evidente nas duas mais importantes variáveis do ciclo hidrológico, a precipitação e o escoamento. Com efeito, tanto a precipitação como o escoamento atingem valores elevados nos meses de Dezembro a Março ao passo que no período de Junho a Setembro os seus valores são bastante baixos. Em muitas aplicações, interessa utilizar os valores acumulados anuais de precipitação e escoamento, por exemplo para balanços hídricos anuais. Nesses casos, não se pode adoptar como período de registo o ano civil (1 Janeiro - 31 Dezembro) pois isso corresponderia a repartir por dois anos uma mesma época de chuvas. Considera-se por isso um ano especial designado por ano hidrológico. Toma-se para início do ano hidrológico o fim da época de estiagem o que tem a vantagem de evitar a divisão duma mesma época de chuvas. Tem também vantagens para a efectivação de balanços hídricos anuais: P - (R + E + T) = •S pois no fim da época de estiagem pode aceitar-se que o armazenamento é sempre bastante pequeno pelo que •S é aproximadamente nulo. Procura-se, portanto, que os anos hidrológicos sejam (estatisticamente) independentes uns dos outros, o que obviamente não aconteceria se, por exemplo, se se usasse o ano civil. O procedimento adoptado para a definição do início do ano hidrológico procura, de facto, minimizar a dependência estatística dos sucessivos anos hidrológicos. Ele consiste em formar séries anuais de escoamentos adoptando, alternativamente, diferentes meses para o seu início (Setembro, Outubro, Novembro, etc.) e determinar, para cada alternativa de início, o valor do coeficiente de Introdução à Hidrologia 1-14 Manual de Hidrologia autocorrelação. O mês que origine o mais baixo coeficiente de autocorrelação deve ser o adoptado para início do ano hidrológico. Em Moçambique, verifica-se que os escoamentos em dada região dão coeficientes de autocorrelação mais baixos tomando o ano hidrológico com início em 1 de Outubro ao passo que noutras regiões o mínimo coeficiente de autocorrelação corresponderia a um início em 1 de Novembro. Por razões de ordem organizativa, a Direcção Nacional de Águas adoptou como ano hidrológico o período que vai de 1de Outubro dum ano a 30 de Setembro do ano seguinte. Introdução à Hidrologia 1-15 Manual de Hidrologia EXERCÍCIOS 1. Numa albufeira com uma área de 10 km2 verificaram-se durante um período de 5 dias os seguintes valores: - Caudal afluente = 15 m3/seg. - Caudal efluente = 3 m3/seg. - Nível da água no 1º dia = 25,0 m. - Nível da água no 6º dia = 25,4 m. - Precipitação = 0 mm. a) Calcule o volume da água perdida por evaporação na albufeira, durante estes 5 dias b) Calcule a altura média diária de evaporação da albufeira. 2. Considere um lago com uma saída natural. A área do lago é de 500 km2 e a da bacia drenante de 2800 km2. Durante um ano verificou-se que a precipitação na região foi de 600 mm e a evaporação no lago de 800 mm, não se tendo verificado uma variação sensível do nível do lago. O caudal médio descarregado ao longo do ano foi de 9 m3/s. a) Calcule o caudal drenado da bacia para o lago. b) Calcule a evaporação na bacia drenante. 3. Em que condições é que a precipitação numa bacia não produz a) Nenhum escoamento superficial b) Nenhum escoamento subterrâneo c) Nenhum escoamento 4. Explique a presença e a ausência de água superficial e água subterrânea numa zona com dunas (p. ex. a ilha de Inhaca) e numa planície dum rio (p. ex. o rio Incomati). 5. Construiu-se uma barragem numa secção dum rio com uma bacia drenante de 1800 km2. A albufeira tem uma área inundada média de 35 km2 e uma capacidade de armazenamento de 600 milhões m3. O caudal médio (afluente) do rio é de 5,6 m3/s. A precipitação anual média ponderada sobre a bacia é de 700 mm. O enchimento da albufeira depois da sua construção levou 5 anos. Durante esse período o caudal médio descarregado pela albufeira foi de 0,5 m3/s. Logo depois da construção da barragem (durante e depois do enchimento da albufeira) começou-se a tirar, anualmente, 12 milhões de m3 de água da albufeira para o abastecimento duma vila e para um regadio. a) Calcule o caudal médio descarregado pela albufeira depois do seu enchimento (numa situação de equilíbrio o nível médio da albufeira mantêm-se constante). Introdução à Hidrologia 1-16 Manual de Hidrologia b) Calcule as perdas anuais na albufeira por evaporação. 6. Na secção de saída (secção de referência) duma bacia hidrográfica de 1600 km2 foi construída uma barragem com uma albufeira com uma superfície de 35 km2 e uma capacidade de armazenamento de 600 milhões m3. A albufeira é alimentada por um rio que drena a bacia. O caudal médio no rio é de 4,5 m3/s. A precipitação anual média naquela zona é de 700 mm. O enchimento da albufeira depois da sua construção levou 5 anos. a) Calcule as perdas anuais na albufeira por evaporação (assuma que a superfície da albufeira é constante). b) Calcule a evapotranspiração anual (em mm) na bacia.
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