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CASOCLINICOseminario

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SÍNTESE DE UM CASO CLÍNICO
João (nome fictício) tem (8) oito anos, é o filho mais novo de sua mãe, a qual tem mais um filho. João é fruto de uma relação estritamente sexual, de uma noite. Nesta época, o pai era casado e já tinha (6) filhos. João é o penúltimo filho do genitor. Neste fragmento, podemos já de antemão observar aspectos que nos levam a pensar o lugar - ou falta dele - que o bebê ocupava na fantasia do casal parental, bem como as relações do funcionamento cênico do casal parental com a lei simbólica. Se por um lado, Raquel suspende a lei ao se envolver sexualmente com o genitor, na época casado, dispensando de qualquer tipo de cuidados de prevenção. Por outro lado, é o genitor no lugar daquele que “reproduz” seus filhos em mulheres e pelo mundo. Se nega em qualquer participação enquanto função paterna.
As primeiras entrevistas são realizadas com a mãe, Raquel (nome fictício), uma mulher extremamente fálica. Na primeira consulta, dispara de antemão que não acredita nessas coisas de psicologia, de “ficar conversando” (sic), afirma que hoje em dia é muito fácil o acesso as informações, e que ela mesma sempre utiliza destes meios para poder se orientar quando se encontra em alguma situação adversa. Aqui, podemos observar sobre o desejo da família enquanto possibilidade do tratamento do menino. Num primeiro momento, a mãe rivaliza comigo, bem como me despotencializa no sentido de afirmar-se na sua fantasia de que não lhe falta nada, de mãe toda-fálica. Também poderíamos dizer de uma mãe que supostamente não fora atravessada pela metáfora paterna, uma mãe extremamente permissiva e fálica, ela é a própria representante da lei (neste caso, sem lei). 
Relata não ter o apoio de ninguém, em sua fantasia não precisa, pois ela se basta a si própria e também aos filhos, Raquel faz questão de mencionar a todo tempo ser o homem da casa (a lei). Conta que perdeu o pai quando ainda era criança e conta ter muita dificuldade na relação com a mãe, diz que a mãe a incomoda por ser ˜tão grudenta” com João, bem como por demandar tanto da companhia de seu filho. Raquel recorda de fatos da infância, onde a mãe era muito distante. Alega, e sai em sua própria defesa dizendo que faz de tudo pelos filhos, que estes são tratados como se fossem verdadeiros reis, e que João dorme junto com ela, e continuará dormindo, pois não vê problemas com isso, continua se defendendo, ou melhor (me)atacando sem que eu ainda não tivesse pronunciado uma sequer palavra. Nessa tentativa excessiva de proteger o filho e lhe permitir um lugar diferente daquele que por ela fora relatado em sua recordação do seu próprio infantil, Raquel reduz o filho a própria majestade – o Bebê, e é diante a este lugar que João responde as demandas que lhes são atribuídas, João é uma criança que não quer nada mais além de tudo. Ele é o próprio falo da mãe. 
Pergunto a ela: E tu achas que teu filho está sofrendo por alguma coisa? Ela responde querer que eu o avalie, porque acha mesmo que deve ser umas chineladas que faltam a ele (sic). Pergunto se ele sabe de mim, ela conta que foi desejo dele em procurar uma psicóloga. E, que talvez eu possa ajudar seu filho no sentido de lidar com a frustração, ela relata que em todas as vezes que ele perde em qualquer jogo com seu irmão, ou na escola, João se desorganiza, usa todos os tipos de xingamentos possíveis para com o irmão e colegas, bem como chora sem parar, ficando transtornado de raiva (sic). Neste fragmento, ainda que minimamente, a mãe demonstra desejo pelo tratamento do filho, não se opondo a ele. 
No segundo atendimento individual do filho, a mãe antes da sessão com uma certa tensão na fala, diz na frente de João, que ele tem uma coisa muito séria para me contar, algo que tivera acontecido no fim de semana. Quando adentramos no consultório, pergunto se ele deseja compartilhar sobre o ocorrido que a mãe mencionou, ele diz que não, pois sente vergonha. Não insisto, e me coloco a disposição para lhe escutar quando assim o desejar. Ele, e aqui ressalto, com um gozo imenso, começa a me contar. Diz que a mãe o pegou no banheiro introduzindo um pente rosa no ânus, e com um gozo imenso, porém muito maior do que no primeiro enunciado, ele acrescenta: e não é a primeira vez, eu sempre faço isso. Eu pergunto, e com o mesmo pente rosa? Sim, com o pente da minha mãe. Neste caso, é o pente rosa da mãe enquanto um significante do sintoma de João, o pente rosa da mãe é a própria fantasia da penetração do ato sexual, penetrar e ser penetrado. Imaginariamente o pente da mãe é um substituto do pénis (falo) da mãe, pois não é qualquer pente, é o pente rosa da mãe. Pelo fetiche de ser penetrado pela mãe, João sustenta a fantasia de negação da castração materna, é a mãe enquanto a detentora do falo, mãe toda-fálica.
Na mesma sessão, o convido a desenhar, ele dispõe na folha uma pequena goleira, com traços de lápis bem marcados, e uma bola que adentra ao gol. Solicito que ele fale sobre o desenho, e ele o coloca de forma imaginária na cena, sem que haja uma representação na grafia. Ele é o que chuta a bola, simbolicamente faz uma associação de seu nome com um jogador, peço então que ele narre uma partida de futebol. Ele narra os gols com muita excitação, o esquema corporal se presentifica em todo o momento de sua comemoração, correndo e pulando no consultório. Neste fragmento, podemos pensar novamente sobre a fantasia de penetrar/ser penetrado. Embora João tenha conseguido transmutar da zona erógena anal, permanecendo agora em uma fixação na zona erógena genital, há indícios nesta produção gráfica quanto a uma elaboração mal-sucedida na fase anal, podendo ser lida, a partir das grafias, o desvelamento da imagem inconsciente do corpo da criança. Neste caso, regressiva e arcaica, reduzindo a uma grande zona erógena.
Logo no término do atendimento, sou questionada pela mãe se ele me contou sobre o acontecido que ela havia anunciado. Pergunto a ela sobre o que se tratava, e ela me fala sobre uma visita do genitor a casa deles. Retomo o contrato sobre o sigilo no atendimento infantil, asseguro a ela de que, eu avaliando a necessidade de lhe informar sobre qualquer acontecimento, ou dito nas sessões, assim o faria. Ela me interrompe, e dispara: Ah, também peguei o João no banheiro com o meu pente, mas o irmão também já passou por isso, é normal, está se descobrindo. Neste fragmento, podemos ler claramente a proposição de Dolto quando nos assegura que o sintoma da criança diz respeito ao sintoma familiar. Dolto nos conta, sobre a herança transgeracional eminentemente simbólica que é transmitida primordialmente pela mãe ao seu filho, dessa forma é preciso que a mãe seja atravessada pela metáfora paterna, que seja uma mãe barrada e que faça a releitura dos códigos éticos e morais inscritos no seu próprio psiquismo, apostos ao seu filho a partir da linguagem e dos cuidados maternos.
Ainda em entrevistas preliminares com o menino, há uma relação transferencial que começa a se inscrever e se armar, seguimos a partir dai, nosso percurso de psicoterapia. João em todas as sessões lança de fantasias de sedução direcionadas a mim, é muito colado na questão do dado a ver, na imagem especular. Em todas as sessões, chega com uma roupa diferente, e me convoca a olhar para suas vestimentas, diz que compra essas roupas em especial para vir no atendimento, dança e se apresenta com muitos passos diferentes e ensaiados, canta e me faz de espectadora de seus shows. Toda vez que deixa o consultório, diz a mesma coisa em voz alta para que eu escute “a minha psicóloga é a melhor do mundo, eu não sabia que era tão bom ter uma psicóloga” (sic). 
Já identificada uma demanda de análise/psicoterapia, me posiciono no sentido de não erotizar com essa relação, diria que “clinicamente incestuosa”, pois ele se dirige a mim de forma análoga de como se dirige a mãe, a seduzindo. Diferente da mãe, onde o coloca na verdadeira posição de falo - o falo da mãe, daquele que tudo pode. Proponho jogos diferentes, de uma lógica avessa a tudo aquilo que ele estava acostumado,para que justamente pudesse se deparar com sua falta. Percebo que o enunciado mecanicista de “a minha psicóloga é a melhor do mundo, eu não sabia que era tão bom ter uma psicóloga” (sic), desaparece, e eu, comemoro com isso, pois aqui aparece o primeiro movimento em sua posição subjetiva. 
Em outra produção gráfica, em que seguíamos falando de sua constituição e estrutura familiar, ele desenha sua família representado por uma figura feminina e outra masculina, ou seja, ele e a mãe. O menino não sabe informações da família materna, além do núcleo familiar composto pela mãe, o irmão, e a avó, e tão pouco tem informações da família paterna. Pergunto se não lhe interessa saber? Ele fica indiferente, mas na sessão seguinte chega com um bloco de anotações e me questiona por onde ele poderia começar. Começa por onde é mistério (não o sugestiono, mas tento o colocar na mira de seu desejo). Eu respondo a ele. E, João debruça-se em torno de sua história familiar, se tornando um investigador desejante e curioso pelo desvelamento de sua composição familiar. A partir deste momento, conseguimos pensar em uma demanda de análise, pensar sobre uma hipótese diagnóstica para pensar o direcionamento do tratamento, bem como o processo transferencial que foi possibilitado.

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