Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ECG Completo.indb 1 26/08/2019 09:26:17 ECG Completo.indb 3 26/08/2019 09:26:18 CAPÍTULO 17 José Nunes de Alencar Neto Introdução ao ECG 1 INTRODUÇÃO O eletrocardiograma (ECG) é um exame simples e barato, obrigatório em emergências. Ele registra traça- dos que, ao serem analisados, possi- bilitam identifi car e intervir precoce- mente em patologias potencialmente fatais como o infarto agudo do mio- cárdio e arritmias. O funcionamento do aparelho é simples, vamos ver. O profi ssional res- ponsável posiciona eletrodos que irão registrar as atividades elétricas (di- ferenças de potencial) a partir de um “ponto de vista” específi co, portanto, saibam desde já que é importante posicionar corretamente os eletrodos e iremos falar disso logo mais. O ECG funciona como se “câmeras” fossem posicionadas em volta do coração em locais pré-determinados e estas regis- tram os impulsos elétricos que se apro- ximam ou se afastam de cada eletrodo (Figura 1). A atividade elétrica cardíaca gera uma diferença de potencial (voltagem) que é registrada pelo aparelho de ECG. O pré-requisito para que haja uma dife- rença de potencial é a existência de dois pontos com potenciais diferentes. Uma derivação, portanto, é uma câmera que registra a atividade em dois pontos. Figura 1 - Várias câmeras capturando a beleza da “Dama del paraguas”, um ponto turístico de Barcelona. Para a melhor visualização de todos os pontos de vista desse monumento, várias câmeras são usadas. Desenho de Pilarín Bayés de Luna, irmã do pro- fessor Bayés de Luna. Se esse potencial está ocorrendo no sen- tido da câmera, então a seta do vetor apontará para ela. Simples assim. Essas “câmeras”, de que falo, pos- suem um nome especial no ECG: de- rivações. Elas são compostas sempre por dois polos (bipolares, portanto). As derivações dos membros, que chama- mos de periféricas, registram a dife- rença de potencial dos próprios polos entre si; e as derivações do precórdio, ECG Completo.indb 17 26/08/2019 09:26:20 CAPÍTULO 1 18 chamadas de derivações horizontais, registram a diferença de potencial do eletrodo no tórax até um ponto central virtual criado matematicamente pelas quatro derivações periféricas. Como no caso das derivações dos membros, um vetor parte de um polo para outro, e no caso das derivações precordiais, o vetor parte deste polo virtual para o eletrodo no tórax, os livros didáticos erroneamente chamam os eletrodos periféricos como “bipolares”, e os pre- cordiais como “unipolares” (1). HISTÓRICO No fim do século XIX, era senso comum entre cientistas o fato de que nervos e músculos podiam ser estimu- lados artificialmente. Fisiologistas se deram ao trabalho de procurar ativi- dade elétrica em animais, até que em 1856, Koelliker e Muller conseguiram demonstrar biopotencial elétrico no coração de um sapo. E foram além, no mesmo experimento, ao posicionar a pata de um sapo na mesma solução em que estava contido o coração, per- ceberam que a atividade elétrica que contraía a pata precedia a sístole car- díaca – a descoberta de que a ativida- de elétrica precedia a sístole e poderia ser a razão pela qual os corações ba- tem (2,3). Esses avanços levaram ao primei- ro registro de um eletrocardiograma humano, em 1887, por Waller (4), que fez também vários experimentos em seu cachorro de estimação, o bulldog Jimmie. Se você está preocupado com o bem-estar do animal, saiba que a Ro- yal Society of London também ficou, e o que se sabe da época é que nenhum maltrato foi registrado no simpático animal (5) (Figura 2). Figura 2 - Uma demonstração da captura de um eletrocardiograma do bulldog Jimmie, animal de estimação de Augustus Waller. Essa demonstração causou certo estranhamento no público presente, causando debate se o Ato de Crueldade aos Animais fora contravertido. A resposta do secretário de estado foi: “Mr. Gladstone, eu entendo que o cachorro ficou em pé por algum tempo em água com sal. Se meu honra- do amigo já tivesse remado no mar, saberia a sensação” (5). Nos seus experimentos, Waller usava uma cinta no tórax conten- do dois eletrodos: o primeiro na parte frontal do tórax, conectado a uma coluna de mercúrio de um eletrômetro capilar; e o segundo no dorso conectado a ácido sulfúri- co (Figura 3). A coluna de mercúrio se movia para cima e para baixo de acordo a atividade elétrica e o que movia a placa onde se desenhava ECG Completo.indb 18 26/08/2019 09:26:20 INTRODUÇÃO AO ECG 19 de – 25 milímetros por segundo e um fotoquimiógrafo projetava uma linha vertical mais grossa após 4 li- nhas mais finas. O galvanômetro se moveria 1mm caso uma diferença de potencial de 0,1mV fosse registrada. Também nesse artigo foram alcunha- das as deflexões do eletrocardiogra- ma: PQRST (6,7). Nesse momento, o leitor já percebe que Einthoven não apenas criou o primeiro eletrocardió- grafo passível de utilização na práti- ca clínica, como definiu seus funda- mentos, tudo em duas publicações – isso lhe rendeu o prêmio Nobel e 40 mil dólares em prêmio em 1924 (8). As letras escolhidas (PQRST), aliás, são fruto de discussão até hoje: uns afirmam que Einthoven escolheu letras no meio do alfabeto para dei- xar espaço para outras deflexões que poderiam ser (e foram) descobertas; outros – e esta é também a opinião do autor – afirmam que teve influên- essa atividade para que um registro temporal fosse adquirido era um trem de brinquedo. É lamentável que o papel de Waller seja negligenciado na história da ele- trocardiografia, mas o próprio parece ter subestimado seus achados que, sim, eram de má qualidade (mas eram os primeiros!) e inadequados para pro- pósitos clínicos e chegou a afirmar que não imaginava que a eletrocardiogra- fia encontraria papel extenso em hos- pitais. O médico holandês Willem Ein- thoven, insatisfeito com o eletrôme- tro capilar usado nos experimentos de Waller, desenvolveu em 1901 um novo galvanômetro de corda, supe- rior ao capilar usado até então com sensibilidade e metodologia aplicá- veis em Medicina. Ele desenvolveu um método em que a placa fotográ- fica onde seria registrada caía numa frequência constante pela gravida- Figura 3 - Traçado do primeiro eletrocardiograma humano realizado em Waller. A marcação “t” é a representação de um segundo, a marcação “h” é a movimentação da parede do tórax, e a representação “e” representa o eletro- cardiograma através da movimentação da coluna de mercúrio no eletrômetro (4). ECG Completo.indb 19 26/08/2019 09:26:20 CAPÍTULO 1 20 cia dos trabalhos geométricos e médi- cos (de fisiologia ótica) de Descartes (9–11). Em 1908, em um extenso artigo, Einthoven descreve seus aprendizados com a observação de 5 mil eletrocar- diogramas já realizados. Definiu que a onda P representava a ativação do átrio e onda Q fazia parte do ventrículo (12). TEORIA DAS DERIVAÇÕES Para que se uniformizasse o exa- me no mundo inteiro, era necessário saber em que ângulos essas “câme- ras” iriam olhar para o coração. Esfor- ços se iniciaram para criar derivações que pudessem ter importância práti- ca na avaliação da atividade elétrica cardíaca. A teoria clássica das derivações foi proposta por Einthoven. Essa teoria assume que o corpo humano é parte de um condutor homogêneo e infini- to em que as fontes elétricas cardía- cas são representadas por uma única corrente de dipolo que varia com o tempo, mas preso a uma localiza- ção fixa. Resumindo: um único vetor a cada batimento. As derivações de Einthoven usam derivações em três membros: braços (direito e esquerdo) e perna esquerda. O triângulo de Einthoven (Figura 4) foi, então, criado a partir dessas deri- vações: a derivação D1, por exemplo, grava o potencial de ação entre o bra- ço direito e o braço esquerdo, D2 entre o braço direito e a perna esquerda e D3 entre o braço esquerdo e a perna esquerda (13). E a lei de Einthoven postula que D1 + D3 = D2, de acordo com a lei de Kirchoff(1). Figura 4 - Triângulo de Eithoven, como desenhado em seu trabalho original (8). Burger, no entanto, levou em con- sideração que o corpo humano é tri- dimensional, tem formato irregular e volumes condutores não homogêneos e corrigiu o triângulo de Einthoven imaginando um triângulo não equilá- tero (Figura 5), mas permaneceu com a ideia de dipolo fixo (14,15). Figura 5 - Triângulo de Burger. Perceba que não é equilátero. Leva em consideração diferenças de campo elétrico de diferentes órgãos do corpo humano (15). ECG Completo.indb 20 26/08/2019 09:26:20 INTRODUÇÃO AO ECG 21 Em 1934, Wilson uniu os três vértices do triângulo de Eintho- ven a resistências de 5 mil ohms, introduziu esse tal ponto virtual do qual já falamos na introdução deste capítulo: o “terminal central de Wilson”. Esse ponto virtual foi inicialmente criado com o intuito de calcular a diferença de poten- cial do braço direito, por exem- plo, até o centro do triângulo de Einthoven, o que foi chamado na época de VR (16). Por fim, em 1942, Goldberger, introduziu um aumen- to na sensibilidade dessas últimas derivações, que agora teriam um “a” em frente a seus nomes, surgin- do, então, aVR, aVF e aVL – o po- Figura 6 tencial do braço direito, da perna esquerda e do braço esquerdo, res- petivamente (17). Para entender a razão de eu ter falado isso tudo, introduzo agora o famoso “Círculo de Cabrera”, na Figura 6. Não dei- xe de ler a legenda. O ELETROCARDIOGRAMA HUMANO E SUAS ONDAS Se você não entendeu muita coisa do que foi escrito acima, não tem pro- blema. Esta é uma introdução teórica, mas com pouco papel na prática. A partir de agora, vamos focar no que in- teressa na vida de um profissional que lida com eletrocardiograma. No painel A, observamos o triângulo de Einthoven e o terminal central de Wilson criado pelas três resistências de 5000ohms colocadas em cada vértice do triângulo. No painel B, observamos o triângulo de Cabrera, em que temos as derivações clássicas D1, D2, D3, mais as criadas por Wilson e aumentadas por Goldberg: aVR, aVL e aVF, todas dispostas de acordo com seus ângulos. ECG Completo.indb 21 26/08/2019 09:26:21 CAPÍTULO 1 22 O registro elétrico do coração é composto pelas seguintes atividades, em sequência: • Despolarização dos átrios (pri- meiro direito, depois esquerdo). • Intervalo átrio-ventricular. • Despolarização dos ventrículos. • Repolarização dos átrios. • Repolarização dos ventrículos. Cada uma dessas atividades cor- responde a uma entidade do eletro- cardiograma, seja ela uma onda, um complexo de ondas, um intervalo ou um segmento (Figura 7). Vamos aprender: • Despolarização dos átrios (pri- meiro direito, depois esquerdo): onda P. • Intervalo atrioventricular: inter- valo PR. • Despolarização dos ventrículos: complexo QRS (Q é a onda nega- tiva, R é a primeira onda positiva; S é a onda negativa após o R. Al- gumas situações podem dar uma segunda onda positiva, sendo chamada R’ - lê-se erre linha). • Repolarização dos átrios: atividade de baixa voltagem que coincide com o QRS, portanto, não é vista em situações normais de repouso. • Repolarização dos ventrículos: segmento ST e onda T. Para entender melhor essa seção, vamos revisar cada um desses tópicos individualmente. E para fazer isso, vou relembrar duas regras importantes da eletrocardiografia. 1. Lembre-se que as diferenças de po- tencial decorrentes da despolarização do átrio, do ventrículo e também pela repo- Figura 7 - Ondas, complexos, intervalos e segmentos do eletrocardiograma de superfície. ECG Completo.indb 22 26/08/2019 09:26:22 INTRODUÇÃO AO ECG 23 larização ventricular serão capturadas pe- las derivações que vimos anteriormente e formarão “ondas” no traçado do eletro- cardiograma. Tenha em mente que tudo que se afasta da câmera será gravado como negativo, e tudo que vai de encon- tro à câmera será positivo no ECG. 2. Se revisarmos o círculo de Cabre- ra (Figura 6) e imaginarmos um cora- ção no meio desse círculo, observare- mos que D2 é uma derivação muito próxima ao eixo elétrico cardíaco nor- mal – afinal, o eixo elétrico resultante cardíaco irá apontar de cima para bai- xo e da direita para esquerda (some os vetores). Por conta disto, esta é uma derivação de muita didática e será uti- lizada nos próximos parágrafos. Comecemos. O impulso gerado pelo nó sinusal segue em direção ao nó AV despolarizando os átrios, ou seja, se aproximando da câmera de D2. Sendo assim, esta registra uma onda positiva (porque se aproxima de D2) e de pe- quena amplitude e duração (porque o átrio tem pouca força e massa, compa- rada ao ventrículo), que é a onda P. O nó AV atrasa o impulso e, como não há maiores áreas sendo despola- rizadas, registra-se apenas uma linha reta que denominamos de intervalo PR. Após isto, o ventrículo iniciará sua despolarização. O que você vai ver nos próximos parágrafos também pode ser traduzido em vetores. A despolarização inicial do septo promove a despolarização em diver- sos sentidos, entretanto a resultante de todas as direções se afasta da fil- madora em D2 e este é o motivo da formação de uma onda negativa, cha- mada onda Q. Por definição: onda Q é uma onda negativa que se inscreve antes da onda R. Se a onda é negativa, então, o vetor se afasta de D2. As mudanças iônicas geradas pelo potencial de ação seguem, então, em direção ao ápice cardíaco pelos ramos direito e esquerdo, se aproximando in- tensamente da nossa “câmera” D2. O re- sultado é a grande onda R, por definição a onda positiva. Se é assim, esse vetor, o maior de todos, vai em direção a D2. Posteriormente, a ascensão pelas paredes livres dos ventrículos, se afas- tando novamente da câmera, forma a onda S, por definição, a onda negativa que vem depois da onda R, afastan- do-se de D2, acabando assim de des- polarizar os ventrículos. A soma dos vetores de Q + R + S é o vetor elétrico cardíaco, e deverá ser posicionado no Círculo de Cabrera para análise. Vere- mos isso no próximo capítulo. Por fim, após a despolarização, as células retor- nam ao seu estado original, ou seja, se repolarizam. O resultado, de modo simplista, é o registro da onda T. É importante lembrar que essas on- das possuem essa conformação que descrevemos em D2 e também em algumas outras derivações, mas não em todas. Por exemplo, em aVR, que é praticamente oposta a D2 (vide Círculo de Cabrera), o normal é termos uma P negativa, uma onda Q apenas (não su- cedida de R ou S) e uma T negativa. Outras ondas ou eventos podem aparecer no eletrocardiograma. São de interesse por enquanto: (a) o ponto J é ECG Completo.indb 23 26/08/2019 09:26:22 CAPÍTULO 1 24 o ponto em que o complexo QRS ter- mina e o galvanômetro ganha nova- mente a linha de base do eletrocardio- grama; (b) o ponto Y é de interesse na eletrocardiografia de estresse, como discutiremos no capítulo 26; (c) a onda U é motivo de controvérsia até hoje (discutiremos com detalhes no capítu- lo 4) e pode corresponder à repolariza- ção das fibras de Purkinje ou das célu- las M (células médio-miocárdicas com características ambíguas de músculo e condutora de estímulo elétrico). Sobre o complexo QRS, devemos ter em mente que ele só existe no ele- trocardiograma caso a despolarização ventricular apresente três vetores – um negativo, outro positivo, e o terceiro negativo. Caso apresente apenas dois complexos, o leitor deve observar na- quela derivação qual deflexão inicia a atividade ventricular: se negativa, Figura 8 - Padrões de complexos QRS. Perceba que devemos obedecer a três regras para a correta nomenclatura deste complexo. A primeira é: sempre seguir a ordem alfabética. A segunda é: a onda “q” é sempre negativa, a onda “r” é sempre positiva, e a onda “s” é sempre negativa. A terceira regra é: se uma onda é pouco ampla, ela será marcada por letra minúscula “e” e uma letra é muito ampla, ela será marcada por uma letra maiúscula. Sabendo das regras, ficafácil perceber que um complexo com uma pequena deflexão positiva seguida de uma grande deflexão negativa será chamada “qR”. ECG Completo.indb 24 26/08/2019 09:26:22 INTRODUÇÃO AO ECG 25 sabemos que teremos um complexo “q” seguido de alguma coisa que pode ser “r” ou “s”; se positiva, teremos um complexo “r” seguido de alguma coi- sa que só pode ser “s”. Temos que se- guir a ordem alfabética! Por exemplo: um complexo cuja primeira deflexão é negativa, seguida de uma positiva é chamado de complexo “qr”. O leitor também precisa se acostumar ao fato de que a amplitude da deflexão tam- bém dita se usaremos letras minúscu- las ou maiúsculas. Mais um exemplo: se um complexo começa com uma onda positiva de pequena amplitude e é sucedida de uma negativa de grande amplitude, sua descrição no texto es- tará como complexo rS – atenção, não podemos chamar de rQ, pois isso não segue a ordem alfabética. Caso tenhamos um complexo com apenas uma deflexão negativa, cha- mamos esse complexo de QS. Caso a deflexão seja exclusivamente positiva, chamamos “R puro”. Em último caso (mas não infre- quentemente), se tivermos um com- plexo com uma onda positiva, segui- da de uma deflexão negativa e mais uma positiva, teremos que começar o complexo pela letra “r”. A deflexão negativa será chamada de “s”. A ter- ceira deflexão positiva, seguindo o alfabeto, não pode chamar-se “T”, pois essa significa a repolarização ventricular. Então, a saída foi chamar de R’ (lê-se erre linha): complexo rsR’, típico do bloqueio de ramo direito em V1. Veja o resumo dessas deno- minações na Figura 8. CONFIGURAÇÃO DO ELETROCARDIÓGRAFO Já vimos que o eletrocardiógrafo tem a capacidade de representar estímulos elétricos através da inscrição gráfica de uma voltagem (diferença de potencial elétrico) em um papel milimetrado – quem convencionou isso foi Einthoven. Quando configurado no modo padro- nizado (N de “ganho” e 25 mm/s de velocidade), cada milímetro do papel para cima ou para baixo corresponde a 0,1 mV de amplitude (é o “tamanho” da onda), e para esquerda ou para direita a 40 ms ou 0,04 segundos de duração (é a “largura” da onda) (Figura 9). Figura 9 Papel milimetrado: cada milímetro ou quadradinho corresponde a 0,1mV e 40ms (0,04 segundos). Cada quadradão, portanto, corresponde então a 0,5mV e 200ms. Já vimos o que significam as deri- vações: são uma espécie de olho ou câmera que enxergam aquilo que está ECG Completo.indb 25 26/08/2019 09:26:22 CAPÍTULO 1 26 na sua frente. Mas elas têm um filtro: não enxergam movimento, não en- xergam infravermelho; elas enxergam uma diferença de potencial (ou volta- gem). Se uma diferença de potencial é criada com um vetor que vai de encon- tro àquela derivação, a caneta do ele- trocardiógrafo irá desenhar algo para cima no papel (positivo). Se o vetor fugir da derivação, a caneta desenha- rá algo negativo (para baixo) no papel. Também obedecerá à voltagem e ao tempo de ativação. Se fugiu 0,5mV, teremos uma deflexão negativa com amplitude de 5 quadradinhos (ou 1 quadradão). Se essa atividade durou 80ms, então teremos uma deflexão que durará 2 quadradinhos. O ECG padrão conta com 12 deriva- ções, sendo seis periféricas (D1, D2, D3, aVR, aVF e AVL) e seis precordiais (V1, V2, V3, V4, V5 e V6). Cada uma delas vê o cora- ção através de um ponto de vista diferen- te: as derivações periféricas, por exemplo, enxergam se o estímulo elétrico vai para cima ou para baixo e para a esquerda ou para direita, mas não se anterior ou pos- teriormente; já as derivações precordiais enxergam se o estímulo vai para frente e para trás, para a esquerda e para a direita, mas não se superior ou inferiormente. Por isso, para avaliar um eletrocardiograma, o profissional experiente avalia as 12 deri- vações em conjunto. E em algumas situa- ções clínicas, usamos até 18 derivações, ou até inventamos uma (18). Eletrodo Posição Eletrodo amarelo Braço esquerdo Eletrodo verde Perna esquerda Eletrodo vermelho Braço direito Eletrodo preto Perna direita V1 4º EIC. Para-esternal à direita V2 4º EIC. Para-esternal à esquerda V3 Entre V2 e V4 V4 5º EIC. Linha médio-clavicular esquerda V5 Entre V4 e V6 V6 5º EIC, Linha axilar média V7 Entre V6 e V8 V8 Inferior à ponta da escápula V9 Medial a V8 V3R Entre V1 e V4R V4R 5º EIC. Linha médio-clavicular direita Tabela 1 - Correto posicionamento de eletrodos em eletrocardiografia. ECG Completo.indb 26 26/08/2019 09:26:22 INTRODUÇÃO AO ECG 27 Elas são dispostas pelo corpo do paciente de maneira a obter êxito em um objetivo: o de registrar no papel a atividade elétrica do coração, na tenta- tiva de capturar a maior área possível – lembre-se da “Dama del paráguas”. A localização exata dos eletrodos onde vamos plugar essas derivações, portanto, é de fundamental impor- tância para um eletrocardiograma de qualidade. Reveja na Figura 10 e Tabe- la 1. Você viu que podemos ter quan- tas derivações quisermos. É clássico em prontos-socorros de Cardiologia a solicitação de um “eletrocardiograma de 17 derivações”. Nele estão inclusas as derivações V7, V8 e V9, V3R e V4R (Figuras 10, 11 e 12). O motivo da so- licitação destas derivações é aumentar a área vista por esses olhos ou câmeras que são as derivações. No capítulo 5, revisaremos o que acontece quando há troca de eletro- dos ou quando qualquer outro artefa- to influencia na correta realização do exame. Figura 10 - Posicionamento correto das derivações em plano horizontal: V1 e V2 no quarto espaço intercostal, sendo V1 vizinho ao esterno à direita e V2 vizinho ao esterno à esquerda. V3 fica no meio do caminho entre V2 e V4. V4, V5 e V6 ficam no quinto espaço intercostal. Elas devem ser dispostas de tal maneira que V6 deve estar na linha médio-axilar. Um erro bastante comum na preparação para a obtenção de um eletrocardiograma de 12 derivações é o posicionamento de V1 e V2 no segundo espaço intercostal. Como você reparou no texto, essas derivações do plano horizontal não são capazes de perceber se um estímulo está vindo de cima ou de baixo, portanto, a localização deles em um espaço intercostal diferente do preconizado pode levar a uma interpretação errada. ECG Completo.indb 27 26/08/2019 09:26:23 CAPÍTULO 1 28 Figura 11 - Na mesma altura de V6, coloca-se V7, V8 e V9, sendo que V8 fica no plano da ponta da escápula. Figura 12 - Para o posicionamento de V3R e V4R, deve-se imaginar que foi colocado um espelho no esterno do paciente. No mesmo local onde deve ficar V3 à esquerda, fica V3R à direita, idem com V4 ECG Completo.indb 28 26/08/2019 09:26:24 INTRODUÇÃO AO ECG 29 REFERÊNCIAS 1. MacFarlane P, van Oosterom A, Pahlm O, Kligfield P, Janse M, Camm J, editors. Comprehensive Electrocardiology. 2nd ed. London: Springer; 2011. 2. Koelliker A v, Müller H. Nachweis der negativen Schwankung des Muskelstroms am natürlich sich contrahirenden Muskel. Verh Phys Med Ges., 1856;6:528–33. 3. Bruce FW. Rudolf Albert Von Koelliker. Clin Cardiol [Internet]. Wiley-Blackwell; 2009 Feb 3;22(5):376–7. Available from: <https://doi.org/10.1002/clc.4960220517>. 4. Waller AD. A Demonstration on Man of Electromotive Changes accompanying the Heart’s Beat. J Physiol [Internet]. 1887;8(5):229–34. Available from: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/ pmc/articles/PMC1485094/>. 5. Levick JR. Chapter 4 - Electrocardiography. In: Levick JRBT-AI to CP, editor. An Introduction to Cardiovascular Physiology. Butterworth-Heinemann; 1991. p. 45–54. 6. Einthoven W. Un nouveau galvanometre. Arch Neerl Sc Ex Nat., 1901;6:625–39. 7. Einthoven W. Die galvanometrische Registrirung des menschlichen Elektrokardiogramm, zugleich eine Beurtheilung der Anwendung des Capillar‐Elektrometers in der Physiologie. Pflüger’s Arch f d ges Physiol [Internet]. Wiley/Blackwell (10.1111); 1903 Jun 5;99(1):472–80. Available from: <https://doi.org/10.1111/j.1542-474X.1997.tb00314.x>. 8. Maciel R. Willem Einthoven.De um começo árduo ao prêmio Nobel. Arq Bras Cardiol., 1996;66(4):179–86. 9. Henson JR. Descartes and the ECG Lettering Series. J Hist Med Allied Sci [Internet]. 1971 Apr 1;XXVI(2):181–6. Available from: <http://dx.doi.org/10.1093/jhmas/XXVI.2.181>. 10. Hurst JW. Naming of the Waves in the ECG, With a Brief Account of Their Genesis. Circula- tion [Internet]. 1998;98(18):1937–42. Available from: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pub- med/9799216%5Cnhttp://circ.ahajournals.org/cgi/doi/10.1161/01.CI>R.98.18.1937 11. Einthoven W. Ueber die Form des menschlichen Electrocardiogramms. Pflüger, Arch für die Gesammte Physiol des Menschen und der Thiere [Internet]. 1895 Mar [cited 2018 Dec 29];60(3–4):101–23. Available from: <http://link.springer.com/10.1007/BF01662582>. 12. Einthoven W. Weiteres über das Elektrokardiogramm. Pflügers Arch ges Physiol., 1908;122:517–84. 13. Einthoven W, Fahr G, de Waart A. On the direction and manifest size of the variations of po- tential in the human heart and on the influence of the position of the heart on the form of the electrocardiogram. Am Heart J [Internet]. Elsevier; 1950 Jan 11;40(2):163–211. Available from: <http://dx.doi.org/10.1016/0002-8703(50)90165-7>. 14. Burger HC, Van Milaan JB. Heart-vetor and leads. Br Heart J [Internet]. 1946 Jul;8(3):157–61. Available from: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC481007/>. 15. Burger HC, Van Milaan JB. Heart-vector and leads. Part II. Br Heart J. England; 1947 Jul;9(3):154–60. 16. Wilson FN, Johnston FD, Macleod AG, Barker PS. Electrocardiograms that represent the poten- tial variations of a single electrode. Am Heart J [Internet]. 1934;9(4):447–58. Available from: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0002870334900934>. ECG Completo.indb 29 26/08/2019 09:26:24 CAPÍTULO 1 30 17. Goldberger E. A simple, indifferent, electrocardiographic electrode of zero potential and a tech- nique of obtaining augmented, unipolar, extremity leads. Am Heart J [Internet]. Elsevier; 2018 Jan 11;23(4):483–92. Available from: <http://dx.doi.org/10.1016/S0002-8703(42)90293-X>. 18. Alencar Neto JN de. Eletrocardiograma: do internato à cardiologia. 1st ed. São Paulo: Porto de Ideias; 2016. ECG Completo.indb 30 26/08/2019 09:26:24 CAPÍTULO 31 José Nunes de Alencar Neto Anatomia e eletrofi siologia cardíacas INTRODUÇÃO Não me leve a mal, mas para o uso prático básico de eletrocardiograma, isto é, detectar sobrecargas, bloqueios, isquemia e arritmias, o conhecimento da anatomia e da eletrofi siologia car- díaca pode fi car em segundo plano. Com “segundo plano”, no entanto, não quer dizer que esse conhecimento é desnecessário. Não. Tanto para um interno de Medicina que irá prestar prova de Residência, como para um médico que quer se aprofundar no co- nhecimento dessa arte, esses concei- tos precisam ser conhecidos. Neste capítulo traremos informa- ções básicas sobre tudo o que é im- portante para a ciência do eletrocar- diograma. Nos capítulos que sucedem faremos considerações breves sobre anatomia e fi siologia, mas, quando for necessário, daremos a sugestão que o autor retorne aqui. Em resumo, este capítulo pode ser “pulado”, caso você esteja procurando por um conteúdo mais prático, mas o autor não aconselha. NOÇÕES DE ANATOMIA DO SISTEMA ELÉTRICO CARDÍACO O sistema elétrico é composto de células musculares cardíacas especia- lizadas que formam nós (ou nodos) e feixes que possuem a capacidade de gerar o impulso (potencial de ação) e de conduzir o mesmo com uma maior velocidade (Figura 1). Figura 1 - Sistema de condução cardíaco. 2 ECG Completo.indb 31 26/08/2019 09:26:24 CAPÍTULO 2 32 Todo o sistema elétrico cardíaco possui a capacidade de geração do impulso, porém cada estrutura im- prime velocidades diferentes para executar o processo de geração de despolarização de membrana que detalharemos mais à frente. Desse modo, a estrutura que mais rápido conseguir executar todo o passo a passo necessário para que sua mem- brana tenha um salto em voltagem interrompe o mesmo processo que vinha ocorrendo nas demais células elétricas que estavam ainda tentan- do despolarizar-se, e estas passarão apenas a conduzir o impulso gerado. Por esse motivo, em condições fisio- lógicas, o nó sinusal, que é localiza- do no teto do átrio direito, em sua parede posterolateral, é considerado o maestro do coração. Este impulso não é capturado pelos eletrocardió- grafos, portanto, nessa fase ainda existe um silêncio elétrico no ECG. Dura pouco tempo, porque em ques- tão de 50 ms o impulso sai do nó si- nusal e começa a despolarizar a mus- culatura dos átrios. Esse potencial de ação gerado é transmitido pelo átrio direito por cé- lulas miocárdicas atriais dispostas pa- ralelamente e erroneamente chama- das de feixes internodais (espere um pouco para compreender a razão do erro) e também para o átrio esquerdo através de células miocárdicas atriais não especializadas e não insuladas, portanto, erroneamente chamadas de feixe de Bachmann - o melhor seria chamar esse local de “região” de Ba- chmann, por exemplo (1,2). Sua ativa- ção é incapaz de ser capturada pelos eletrocardiógrafos. Nessa fase do ciclo cardíaco, a des- polarização ocorre apenas nas células atriais. Até aqui, falando em termos elétricos, o que temos é a geração da onda P (pois os átrios foram despolari- zados). Concomitante a isso, o estímu- lo que desceu pelos feixes internodais em direção a outro nó na fronteira entre os átrios e os ventrículos que é o nó atrioventricular, nó de Aschoff- -Tawara (carinhosamente chamado de nó AV). O nó AV foi caracterizado por Sunao Tawara em 1906 (3). É uma es- trutura ovaloide com 1 x 3 x 5 mm de área localizada dentro do triângulo de Koch, uma região endocárdica de interesse para arritmologia delimitada anteriormente pelo folheto septal da valva tricúspide, posteriormente pelo tendão de Todaro, tendo no ápice o corpo fibroso central e na base o óstio do seio coronariano (4) (Figura 2). Em situações normais, só há uma forma de o estímulo elétrico passar do átrio para o ventrículo: é através do nó AV. O esqueleto fibroso cardíaco é um complexo de tecido fibroso que sustenta as valvas cardíacas à base do coração e é o responsável por isolar eletricamente as câmaras atriais das ventriculares (5) (Figura 3). Dessa for- ma, a propagação do impulso atinge as células transicionais do nó AV (cé- lulas que não possuem características histológicas de condução nem de con- tração), onde há reduzidas junções co- municantes, propiciando de maneira ECG Completo.indb 32 26/08/2019 09:26:24 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 33 fisiológica um atraso na condução do impulso nervoso. Esse atraso que o nó AV imprime à condução do estímulo elétrico é o responsável pelo silêncio elétrico que existe entre a onda P (des- polarização dos átrios) e o complexo QRS (despolarização dos ventrículos). O intervalo PR (ou mais corre- tamente “PQ”) é a expressão eletro- cardiográfica da baixa velocidade da condução do impulso pelo nó AV – atenção, existe atividade elétrica, mas esta é imperceptível aos eletrocardió- grafos. Aliás, se pararmos para pensar, ainda bem que isso ocorre. Se não fos- se por essa pausa, os átrios e os ventrí- culos iriam despolarizar praticamente juntos, com todas as válvulas abertas. Para onde o sangue iria? O nó AV compacto mergulha no esqueleto fibroso do coração e, na re- gião do corpo fibroso central, as fibras do feixe de His nascem (esse sim um “feixe” de fato com 5-10 mm de com- primento). Esse feixe é importante na prática clínica porque, marca o início do território elétrico ventricular, mas em eletrocardiografia é irrelevante, porque sua atividade não consegue ser capturada pelos galvanômetros dos eletrocardiógrafos. Portanto, não vemos a atividade de His no ECG. Em eletrofisiologia invasiva, no entanto, podemos posicionar um ca- teter próximoao feixe para capturar sua atividade e assim definir o nível de bloqueio atrioventricular de um pa- ciente. Em um bloqueio de condução atrioventricular que não chegou a des- polarizar o feixe de His, por exemplo, Figura 2 - Região do triângulo de Koch delimitada por triângulo vermelho. Figura 3 - Esqueleto fibroso cardíaco que dá sustentação às suas valvas. Na sua porção anterior está o folheto septal da valva tricúspide, na porção posterior o tendão de Todaro, no ápice está o corpo fibroso central onde se localiza o feixe de His e a base do triângulo é o óstio do seio coronariano (4). Também serve como isolante elétrico, não permitindo a passagem do estímulo elétrico dos átrios para os ventrículos, a não ser pelo nó atrioventricular ou algum feixe acessório que por ventura o paciente tenha (5). ECG Completo.indb 33 26/08/2019 09:26:25 CAPÍTULO 2 34 sabemos que o defeito está no tecido atrial ou no nó atrioventricular. Quan- do o bloqueio ocorreu depois do feixe de His, denominado “bloqueio infra- -hissiano”, o problema não é mais o nó AV, e sim o tecido de condução ventri- cular, denotando maior gravidade. Isto será importante no capítulo 23. Ao adentrar no esqueleto fibroso rumo ao septo interventricular, o fei- xe de His se divide na sua porção bi- furcante em ramo direito, mais fino e frágil, e ramo esquerdo, que chega a possuir 5-7 mm de diâmetro. O ramo direito passa pela muscula- tura septal na base do músculo papilar medial do ventrículo direito e penetra nas trabeculações ou na banda mo- deradora (6). O ramo esquerdo parte inferior e anteriormente e se divide em fascículo anterossuperior e fascí- culo póstero-inferior (7). O fascículo anterossuperior cruzará a via de saída do ventrículo esquerdo e terminará na base do músculo papilar anterior. O fascículo póstero-inferior, mais cali- broso, se curvará posteriormente para atingir o músculo papilar posterior (8) (Figura 4). Tem-se questionado a natureza tri- fascicular do sistema de condução. De porções distais do fascículo póstero- -inferior ou do anterossuperior emer- ge uma intrincada rede de tecidos de condução septal, o que resultaria na existência de quatro fascículos – um da direita e três da esquerda (9). Há também quem defenda que o ramo direito também se bifurca ou trifurca, podendo, em teoria, um ser humano apresentar seis fascículos no total (teo- ria hexafascicular). Detalhes serão vis- tos no capítulo 10. Por fim, o impulso irá prosseguir pelas fibras de Purkinje, continuações desse sistema elétrico, até atingir as células que irão contrair os ventrí- culos, gerando o complexo QRS. O trajeto nos ventrículos aumenta a eficiência da sístole ventricular. Isso porque o estímulo contrátil chega primeiro às células do ápice cardíaco e, posteriormente, ascende pelas pa- redes. Dessa forma, o ápice se contrai em direção à base do coração, onde se encontram as artérias, que são os destinos do sangue acumulado nas câmaras inferiores. Figura 4 - Anatomia esquemática do feixe de His e de seus ramos direito e esquerdo, além dos fascículos anterossuperior e póstero-inferior do ramo esquerdo (8). BM = banda moderadora; Hb = feixe de His (His bundle); MPA = músculo papilar anterior; MPP = músculo papilar posterior; RD = ramo direito; RE = ramo esquerdo. ECG Completo.indb 34 26/08/2019 09:26:25 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 35 SITUAÇÕES ESPECIAIS São de importância para eletrofisio- logia alguns detalhes sobre a condu- ção do estímulo elétrico: (a) na maioria das pessoas, o nó AV possui capacida- de de condução anterógrada e retró- grada, seguindo do átrio para o ventrí- culo ou, se por desventura o ventrículo despolarizar-se primeiro, do ventrículo para o átrio – é o que chamamos de condução retrógrada. Em até 35% das pessoas, existe ainda o que chamamos de “dupla fisiologia nodal”, em que ocorre uma espécie de bifurcação do tecido nodal a nível de nó AV compac- to (10); (b) outra situação digna de nota é a presença de “atalhos” através do es- queleto fibroso, contendo feixes aces- sórios usualmente chamados feixes de Kent (nomenclatura julgada errada por alguns especialistas, já que Kent afir- ma ter encontrado, mas não descreve com detalhes, em seu artigo original conexões átrio-ventriculares múltiplas que seriam responsáveis pela condu- ção elétrica de conduções normais) (11-13), capazes de condução elétrica, que "trapaceiam" o atraso de condu- ção fisiológico imposto pelo nó AV. Se o impulso elétrico chega aos ventrícu- los antes do habitual atraso no nó AV, irá haver o que chamamos de pré-ex- citação ventricular, e o que três cardio- logistas, Wolff, Parkinson e White des- creveram em 1930 como a síndrome que leva seus nomes (14): a síndrome arritmogênica de Wolff-Parkinson- -White, ou WPW, essas estruturas serão descritas com detalhes no capítulo 19; Figura 5 - Resumo das fibras que conseguem “by-passar” o esqueleto fibroso cardíaco. Feixe de típicos: vias acessórias rápidas que produzem PR curto e onda delta e a síndrome de Wolff-Parkinson-White. Feixe de Mahaim: vias acessórias lentas histologicamente semelhantes ao nó AV que produzem mínima ou nenhuma pré-excitação. Feixe de James: Não “by-passa” o esqueleto, mas falamos aqui por ser similar às anteriores. São fibras histologicamente semelhantes ao nó AV que conectam o átrio ao feixe de His, atuando como um nó AV acessório. Pode ser uma das causas do achado de um intervalo PR curto sem onda delta no eletrocardiograma. ECG Completo.indb 35 26/08/2019 09:26:26 CAPÍTULO 2 36 Figura 6 - Sequência da atividade elétrica cardíaca e sua expressão no eletrocardiograma. (c) outro tipo de atalho conhecido que o estímulo pode tomar para ganhar os ventrículos é uma estrutura histolo- gicamente semelhante ao nó AV, mas conecta estruturas distintas. São as fi- bras de Mahaim e foram originalmen- te descritas por Mahaim e Benatt como estruturas que conectavam o nó AV ao ramo direito ou ao ventrículo (15), mas hoje em dia sabe-se que há sete tipos de “vias acessórias atípicas”, que serão descritas com detalhes no capítulo 19; (d) por fim, vamos citar uma estrutura que não “bypassa” o esqueleto cardía- co, mas pela sua semelhança com as anteriores, será citada aqui. O feixe de James, ou via acessória atípica átrio-hissiana é uma estrutura histolo- gicamente semelhante ao nó AV pode conectar o átrio com o feixe de His, fun- cionando como um nó AV acessório. Esse feixe foi responsabilizado pela Sín- drome de Lown-Ganong-Levine (inter- valo PR curto sem onda delta), mas este termo está em desuso devido à falta de correlação clínica e anatômica (16–18). Também estará descrito no capítulo 19. O resumo dessas fibras que produ- zem bypass através do esqueleto car- díaco está contido na figura 5. NOÇÕES DO SUPRIMENTO SANGUÍNEO DO SISTEMA ELÉTRICO O nó sinusal é irrigado pela artéria do nó sinusal, um ramo da artéria co- ronária direita (CD) em 53% dos casos 1: O nó sinusal se despolariza e inicia a ativação atrial direita e esquerda: onda P. 2: O estímulo elétrico corre lentamente pelo nó AV: intervalo PR. 3: O ventrículo começa a despolarizar: complexo QRS. 4: A repolarização ventricular se completa. ECG Completo.indb 36 26/08/2019 09:26:26 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 37 e da circunflexa nos outros 42% e de ambas artérias em 3%. A região de Ba- chmann recebe sangue de um ramo da artéria do nó sinusal (19). O nó AV e o feixe de His são supridos pela arté- ria no nó AV, um ramo da CD em 72% dos humanos e da Cx em 28% (20). O ramo direito e o fascículo anterior do ramo esquerdo são supridos pelos ra- mos septais proximais da artéria des- cendente anterior (DA). O fascículo posterior do ramo esquerdo é a por- ção menos vulnerável do sistema, re- cebendo suprimento duplo: DA e arté- ria descendente posterior (DP) (21). O átrio é irrigado pelos ramos atriais das artérias coronárias (22)e os ventrículos possuem irrigação complexa que será descrita com detalhes no capítulo 12. Um resumo de tudo o que foi fa- lado até aqui pode ser encontrado na Figura 6 e na Tabela 1. Estrutura Irrigação ECG Nó sinusal Artéria do nó sinusal (ramo da CD em 53%, Cx em 42% e dupla em 3%). Despolarização é incapaz de ser sentida pelo eletrocardiórafo - Silêncio elétrico. Átrio direito Ramos atriais da coronária direita. Porção inicial da onda P. Região de Bachmann Ramo da artéria do nó sinusal. Silêncio elétrico não interferindo na onda P. Átrio esquerdo Ramos atriais da coronária esquerda. Porção final da onda P. Nó AV Artéria do nó AV (ramo da CD em 72% e da Cx em 28%). Despolarização é incapaz de ser sen- tida pelo eletrocardiógrafo, gerando silêncio elétrico - Intervalo PR. Feixe de His Mesma irrigação do nó AV. Despolarização é incapaz de ser sen- tida pelo eletrocardiógrafo, gerando silêncio elétrico - Intervalo PR. Ramo direito Ramo septal da DA. Intervalo PR. Ramo esquerdo DA e descendente posterior. Intervalo PR. Fibras de Purkinje Depende da parede. Complexo QRS. Ventrículos Depende da parede. Complexo QRS. Siglas: AV: atrioventricular; CD: coronária direita; Cx: circunflexa; DA: descendente anterior Tabela 1 - Estruturas anatômicas de interesse em eletrofisiologia, sua irrigação sanguínea e expressão eletrocardiográfica. ECG Completo.indb 37 26/08/2019 09:26:26 CAPÍTULO 2 38 INTRODUÇÃO À ELETROFISIOLOGIA – POR QUE O CORAÇÃO BATE? COMO O ESTÍMULO ELÉTRICO É CONDUZIDO? Calma, este tópico não morde. Vamos apenas entender como o estí- mulo elétrico é formado e conduzido célula a célula, fibra a fibra. O proces- so de geração do impulso elétrico é realizado, na maior parte das vezes, pelo nó sinusal, mas pode ocorrer em outras células com capacidade automática, a saber: nó AV, feixe de His, fibras de Purkinje. A nível celular, ocorrem mudanças nas concentra- ções iônicas que resultam na despo- larização da membrana celular das suas células que estavam polarizadas e essa perturbação iônica é propaga- da para as células adjacentes muscu- lares, provocando a contração destas, e para o restante do sistema elétrico que irá transmitir esse estímulo para as demais regiões cardíacas. O potencial de ação das células au- tomáticas é diferente do potencial de ação das células musculares. Vamos observar em detalhes estas diferenças. POTENCIAL DE AÇÃO DAS CÉLULAS AUTOMÁTICAS A membrana de uma célula do nó sinusal possui canais de sódio, potás- sio e cálcio. Inicialmente, essas células se encontram com uma carga negativa em relação a concentração extracelu- lar, ou seja, polarizada (- 60 mV), com uma maior concentração de potássio no seu interior e uma maior concen- tração de sódio e cálcio externamente. A situação polarizada do nó sinusal se mantém devido à presença de um ca- nal de potássio com corrente pratica- mente constante (IK). A automaticidade das células do nó sinusal se deve a dois canais: (1) os canais lentos de sódio que permi- tem uma entrada constante de sódio independente do potencial de ação. A corrente gerada por esse canal é denominada IF, porque os nerds que a descobriram acharam “funny” que um canal de sódio pudesse ser lento (23); (2) os canais tipo T de cálcio (ICaT) que fazem entrar cálcio, também carga positiva para dentro da célula. Esses dois canais vão aos poucos deixando menos negativo o potencial da mem- brana. Até que a carga de – 40 mV é atingida. Quando o potencial alcança esse valor, os canais de cálcio depen- dentes de voltagem (ICaL) se abrem, permitindo assim um grande influxo de cálcio que eleva o potencial para valores positivos em torno de + 10 mV, ou seja, leva à despolarização da membrana (10,24) (o leitor atento per- ceberá que o potencial de ação passou de polarizado negativo para polariza- do positivo, mas, por convenção, cha- mamos essa transformação em carga positiva de “despolarização”). Despo- larização em eletrofisiologia significa: positivei o potencial, fiz nascer o estímulo. Pronto. Agora você já sabe por que o coração tem o potencial de “bater” sozinho (25). ECG Completo.indb 38 26/08/2019 09:26:26 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 39 Mas a vida continua e ao se obter um potencial positivo, abrem-se os ca- nais de potássio (IK), que promovem a repolarização da membrana. Repolari- zação em eletrofisiologia significa: vol- tei o potencial para negativo, repo- larizei a célula para iniciar de novo o processo. Você encontrará esses passos que revisamos como “fases” em livros tex- to. A fase 4 é a fase de repouso, em que a célula está polarizada e as correntes IF e ICaT estão pronunciadas. A fase 0 é a fase de despolarização lenta coman- dada pela abertura dos canais de cál- cio da corrente ICaL. A fase 3 é a fase em que há abertura dos canais de potássio que repolarizam a célula. Veja o resu- mo desses passos na Figura 7. POTENCIAL DE AÇÃO DAS CÉLULAS CONTRÁTEIS O potencial de membrana de re- pouso das células musculares cardía- cas é aproximadamente – 90 mV (ou seja, a célula muscular tem um poten- cial mais negativo que as células au- tomáticas). Ao ocorrer influxo de íons provenientes das células que já se des- polarizaram antes através das junções comunicantes, este potencial irá ser le- vemente positivado, o suficiente para abrir os canais rápidos de sódio (INa) e desencadear um grande influxo de sódio positivando o potencial de ação para + 47 mV. Consequentemente, os canais rápidos de sódio despolari- zam a membrana. Figura 7 - Potencial de ação da célula automática, particularmente a do nó sinusal. A fase 4 é a fase de repouso, em que a célula está polarizada e as correntes IF e ICaT estão pronunciadas. A fase 0 é a fase de despolarização lenta comandada pela abertura dos canais de cálcio da corrente ICaL. A fase 3 é a fase em que há abertura dos canais de potássio que repolarizam a célula. ECG Completo.indb 39 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 2 40 Essa despolarização irá resultar na abertura dos canais antagônicos responsáveis pela fase de repolari- zação: potássio que repolariza a cé- lula e cálcio que segue deixando-a despolarizada. Entenda: as corren- tes potássio (Ito, IKr e IKs) servem para que saiam cargas positivas e a célula seja repolarizada. Já a corrente len- ta de cálcio (ICaL), por onde entram cargas positivas, seguem positivan- do o potencial da célula. Devido à abertura mais gradual dos canais de cálcio, sua ação é atrasada em rela- ção aos canais de potássio. Logo, a saída de potássio inicia a repolariza- ção da célula (fase 1), contudo, de- vido a entrada lenta de cálcio, irá se formar um breve equilíbrio na mo- vimentação das cargas. Esse antago- nismo representa a fase de platô do potencial de ação. Vou repetir pra que fique bem en- tendido: a fase de platô é a fase 2 do potencial de ação. Nela acontece algo curioso: duas correntes brigam entre si. Canais de potássio tentam repolari- zar a célula e canais de cálcio tentam deixa-la polarizada. Essa entrada de cálcio também dis- para a liberação do cálcio armazenado no retículo sarcoplasmático. Dessa for- ma, uma grande quantidade de cálcio se concentra no meio intracelular e irá participar do processo de contração muscular. Entretanto, não demora para os ca- nais de cálcio se fecharem novamente, pois, com a leve queda do potencial durante o platô, a voltagem deixa de ser suficiente para mantê-los abertos. Consequentemente, a repolarização ocorre, afinal apenas o potássio (carga positiva) está saindo da célula. E assim permanece por toda a fase de repouso com a célula polarizada devido à ação do canal retificador IK1. O resumo des- tes passos você encontrará na Figura 8. Figura 8 - Potencial de ação e correntes iônicas por canais. Na fase 4, a célula se mantém polarizada pela ação do canal retificador IK1. Quando há uma perturbação iônica na membrana devido à entrada de íons provenientesde células vizinhas já despolarizadas através de junções comunicantes, o canal rápido de sódio se abre (INa) e despolari- za a membrana, levando seu potencial de -90 mV para + 20 mV, sendo responsável pela fase 0. Na fase 1, a ação da corrente Ito faz com que potássio seja expulso da célula, que perde um pouco da sua positividade. A fase 2 é a de platô. A ação dos canais de potássio (IKr e IKs) em tirar carga positiva da célula se opõe à ação dos canais lentos de cálcio (ICaL) que tentam colocar carga positiva. Na fase 3, com o fechamento do canal de cálcio, o potássio reina absoluto, repolarizando a célula (27). E aí, com todo esse cálcio no inte- rior da célula, o que acontece? Ele se liga à troponina C, que por sua vez ECG Completo.indb 40 26/08/2019 09:26:27 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 41 irá se ligar à tropomiosina e facilitar o acoplamento das moléculas de actina e miosina, levando à contração da cé- lula. Concomitantemente a isso, uma parte dos íons sódio e cálcio já foram para as células adjacentes através das conexinas e estarão se contrain- do logo em seguida. Desse modo, as milhões de células miocárdicas ven- triculares despolarizam-se quase que instantaneamente (25). Nomeie um órgão mais bonito que esse e falhe mi- seravelmente. Na tabela 2, você encontrará um resumo dos potenciais de ação da cé- lula automática. Na tabela 3, você en- contrará um resumo dos potenciais de ação da célula contrátil. Tabela 2 - Resumo do potencial de ação de células automáticas. Fase Correntes Efeito 4 - Repouso IF e ICaT Fazem entrar cargas positivas e elevam lentamente o potencial de membrana de – 60 mV até próximo de – 40 mV. 0 - Despolarização ICaL Fazem entrar cargas positivas e elevam pouco rapidamente o potencial de ação de – 40 mV até + 5 mV. 3 - Repolarização IK Fazem sair cargas positivas e trazem o potencial de membrana para negatividade de repouso (-60 mV). ECG Completo.indb 41 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 2 42 Tabela 3 - Resumo do potencial de ação das células contráteis. Fase Correntes Efeito 4 - Repouso IK1 Transporta potássio para dentro da célula Célula permanece nesse potencial até que perturbações externas a fazem passar para próxima fase. 0 - Despolarização INa Entra carga positiva na célula e seu potencial passa muito rapida- mente de – 90 mV para + 20 mV. 1 – Repolarização inicial Ito Canal de potássio age pratica- mente sozinho por um curto período tirando carga positiva e repolarizando parte da célula. 2 - Platô ICaL x IKr e IKs A corrente de cálcio faz entrar carga positiva e a corrente de potássio faz sair carga positiva, permanecendo constante por um breve período. 3 - Repolarização IKr e IKs Agora que o canal de cálcio fe- chou, a célula retorna à sua carga de repouso. ECG Completo.indb 42 26/08/2019 09:26:27 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 43 RESUMO SOBRE AS CORRENTES IÔNICAS Falamos do potencial de ação, mas não falamos das características elétri- cas de cada corrente. INa Despolarizante. Miócitos atriais e ventriculares e células de Purkinje são densamente populadas por esses ca- nais. Eles abrem muito rapidamente (< 1 ms), por isso chamamos de “ca- nais rápidos de sódio” acima. Pouco presentes nas células dos nós sinusal e atrioventricular. A função inadequada desses canais pode levar à Síndrome de Brugada, ao QT longo congênito tipo 3, e à síndro- me de Lev-Lenegre. ICaL Despolarizante. É a corrente lenta de cálcio. Estão presentes em todas as células do coração. É desativado por despolarização da membrana, mas desativa bem mais lentamente que a corrente rápida de sódio. Tem ação crucial no potencial de ação de células automáticas. ICaT Despolarizante. A corrente tipo T de cálcio é expressa no miócito atrial e nas células nodais e condutoras. Tem ação importante na saída da fase de repouso da célula automática. IF Despolarizante. A corrente funny é ativada por hiperpolarização da membrana. É amplamente responsiva à ação do sistema nervoso autônomo e está presente no nó sinusal, nó AV e células de Purkinje. Ito Repolarizante. É a chamada corren- te transiente “outward” de potássio. Sua importância clínica se deve ao fato de que essa corrente é expressa em magnitudes diferentes pelo miocárdio ventricular: é robusta no epicárdio e modesta no endocárdio, levando a um gradiente transmural de potencial de membrana que pode gerar a onda J de Osborn ou a repolarização precoce no eletrocardiograma. IKur Repolarizante. É uma corrente ul- trarrápida. Presente nas células atriais, por isso elas possuem um potencial de ação mais curto que o ventricular. IKs e IKr Repolarizantes. Importantes na fase 3 do potencial de ação de células automáticas e contráteis. O IKs (“s” de “slow”), por sofrer uma desativação mais lenta, permanece aberto de um batimento cardíaco para outro em fre- quências muito rápidas. Isso faz com que a próxima repolarização seja mais ECG Completo.indb 43 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 2 44 rápida, afinal já tem canal aberto. Esta é a razão pela qual nosso intervalo QT (ou seja, nossa repolarização) encurta a frequências elevadas. Defeitos genéticos na transcrição do IKs com perda de função levam à Síndrome do QT longo congênito tipo 1 e defeitos na transcrição do IKr com perda de função levam ao QT longo congênito tipo 2 (26). O ganho de função do IKr e IKs e tam- bém do IK1 leva ao QT curto congênito. IK1 Corrente retificadora voltagem de- pendente que serve para deixar o poten- cial de membrana próximo de – 90 mV. A potenciais mais negativos que isso, ela deixa potássio entrar na célula para man- ter o potencial próximo de – 90 mV. IKach Corrente ligada à proteína G ini- bidora e expressa nas células auto- máticas e Purkinje. A proteína G ini- bidora é ativada tanto pela ação dos canais muscarínicos pela ação do sis- tema nervoso autônomo parassim- pático como pela ação do receptor de adenosina (A1). Sua ativação ativa a saída de potássio e hiperpolariza a célula, deixando-a mais difícil se ati- var (27). A adenosina age nas arritmias por reentrada nodal justamente desta maneira: a ação no canal A1 ativa a proteína G inibitória que ativa a cor- rente IKach, o que leva a uma hiperpo- larização da célula, deixando-a mais difícil de despolarizar, quebrando a arritmia (28). ECG Completo.indb 44 26/08/2019 09:26:27 ANATOMIA E ELETROFISIOLOGIA CARDÍACAS 45 REFERÊNCIAS 1. Anderson RH, Ho SYEN. The Architecture of the Sinus Node, the Atrioventricular Con- duction Axis, and the Internodal Atrial Myocardium. J Cardiovasc Electrophysiol [Inter- net]. Blackwell Publishing Ltd; 1998;9(11):1233–48. Available from: <http://dx.doi.or- g/10.1111/j.1540-8167.1998.tb00097.x>. 2. Anderson RH, Ho SY, Smith A, Becker AE. The internodal atrial myocardium. Anat Rec. United States; 1981;201(1):75–82. 3. Tawara S. Das Reizleitungssystem des Saügetierherzens. Jena: Gustav Fischer; 1906. 135-138 p. 4. Netter FH. Atlas of Human Anatomy E-Book [Internet]. Elsevier Health Sciences; 2017. Availab- le from: <https://books.google.com.br/books?id=6bZEDwAAQBAJ>. 5. Saremi F, Sánchez-Quintana D, Mori S, Muresian H, Spicer DE, Hassani C, et al. Fibrous Ske- leton of the Heart: Anatomic Overview and Evaluation of Pathologic Conditions with CT and MR Imaging. RadioGraphics [Internet]. Radiological Society of North America; 2017 Aug 18;37(5):1330–51. Available from: <https://doi.org/10.1148/rg.2017170004>. 6. Rosenbaum M, Elizari M, Lázzari J. Los hemibloqueos. Ed. Pados; 1968. 7. Elizari M V. The normal variants in the left bundle branch system. J Electrocardiol. United Sta- tes; 2017 Mar. 8. Alencar Neto JN de. Associação entre bloqueio de ramo esquerdo e bloqueio divisional ân- tero-superior: revisitando as evidências Association between left bundle branch block and anterosuperior hemiblock: revisiting evidences.Relampa. 2018;31(1):8–12. 9. Medrano GA, Brenes C, De Micheli A, Sodi-Pallares D. [Simultaneous block of the anterior and posterior subdivisions of the left branch of the bundle of His (biphasic block), and its associa- tion with the right branch block (triphasic block). Experimental and clinical electrocardiogra- phic study]. Arch Inst Cardiol Mex. Mexico; 1970;40(6):752–70. 10. Issa ZF, Miller JM, Zipes DP. Clinical arrhythmology and electrophysiology. 2nd ed. Philadel- phia, PA: Elsevier; 2012. 11. Kent S. Observations on the auriculo-ventricular junction of the mammalian heart. Q J Exp Physiol [Internet]. John Wiley & Sons, Ltd (10.1111); 1913 Nov 18;7(2):193–5. Available from: <https://doi.org/10.1113/expphysiol.1913.sp000160>. 12. Lev M, Lerner R. The theory of Kent; a histologic study of the normal atrioventricular commu- nications of the human heart. Circulation. United States; 1955;12(2):176–84. 13. Anderson RH, Ho SY, Gillette PC, Becker AE. Mahaim, Kent and abnormal atrioventricular con- duction. Cardiovasc Res. 1996;31(4):480–91. 14. Wolff L, Parkinson J, White PD. Bundle-branch block with short P-R interval in healthy young people prone to paroxysmal tachycardia. Am Heart J [Internet]. Elsevier; 1930 Jan 4;5(6):685– 704. Available from: <http://dx.doi.org/10.1016/S0002-8703(30)90086-5>. 15. Mahaim I, Benatt A. Nouvelles recherches sur les connexions supérieures de la branche gauche du faisceau de His-Tawara avec la cloison interventriculaire. Cardiology [Internet]. 1937;1(2):61–73. Available from: <http://www.karger.com/DOI/10.1159/000164567>. ECG Completo.indb 45 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 2 46 16. Caracta AR, Damato AN, Gallagher JJ, Josephson ME, Varghese PJ, Lau SH, et al. Electrophysio- logic studies in the syndrome of short P-R interval, normal QRS complex. Am J Cardiol. United States; 1973 Feb;31(2):245–53. 17. Brechenmacher C. Atrio-His bundle tracts. Br Heart J. 1975;37(8):853–5. 18. Alencar Neto JN de, Ramalho de Moraes SR, Back Sternick E, Wellens HJJ. Atypical bypass tracts: can they be recognized during sinus rhythm? EP Eur [Internet]. 2018 May 16;euy079-euy079. Available from: <http://dx.doi.org/10.1093/europace/euy079>. 19. James TN. The connecting pathways between the sinus node and A-V node and between the right and the left atrium in the human heart. Am Heart J [Internet]. 1963;66(4):498–508. Avai- lable from: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/000287036390382X>. 20. Ramanathan L, Shetty P, Nayak SR, Krishnamurthy A, Chettiar GK, Chockalingam A. Origin of the sinoatrial and atrioventricular nodal arteries in South Indians: an angiographic study. Arq Bras Cardiol. Brazil; 2009;92(5):314-319,330-335,342-348. 21. James T, Burch G. Blood supply of the human interventricular septum. Circulation. United Sta- tes; 1958;17(3):391–6. 22. James TN, Burch GE. The atrial coronary arteries in man. Circulation. United States; 1958;17(1):90–8. 23. Brown HF, Difrancesco D, Noble SJ. How does adrenaline accelerate the heart? Nature [In- ternet]. Nature Publishing Group; 1979 Jul 19;280:235. Available from: <http://dx.doi.or- g/10.1038/280235a0>. 24. Bonow RO, Mann DL, Zipes DP, Libby P. Braunwald, tratado de doenças cardiovasculares. 9th ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2013. 25. Barros D, Alencar Neto J de. Medicina resumida: sistema cardiovascular. 1st ed. Salvador: SA- NAR; 2018. 26. Schwartz PJ, MD LC, Insolia R. Long QT Syndrome: From Genetics to Management. Circ Arrhy- thm Electrophysiol [Internet]. 2012 Aug 1;5(4):868–77. Available from: <http://www.ncbi.nlm. nih.gov/pmc/articles/PMC3461497/>. 27. Asirvatham SJ, Cha YM, Friedman PA. Mayo Clinic Electrophysiology Manual [Internet]. OUP USA; 2013. Available from: <https://books.google.com.br/books?id=NW8GAQAAQBAJ>. 28. Shryock JC, Belardinelli L. Adenosine and Adenosine Receptors in the Cardiovascular Sys- tem: Biochemistry, Physiology, and Pharmacology. Am J Cardiol [Internet]. Elsevier; 2018 Jan 28;79(12):2–10. Available from: <http://dx.doi.org/10.1016/S0002-9149(97)00256-7>. ECG Completo.indb 46 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 47 3 INTRODUÇÃO O eletrocardiograma é uma fer- ramenta indispensável na Medicina. Sua análise é complexa e muitos de- talhes podem passar despercebidos por olhos menos treinados. Como qualquer exame da prática clínica, o profi ssional que irá fazer a sua análise precisa estar ciente do funcionamento correto do aparelho para detectar pos- síveis artefatos. Neste capítulo, revisaremos o corre- to funcionamento do eletrocardiógra- fo, desde sua confi guração até o posi- cionamento adequado dos eletrodos. Se você não dormir até o fi m do capí- tulo, ainda vamos apresentar maneiras diferentes de posicionar os eletrodos pra tentar enxergar coisas diferentes no ECG. Foco, força e fé. CONFIGURAÇÃO DO ELETROCARDIÓGRAFO – VELOCIDADE E GANHO O eletrocardiógrafo é um apare- lho designado para gravar a ativida- de elétrica cardíaca através de cabos para placas de metal em cada deri- vação. Consiste em um amplifi cador que magnifi ca sinais elétricos e em um galvanômetro que move uma agulha de acordo com a magnitude do poten- cial elétrico do paciente e também de acordo com a direção dessa corrente: positiva se o eletrodo está face a face com o vetor e negativa se o ve- tor está indo em direção contrária ao eletrodo. Esse é um dos conceitos mais fundamentais da eletrocardio- grafi a. De acordo com as convenções fei- tas pelo inventor do galvanômetro de corda, Einthoven, a inscrição do traça- do eletrocardiográfi co deverá ser ca- librada no exame padrão da seguinte maneira: a cada 0,1 mV de diferença de potencial registrada pelo galvanô- metro, 1 quadradinho (ou 1 milímetro) será inscrito (Figura 1) – quando essa confi guração está selecionada, o apa- relho trará a letra “N” maiúscula ou a inscrição da Figura 2. Com relação ao tempo, o papel corre pelo aparelho a uma velocidade de 25 mm/s. Essa é a confi guração padrão de um ECG. Precisa ser aprendida, tá ok? Às vezes, por razão de melhor lei- tura do traçado, ou pesquisa de algo específi co, podemos solicitar para que se aumente ou diminua o “ganho” do José Nunes de Alencar Neto O eletrocardiógrafo e os sistemas de derivações ECG Completo.indb 47 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 3 48 traçado. Por exemplo: se você está em dúvida sobre uma linha reta no moni- tor, você pode configurar o aparelho para dobrar o ganho para você, isto é, se antes cada 0,1 mV significava 1 mm, agora significa 2 mm e talvez isso des- mascare uma fibrilação ventricular – quem trabalha em emergência ou uni- dade de terapia intensiva sabe do que estou falando. Resumindo, uma onda pequena pode ser vista com mais ni- tidez. Da mesma forma, se um traça- do de um paciente hipertrófico, por exemplo, está muito confuso porque Figura 1 - Diagrama no papel de ECG demonstrando configuração. Figura 2 - No painel A, temos uma coluna com 10 mm, o que significa que cada 1 mV será inscrito em 10 mm, esta é a configuração “N” padronizada por Einthoven. No painel B, temos uma coluna com 5 mm, ou seja, a cada 1 mV serão inscritos apenas 5 mm, portanto, N/2. No painel C, a cada 1 mV serão inscritos 20 mm, ou seja, 2N. Falando sobre voltagem ou amplitude, na configuração N, cada 10 mm corresponderá a 1 mV/mm, ou seja, 0,01 mV/mm. Falando sobre o tempo, na velocidade habitual de 25 mm/s, cada 5 quadradinhos (ou 1 quadradão) corresponderão a 200 ms, e 1 quadradinho a 40 ms. ECG Completo.indb 48 26/08/2019 09:26:27 O ELETROCARDIÓGRAFO E OS SISTEMAS DE DERIVAÇÕES 49 tem ondas muito amplas e elas se en- contram com as outras derivações de modo que você não consegue ver seus limites, o examinador pode solicitar para reduzir o ganho pela metade ou a um quarto. Assim, cada 0,1 mV vai de- senhar apenas 0,5 mm ou 0,25 mm – o eletrocardiograma vai ficar mais limpo. Aumentar o ganho de um ECG é transformá-lode “N” para “2N”. E reduzir é deixá-lo em “N/2” ou “N/4” (Figura 2). Atenção: muitas avaliações dependem da amplitude de ondas ou segmentos. Um exemplo clássico é a medição do supradesnivelamento do segmento ST para infarto agudo do miocárdio, como veremos no capítulo 12. Considere que determinado paciente tenha em D2 e D3 um supradesnivelamento de 1,5 mm quando o aparelho está configura- do em “N” – o que lhe dá o diagnóstico de infarto. Mas imagine que no plantão anterior, alguém apertou “sem querer” o botão do ganho e o reduziu para N/2. Esse paciente terá um supradesnivela- mento de 0,75 mm (metade) e o médi- co do dia errará em dizer que o pacien- te não tem infarto agudo. Erros em ECG podem custar vidas. Uma dica prática é multiplicar as amplitudes por 2 em um ECG N/2, por 4 em um N/4, dividir por 2 em um 2N, e assim por diante. Outra modificação passível de ser realizada é aumentar a velocidade do traçado e isso pode ser a chave para encontrar ondas escondidas em rit- mos muito acelerados. Como assim? Se uma determinada atividade elétri- ca, por exemplo, uma onda P, possui 80 ms de duração, significa que a 25 mm/s ela ocuparia 2 quadradinhos ou 2 mm no papel do ECG. Agora, como estou gravando a 50 mm/s, os mesmos 80 ms serão gravados em 4 quadradi- nhos, pois o papel vai passar com o do- bro da velocidade por algo que mante- ve a sua duração constante (1). CONFIGURAÇÃO DO ELETROCARDIÓGRAFO – FILTROS A configuração de filtros é uma fer- ramenta frequentemente negligencia- da até mesmo por especialistas. Muitos artefatos podem interferir na gravação de um exame, a saber: contração mus- cular, respiração, linha elétrica, cam- pos magnéticos, marca-passos, pulsos arteriais, movimento, má adesão do eletrodo com a pele. Por essa razão, os aparelhos mo- dernos de eletrocardiograma passa- ram a filtrar sinais que não interessam ao exame. Para isso, estudaram qual a frequência (em Hz) das ondas estuda- das de interesse em eletrocardiografia. Veja na tabela 1. Agora resta configu- rar o aparelho para excluir do traçado as frequências dos artefatos, deixan- do visíveis apenas a faixa que contém componentes normais do ECG. O leitor atento à tabela 1 perceberá que isso nem sempre é possível. Um exemplo é o artefato muscular que possui a mes- ma frequência de oscilações dos com- ponentes do ECG. Sorte que resolver isso é fácil: é só pedir para o paciente não se mexer durante a aquisição do exame. ECG Completo.indb 49 26/08/2019 09:26:27 CAPÍTULO 3 50 Para excluir sinais com oscilações lentas, ou seja, de baixa frequência, como a oscilação de baseline, que é quando o traçado fica subindo e des- cendo pelo papel, introduzimos o “high-pass filter”, ou “filtro de passa-alta”. O problema relacionado a esse filtro é que se excluirmos oscilações me- nores que 0,67 Hz, podemos não ver frequências cardíacas menores que 40 bpm, então foi decidido por excluir os- cilações menores que 0,5 Hz e o resul- tado não foi animador: com essa fre- quência existe considerável distorção no ECG, principalmente em áreas em que a amplitude de frequência muda abruptamente, como no segmento ST (figura 3). A primeira recomendação da American Heart Association (AHA) em 1975 a respeito do tema sugeriu configurar os aparelhos para excluir frequências menores que 0,05 Hz, fre- quência que não distorcia o ECG, mas não protegia contra oscilação de base- line. Por sorte, os novos filtros digitais conseguem corrigir essa distorção e hoje podemos usar o limite de até 0,67 Hz sem prejuízos (2). Acorda aí. Vou re- sumir o parágrafo pra você: em apare- lhos modernos, podemos configurar o filtro de passas-altas em 0,05-0,67 Hz. Para excluir sinais de alta frequên- cia, como rede elétrica, o mais sensato seria estabelecer um filtro que excluís- se sinais com frequência maior que 50 Hz (frequência máxima do complexo QRS) e para esse fim foi criado o “filtro de passa-baixa”. O problema, no en- Tabela 1 - Frequências em Hz de componentes normais do ECG e artefatos. Componentes do ECG Frequência Batimentos cardíacos 0,67 Hz – 5 Hz (i.e., 40 – 300 bpm) Onda P 0,67 Hz – 5Hz QRS 10 – 50 Hz Onda T 1 – 7 Hz Potenciais de alta frequência 100 – 500 Hz Artefatos Frequência Contração muscular 5 – 50 Hz Respiração 0,12 – 0,5 Hz (8 – 30 irpm) Rede elétrica Brasil: 60 Hz (pode variar conforme cidade) Campos magnéticos > 10 Hz Como sabemos da sua dificuldade em física, trouxemos a fórmula de transformação de Hz em oscilações por minuto: é só multiplicar por 60. Pode usar uma calculadora se quiser. ECG Completo.indb 50 26/08/2019 09:26:27 O ELETROCARDIÓGRAFO E OS SISTEMAS DE DERIVAÇÕES 51 tanto, é que isso reduz sobremaneira a capacidade diagnóstica do exame, pois ondas de alta frequência (100 – 500 Hz) podem aparecer em algumas patologias, como a onda épsilon em displasia arritmogênica do ventrículo direito (3). Por isso, a recomendação é que se configure um filtro de 150 Hz para adultos (2) e 250 Hz para crianças (4). O leitor atento deve perceber que se um filtro que exclua frequências maiores que 150 Hz for configurado, a linha de rede elétrica, que possui 60 Hz na maior parte do Brasil, não será ex- cluída da gravação. Para rejeitar esses sinais, um filtro específico é configura- do: o line frequency filter (LFF), também chamado “notch filter”, basicamente um filtro que exclui frequências de 59 – 61 Hz. O problema desse filtro é a ge- ração de “artefatos de anel” que ocor- rem após complexos QRS e ocorre de- vido à mudança abrupta no espectro do domínio da frequência (Figura 4). Figura 3 - Mudança de configuração do segmento ST de um batimento cardíaco em V1 sem fil- tro (azul) e filtrado em passas-altas (vermelho) – perceba a importante distorção do segmento ST em vermelho e os potenciais erros diagnósticos que podem acontecer secundários a isso. Figura 4 - “Artefato de anel” ausente em A e presente em B devido à configuração de um “notch filter” (29). ECG Completo.indb 51 26/08/2019 09:26:28 CAPÍTULO 3 52 O último filtro digno de nota é o do eletrodo da perna direita ou com- mon mode rejection que serve para cancelar os artefatos de rede elétrica que vêm do próprio paciente, que nes- se caso está servindo como antena. O aparelho faz isso automaticamente co- letando sinais na faixa de frequência de rede elétrica provenientes dos de- mais membros e enviando ao apare- lho um sinal exatamente oposto a este (5). É para isso que serve o eletrodo da perna direita. Por essa razão, chama- remos o eletrodo da perna direita de “eletrodo terra” quando for oportuno. CONFIGURAÇÃO DO ELETROCARDIÓGRAFO – POSICIONAMENTO DOS ELETRODOS NO PACIENTE O correto posicionamento dos ele- trodos no corpo do paciente em um ECG padrão já foi visto no capítulo 1. Revisamos de forma prática suas loca- lizações na tabela 2. Falando especifi- Tabela 2 - Correto posicionamento de eletrodos em eletrocardiografia. Eletrodo Local Eletrodo amarelo Punho esquerdo Eletrodo verde Tornozelo esquerdo Eletrodo vermelho Punho direito Eletrodo preto Tornozelo direito V1 4º EIC. Para-esternal à direita V2 4º EIC. Para-esternal à esquerda V3 Entre V2 e V4 V4 5º EIC. Linha médio-clavicular esquerda V5 Entre V4 e V6 V6 5º EIC, Linha axilar média V7 Entre V6 e V8 V8 Inferior à ponta da escápula V9 Medial a V8 V3R Entre V1 e V4R V4R 5º EIC. Linha médio-clavicular direita ECG Completo.indb 52 26/08/2019 09:26:28 O ELETROCARDIÓGRAFO E OS SISTEMAS DE DERIVAÇÕES 53 camente sobre o posicionamento dos eletrodos de membros, eles precisam estar distais aos ombros e ao quadril, não necessariamente nos pulsos e tornozelos. Existe, no entanto, descri- ção de modificações em amplitudes e durações de ondas de ECG quando o eletrodo do braço esquerdo tem sua posição modificada (6). Devido a isso, a recomendação do autor é posicioná- -las a nível de pulsos e tornozelos, evi- tando colocá-las diretamente sobre as artériasradial e tibial anterior, pelo ris- co do artefato de pulsação arterial que será visto com detalhes no capítulo 5. A preparação da pele também é crucial para a realização de um exame sem artefatos e deve ser perseguida em todas as situações da prática clí- nica. A pele é um pobre condutor de eletricidade e pode criar artefatos im- portantes, pois não podem ser filtra- das pelo aparelho e sua amplitude é, muitas vezes, muito maior que a do traçado do paciente. A preparação da pele deve ser feita da seguinte manei- ra: (1) tricotomia da região onde os ele- trodos serão fixados; (2) limpe a região com água e sabão ou álcool; (3) seque a área vigorosamente com papel toa- lha ou gaze, realizando abrasão do lo- cal até que a pele fique cor de rosa. Es- ses passos são suficientes para reduzir a impedância desse sistema pele-ele- trodo (7,8). Existem, na prática, outros tipos de posicionamento de eletrocardiograma de acordo com a indicação clínica. Nos próximos parágrafos, você vai encontrar detalhes sobre os mais importantes: Sistema Mason-Likar Em 1966, Mason e Likar sugeriram transferir os eletrodos dos membros para o tórax em testes ergométricos, assunto que será discutido no capí- tulo 26. A mudança foi proposta para reduzir os artefatos causados pelos movimentos dos membros dos pa- cientes enquanto eram submetidos ao exame. No artigo original, não houve diferenças importantes em amplitudes quando se movia o eletrodo do braço direito (RA) para a fossa infraclavicu- lar direita medial à borda do músculo deltoide, dois centímetros abaixo da borda inferior da clavícula, o eletrodo do braço esquerdo (LA) em posição si- milar à esquerda, e o eletrodo da perna esquerda (LL) na linha axilar anterior, no ponto médio entre o rebordo cos- tal e a crista ilíaca. O eletrodo da perna direita foi ilustrado como posicionado no membro no trabalho original de Mason e Likar, mas por conveniência, o posicionamento em região análoga à da perna esquerda foi adotado (9) (Fi- gura 5). A adaptação, no entanto, não é isenta de falhas e críticas. O sistema Mason-Likar de eletrodos causa um desvio de eixo do vetor cardíaco para a direita, reduz a amplitude das ondas R em D1 e aVL e aumenta a amplitude da onda R em D2, D3 e aVF. Ainda mais importante: é possível que esse desvio de eletrodos faça com que os eletrodos “inferiores” vejam a parede anterior do coração, uma possível explicação para velhos dogmas da eletrocardiografia de esforço: (a) o infradesnivelamento ECG Completo.indb 53 26/08/2019 09:26:28 CAPÍTULO 3 54 no teste não determina parede com isquemia; (b) a parede inferior sofre de altos índices de falso-negativo (10). ST, por isso sua importância em testes ergométricos. Existem outras posições em que esse eletrodo pode ser fixado, por exemplo, na fronte do paciente (Figura 6).Figura 5 - Posicionamento de eletrodos pelo sistema Mason-Likar a ser usado em testes ergométricos. Hospitalar Para fins de monitoramento hospitalar, o uso do sistema Mason- Likar já discutido no tópico anterior é também amplamente utilizado, apenas com os eletrodos dos membros. O acréscimo de um eletrodo Figura 6 - Posições de eletrodos para aquisi- ção de derivações bipolares extras. O braço direito (RA) é posicionado na fossa infraclavicular, 2 cm abaixo da borda inferior da clavícula, medial à borda do músculo deltoide. O braço esquerdo (LA) é posicionado em região análoga à esquerda. A perna esquerda (LL) é posicionada na linha axilar anterior, ponto médio entre o rebordo costal e a crista ilíaca (9). No eletrocardiograma de exercício, acrescenta-se outro eletrodo no ma- núbrio esternal do paciente que será usado como polo negativo para o ele- trodo V5. Perceba: V5 seguirá sendo usado como dipolo do terminal cen- tral de Wilson, mas também servirá de polo para o eletrodo do manúbrio esternal. Desse modo, tem-se a deriva- ção CM5, que é uma das mais sensíveis para detectar alterações de segmento H: fronte do paciente. Usada da Suécia em eletrocardiogramas durante exercício em bicicleta ergométrica. S: fossa infraclavicular. M: manúbrio esternal, de longe a mais utilizada. Tem uma sensibilidade importante em detectar alterações de segmento ST, por isso seu uso em larga escala em testes ergométricos. B: inferior à escápula. R: braço direito. C: em posição análoga ao V5, mas do lado direito. Importante conhecer: manúbrio esternal. ECG Completo.indb 54 26/08/2019 09:26:28 O ELETROCARDIÓGRAFO E OS SISTEMAS DE DERIVAÇÕES 55 simulando V2 para-esternal à esquerda pode ajudar em situações de análise de ritmo. Outro sistema bastante usado é chamado de “Modified Chest Lead” ou “Mariott’s Chest Lead”, onde o posicio- namento de três eletrodos original- mente descrito obedecia à seguinte ordem: eletrodo do braço esquerdo no local de V1, eletrodo do braço direito locado infraclavicular à esquerda e ele- trodo terra em qualquer local (11). Derivações ortogonais e o vetor- cardiograma O leitor até aqui já deve ter perce- bido que a atividade elétrica cardíaca pode ser traduzida pela soma das di- ferenças de potencial das células car- díacas. Uma diferença de potencial resultante pode ser traduzida mate- maticamente como um vetor resultan- te. Cientistas perceberam que o vetor cardíaco resultante poderia ser avalia- do através da construção de sistemas ortogonais, que são nada mais do que sistemas que representam três deriva- ções: x, y e z. Por convenção, x detecta as forças laterais (similar à derivação D1 do ECG convencional); y detecta forças superiores ou inferiores e, assim como aVF, tem deflexão positiva caso um vetor aponte para o pé do pacien- te; e z, um eletrodo que detecta cor- rentes anteroposteriores, similar ao V2 do ECG (Figura 7). Nas décadas de 40 e 50, investiga- dores projetaram sistemas de medi- ção do vetor resultante cardíaco nes- tas três derivações/eixos. No entanto, entre 1945-1955, um conhecimento maior sobre a geometria cardíaca e a relação do vetor resultante com os diferentes posicionamentos de eletro- dos demonstrou que essas os sistemas criados até então, Duchosal, tetaedro de Wilson e cubo de Grishman, não eram tão ortogonais assim. Não vamos nos ater a esses sistemas, pois estão em desuso na prática clínica. A importância do parágrafo an- terior é que foi a partir disso que sur- giram as “derivações ortogonais cor- rigidas”. Frank, em 1956, publicou o primeiro sistema realmente ortogonal (12), pelo menos nos modelos de torso em tanques (13) (Figura 8). O sistema de Frank, ortogonal cor- rigido, possui cinco eletrodos (A, C, E, I e M). A e I são posicionados nas linhas Figura 7 - Planos vetorcardiográficos frontal, horizontal e sagital e eixos x, y e z. x: latero-lateral; y: supero-inferior; z: póstero-anterior. PF: plano frontal, PH: plano horizontal, PS: plano sagital. ECG Completo.indb 55 26/08/2019 09:26:28 CAPÍTULO 3 56 axilares médias esquerda e direita, res- pectivamente. E e M no esterno e colu- na. C deve ficar 45º distante de A e E, em uma posição similar ao ápice cardíaco. Todas essas derivações estarão dispos- tas no 4º ou 5º espaço intercostal. Existe mais um eletrodo: o H, que geralmente é posicionado na porção posterior do pescoço, mas sua localização não é par- ticularmente importante (Figura 9). SISTEMAS DE ECG “TRANSFORMADOS” Na década de 70, a fim de reduzir o tempo de realização de um exame e os custos com eletrodos, Dower in- troduziram o sistema de “derivações transformadas” (14) – soa estranho em português, mas significa que com o re- gistro de apenas três derivações (X, Y e Z), serão calculadas matematicamente as derivações clássicas do eletrocar- diograma. O progresso da técnica foi reportado pelo autor 11 anos mais tar- de trazendo um resultado no mínimo conflitante: o ECG derivado seria me- lhor correlacionado com os achados clínicos que o ECG de 12 derivações (15), resultado que foi duramente cri-
Compartilhar