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101 Olimpianos pós-modernos: um rápido olhar sobre as fotografias de celebridades Levy Henrique Bittencourt Neto Simonetta Persichetti 102 Resumo: O artigo aborda o conceito de olimpianos, proposto pelo teórico Edgar Morin, sob a perspectiva da fotografia. Escolheu-se uma foto da cobertura do Oscar 2009 – do casal Brad Pitt e Angelina Jolie - publicada na revista Veja, em 4 de março de 2009, além de outras imagens de importância secundárias para a compreensão da teoria abordada. Não foi efetuada análise das fotografias, mas sim dos conceitos e dos efeitos desse tipo de imagem na sociedade. Foram levantados conceitos pertinentes ao ato de fotografar, assim como a relação entre fotógrafo, sujeito fotografado e consumidor de imagens. A questão do duplo na fotografia – realidade, ilusão; distância, proximidade; vida, morte. Palavras-chave: Fotografia de celebridade; olimpianos; cultura de massa; Oscar 2009. Abstract: This article discusses the concept of olympians, proposed by the theoretician Edgar Morin, under the perspective of the photography. It was chosen an Oscar 2009 photograph – Brad Pitt and Angelina Jolie - published in 4th march 2009, on the Brazilian magazine called Veja, and other images of secondary importance for the understanding of the chosen theory. The study did not analyzed the photo; instead it was discussed the concepts about the photograph act, as well as the relationship between photographer, photographed subject and images´ consumers, along with the question about the double in photograph – reality, illusion; distance, proximity; life, death. Key-words: Celebrity photography; olympians; mass culture; Oscar 2009. Levy Henrique Bittencourt Neto * Simonetta Persichetti ** Olimpianos pós-modernos: um rápido olhar sobre as fotografias de celebridades Postmodern Olympians: a glimpse over celebrity’s photographs * Graduado no ano de 2008 em Comunicação Social: Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em fotografia pela mesma universidade. Mestrando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital na PUC – SP. ** Jornalista. Mestre em Comunicação e Artes. Doutora em Psicologia Social. Autora dos livros Imagens da Fotografia Brasileira I e Imagens da Fotografia Brasileira II. Organiza a Coleção Senac de Fotografia. Docente do Curso de Especialização em Fotografia da Universidade Estadual de Londrina. Membro do Conselho Editorial da revista Discursos Fotográficos. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 103 Introdução Dos primeiros daguerreótipos às câmeras digitais do século XXI, muito se modificou no ato da tomada fotográfica. Métodos, equipamentos e até mesmo o olhar do fotógrafo passaram por mudanças nesses quase dois séculos. Mas um dos infinitos temas da fotografia tem chamado muita atenção nas últimas décadas: a fotografia de celebridades. É difícil precisar quando e onde esse tipo de imagem começou a ser feito, mas o retratista Félix Nadar (1820-1910), ainda no século XIX, já fotografava celebridades, como o poeta Charles Baudelaire e o pintor Eugène Delacroix. Sites e revistas de fofoca são cada vez mais presentes no cotidiano, assim como o cerco dos fotógrafos é cada vez mais acirrado em cima das celebridades – em especial os atores e atrizes de cinema. Com a desculpa da liberdade de imprensa, tais fotógrafos não medem esforços para capturar um flagrante, mesmo que tenham que pular alguns muros e invadir a vida pessoal dos sujeitos fotografados. Para tratar deste assunto, o artigo parte do conceito de olimpianos1, proposto por Edgar Morin, sob a perspectiva da mídia fotográfica. Não se trata de uma análise das fotografias escolhidas, mas sim dos conceitos e dos efeitos desse tipo de imagem na sociedade. A discussão é amparada por Roland Barthes, Vilém Flusser, Lucia Santaella, Jorge Pedro Sousa, entre outros teóricos da imagem. O objetivo do trabalho é responder às seguintes questões: até que ponto as fotografias constroem os mitos que envolvem as celebridades? Por que esse fascínio da sociedade pelas imagens de seus novos deuses – os olimpianos – é tão poderoso? Por que as imagens de celebridades são tão requisitadas? Aqui cabe uma advertência: não há resposta definitiva quando o assunto é fotografia. Duplamente verdadeiro quando envolve os protagonistas da cultura de massa: os olimpianos pós-modernos. 1 Esse termo será considerado sinônimo de celebridades. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 104 Do flagrante aos paparazzi O fotógrafo alemão Erich Solomon era famoso por capturar as imagens de celebridades políticas a partir de 1920, a tal ponto que “o primeiro-ministro prussiano, Otto Braun, terá dito [...] que ‘hoje pode ter-se uma conferência sem ministros, mas não sem o Doutor Solomon’”. (SOUSA, 2000, p.79). Mas nem sempre os fotógrafos tiveram o respeito e o acesso aos grandes eventos públicos. O começo do século XX foi “uma época de anonimato para os repórteres fotográficos, que só nos anos 20, com a geração de Solomon (1896-1944), vão ver sua atividade profissional mais reconhecida.” (SOUSA, 2000, p.70). Vários são os fatores que levaram o fotógrafo a ter acesso aos requintados círculos sociais, a começar pela substituição do malcheiroso flash de magnésio pelo eletrônico e a invenção das câmeras de médio e pequeno formato A postura dos fotógrafos também foi fundamental para essa mudança, conforme afirma Sousa (2000, p.77): A par de Erich Solomon [...] toda uma nova raça de fotojornalistas rompe com a ideia de que o repórter fotográfico pouco mais era do que o simples servidor ao qual cabia obter uma fotografia muito nítida e agradavelmente composta para ilustrar (isto é, pouco mais que decorar) os textos. Os novos fotojornalistas eram pessoas educadas, muitas vezes aristocratas ou burgueses que, embora arruinados, mantinham um elevado estatuto social, forte presença e postura. Nalguns casos, isto facultava-lhes a entrada nos locais ‘interditos’ onde se cozinhavam os negócios de estado, se fazia política ou até justiça. É também com Solomon que surgiu a chamada fotografia cândida, isto é, a fotografia não posada, que busca o flagrante e “que tenta surpreender as figuras (públicas) em instantes durante os quais abrandam a vigilância, deixando cair as máscaras e abandonando os rituais sociais, assumindo posições ‘naturais’”. (SOUSA, 2000, p.77). Apesar de Solomon buscar o flagrante, suas fotografias eram tomadas em eventos discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 105 públicos, e de forma alguma denegriam os sujeitos fotografados, algo que não acontece nos dias de hoje. A fotografia cândida de Solomon não deve ser confundida com os flagrantes ilegais que povoam diariamente as revistas e sites de fotografias de celebridades. Figura 1 - Recepção no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Paris, 1931 Fotografia: Erich Solomon Fonte: Sousa (2004, p.31). De forma completamente oposta à atuação do pai do fotojornalismo moderno, as atuais fotografias de celebridades são, em sua maioria, medíocres, em poses artificiais e previsíveis no tapete vermelho. Os “flagrantes”, quando acontecem, são de mau gosto, com tomadas que ferem grosseiramente a privacidade dos astros e estrelas. Não é raro encontrar imagens não autorizadas das celebridades nuas, tomadas até mesmo no conforto de seus próprios lares. E tudo isso começou a partir dos anos 50 do século XX, quando as “revistas de escândalos começaram a tornar-se muito populares em Itália, dando lugar ao nascimento de uma nova raça de fotógrafos: os paparazzi. Estes servem-se de teleobjetivas para surpreenderem as pessoas na sua vida privada”. (FREUND, 1995, p.176). discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 106 O Monte Olimpo em 2009 No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário, situam-se as vedetes da grande imprensa, os olimpianos modernos. (RAYMOND apud MORIN, 1997, p.105). Na mitologia grega, o Monte Olimpo era a moradados deuses. Sob os céus do século XXI, outro Olimpo se eleva, só que não na península Ática, mas em Hollywood, Califórnia. Do alto, os novos deuses hollywoodianos observam os pobres mortais em suas atividades cotidianas. Eventualmente, os olímpicos descem de sua morada para fazer filmes e ser surpreendidos pelos paparazzi – geralmente em tomadas não muito abonadoras. Por algum motivo, os mortais adoram ver seu panteão em situações de constrangimento. A pequena metáfora acima ilustra alguns conceitos sobre uma classe de pessoas especiais na cultura de massa: os olimpianos. A influência que os novos deuses midiáticos exercem é poderosa. Segundo Morin (1997, p.107), “conjugando a vida cotidiana e a vida olimpiana, os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida. São heróis modelos. Encarnam os mitos de auto- realização da vida privada”. Edgar Morin não considera apenas as estrelas de cinema dignas de possuir a aura divina – também o são alguns esportistas, estadistas, escritores, cientistas, artistas, entre outros. No ano de 2009, sob o prisma da política, é quase impossível não imaginar que o Monte Olimpo também se eleva sob céus de Washington, D.C., na figura do presidente-herói-divino Barack Obama. Mesmo os acadêmicos podem ser deuses midiáticos – como foi Marshall McLuhan e Carl Sagan. “O olimpianismo de uns nasce do imaginário, isto é, de papéis encarnados nos filmes (astros), o de outros nasce de sua função sagrada (realeza, presidência), de seus trabalhos heróicos (campeões exploradores) ou discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 107 eróticos (playboys, distels)”. (MORIN, 1997, p.105). Portanto, a classe dos olimpianos é vasta e heterogênea. No presente artigo, o que interessa são os mitos de Hollywood. Os olimpianos não são deuses no sentido estrito da palavra, mas uma espécie de humanos divinizados. É justamente através dessa natureza dupla que os olimpianos realizam um importante movimento na cultura de massa: a projeção e a identificação. “A imprensa de massa, ao mesmo tempo que investe os olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação”. (MORIN, 1997, p.107). E não é por acaso que as fotografias de celebridades servem tanto aos propósitos do espectador quanto dos olimpianos, pois “os astros e estrelas de cinema [...] são levados ao domínio público pela fotografia. Eles se tornam sonhos que o dinheiro pode comprar; podem ser comprados, abraçados e apontados mais facilmente do que mulheres públicas2”. (MCLUHAN, 2003, p.215). A cobertura do Oscar 2009 foi ofuscada no Brasil por outro evento mais importante, o carnaval. O que em outras épocas renderia páginas e páginas de fotografias nas revistas, esse ano ganhou apenas uma página na revista Veja, o veículo escolhido para esse estudo. Dessa página escolheu-se uma foto – a dos atores Brad Pitt e Angelina Jolie – ou os sujeitos fotografados. Essa imagem foi vista pelo mundo todo, reproduzida em centenas de veículos, comprados por milhares de adoradores do casal Pitt: os espectadores. Chega-se então ao trinômio da mídia fotográfica proposto por Barthes (1984): o operator, o spectator e o spectrum. O primeiro é o fotógrafo, o segundo o espectador – aquele que consome as imagens – o terceiro é o sujeito fotografado. 2 Um eufemismo para prostituta. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 108 Spectrum Angelina Jolie e Brad Pitt não são os únicos, e talvez nem sejam os mais importantes exemplares de olimpianos. O que importa é que eles exercem a função de signos icônicos das celebridades. Segundo Peirce (2003), ícones são signos que se referem aos seus objetos por força de qualidades semelhantes, internas a si mesmas, existindo ou não objetos para corporificá-las. “Ou seja, a qualidade que ele [ícone] tem qua coisa o torna apto a ser um representamen [signo]. Assim, qualquer coisa é capaz de ser um substituto para qualquer coisa com a qual se assemelhe”. (PEIRCE, 2003, p.64). Em outras palavras, a fotografia do casal Pitt pode ser um ícone do próprio conceito de olimpiano. Isso é possível porque Figura 2 - Angelina Jolie e Brad Pitt Fotografia: Jewel Samad/AFP Fonte: Veja (2009, p.77) discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 109 Peirce (1975, p.117) afirma que “o único meio de transmitir diretamente uma idéia é por via de um ícone; e todo método indireto de comunicar uma idéia deve depender, para seu estabelecimento, do uso de um ícone”. Toda imagem fotográfica é um ícone, pois se trata uma representação bidimensional de um mundo tridimensional. É através da semelhança icônica que uma fotografia do Cristo Redentor é reconhecida como do monumento no Rio de Janeiro. Qualquer tridimensionalidade numa fotografia é mera sugestão – uma ilusão de ótica3. Além disso, a fotografia, e todas as imagens, também abstraem de outra dimensão: o tempo. “As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões do espaço-tempo. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. [...]. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens”. (FLUSSER, 2002, p.7). A fotografia não é apenas icônica, mas também, e especialmente, indicial. Segundo Peirce (apud HARTSHORNE, 1931-1958)4 o índice é Um signo ou representação que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele [o que seria um ícone], [...] mas sim por ter uma conexão dinâmica (inclusive espacial) com o objeto individual, por um lado, e com os sentidos ou a memória da pessoa a quem ela serve como um signo, por outro lado5. (CP 2.305). Assim, a fotografia reproduz, por um lado, “a realidade através de (aparente) semelhança; por outro, ela tem uma relação causal com a realidade devido às leis da ótica”. (NÖTH; SANTAELLA, 2005, p.107). O argumento desses semioticistas sobre a mídia fotografia encontra paralelos com os olimpianos de Morin (1997, p.106): “Os novos olimpianos 3 Exceto pelas recentes câmeras que fotografam em três dimensões. 4 CP indica Collected Papers; o primeiro número corresponde ao volume e o segundo, ao parágrafo. 5 Tradução livre do original: “A sign, or representation, which refers to its object not so much because of any similarity or analogy with it, […] as because it is in dynamical (including spatial) connection both with the individual object, on the one hand, and with the senses or memory of the person for whom it serves as a sign, on the other hand.” discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 110 são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis.”. Imaginário enquanto ícone, real (mais precisamente, um vestígio do real) enquanto índice. Para Peirce (apud NÖTH; SANTAELLA, 2005, p.110), as fotografias são “exatamente como os objetos que elas representam [por semelhança] e, portanto, icônicas. Por outro lado, elas mantêm uma ‘ligação física’ com seu objeto, o que as torna indexicais, pois a imagem fotográfica é obrigada fisicamente a corresponder ponto por ponto à natureza”. É por conjugar ícones e índices que a mídia fotográfica é importante para manter o mito dos olimpianos, pois a máquina fotográfica cria retratos diretamente a partir da luz emanada/rebatida do/no spectrum. Mesmo assim, por mais que pareça, a fotografia não é a reprodução fiel e isenta da realidade, mas sim um recorte de um determinado momento no tempo e no espaço. Esse recorte, um índice, aproxima o consumidor de imagens da realidade em si, além de transportá-lo ao borrado e incerto mundo dos ícones, através da semelhança com o sujeito fotografado. Uma foto do casal Pitt não é o casal, apenas se assemelha a eles. A semelhança icônica, além de todos os aspectos que envolvem as celebridades – dinheiro, fama, influência, glamour etc – sustenta o poder míticoque esse tipo de imagem gera. Aparentemente, o significado das imagens técnicas6 se imprime de forma automática sobre suas superfícies [...]. O mundo representado parece ser a causa das imagens técnicas e elas próprias parecem ser o último efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. [...] Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem não parece ser símbolo e não precisar de deciframento. (FLUSSER, 2002, p.14). Susan Sontag (2004, p.169) lembra que “a realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pela imagem”. Uma imagem que possua, ao mesmo tempo, signos indiciais e icônicos, como 6 Imagens técnicas são aquelas produzidas por aparelhos. A fotografia é uma imagem técnica pois é produzida através de uma câmera fotográfica. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 111 no caso da fotografia, tem a possibilidade de criar mitos verossímeis e profundamente assimiláveis, como as estrelas de cinema. Mesmo que esses mitos pós-modernos sejam, se observados atentamente, tão verdadeiros quanto à representação imagética de um minotauro. “A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens.”. (FLUSSER, 2002, p.14). Spectator Por que fotografias de celebridades fascinam tanto o público? Qual é a mágica em possuir uma imagem fotográfica do casal Pitt? Como explica Susan Sontag (2004, p.172), a fotografia é uma forma de ganhar controle, poder, sobre o objeto fotografado: A fotografia é, de várias maneiras, uma aquisição. Em sua forma mais simples, temos numa foto uma posse vicária de uma pessoa ou de uma coisa querida, uma posse que dá às fotos um pouco do caráter próprio dos objetos únicos. Por meio das fotos temos também uma relação de consumidores com os eventos, tanto com os eventos que fazem parte de nossa experiência como com aqueles que dela não fazem parte – uma distinção de tipos de experiência que tal consumo de efeito viciante vem turvar. As fotografias de celebridades exercem um efeito inebriante, eufórico, no consumidor de imagens. Essa euforia é como uma “reação de credulidade ingênua, celebratória, inocentemente apologética. [...] A fotografia aparece como uma reprodução não mediatizada, uma mônada capaz de fundir imagem e mundo, facilitando a apreensão das coisas”. (NÖTH; SANTAELLA, 2005, p.132). Não importa quantas fotografias o spectator consuma, tampouco quão longe os paparazzi ousem se deslocar para as suas tomadas. A necessidade dessa euforia inebriante nunca é plenamente satisfeita, “primeiro, porque as possibilidades da fotografia são infinitas e, segundo, discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 112 porque o projeto é, no fim, autodevorador”. (SONTAG, 2004, p.195). É autodevorador porque o ato de consumir leva a um esgotamento; esgotado algo, é necessário repor. O ciclo de produção e consumo dessas imagens é perpétuo. As fotografias de celebridades funcionam como um narcótico infinito oferecido a um dependente insaciável – o consumidor de imagens. Vilém Flusser (2002, p.9) assevera que o spectator não atenta ao fato de que as imagens são mediações entre o ser-humano e o fenômeno. Com isso, elas perdem o propósito de representar a realidade – deixam de ser mapas do mundo para se tornar biombos. “O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. [...] Imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens”. (FLUSSER, 2002, p.9). Assim, tais imagens transportam o specator ao reino do fictício espetáculo, onde as barreiras do real e do imaginário não são claras. “Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação. [...] A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente.” (DEBORD, 1997, p.13-14). Operator Armados com suas câmeras, os fotógrafos – tanto os paparazzi quanto qualquer outro – realizam o “antiqüíssimo gesto do caçador paleolítico que persegue a caça na tundra”. (FLUSSER, 2002, p.29). Para um observador externo, o gesto de fotografar é semelhante ao movimento da caça. Talvez isso explique a audácia predatória dos paparazzi em busca de sua presa favorita – os olimpianos. “O motivo do fotógrafo, em tudo isto, é realizar cenas jamais vistas” (FLUSSER, 2002, p.35), não importando quantos muros os paparazzi tenham que pular – sejam esses muros físicos ou éticos – desde que, ao final da caçada, tragam “carne fresca” aos veículos sensacionalistas. Isso porque esse tipo de imprensa “vive apenas de historietas de amor e mexericos e tem uma discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 113 necessidade constante de fotografias [...]. Os assuntos desses artigos são sobretudo as estrelas de cinema”. (FREUND, 1995, p.176). Se o fotógrafo é um caçador, seu instrumento é a máquina fotográfica. Todo instrumento criado pelo ser-humano é uma extensão de um determinado órgão do corpo (FLUSSER, 2002, p.21). A máquina fotográfica, portanto, é uma extensão do sentido da visão. Por esse motivo o spectator “confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos”. (FLUSSER, 2002, p.14). É essa confiança que gera um dos efeitos mágicos da fotografia: o spectator vê com os olhos do fotógrafo, passa a ser testemunha ocular do evento tomado. Uma ilusão causada pela semelhança icônica de uma fotografia para com o seu spectrum, confirmada pelo aspecto indicial – ou resíduo do real. No entanto, esse resíduo do real, ao invés de ser o antídoto contra o reino da alucinação, acaba por reforçá-lo. “Quanto mais uma imagem é capaz de nos dar a ilusão da aproximação do real, com mais intensidade ela reabre a brecha de nossa alienação.” (NÖTH; SANTAELLA, 2005, p.129). Figura 3 - No Mundo - Angelina Jolie com Zahara e Maddoz: a adoção por estrangeiros é polêmica Fotografia: James Devaney/WireImage/Getty Images Fonte: Veja (2008, p.72) discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 114 Flusser (2002, p.14) ressalta que “o caráter aparentemente não- simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens”. James Devaney abriu a janela que permite o espectador passear na praia com os filhos de Angelina Jolie. É quase como se o próprio consumidor de imagens tivesse apertado o disparador da câmera fotográfica e visto as crianças e sua mãe com os próprios olhos. Dessa forma, o fotógrafo realiza a façanha de aproximar o sujeito fotografado do consumidor de imagens. De que outra forma o spectator estaria tão perto de seus olimpianos favoritos? Esse é o efeito da proximidade distante que toda a fotografia causa. A imagem paradoxo Real e ilusório, próximo e distante, presente e ausente, vida e morte. O duplo na fotografia é um de seus aspectos mais marcantes.” Há uma dupla posição conjunta: de realidade e de passado. Real no estado passado: simultaneamente o passado e o real.” (BARTHES apud NÖTH; SANTAELLA, 2005, p.128). Esse também é um dos aspectos mais aterradores da fotografia: ela é um memento mori7 da nossa realidade. O que foi fotografado “desapareceu irremediavelmente. Aliás, falando em termos temporais estritos, no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto desaparece. [...] Assim, toda foto, logo que é feita, envia para sempre seu objeto ao reino das Trevas”. (DUBOIS, 2003, p.84). Esse aspecto tétrico da imagem fotográfica pode não ficar claro, em especial quando se observa a fotografia do casal Pitt. Ambos estão vivos e frequentemente aparecem nas mídias de massa. Mas talvez esse lembrete desagradável seja mais facilmente percebido com a fotografia a seguir: 7 O significado aproximado dessa expressão latina é “lembra-te de que vais morrer”. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 115 Marilyn Monroetalvez tenha sido uma das mulheres mais fotografadas do século XX, e um dos exemplares mais representativos do que é um olimpiano. Não se pode deixar de notar certa melancolia nessa imagem, talvez por conta da própria história de vida conturbada da atriz. Talvez porque se sabe que ela está morta. Roland Barthes (1984, p.20) justificou o uso da palavra latina spectrum para definir o sujeito fotografado “porque essa palavra mantém [...] uma relação com o ‘espetáculo’ e a ela acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda a fotografia: o retorno do morto”. No fim, assim como para as coisas e pessoas, tudo morre e desaparece. A fotografia, tão importante para o mito olimpiano, é um lembrete da sua mortalidade. Ao mesmo tempo, é um passaporte para a imortalidade. A olimpiana acima morreu, mas o mito sobreviveu. Graças ao memento mori da fotografia, Marilyn Monroe não morrerá jamais. Vida e morte, o grande duplo da fotografia – e também de toda a existência. Figura 4 - “Homebody: 1953” “Actress Marilyn Monroe, playfully elegant at home” Fotografia: Alfred Eisenstaedt Fonte: Shorpy (2009) discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 116 Considerações finais O mito dos olimpianos depende muito da força que a mídia fotográfica traz consigo. Essas imagens aproximam o spectator do spectrum, algo que não seria possível na maioria dos casos. É por isso que tais fotografias são tão fascinantes: humanizam ao mesmo tempo em que deificam. Parafraseando Edgar Morin, a fotografia realiza um movimento fundamental para a manutenção do mito olimpiano – a síntese perfeita entre identificação e projeção8. O spectator se identifica com a humanidade dos olimpianos, ao mesmo tempo em que projeta, para além do humano, no campo da imaginação, todas as fantasias mitológicas pertinentes às celebridades. O movimento é duplo e simultâneo. O spectator consome fotografias de seus ídolos porque é a maneira de estar mais perto deles. O consumidor de imagens, provavelmente, nunca poderá ver em sua frente Angelina Jolie nua. Mas será capaz de conhecer cada pedaço do corpo dela, como se fosse seu amante. Poderá conhecer sua casa, seus filhos, sua vida cotidiana. Mesmo que nunca tenha dado um “olá” ou “bom dia” para sua musa. O operator cuidará de aproximar dois mundos tão distantes. O duplo é uma das grandes diferenças entre a fotografia e o restante das imagens. Nela é possível conceber movimentos opostos, e justamente por isso ela é tão poderosa, até mágica; termo que alguns estudiosos da fotografia utilizam – como Roland Barthes (1984), Susan Sontag (2004), Vilém Flusser (2002), e possivelmente muitos outros também. A fotografia é mágica por conjugar paradoxos. Por ser o atestado de presença e, ao mesmo tempo, ausência. De lembrar que todos morrem, mas muitos vivem eternamente através das fotografias. E por fim, por conjugar o humano, demasiado humano com uma projeção mitológica dos nossos heróis e deuses – os olimpianos pós-modernos. Sem esse poder da fotografia, provavelmente não existiriam as celebridades conforme se concebe hoje. 8 Para mais detalhes sobre o conceito de projeção – identificação ler MORIN, Edgar. Os campos estéticos. In: ______. Cultura de massas no Século XX.. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. v.1: Neurose. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 117 Referências BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. 6.ed. Campinas: Papirus, 2003. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. 2.ed. Lisboa: Vega, 1995. HARTSHORNE, Charles; WEISS, Paul; BURKS, Arthur (Org.). The collected papers de Charles Sander Peirce. Cambridge: Harvard University Press, 1931-1958. MACLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. 13.ed. São Paulo: Cultrix, 2003. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. v.1: Neurose. NÖTH, Winfried; SANTAELLA, Lúcia. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2005. PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. ______. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 118 SHORPY. Actress Marilyn Monroe, playfully elegant at home. Disponível em: http://www.shorpy.com/node/5092. Acesso em: 22 mar. 2009. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia da Letras, 2004. SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. ______. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000. VEJA. São Paulo: Ed. Gente, v.41, n.34, ago. 2008. ______. São Paulo: Ed.Gente, v.42, n.9, mar. 2009. discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p.101-118, jan./jun. 2010 << /ASCII85EncodePages false /AllowTransparency false /AutoPositionEPSFiles true /AutoRotatePages /All /Binding /Left /CalGrayProfile (Dot Gain 20%) /CalRGBProfile (sRGB IEC61966-2.1) /CalCMYKProfile (U.S. Web Coated \050SWOP\051 v2) /sRGBProfile (sRGB IEC61966-2.1) /CannotEmbedFontPolicy /Warning /CompatibilityLevel 1.4 /CompressObjects /Tags /CompressPages true /ConvertImagesToIndexed true /PassThroughJPEGImages true /CreateJDFFile false /CreateJobTicket false /DefaultRenderingIntent /Default /DetectBlends true /DetectCurves 0.0000 /ColorConversionStrategy /LeaveColorUnchanged /DoThumbnails false /EmbedAllFonts true /EmbedOpenType false /ParseICCProfilesInComments true /EmbedJobOptions true /DSCReportingLevel 0 /EmitDSCWarnings false /EndPage -1 /ImageMemory 1048576 /LockDistillerParams false /MaxSubsetPct 100 /Optimize true /OPM 1 /ParseDSCComments true 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