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Vidal- As viagens, os viajantes

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VIDAL, Diana Gonçalves. As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Os desafios 
da pesquisa em história comparada da educação. In: FLORES, Cláudia; ARRUDA, 
Joseane Pinto. (Org.). A Matemática Moderna nas escolas do Brasil e Portugal: 
contribuição para a história da educação matemática. São Paulo: Annablume, 2010, p. 
09-24. 
 
 
As viagens, os viajantes _ tantas espécies deles! 
Os desafios da pesquisa em história comparada da educação
1
 
 
Diana Gonçalves Vidal
2
 
 
No cais deserto, em uma manhã de verão, olho para o Indefinido. Contemplo o 
mar. Assim começa o poema Ode Marítima, publicado pela primeira vez em 1915, um 
dos mais marcantes de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Nele, as 
viagens e os viajantes são tematizados pela linguagem poética que une diferentes 
tempos (o passado recriado no presente), distintos espaços (os vários continentes, mares 
e oceanos) e variados povos (portugueses, ingleses e outros mais). 
Foi desse poema que retirei a frase inicial que nomeia esta intervenção: As 
viagens, os viajantes _ tantas espécies deles! A referência me pareceu estratégica. Por 
um lado, ela descortinava a possibilidade de enveredar pela problemática da circulação 
de pessoas entre os mundos: tema ao qual venho me dedicando nos últimos anos, 
perscrutando passagens, encontros e desencontros no âmbito da educação entre Brasil, 
Portugal e França. Abria-se, também, à percepção de que as viagens constituíram-se em 
um acontecimento sócio-histórico, que se estende do século XVI aos nossos dias, 
exibindo múltiplos desdobramentos. As categorias mundialização, utilizada 
frequentemente para nomear o processo envolvido nas Grandes Navegações; 
internacionalização, geralmente circunscrita ao movimento de expansão do capitalismo 
no Oitocentos e início do Novecentos; e globalização, associada ao momento recente de 
redefinição das fronteiras nacionais, evidenciam as marcas das diferenças desses 
movimentos, ao mesmo tempo que nos convidam a interrogar sobre a permanência das 
 
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 Este texto foi elaborado como conferência de encerramento ao VII Seminário Temático “A 
Matemática Moderna nas Escolas do Brasil e de Portugal: estudos históricos comparativos”, realizado na 
UFSC, em junho de 2009. Optei por manter, em sua redação, a marca da oralidade. 
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 Professora Livre-docente em História da Educação, na Faculdade de Educação (USP), onde 
coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE). 
Pesquisadora do CNPq. 
http://lattes.cnpq.br/9794987194529294
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viagens na construção histórica das sociedades moderna e contemporânea: imaginário e 
mestiçagem. Nos vários circuitos desenhados, os viajantes produziram-se como 
conquistadores, marinheiros, comerciantes, industriais, políticos, intelectuais e 
educadores, atuando como passadores e filtros culturais. 
Por outro lado, a citação permitia que eu me situasse neste nosso Encontro. Eu 
também uma viajante. Acostumada a investigar a história das práticas escolares de 
leitura, escrita e, recentemente, ciências naturais no Oitocentos, confesso que não deixo 
de me perceber como estrangeira em um Seminário sobre Matemática Moderna. 
Campos disciplinares e tempos históricos que, por vezes, se tangenciam, mas demarcam 
diversas trajetórias e interesses de pesquisa. Se hoje estou aqui, muito se deve a 
insistência e a gentileza da professora Cláudia Regina Flores, a quem agradeço 
publicamente. 
Mas sou viajante ainda porque instada a viajar por ofício, fruto de mudanças no 
fazer acadêmico que nas últimas décadas têm aproximado as distâncias geográficas e 
institucionais, seja pelo crescente número de congressos internacionais, pelo 
alargamento da colaboração entre pesquisadores e grupos de pesquisa, pela 
popularização de novos meios de comunicação como a internet, pela insistência das 
agências de fomento e avaliação à produção científica no Brasil e no exterior, ou pelo 
interesse renovado acerca da comparação (na condição de metodologia de pesquisa e de 
objeto investigado). 
Não deixa de ser curioso examinar este novo lugar que o desejo de comparar 
veio a assumir na investigação acadêmica atual. É inegável que ele decorre, em parte, da 
reorganização política, social e econômica do mundo, propiciada a partir dos anos 1980. 
A queda do muro de Berlim, em 1989, não foi o fato-chave dessa mudança. Mas a 
imagem condensa a sensação de surgimento de uma nova ordem mundial. No caso da 
Europa, as mudanças envolveram a crise dos Estados-nação e despertaram tanto a 
preocupação em consolidar novos espaços de identidade, como a União Européia; 
quanto em resgatar/recriar/revalorizar velhas fontes identitárias, como o patrimônio 
cultural (antigas danças, rituais, línguas etc). No caso da América Latina, esse 
movimento tramou-se também no reconhecimento da necessidade de concertar as ações 
políticas, sociais e econômicas como forma de equilibrar as disparidades de poder entre 
nações desenvolvidas e em desenvolvimento, emergente nas discussões sobre o 
Mercosur ou a Alca; simultaneamente polarizada pela premência em destacar as 
diferenças entre os países e grupos étnicos. 
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Destacar as condições de emergência dessa preocupação renovada com 
comparar não é um desvio à nossa discussão aqui. Ao contrário, parece-me que ela 
sinaliza para a percepção de duas questões fundamentais. A primeira é a relação 
intrínseca que os estudos comparados têm com a (re) definição de fronteiras nacionais. 
Em Educação, a comparação serviu, já no final do século XVIII, como estratégia para 
proposição de modalidades de ação do Estado e formulação de políticas educativas, 
consubstancializadas em projetos de lei. A segunda questão refere-se à dimensão 
histórica do próprio entendimento sobre o quê, o como e o porquê comparar. Sentidos 
construídos sucessiva ou concorrentemente. É este itinerário que gostaria de percorrer 
com vocês hoje, explorando as duas problemáticas, desdobradas em quatro itens, com o 
intuito de me interrogar sobre os modos de tratar e produzir estudos comparados em 
educação. 
 
Comparação e fronteiras nacionais: questões em debate 
Na famosa conferência “Por uma história comparada das sociedades européias”, 
pronunciada por Marc Bloch no ano de 1928, em Oslo, durante o VI Congresso 
Internacional de Ciências Históricas e reiteradamente citada pelos historiadores que se 
dedicam ao tema, já emergia o alerta sobre a prática de usar a comparação como 
confronto entre fenômenos ocorridos de uma e de outra parte das fronteiras de Estado ou 
Nação. 
Como bom medievalista, Bloch, acostumado a operar com objetos situados em 
um tempo anterior à constituição dos Estados nacionais, mas instado a estes fazer 
referência de modo a conferir inteligibilidade (ainda que provisória) à análise, via com 
suspeição o hábito de compartimentar topograficamente as realidades sociais. Na sua 
argumentação, indagava-se sobre a freqüência com que tomamos as fronteiras dos 
Estados atuais como quadros cômodos para estudo de instituições pretéritas. E 
conclamava a sair do artificialismo das análises sob risco de produção de anacronismos 
ou, mesmo, erros de fundo, como, ao escolher uma divisão política, administrativa ou 
nacional contemporânea na construção de objetos de pesquisa, acreditar que os 
acontecimentos sociais se interrompem nas fronteiras, desprezando as zonas marginais. 
Para o medievalista, deveriam os historiadores buscar quadros geográficos próprios ao 
estudo, determinados a partir de dentro do problema de investigação. 
A prática denunciada por Marc Bloch, entretanto, não se restringia a campo 
historiográfico, nem era exclusiva ao âmbito acadêmico. Ao contrário, podemos 
 4 
encontrar traços desse modo de operar com a comparação no debate educacional e na 
intervenção política em finais do século XVIII e inícios do século XIX.A referência 
freqüente aqui nos trabalhos acadêmicos sobre a questão é a Marc Antoine Julien e à 
obra Esboço e considerações preliminares de uma obra sobre a educação comparada, 
publicada cem anos antes de Bloch, em 1817. 
Escrevendo no momento em que os Estados Nacionais se empenhavam em 
organizar seus sistemas educativos, Julien defendia a importância de colecionar fatos 
educacionais observados em diferentes países. No seu entender, somente a 
sistematização desses fatos em tabelas analíticas poderia explicitar aproximações e 
permitir comparações de fenômenos, contribuindo à dedução de princípios e regras 
gerais capazes de tornar a educação uma ciência positiva. Se o programa de Marc 
Antoine Julien não se efetivou de forma ampla, de acordo com Antonio Nóvoa (1998, p. 
56), suscitou o investimento em missões ao estrangeiro, com o objetivo de produção de 
relatórios, que pudessem inspirar e oferecer orientações às reformas educacionais. Não 
raro, como foi o caso brasileiro de Rui Barbosa, os próprios reformadores ou políticos 
valeram-se da comparação como justificativa a seus projetos de lei. 
Como decorrência desses procedimentos e do quadro mental que sustentava a 
reflexão no Oitocentos, marcado por um claro viés eurocêntrico, os estudos comparados 
ofereceram um ferramental significativo para o aprofundamento das relações de 
dominação entre os povos. Não apenas prestaram-se à justificativa da empreitada 
neocolonial, como permitiram homogeneizar parâmetros de avaliação, desconhecendo 
singularidades históricas e impondo padrões universais de desenvolvimento 
educacional. Nesse panorama, sustentaram a difusão internacional de um modelo 
escolar desenvolvido na Europa como melhor sistema e único possível (Idem, p. 51). 
A tradição inaugurada por Julien no âmbito da educação comparada, e abraçada 
por políticos, de confrontar nações teve uma larga permanência. Nos anos 1950, por 
exemplo, a disciplina ofereceu amparo às Teorias Desenvolvimentistas, do Capital 
Humano e de Modernização Social, ajudando a disseminar uma concepção universal 
dos objetivos da educação, que tendia a perceber os sistemas educativos do mundo 
como idênticos nos princípios, apesar de díspares no desenvolvimento social e 
econômico. A distorção poderia ser superada, redimindo-se os sistemas de sua 
ineficiência, o que se deveria produzir pelo endosso à tecnificação educacional. A 
perspectiva propiciou a realização de investigações descritivas, capazes de reunir um 
grande número de indicadores tratados estatisticamente, a partir de uma visão 
 5 
homogeneizante da história mundial. Ainda na atualidade, assevera Nóvoa (Idem, p.52), 
a educação comparada se ocupa dos estudos inter-nacionais dos sistemas educativos. 
A crítica às fronteiras nacionais como modo de compartimentar 
topograficamente os objetos de estudo, se não emergiu no bojo da atual crise dos 
Estados-Nação, tendo sido enunciada por um medievalista, em 1928, encontra eco no 
cenário acadêmico hoje no momento em que vêm proliferando as formas de contato. De 
barreira a contato, esta é a mutação se tem produzido no seu entendimento (BURKE, 
2003). Enquanto barreira, as fronteiras são consideradas a partir da experiência da 
alteridade que separa o eu do eles, estabelecendo distinções e afirmando identidades. 
Como zonas de contato, as fronteiras propiciam o trânsito e acolhem aproximações e 
apropriações. Mestiçagem ou hibridismo emergem como categorias operatórias. Essa é 
temática que abordarei no próximo item. 
 
Mestiçagens e hibridismo: a positividade dos contatos 
A valorização do contato, presente na argumentação de diversos autores nos 
últimos 20 anos, não é totalmente nova. Antes mesmo de ser enunciada por Gilberto 
Freyre, na década de 1930, fora tematizada por Manoel Bomfim em 1905. No instigante 
ensaio A América Latina, males de origem, o médico e educador brasileiro desenhava 
uma teoria positiva da mestiçagem. Contrapondo-se à analogia com a zoologia, que 
endossava a percepção do híbrido como estéril, ao tomar, por exemplo, o caso da mula, 
Manoel Bomfim asseverava a vantagem dos cruzamentos entre os povos. A afirmação 
pretendia afastar o estigma de população inferior, atribuído à América Latina, em razão 
do efeito, tido por regressivo por parte da intelectualidade da época, da mestiçagem. Foi 
contra os determinismos tramados por um sistema de representação do qual Gustave Le 
Bon era um dos representantes que se insurgia o autor, na defesa da educabilidade e 
civilização do povo americano. 
O discurso de Bomfim indiciava a concorrência de concepções acerca do 
desenvolvimento social e econômico. Por um lado, se não negava o estado de 
inferioridade das sociedades latino-americana, não o atribuía a um determinismo racial e 
nem posicionava a América Latina em uma escala evolutiva que tinha na Europa seu 
ponto ápice. Por outro lado, se reconhecia o valor do progresso, não concebia que 
houvesse apenas um itinerário a ser percorrido para alcançá-lo. Conhecer as soluções 
implementadas pelos países suscitava a produzir uma via própria, uma mistura nova, 
adaptada ao contexto brasileiro. Evolução e involução, regeneração e degenerescência 
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eram condições que se alternavam (e não necessariamente se sucediam) nas sociedades 
humanas em razão das condições históricas. 
Sem romper com a delimitação dos Estados Nacionais, Bomfim construiu uma 
análise comparativa que atravessava os espaços geográficos da América e da Europa 
destacando as singularidades dos processos históricos locais. Elidia, assim, os riscos da 
comparação tal qual praticada naquele momento: hierarquização de nações, 
estabelecimento de vias únicas de desenvolvimento, defesa da colonização e do 
neocolonialismo. Aliás, era justamente o receio da ameaça à soberania brasileira, 
implícita nas visões deterministas ou na disseminação da doutrina Monroe que movia a 
sua pena, em defesa à autodeterminação dos povos. 
Tomando também o ponto de vista do colonizado, mais recentemente, outros 
autores têm se proposto interpretar as relações históricas entre as nações, já no cenário 
da globalização. Curiosamente, os termos mestiçagem e hibridismo reaparecem na 
argumentação, tomando eles também signos positivos. A análise aqui é assumidamente 
culturalista. 
O sociólogo argentino Nestor Canclini (2003) faz uso da categoria hibridação, 
concebida como fusão de culturas, constituída, não sem contradições, sob a forma de 
conflitos gerados na interculturalidade. Seu interesse recai principalmente sobre os 
processos de hibridação, articulados às estratégias de reconversão do patrimônio 
cultural. O que está em jogo, é uma relativização das identidades, tanto como puras ou 
autênticas, quanto como locais ou geográficas. Em lugar de identidades essenciais, 
autocontidas e ahistóricas, Canclini advoga a necessidade de conhecer as formas como 
cada grupo social se situa em meio à heterogeneidade de bens e mensagens disponíveis 
nos circuitos transnacionais, como constrói suas identidades (sempre provisórias) e 
como negocia os significados da (s) cultura (s) em relações desiguais de poder. 
O historiador pós-colonial Serge Gruzinski (2001), debruçando-se sobre o 
processo de mundialização acontecido no final do século XV e início do XVI, em razão 
das grandes expedições marítimas, prefere mestiçagem como modo de nomear o 
contato/apropriação entre seres e culturas então ocorrido. Para o autor, o contato se 
produz na ação dos passadores, homens e mulheres, nomeados ou anônimos, que em 
seu movimento entre os mundos, sintetizam as conexões, tanto no âmbito de uma 
mestiçagem biológica, quanto no de uma mestiçagem cultural, desempenhando assim o 
papel de filtros entre sociedades e culturas. É nesse sentido que propugna por uma 
história conectada. 
 7 
A valorização das experiências de mestiçagem tem como propósito afirmar as 
apropriações não como distorções do original,mas como reconstruções de significados 
que mesclam duas semânticas culturais, produzindo uma nova originalidade. No escopo 
do pensamento do autor, é a própria dinâmica da cultura que aparece como concepção 
fundante, no reconhecimento de que sua característica primeira é a constante refacção. 
A perspectiva pretende, tal qual as duas anteriores, elidir o olhar etnocêntrico (e 
hierarquizante) que muitas vezes os estudos comparados portam. É a dilatação 
planetária dos espaços europeus que emerge como questão fundamental na percepção 
de uma circulação de objetos, pessoas e modelos culturais que ao mesmo tempo em que 
se acompanha constantemente da descoberta de outras sociedades e saberes, esforça-se 
por captá-los, sem, no entanto, absorvê-los. 
Os riscos que se correm com esta abordagem, entretanto, referem-se à 
equalização das relações de força entre grupos de poder desigual, denúncia reiterada de 
forma contundente por Canclini e Bomfim. E o flerte com uma concepção global de 
história, que não apenas amplifica os recorrentes desafios da comparação relacionados 
ao extenso levantamento de fontes, domínio de vários idiomas e conhecimento amplo 
do contexto histórico de cada região; como requer acautelar-se acerca dos risco de um 
retorno à proposta de uma história universal. Sobre estas questões, vou me deter um 
pouco mais no item que se segue. 
 
A circulação de pessoas, objetos e modelos como objeto de análise 
Os três problemas indicados acima não são novos. Já haviam sido enunciados 
por Bloch em 1928, quando propôs como soluções: a introdução da história comparada 
como disciplina nas Universidades, de modo a ampliar o interesse pela temática e o 
grupo de pesquisadores a ela dedicado; a leitura de autores que discorrem sobre regiões 
vizinhas e realidades diferentes na elaboração de estudos monográficos, com o intuito 
de identificar diferenças específicas; a internacionalização das bibliotecas e dos hábitos 
de trabalho, de forma a aproximar os fazeres históricos; e o estabelecimento de um 
vocabulário científico criado pela comunidade de historiadores com vistas a permitir 
reconciliar as terminologias e os questionários de investigação. 
Se as propostas pareciam pertinentes nas décadas iniciais do século XX, hoje 
elas merecem reconsideração. O aumento de intercâmbio entre pesquisadores e grupos 
de pesquisa propiciado pela crescente internacionalização da produção científica, por 
certo, permitiu minimizar as dificuldades materiais apontadas por Bloch ao estudo 
 8 
comparado. Por outro lado, ao ingressar em sua era historiográfica, a disciplina mudou 
seus modos de operar. Não é mais possível ao historiador descobrir e interpretar 
fenômenos, como se eles se produzissem na exterioridade do exercício da análise. Ao 
contrário, a compreensão de que as categorias se forjam no próprio movimento de 
delimitar o real e de sobre ele estabelecer uma inteligibilidade permitiu que as fronteiras 
fossem percebidas não mais como lugares e limites geográficos, mas como lugares e 
limites epistemológicos aos estudos. Mais que identificar comparáveis, o desafio que se 
coloca ao historiador passou a ser construir comparáveis, como afiança Marcel 
Détienne (2004). 
Para este último autor, a história comparada assumiu como tarefa efetuar uma 
desmontagem lógica que permite isolar microconfigurações, abrindo-se sobre as 
diferenças cada vez mais refinadas e contíguas; e analisar os mecanismos de 
pensamento nos arranjos que se constituem a partir de uma série de entradas não 
necessariamente temáticas. Seu compromisso, portanto, tornou-se colocar em 
perspectiva os valores e escolhas da sociedade, tendo um olhar crítico sobre as tradições 
e buscando entender as diferentes culturas a partir de seus próprios sistemas de 
representação. 
Nesta perspectiva, não faz sentido unificar o questionário ou estabelecer um 
vocabulário comum, posto que o que se recusa é o primado de uma história comparada 
puramente morfológica, preocupada com o inventário dos parentescos, muitas vezes à 
margem de toda certificação dos contatos culturais. O interesse aqui volta-se a 
identificar circulações, empréstimos e hibridações, reconhecendo nas situações mais 
locais as interdependências com os espaço global. Foi essa união indissociável entre o 
global e o local, de acordo com Chartier (2009, p. 57) que levou a criação do 
neologismo glocal para designar “os processos pelos quais são apropriadas as 
referências partilhadas, os modelos impostos, os textos, os bens que circulam 
mundialmente, para fazer sentido em um tempo e um lugar concretos”. 
Nessa perspectiva, parece eficaz operar com diferentes escalas de análise, 
entretecendo microestudos a macrointerpretações. A operação permite um triplo 
investimento e induz a uma precaução. Inicialmente propicia encontrar conexões em 
vários níveis entre sociedades e culturas, atravessando as delimitações das fronteiras 
geopolíticas. Em segundo lugar, abre a possibilidade de identificar novos problemas na 
medida em que se altera o alcance das lentes de observação. Por fim, acena para o 
cuidado em perceber os movimentos de difusão e apropriação, matizando e alargando o 
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entendimento sobre o objeto investigado. Simultaneamente, a operação se exercita no 
fino tênue da narrativa histórica, na compreensão da impossível conciliação total das 
escalas utilizadas, na medida em que sua construção respeita regras distintas, como 
afiança Paul Ricoeur (2007). 
Nesse vertente, não se superam os desafios relacionados ao extenso 
levantamento documental, domínio de vários idiomas e conhecimento amplo do 
contexto histórico de cada região, anunciados anteriormente. O ofício ainda não 
prescinde da constituição de equipes de pesquisa e é instado a entender os diversos 
sistemas de representação. O tratamento das fontes, no entanto, melhor se circunscreve, 
ancorando de modo mais seguro a interpretação, reenviando aquilo que destaca Chartier 
(2009, p. 55): a importância em eleger um marco de estudo capaz de tornar visíveis as 
histórias conectadas. 
Para explicitar a abordagem, proponho explorar um caso concreto, a circulação 
de museus escolares no final do século XIX entre França, Brasil e Portugal. Vou me 
deter na análise do Museu Escolar Brasileiro. 
 
O caso do Museu Escolar Brasileiro
3
 
Os museus escolares constituíam-se, no terceiro quartel do século XIX, de 
coleções de objetos e quadros murais. Ofereciam-se como recursos didáticos ao ensino 
elementar das ciências naturais, principalmente, mas também da história e do que 
modernamente denominamos de geografia humana. 
A proposta de criação dos museus escolares estava intimamente ligada à 
prescrição do ensino por aspectos, também denominado de método intuitivo ou lições 
de coisas. Nesse final do Oitocentos, o método intuitivo era considerado como 
manifestação da modernidade educativa e referência fundamental no traçado das 
reformas educacionais e no debate político. Em 1879, na legislação criada por Carlos 
Leôncio de Carvalho, o método foi pela primeira vez indicado para uso nas escolas 
oficiais. Ruy Barbosa, nos pareceres emitidos em 1882, considerava as lições de coisas 
“como ponto de partida de todo o ensino, em todos os países adiantados e por todos os 
pedagogos eminentes” (Barbosa, 1947, tomo II, p. 206). A defesa do método intuitivo 
emergia, também, sob a pena dos mais renomados educadores estrangeiros, como 
 
3
Para uma análise mais detida do Museu Escolar Brasileiro, remeto ao artigo VIDAL, 2006. 
 10 
Ferdinand Buisson, diretor do ensino primário no Ministério da Instrução Pública da 
França, entre 1879 e 1896. 
Pregando que a aprendizagem deveria partir dos sentidos para chegar à 
intelecção, privilegiar o conhecimento do que era próximo para atingir o distante, o 
concreto para alcançar o abstrato; o método intuitivo abria as portasda escola para a 
introdução de um grande conjunto de objetos a serem observados e tocados pelas 
crianças em seu processo de aquisição de conhecimentos. Associando a esse movimento 
as premissas do ensino simultâneo, que previa o mesmo ritmo de aprendizagem por 
todos os alunos de uma classe, a partir da utilização de material comum, e os preceitos 
da educação obrigatória, que propugnava pela extensão da escolarização a toda a 
população infantil; os defensores das lições de coisas convocavam a indústria a 
participar da importante obra de difusão do ensino (Vidal, 2008). 
Vendo na escola oficial um mercado favorável e no Estado um comprador de 
lastro, uma indústria escolar começou a florescer na segunda metade do Oitocentos. A 
produção de livros escolares talvez tenha sido o ramo industrial mais em estudo pela 
academia. Mas não foi o único a que se dedicaram os empresários oitocentistas. Nos 
catálogos da época, exibia-se uma extensa propaganda de carteiras escolares, armários, 
mesas, cadeiras, fuzis de madeira, aparelhos de ginástica, esqueletos, globos, aparelhos 
óticos, ferramentas, espécimes de zoologia e botânica, dentre muitos outros objetos. 
A empresa francesa Maison Deyrolle percebeu a potencialidade do mercado 
escolar. Criada em 1831 por Jean-Baptiste Deyrolle, a Maison começou a editar suas 
pranchas escolares, o Musée Scolaire Deyrolle, em 1861, sob a administração do 
naturalista Emile Deyrolle. Já nos anos 1870, tinha o governo francês como seu 
principal comprador. Vinte anos depois, mirava o Brasil, que figurava entre os 15 
principais países no conjunto do comércio exterior da França (Mialhe, 2009, p. 54). De 
acordo, com Barbuy (2009, p. 211) para concorrer com a Inglaterra e a Alemanha, na 
segunda metade do Oitocentos, toda uma rede, em que o comércio e a representação 
consular estavam imbricados, foi montada pela França com o intuito de fomentar as 
exportações para a terras brasileiras. 
Reforçando seu interesse em conquistar o mercado escolar brasileiro, a Maison 
Deyrolle se associou a Joaquim José Menezes Vieira para a adaptação das pranchas ao 
meio educacional do Brasil. Menezes Vieira, médico e educador de grande projeção no 
final do Oitocentos, assumia, na época, o prestigiado cargo de diretor do Pedagogium. O 
resultado dessa associação foi a publicação do Museu Escolar Brasileiro, 
 11 
Nacionalisação do Musée Scolaire Deyrolle, por Menezes Vieira, diretor do 
Pedagogium do Brasil. 
O volume dessa produção ainda não foi possível esquadrinhar, nem em termos 
do número de lâminas editadas, nem da tiragem ou distribuição. No entanto, é sabido 
que a publicação chegou ao Brasil. Na Escola Normal Caetano de Campos, dos 55 
quadros parietais do final do século XIX que sobreviveram ao tempo e ao descarte, 
quatro deles eram da série Museu Escolar Brasileiro, assinada por Menezes Vieira. O 
maior conjunto documental localizado até o momento, entretanto, foi em Portugal, na 
Escola Oliveira Lopes, em Válega, Ovar, distrito de Aveiro. As pranchas, feitas para o 
Brasil, assim, também haviam sido vendidas a escolas portuguesas. 
Situada na zona rural do Norte de Portugal, a Escola Oliveira Lopes foi doada à 
freguesia, completamente provida, pelos irmãos José e Manuel José d’Oliveira Lopes. O 
benemérito José d’Oliveira Lopes havia emigrado para o Brasil quando tinha 13 anos de 
idade. Fizera fortuna, retornando à Portugal após 31 anos de trabalho. A inauguração do 
edifício escolar coincidia com o ingresso do doador na vida pública, onde permaneceria 
por 14 anos, até o falecimento, ocorrido no momento em que ocupava a presidência da 
Câmara Municipal. 
A estada de José d’Oliveira Lopes no Brasil, a menção à compra de material 
escolar na França na documentação encontrada e a presença do Museu Escolar 
Brasileiro entre os recursos didáticos adquiridos para a escola portuguesa, interligam 
três deferentes espaços geográficos, mas também sociais e culturais. A constatação 
reforça a importância em indagar sobre o papel da indústria na disseminação de 
modelos pedagógicos. Sinaliza, outrossim, para os múltiplos caminhos percorridos 
pelos objetos escolares, não necessariamente restritos às fronteiras nacionais, nem 
desenhados em uma única direção (das sociedades de referência às demais), o que 
embaralha pontos fixos de partida e chegada, multiplicando as mestiçagens/ 
apropriações possíveis e nos faz inquirir sobre os efeitos dessa circulação inesperada. 
Se é provável que a associação entre a Maison Deyrolle e Menezes Vieira 
visasse uma estratégia de vendas, a proposta de uma nacionalização das lâminas, 
inscrita no subtítulo, remete ao que tenho denominado de tradução cultural. Em outro 
texto (Vidal, 2007) procurei demonstrar que, ao traduzir, Menezes Vieira alterou os 
conteúdos, bem como reordenou as imagens tornando o objeto mais apropriado ao que 
concebia como adequado ao uso nas escolas primárias brasileiras. Retomo a 
 12 
argumentação aqui brevemente ao comparar duas lâminas, aparentemente iguais, 
pertencentes ao Arquivo da Escola Caetano de Campos. 
Os quadros parietais guardavam o mesmo projeto editorial (dimensão da lâmina, 
organização gráfica do material, tipo de letra e desenho dos animais) e o mesmo 
conjunto de imagens de moluscos (caracol e lula) e radiados (ouriço, medusa e 
anêmona). No entanto, enquanto a lâmina francesa dava destaque ao caracol, 
identificando seus órgãos internos; o Museu Escolar Brasileiro incluía as imagens do 
marisco ao grupo dos moluscos e acrescentava o grupo de anelídeos (sanguessuga, 
solitária - com sua cabeça destacada - e lombriga). 
 
 
Quadros parietais da Escola Normal Caetano de Campos. (Acervo: Centro de 
Referência em Educação Mário Covas – CRE, Secretaria do Estado de Educação de São Paulo. 
Fotografia de Pedro Gonçalves Moreira, junho de 2005.) 
 
Possivelmente a modificação nos quadros indicie aspectos sociais e culturais do 
ensino de Ciências Naturais no final do Oitocentos nas escolas primárias. A secção do 
caracol na lâmina francesa pode significar um olhar mais cuidadoso a um molusco 
utilizado frequentemente na culinária. Com o estudo detalhado dos órgãos internos, o 
professor teria a oportunidade de dar recomendações sobre a limpeza correta do animal, 
distinguindo o que era comestível. A inserção da sanguessuga, da lombriga e da solitária 
na prancha brasileira, por seu turno, pode remeter a preocupações com a prevenção e 
 13 
tratamento de doenças comuns no Brasil às comunidades que vivem em condições 
sanitárias inadequadas. Propiciaria, assim, conselhos sobre como evitar, identificar 
sintomas e curar tais enfermidades. A frase “os vermes intestinais vivem nos órgãos 
internos dos homens de [sic] outros animais”, inscrita sob a solitária, reforça a hipótese. 
Ainda, a inclusão do marisco nas lâminas brasileiras talvez tivesse a mesma 
função que a secção do caracol para o quadro francês. Convidaria o professor a 
esclarecer os cuidados necessários ao limpar o animal antes do cozimento: questão 
particularmente importante para alunos de regiões praieiras, como o Rio de Janeiro, 
lugar em que morava o educador e onde o hábito de ingestão do marisco é observado 
pela população ainda nos dias de hoje. 
 
Comentários finais 
Ao investigar a trajetória de produção e distribuição de um material escolar no 
final do Oitocentos, o Museu Escolar Brasileiro, pude colher indícios da circulação 
internacional de modelos e objetos pedagógicos da França para o Brasil (um circuito 
reiterado constantemente nas pesquisas) e do Brasil para Portugal (um circuito 
totalmente inesperado). 
Nos discursos de educadores da época, discorria-se frequentemente sobre a 
importância das missões ao estrangeiro como forma de permitir a modernização da 
educação brasileira, pela aquisição de materiais e pelo contato com soluções 
pedagógicas exógenas. Dentre outros educadores, Rui Barbosa, Menezes Vieirae 
Manoel Bomfim advogavam que os exemplos colhidos no exterior fossem adaptados ao 
meio educacional brasileiro, recusando o que alguns denominavam de cópia servil. 
Nesse processo de adaptação, construíram-se mestiçagens culturais, entretecendo 
especificidades locais a propostas pedagógicas difundidas em larga escala. Os objetos 
culturais resultantes exibem matizes de uma hibridação que entrelaça acontecimentos 
sociais, econômicos e pedagógicos, tensionando significados. Sua distribuição a outros 
espaços, como a zona rural do Norte de Portugal, sinaliza para novas apropriações, 
elaboradas elas também em relações de luta de representação sobre a educação e a 
cultura. 
As conexões entre os níveis micro e macro da análise foram aqui levemente 
esboçadas na exploração do exemplo. Mas, me parece, podem servir de convite para as 
várias possibilidades de investigação que o percurso metodológico oferece. Ao 
circunscrever a análise à circulação de um tipo de material escolar (o Museu Escolar 
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Brasileiro), a alguns sujeitos específicos (Menezes Vieira, Oliveira Lopes e Maison 
Deyrolle) e a um método pedagógico (o ensino intuitivo), tive a oportunidade de 
atravessar fronteiras geográficas, com uma certa segurança, conferida pelo domínio das 
fontes. 
Nos circuitos investigados, foram as viagens e os viajantes (pessoas ou objetos) 
que mais atraíram o meu olhar. E ao contemplá-los, procurei apreciar, no Indefinido, 
como nos instiga Álvaro de Campos, suas tantas espécies! Obrigada. 
 
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