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Entre a técnica e os direitos humanos- possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto

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Carmen Simone Grilo Diniz 
Entre a técnica e os direitos humanos: 
possibilidades e limites da humanização da 
assistência ao parto 
 
 
Tese apresentada à Faculdade de Medicina 
da Universidade de São Paulo para a 
obtenção do título de Doutor em Medicina 
 
Área de concentração: Medicina Preventiva 
 
Orientador: Dr. José Ricardo de Carvalho 
Mesquita Ayres 
 
 
 
SÃO PAULO 
2001
Ficha Catalográfica 
 
Preparada pela biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 
Reprodução autorizada pelo autor. 
 
Diniz, Carmen Simone Grilo 
Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da 
assistência ao parto 
 
Carmen Simone Grilo Diniz. – São Paulo, 2001. 
Tese (doutorado) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 
Departamento de medicina preventiva. 
Área de concentração: medicina preventiva. 
Orientador: José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. 
 
Descritores: 
1.direitos humanos / tendências 
2.saúde reprodutiva 
3.direitos da mulher/organização & administração 
4.maternidades / normas 
5.parto normal / tendências 
6.assistência perinatal / recursos humanos 
7.relações hospital - paciente 
8.medicina baseada em evidências 
9.sus (br) 
Usp/fm/sbd- 10410 1
 i 
 
Agradecimentos 
 
 
Diz-se que a gratidão é a primeira das virtudes, aquela a partir da qual todas as 
demais são possíveis. Menos por virtude que por justiça, quero afirmar, como de 
praxe dos agradecimentos que se fazem ao se apresentar um trabalho, que sem a 
ajuda que se agradece, o trabalho seria impossível. 
Esta tese é em grande medida um trabalho coletivo, o resultado sinérgico de vários 
encontros felizes. Isentando todas as pessoas listadas de qualquer responsabilidade 
sobre o resultado do trabalho, gostaria de expressar minha gratidão sincera pelo 
apoio na concepção, gestação e parto deste tese. 
Ao professor doutor José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, meu orientador, 
quero expressar minha enorme satisfação com nosso trabalho conjunto. Agradeço 
por sua capacidade e talento para de fato orientar, iluminando as questões de 
pesquisa de forma crítica, inteligente, metódica e estimulante; por sua abertura a 
questões novas e desafiadoras, por sua dedicação e paciência firmes. 
Agradeço aos professores Lilia Blima Schraiber, Maria Inês Baptistella Nemes e 
Ivan França Jr., que participaram da banca de qualificação, pela leitura atenta do 
material e pelos comentários ao projeto desta tese, que foram muito valiosos e 
iluminadores na etapa final do trabalho. 
Às amigas e amigos da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento 
(REHUNA), pela inspiração e apoio, e por partilhar muitas das questões aqui 
tratadas. Seria enorme a lista de pessoas a agradecer pelas conversas e sugestões, e 
correndo o risco de esquecer pessoas muito importantes para o processo, agradeço 
em especial a Adailton Salvatore, Anna Voloshko, Cristina Boareto, Daisuke Onuke, 
Daniel Klotzel, Daphne Rattner, Hugo Sabatino, Islene Carvalho, Lívia Carneiro, 
João Batista de Lima e Ivo Lopes, Marcos Dias, Marcos Leite, Marcos Tadeu, 
 ii 
Marcos Ymayo, Maria Luísa Riesgo, Paula Viana, Ricardo Jones, Sônia Hotimsky, 
entre tantos outros. É um privilégio contar com a companhia, ainda que virtual na 
maioria das vezes, de uma comunidade como esta de pessoas envolvidas na reflexão 
e na transformação da assistência ao parto no Brasil. Ainda na comunidade pela 
humanização do parto, agradeço os Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto 
(GENP), e às amigas das listas eletrônicas partonatural@Egroups e amigasdoparto@ 
Egroups, em especial a Fadynha Teixeira, Ana Cris Duarte e Adriana Tanese. 
Quero agradecer também minhas companheiras e companheiros de trabalho que 
partilharam as reflexões deste processo. Agradeço às amigas do Coletivo Feminista 
Sexualidade Saúde, pela inspiração e especialmente por suportar minha ausência 
neste momento; agradeço em particular a Sandra Dircinha por seus comentários ao 
material empírico. A todas as integrantes dos projetos “Gênero, Saúde e Direitos 
Humanos” e “Saúde da Mulher e Direitos Humanos”, entre elas Paula Francisquetti, 
Lenira Mazoni e Maria José Araújo; agradeço especialmente a Ana Flávia Pires 
Lucas d’Oliveira, minha colega de pós-graduação, comadre pessoal e intelectual, 
cuja companhia e convivência é um privilégio em todos os sentidos; à professora 
Lilia Schraiber, por sua liderança e reflexão inspirada sobre o tema, e ao professor 
Ivan França Jr. pela sua estimulante discussão sobre saúde e direitos humanos. Aos 
meus colegas de pós graduação, agradeço pela ajuda mútua na troca de experiências 
sobre nossos avanços e dificuldades; em especial agradeço a Maria de Fátima 
Marinho de Souza, pela ajuda nos assuntos logísticos da tese. 
Agradeço também à Fundação Ford, nas pessoas de Sarah Costa e Denise Dourado 
Dora, pela interlocucão, sugestões bibliográficas, e por terem sido de uma enorme 
sensibilidade para o problema da violência institucional na assistência ao parto, 
apoiando a pesquisa que veio e se desdobrar nesta tese. 
Agradeço a generosa atenção e comentários a este trabalho feitos pelo minha madre 
superiora no tema, Norma Meras Swenson. Agradeço às amigas e amigos do Grupo 
de Pesquisa Internacional em Direitos Reprodutivos (IRRRAG), pelas inspiradoras 
 iii 
conversas informais sobre o tema, em especial a Cecília de Mello e Souza, Benedito 
Medrado, Ana Paula Portella, Rosalind Petchesky e Radhika Ramasuban. 
Aos amigos e diretores dos serviços que estudamos, agradecemos sua abertura e 
receptividade ao trabalho, sem a qual este trabalho de fato teria sido impossível. 
Agradecemos aos doutores Marcos Ymayo e Irmã Monique Bourget, da OSS 
Hospital Santa Marcelina de Itaim Paulista, por sua disponibilidade, abertura e 
interesse, e a todo o pessoal técnico e administrativo que se dispôs a cooperar com a 
pesquisa. Agradecemos à Comissão de doulas deste serviço, especialmente a 
Fermina Lopes e a Maria Lúcia pelas preciosas informações sobre a implantação das 
propostas. A elas e às militantes da Comissão de Mulheres do Movimento de Saúde 
da Zona Leste, nossa grata admiração. 
Agradecemos aos doutores José Antônio Jordão e Marcos Tadeu pela sua abertura e 
disponibilidade; a este segundo agradecemos especialmente as muitas vezes que nos 
acompanhou na observação do Hospital do Ipiranga, e a todos os residentes e 
funcionários com quem interagimos. Esperamos com confiança corresponder à 
expectativa de oferecer aos serviços estudados um retorno da pesquisa que seja uma 
contribuição útil à melhoria da assistência. 
Às pacientes que nos dois serviços consentiram com a observação de seus partos, 
nossa gratidão e esperança de que esta intromissão venha a contribuir para que seus 
próximos partos, ou os de suas filhas, sejam vividos com mais satisfação e 
segurança. 
Às minhas colaboradoras nesta pesquisa, minha gratidão sem limites: sem o nosso 
trabalho conjunto, não haveria a riqueza que resulta da nossa troca sinérgica de 
idéias e reflexão. Agradeço às antropólogas Sônia Nussenzweig Hotimsky e a 
Regina Facchini pelo seu talentoso trabalho de observação de serviços, que tive o 
prazer de partilhar e no qual pude aprender tanto. Jamais esquecerei nossas horas 
nos plantões, ou nos engarrafamentos de São Paulo, onde surgiram muitos dos 
insights desta pesquisa. Agradeço também a Lis Pasini, esperando que possamos 
 iv 
voltar a trabalhar, as quatro juntas. Agradeço a Ana Claudia Fonseca, pela 
transcrição das fitas, e a Cecilia Marks, pela cuidadosa e criativa revisão dos 
originais. E ainda, a Renato Cury, pela fotografia do campo, e pelos comentários ao 
trabalho. 
Agradeço também à FAPESP, pela bolsa e pela sua reserva técnica que financiou 
este trabalho. Agradeço aos seus pacientes funcionários, e ainda ao meu parecerista 
desconhecido, pelos comentários estimulantes, ainda que telegráficos. 
Agradeço aLuciene de Oliveira e Andréia de Souza pelo apoio na esfera doméstica 
– sem elas, nem imagino como teria feito este trabalho. 
Aos amigos ausentes que continuam como fonte de inspiração e de saudade, quero 
lembrar dois professores, gurus da nossa geração e sempre presentes em nossas 
reflexões, Paulo R. Michaliszyn e Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. Ainda como 
ausências inspiradoras deste trabalho, estão Ângela Gehrke, minha parteira e espécie 
de santa de nossa geração, e David Gabriel, nosso anjo familiar. 
E por fim, but not least, agradeço à minha família maravilhosa. Aos meus pais, 
Carlos e Maria Arminda, por terem me ensinado a perseverança, a flexibilidade, o 
espírito crítico e o bom humor; espero ter aprendido. Aos meus sogros, Anna e Salo, 
pela ajuda logística e estímulo intelectual. Finalmente, aos meus maiores amores: a 
meus filhos Beatriz e David, agradeço a inspiração, e a paciência por terem 
suportado minha presença-ausente em casa. E a Artur Kalichman, pelo mais feliz 
desses encontros: ao meu amigo, colega, marido, namorado, leitor atento e generoso, 
agradeço por sua solidariedade, bom humor e apoio amoroso em todo o percurso, 
enfim, pela partilha. 
 v 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
Trata-se de estudo de caso sobre implantação de propostas de reorganização 
da assistência ao parto em maternidades da cidade de São Paulo, orientados 
pela idéia de humanização e de medicina perinatal baseada na evidência 
científica. Foi usada metodologia qualitativa, combinando-se técnicas de 
observação direta dos serviços em duas maternidades financiadas pelo SUS, 
durante o ano de 2000, depoimentos orais com informantes privilegiados e 
análise documental. Os achados sugerem que entre os fatores que podem 
tornar possível ou limitada esta humanização do parto estão a adequação do 
acesso aos leitos, da comunicação entre os sujeitos, do manejo da dor e dos 
tempos no parto; assim como a presença ou não de uma cultura de 
reconhecimento pelos profissionais tanto da evidência científica quanto dos 
direitos humanos e reprodutivos das mulheres. 
 vi 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The present dissertation is a case study concerning the implementation of 
proposals of reorganization of maternity care in São Paulo City hospitals 
guided by the notions of humanization and of evidence based perinatal 
medicine. Qualitative methodology was utilized, combining techniques of 
participant observation, interviews and the analysis of primary sources. 
Observation of maternity care was conducted during the year 2000, in two 
hospitals which are financed by the Brazilian public health system, SUS 
(Sistema Unificado de Saúde). Research findings suggest that among the 
factors that may contribute towards or, on the other hand, create constraints to 
the humanization of childbirth are the adequacy of gatekeeping; 
communication among subjects; the management of pain and of time in labor; 
as well as the presence or absence of a culture of recognition, on the part of 
health professionals, with respect to scientific evidence as well as women´s 
reproductive and human rights. 
 vii 
 
SUMÁRIO 
 
Agradecimentos i 
Resumo 
Abstract 
 
1. Introdução e contexto 
 
1 
1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de mudança 
de paradigma 
 
1 
1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência científica 
e prática obstétrica, e as propostas de humanização 
 
11 
1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança, limites e 
possibilidades 
 
26 
 
2. Material e método 
 
32 
2. 1. Objetivos do estudo 32 
2.1.1.Objetivo Geral 32 
2.1.2. Objetivos Específicos 32 
2.2. Material e Método 34 
2.2.1.Hipótese 34 
2.2.2.Quadro interpretativo 34 
2.2.2.1 Da narcose ao quimono alienígena: os muitos sentidos da 
humanização - um conceito em construção (e em disputa) 
 
34 
2.2.2.2. A medicina perinatal baseada na evidência científica: confronto de 
paradigmas e o caráter ritual da assistência 
 
39 
2.2.2.3. Técnica, ritual e intersubjetividade 45 
2.2.2.4. Do parto como violência biológica (do corpo contra a pessoa) à 
assistência ao parto como violência de gênero (das instituições contra as 
pessoas). 
 
 
48 
2.2.2.5. As pontes entre humanização da assistência e direitos humanos, e 
os limites e possibilidades de sua promoção 
 
58 
2.3. Desenho do estudo 66 
2.3.1. Recursos metodológicos e seu ajuste 66 
2.3.2. Observação de serviços: o percurso 67 
2.3.3. Outras fontes de evidências e reflexões 75 
2.3.4. Questões éticas 79 
 
3. Resultados: Possibilidades e limites das propostas de humanização 
 
 
82 
3.1. Os muitos sentidos da humanização 83 
3.2. Cenários da humanização 98 
 viii 
3.2.1 A formação dos recursos humanos 98 
3.2.2. As propostas de humanização, os médicos e o mercado de trabalho 106 
3.2.3. Novas e velhas contradições 110 
3.2.4. Os mesmos sujeitos e os sujeitos diferentes 115 
3.2.4.1. A parturiente 115 
3.2.4.2. O médico 122 
3.2.4.3. A enfermeira 127 
3.2.4.4. O pai, e a ou o acompanhante 131 
3.2.4.5. A doula 139 
3.3. A estrutura física 145 
3.3.1. Arquitetura, equipamentos, rotas e movimentos 145 
3.4. Os mecanismos e estilos de gestão 157 
 
4. Discussão: Assistência ao parto e direitos – aproximações e 
distância entre intenção e gesto 
 
 
161 
4.1. A reorganização do modelo de assistência: características, 
permanências e rupturas 
 
167 
4.2. Assistência e percepção de direitos 172 
4.2.1. O direito à equidade e o acesso ao leito obstétrico 175 
4.2.2. O direito à segurança, à integridade corporal e ao usufruto da 
sexualidade 
 
184 
4.2.3. O direito a estar livre de sofrimento desnecessário 193 
 
5. Considerações Finais 
 
204 
5.1. Os limites às propostas de humanização 205 
5.2. Fatores que contribuem para a implantação das propostas de 
humanização 
214 
5.3. Lacunas do percurso e questões para a pesquisa 225 
 
6. Bibliografia 
 
 
230 
7. Anexos 244 
- Roteiros preliminares das entrevistas 244 
- Exemplo de carta à direção dos serviços formalizando a pesquisa 246 
- Formulário de Consentimento Informado para observação, fotografia e 
acesso ao prontuário 
 
248 
- Classificação de Condutas no Parto Normal – Assistência ao Parto 
Normal Um Guia Prático (OMS) 1996 
 
250 
 
 1 
 
 
Capítulo 1 
 
1. Introdução e contexto 
 
1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de 
mudança de paradigma 
No final do século 20, cresce em todo o mundo um movimento por 
oferecer uma assistência à saúde baseada na evidência empírica da segurança 
e da efetividade dos procedimentos, em todas as especialidades médicas. No 
caso da assistência à gravidez e ao parto, esta preocupação com a evidência é 
ainda mais crucial, uma vez que, diferentemente das outras especialidades, 
estas práticas irão intervir sobre mulheres e crianças supostamente saudáveis, 
e num processo supostamente normal, o parto (Chalmers, 1992). 
Mas a própria definição do que seria um parto normal não é universal 
ou facilmente padronizável. A partir da crença de que um parto só pode ser 
considerado normal “em retrospecto”(Rezende, 1974), na segunda metade do 
século 20, houve uma rápida expansão no uso de muitas tecnologias com a 
finalidade de desencadear, aumentar, acelerar, regular ou monitorar o processo 
fisiológico do parto, com o objetivo de torná-lo “mais normal” e melhorar a 
saúde de mães e crianças. Neste processo, tanto em países desenvolvidos 
como nos em desenvolvimento, as tentativas de melhorar a qualidade da 
assistência ao parto muitas vezes levaram à adoção acrítica de intervenções 
inapropriadas, desnecessárias e às vezes arriscadas, sem a devida avaliação de 
sua efetividade ou segurança. (Enkin, 1995, 2000; WHO, 1996). 
 2 
A sistematização da reflexão crítica sobre este modelo de assistência ao 
parto se inicia, quando, no contexto do Ano Internacional da Criança (1979), é 
criadona Europa um comitê regional para estudar os limites das intervenções 
propostas para reduzir a morbidade e a mortalidade peri-natal e materna 
naquele continente. Ali se detectavam problemas como o aumento de custos, 
sem a respectiva melhoria, nos resultados da assistência, a falta de consenso 
sobre os melhores procedimentos e a extrema variabilidade geográfica de 
opiniões. A partir deste comitê, vários grupos de profissionais passam a se 
organizar para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à 
gravidez, ao parto e pós-parto, iniciando um esforço que se estendeu 
mundialmente, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, OMS (WHO, 
1985; Chalmers, 1992; Cochrane Collaboration, 1996; Wagner, 1997). 
No decorrer do processo, foram incorporados nos grupos de trabalhos, 
além dos especialistas, representantes de grupos de mulheres e de 
organizações de consumidores dos serviços de saúde, que vieram a cumprir 
um importante papel neste esforço (Wagner, 1997). 
Este processo envolveu a utilização de estudos randomizados 
controlados (randomized controlled trials) como método preferencial de 
pesquisa, e o uso da metanálise como instrumento de sumarização sistemática 
das pesquisas quantitativas existentes. Um dos seus resultados mais 
importantes foi a publicação da revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos 
sobre 275 práticas de assistência perinatal, que foram classificadas quanto à 
sua efetividade e segurança. Este trabalho de uma década, coordenado por 
obstetras1, contou com o esforço conjunto de mais de quatrocentos 
 
1 A primeira versão da publicação de “Effective Care in Pregnancy and Childbirth” Enkin, Kierse, 
Renfrew, Nielson,1993 incluía todas as revisões e era excessivamente volumoso e caro para ser um 
recurso prático para o uso em serviços; em 1995, foi lançada uma versão condensada, “A Guide to 
 3 
pesquisadores (incluindo obstetras, pediatras, enfermeiras, estatísticos, 
epidemiologistas, cientistas sociais, parteiras, etc.), que realizaram uma 
revisão exaustiva de todos os estudos publicados sobre o tema desde 1950 
(Johnson, 1997). O trabalho inteiro está disponível em publicações eletrônicas 
(página e CD) desde a segunda metade da década de 90. 
O grupo que trabalhou as revisões sistemática sobre gravidez e parto foi 
o primeiro de centenas de outros grupos que se organizaram nos anos 
seguintes para levantar as evidência sobre a eficácia e a segurança de 
procedimentos em todas as especialidades médicas. Este movimento e seus 
desdobramentos ficou conhecido como medicina baseada na evidência 
científica e se organizou em grande medida sob a influência e o entusiasmo 
do epidemiologista clínico britânico Archie Cochrane2. A colaboração 
internacional de grupos de pesquisa que compõe este esforço de 
sistematização e divulgação da evidência científica disponível tomaram o 
nome de “Iniciativa Cochrane” e “Biblioteca Cochrane” em sua homenagem. 
A partir mesmo da metade da década de 80, com a publicação da 
primeira fase destes trabalhos (WHO, 1985; 1986), a avaliação científica das 
práticas de assistência vem evidenciando a efetividade e a segurança de uma 
atenção ao parto com um mínimo de, se alguma, intervenção sobre a 
 
Effective Care in Pregnancy and Childbirth”, que passou a ser uma espécie de bíblia dos defensores 
da medicina perinatal baseada na evidência. 
2 Archibald L. Cochrane (1909-1988) ficou conhecido por seu influente livro “Effectiveness and 
Efficiency: Randon Reflections on Health Services” (1972), onde propõe que, como os recursos 
para a saúde serão sempre limitados, estes deveriam prover equitativamente aquelas formas de 
assistência que se provaram efetivas em estudos avaliativos bem desenhados. Ele defendia neste 
livro que “Certamente é motivo de grande crítica à nossa profissão que não tenhamos organizado 
um sumário crítico, por especialidade ou subespecialidade, adaptado periodicamente, de todos os 
estudos clínicos randomizados relevantes”. Cochrane afirmava que em geral a prática médica se 
orientava por 10% de evidências científicas e 90% de pajelança; uma das áreas que recebeu suas 
críticas mais agudas – e bem humoradas – foi a obstetrícia, que ganhou dele o prêmio “The wooden 
spoon” (a colher de pau, ou palmatória), por ser considerada a mais descolada da evidência 
científica em sua prática. 
 4 
fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das 
parturientes - ao invés de organizados em função das necessidades das 
instituições de assistência. Isto resultou em um novo paradigma, que propõe 
que 
“O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança 
saudáveis com o mínimo possível de intervenção que seja compatível 
com a segurança. Esta abordagem implica que no parto normal deve 
haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural” (WHO, 
1996: 4). 
Com base nesta concepção de assistência, qualquer intervenção sobre a 
fisiologia só deve ser feita quando se prova mais segura e/ou efetiva que a 
não-intervenção. Com o avanço dos estudos nesta direção, a argüição sobre 
segurança e eficácia estende-se virtualmente a todos os procedimentos de 
rotina na assistência à gravidez e ao parto. 
A argüição da segurança e da efetividade se estendeu sobre a assistência 
pré-natal, onde se constatou que, em grande medida, a extensão e o conteúdo 
da atenção pré-natal, incluindo o número de consultas e os exames solicitados, 
são ritualísticos ao invés de baseados na evidência. Esta constatação impõe a 
necessidade de identificar os elementos da assistência que são de fato 
provados como efetivos na prevenção ou no alívio de efeitos adversos na mãe 
e na criança (Villar, J, 1997). 
Neste processo, o campo da assistência à gravidez e ao parto acumulou 
o maior volume de avaliação sistemática já desenvolvido como especialidade 
médica até então (Enkin, 1996; Johnson, 1997). 
Em meados da década de 90, a OMS passa a divulgar amplamente 
documentos baseados nestes estudos, classificando os procedimentos de rotina 
em quatro categorias: 
 5 
A- Condutas que são claramente úteis e que deveriam ser 
encorajadas; 
B- - Condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam 
ser eliminadas; 
C- - condutas sem evidência suficiente para apoiar uma 
recomendação e que, deveriam ser usadas com precaução, enquanto 
pesquisas adicionais comprovem o assunto; e 
D- - condutas freqüentemente utilizadas de forma inapropriadas, 
provocando mais dano que benefício. 
A classificação buscou tornar mais objetiva a consulta por profissionais 
a respeito de suas decisões na assistência. Este trabalho foi publicado em suas 
várias versões, inclusive pela OMS, e algumas delas são conhecidos como 
“recomendações da OMS”. 
Por “recomendações da OMS” estamos considerando, para efeito deste 
estudo, quatro documentos: o primeiro é Appropriate Technology for Birth. 
(World Health Organization. 1985) também conhecido como “Carta de 
Fortaleza”, foi o primeiro “manifesto” internacional desta corrente, está 
incluído como anexo, em português. O segundo, Recomendations for 
Appropriate Technology Following Birth (1986), também conhecido como 
Carta de Trieste, é uma versão para a neonatologia do que a Carta de Fortaleza 
é para a obstetrícia. O terceiro é o Care in Normal Birth: A Practical Guide 
(Maternal and Newborn Health/ Safe Motherhood Unit. WHO, 1996); este 
trabalho é a versão completa e atualizada da Iniciativa Cochrane nesta área, 
sistematizando todos os procedimento metanalisados; está desde 2000 
disponível em português, em publicação do Ministério da Saúde e colocamos 
em anexo um quadro resumo dos procedimentos. E finalmente, World Health 
Day: Safe Motherhood. (WHO, 1998),um documento que retoma os 
 6 
anteriores e coloca a Iniciativa Maternidade Segura também da perspectiva 
dos direitos humanos das mulheres3. 
Mas como estes trabalhos têm repercutido na assistência ao parto nos 
diversos países? Como tem ajudado a promover mudanças? Como acontecem 
estas mudanças? 
Se consideramos as referidas recomendações da OMS e os 
procedimentos reconhecidos como benéficos, vemos que a primeira 
recomendação é o desenvolvimento de um plano individual feito pela mulher. 
Os estudos mostram que quando a mulher está informada sobre as suas 
possibilidades de escolha no parto – aí incluídos o lugar de dar à luz, o 
profissional e demais pessoas que vão acompanhá-la e os procedimentos 
eletivos na assistência – este parto tem mais chance tanto de ser mais saudável 
para mãe e bebê quanto da mulher expressar maior satisfação com a 
experiência (Enkin, 2000). 
A partir desta concepção de parceria entre usuária e serviços, e de uma 
maior simetria nesta relação, surge o conceito de de plano de parto. Como o 
nome sugere, este é um planejamento dos procedimentos eletivos no parto, a 
ser elaborado no pré-natal, sobre os diversos aspectos do processo, desde as 
opções tecnológicas tradicionais e suas alternativas, até formas de 
comunicação entre os envolvidos. Não se trata de um contrato de 
 
3 A Iniciativa Maternidade Segura é uma campanha mundial liderada pela OMS que busca combater 
a tragédia da mortalidade materna, ou seja, a morte de mulheres por causas relacionadas à gravidez 
ou ao parto, considerada um dos fatores de mortalidade mais preveníveis, pois perto de 100% destas 
mortes são evitáveis. Estas mortes se concentram basicamente no mundo em desenvolvimento, onde 
em alguns países africanos chega a 1000 mortes por 100.000 nascidos vivos. A taxa no Brasil, 
corrigida a subnotificação, é de cerca de 110 mortes por 100.000, contra 3,6 mortes no Canadá. 
(BSRM, 21/6). Infelizmente, constatou-se que a mortalidade materna mundial, que chega a 600.000 
anuais, aumentou nos últimos 10 anos, seja por ter havido pouca mudança no quadro mundial e/ou 
por terem melhorado as informações sobre as mortes. 
 
 7 
compromisso que não possa ser modificado no decorrer do parto, mas é 
principalmente uma oportunidade comunicativa e educativa para todos os 
membros da “equipe”- a mulher, a família, o profissional e o serviço. 
As recomendações que se orientam por este novo paradigma, ao mesmo 
tempo baseado na evidência empírica e nas novas tendências nas relações 
entre profissionais e pacientes, postulam a centralidade do direito à 
informação e à decisão informada nas ações de saúde. Isto implica uma 
mudança importante na concepção de relação médico-paciente, pois supõe que 
a decisão deva ser compartilhada entre os envolvidos, ao invés de decidida de 
forma unilateral pelo profissional e pela instituição que presta a assistência. A 
parturiente não seria mais um objeto calado e imobilizado sobre o qual se 
fazem procedimentos extrativos do feto, mas um sujeito com direito a voz e a 
movimento, de quem se espera um papel ativo, reconhecendo que será ela a 
parir, e da equipe se espera que ofereça o apoio quando e se necessário. 
 Na prática, no Brasil como em outros países, esta, como outras 
recomendações, vem sendo sistematicamente desconsideradas - isto quando 
são conhecidas. Este é o caso de condutas como o monitoramento de bem-
estar físico e emocional da mulher, a oferta oral de fluidos durante o trabalho 
de parto e parto, as técnicas não-invasivas e não farmacológicas de alívio da 
dor (como a massagem, o banho e o relaxamento); a liberdade de posição no 
trabalho de parto e parto, o encorajamento a posturas verticais, entre outros. 
Os procedimentos reconhecidamente danosos, ineficazes, e que deveriam ser 
eliminados, continuam a fazer parte do dia a dia da maioria dos serviços, 
como o uso da posição horizontal durante o trabalho de parto e parto; o uso de 
rotina do enema; da tricotomia; da infusão intravenosa; a administração de 
ocitocina para acelerarem o trabalho de parto e; os esforços expulsivos 
dirigidos durante o segundo estágio do trabalho de parto. Isto sem contar com 
 8 
a perigosa manobra de Kristeller4, entre outros. Mesmo práticas que, 
devidamente indicadas, poderiam ser úteis são usadas de forma inapropriada, 
causando mais dano que benefício, como os exames vaginais freqüentes e 
repetidos. 
A assistência é organizada como uma linha de montagem (Martin, 1987; 
Rothman, 1992), com a rígida estipulação dos tempos para cada estágio do 
parto. A transferência das mulheres de local em local durante o parto, assim 
como a própria arquitetura das maternidades - fatores que contribuem para 
inviabilizar o respeito à fisiologia do processo (Enkin e cols.1995), são parte 
da assistência típica ao parto no Brasil. 
Nos últimos anos, tem havido uma distinção cada vez mais enfática 
sobre o que se considera “parto normal”. Em geral, o que consideramos como 
parto normal é o chamado parto vaginal dirigido, ou seja, aquele que de rotina 
é conduzido com a mulher imobilizada ou semi-imobilizada, privada de 
alimentos e líquidos por via oral, usando de drogas para a indução ou 
aceleração do parto , com a mulher imobilizada e em posição de litotomia no 
período expulsivo, com eventual uso de fórceps, e com o uso de rotina 
episiotomia e episiorrafia. 
Para alguns autores (Gaskin, 2000; Davis-Floyd, 1997; Wagner, 2000), 
com os quais nos identificamos, por parto normal devemos entender o parto 
que ocorre conforme a fisiologia, sem intervenções desnecessárias nem 
seqüelas destas intervenções. Um parto vaginal orientado por uma abordagem 
médico-cirúrgica e pelo modelo tecnocrático5 acima descrito, que inclua um 
 
4 Esta manobra consiste na expressão do fundo uterino para ajudar na saída do bebê; como veremos, 
é um procedimento tão associado a complicações maternas e fetais graves que sequer é mencionado 
em muitos livros e documentos, apesar de ser uma prática corrente nos serviços brasileiros. 
5 5 O termo modelo tecnocrático de assistência ao parto (Davis-Floyd, 1992; 1998) é usado para se 
referir àquela assistência que parte do suposto que a mulher depende da tecnologia para dar à luz, 
 9 
conjunto de intervenções desnecessárias que vão deixar seqüelas físicas e um 
maior desgaste emocional da mulher com sua experiência, deveria se chamar 
de “parto típico”6, até por sua variabilidade geográfica, pois como vimos, este 
“normal” varia de acordo com o país ou o serviço. 
Em sua extensa revisão sobre os procedimentos de rotina no parto 
tecnocrático, Enkin e cols. mostraram como a abordagem médico-cirúrgica do 
parto, superestimando os riscos inerentes ao processo, freqüentemente implica 
a “substituição do risco potencial de resultados adversos pelo risco certo de 
tratamentos e intervenções duvidosas” (1995:39)7. Assim, cria-se o chamado 
efeito cascata, quando os médicos submetem as mulheres a intervenções “que 
podem levar a complicações, gerando intervenções subseqüentes e a mais 
complicações, que terminam em uma intervenção final, em geral uma cesárea, 
que não teria ocorrido se a cascata não tivesse se iniciado” (Mold e 
Stein,1986). 
Um dos procedimentos que permanece sendo usado de rotina é a 
episiotomia, apesar de há muitos anos os abundantes dados disponíveis 
revelarem que esse procedimento não cumpre os objetivos que justificariam 
sua realização, sejam eles a prevenção de lesões nos genitais da mãe ou na 
cabeça do recém-nascido. Não há qualquer justificativa médica para a 
 
portanto essa assistência deve ser organizada em função daquele conjunto de recursos tecnológicos, 
como estações de umalinha de produção, sendo o médico o administrador e manipulador da 
máquina parturiente, a mulher (Martin, 1989). Nesse modelo, não se trata de uma oposição 
mulheres x máquinas, mas de “recriar, discursivamente e na prática, a máquina de parir perfeita – 
uma combinação da mulher e da tecnologia, um cyborg” (Davis-Floyd e Dummit, 1997, Szusek, 
1998.) 
6 Por “parto típico” entende-se um parto vaginal cuja assistência inclui o conjunto de intervenções 
de rotina não baseadas nas evidências científicas, típica do seu respectivo contexto geográfico e 
cultural (Wagner, 2000; Gaskin, 2000). O termo é usado em substituição ao vago termo “parto 
normal”, que pode incluir desde um parto espontâneo sem intervenções até aquele parto de rotina 
induzido, anestesiado, com o uso de fórceps e de episiotomia. 
7 Literalmente, [...]“replacing a potential risk of adverse outcome with the certain risk of dubious 
treatments and interventions”, no original. 
 10 
realização da episiotomia de rotina ou para seu uso liberal (Thacker e Banta, 
1980; WHO, 1985; Enkin, 1995). Mesmo assim, a episiotomia permanece na 
rotina de assistência em nossos serviços, implicando em centenas de milhares 
de lesões inúteis, arriscadas e potencialmente danosas sobre os genitais 
femininos8. Diz-se que só escapa de episiotomia quem faz uma cesárea: é a 
escolha entre “cortar em cima ou cortar em baixo”. 
Nas palavras de um professor universitário que trabalha pela promoção 
da assistência perinatal baseada na evidência: 
“Como essa discussão democrática aqui, tem por trás a busca da 
cidadania, eu fico muito preocupado com as mulheres brasileiras, se eu 
fosse mulher eu já teria feito... sei lá, pegado em armas, porque é muita 
violência... porque ela vai para a maternidade, ou lhe fazem um corte na 
barriga, desnecessário na maioria das vezes, ou no períneo. De todo 
jeito alguém vai atacá-la com uma faca, então é preciso que isso seja 
melhor pensado, eu acho que é fundamental essa pressão da clientela 
para forçar o médico a tomar atitude de acordo com a melhor ciência 
existente ( Atallah, 1999) 
Se a incorporação da evidência científica sistematizada à prática 
cotidiana de profissionais e serviços tem sido lenta, mais problemática ainda é 
a sua incorporação pelo aparelho formador, que pouco tem se modificado a 
partir desta mudança de paradigma. (Tew, 1995; Enkin, 1996; Chalmers, 
1992). 
 
8Dada a sua permanência de rotina mesmo diante da evidência bem documentada de sua limitada 
indicação, a episiotomia tem sido motivo de acalorado debate. Segundo Kitzinger, esse 
procedimento se mantém porque “representa o poder da obstetrícia” e deveria ser considerada “uma 
forma de mutilação genital” (BWHBC,1993:458). Para Davis-Floyd (1992:129), por meio da 
episiotomia, “os médicos, como representantes da sociedade, podem desconstruir a vagina (e por 
extensão, suas representações), e então reconstruí-la de acordo com nossas crenças culturais e 
sistema de valores”. 
 11 
Ainda que haja uma variação entre os países, o problema até mesmo do 
reconhecimento da existência destes trabalhos de revisão sistemática e das 
conseqüências que seus achados apontam parece ser universal, e “apesar do 
compromisso da comunidade de saúde pública com a saúde materna e infantil, 
é difícil encontrar, mesmo no discurso da saúde pública, o reconhecimento 
destes importantes recursos e da distância entre evidência e prática. (Sakala, 
APHA, 2000)”. 
Uma das lições aprendidas neste processo de revisões sistemáticas é a 
de que a disseminação passiva das evidências científicas não é suficiente para 
mudar a prática clínica (Goer, 1995; Enkin, 1996). A resistência a tais 
mudanças passa por questões extra-técnicas, relacionadas às percepções e 
expectativas de profissionais e pacientes quanto ao parto e sua assistência, à 
estrutura funcional e física dos serviços, aos problemas do acesso ao leito 
obstétrico, às questões de financiamento do sistema de saúde, à cultura sexual 
e reprodutiva; entre outras (Kitzinger, 1997; WHO, 1985; Wagner, 1997; 
Davis-Floyd, 1992, 1997; Faúndes e Cecatti, 1991; Diniz, 1996 ). 
Neste contexto, uma das questões mais importantes que se colocam para 
uma agenda de pesquisa seria, portanto, o estudo de como promover as 
mudanças que estas evidências nos colocam, e de quais seriam os fatores que 
propiciariam ou impediriam a mudança nas práticas (Goer, 1995; Davis-Floyd 
e Sargent, 1997; Wagner, 1997). 
 
1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência 
científica e prática obstétrica e as propostas de humanização do parto 
Em muitos contextos, como no caso do Brasil, vemos um quadro de 
mudança muito tímido, quando algum, de incorporação das recomendações 
emanadas do acúmulo de evidência científica referido. Em alguns contextos, 
 12 
temos mesmo uma radicalização das tendências opostas a estas 
recomendações, expressa, por exemplo, na manutenção de altas taxas de 
episiotomia9 e de cesárea. 
Mesmo nos últimos anos, com a criação de políticas para o controle do 
abuso de cesárea pelo Ministério da Saúde, temos resultados contraditórios. O 
aumento da freqüência da cesárea é um fenômeno comum a quase todos os 
países do mundo, mas em nenhum país a curva de aumento foi tão acentuada 
nem as taxas alcançam níveis tão altos como no Brasil, que em regiões inteiras 
ficam acima de 70% (Faúndes e Ceccatti, 1991; Cecatti e cols., 1998). Em 
alguns serviços mantêm-se acima de 90%, onde se diz que, quando os partos 
normais acontecem, é porque os bebês “pregaram uma peça no médico, foram 
mais rápidos do que eles”. O profissional que enfrenta este contexto 
institucional adverso e insiste no parto vaginal é freqüentemente considerado 
um “trouxa” pelos colegas. 
Além dos vários mecanismos de pagamento diferenciado que fazem a 
cesárea mais rentável para serviços e profissionais, o estabelecimento de nova 
ordem de produção, marcada pela possibilidade da produção em série, 
potencializaria, sob a convicção da inocuidade da cesariana, o parto com hora 
marcada (Chiaravalloti & Goldenberg, 1998). Generaliza-se o recurso à 
cesárea, sob essas condições, “ressaltando-se que o empresariado da 
medicina, no mercado livre de controle, favorecia à predominância das 
cesarianas, particularmente nas instituições privadas e nos níveis de renda 
mais elevados” (Cecatti e cols., 1998). 
 
9 Não encontramos informações sobre taxas de episiotomia municipais, estaduais ou nacionais, 
apenas de alguns serviços. Considerando que a recomendação científica há vários anos é aquela do 
fim da episiotomia de rotina, e a manutenção de taxas entre 5 e 10%, o estudo de como se 
comportam as porcentagens do seu uso, suas indicações, etc., poderia ser bastante relevante. A 
análise destes dados só faria sentido em relação as taxas dos partos normais e não do total de partos, 
sobretudo em serviço ou localidades com altos índices de cesárea. 
 13 
No caso brasileiro, há também uma especificidade relacionada à 
formação dos médicos obstetras e à cultura médica neste campo. A cesárea a 
pedido é indicada pelos mais importantes professores e formadores de opinião 
como tratamento da “neurose de ansiedade” que o parto pode despertar 
(Rezende, 1974), ou ainda como “preventiva” das supostas lesões genitais do 
parto, em muitos serviços foi assumida como regra, como rotina de boa 
técnica (Faúndes e Cecatti, 1991; Mello e Souza, 1992; Diniz, 1996; SEADE, 
1997; Voloshko, 1997; CRM-SP, 1997; CFM, 1997). No ano de 1996, 52% 
dos partos do Estado de São Paulo foram por cesárea; esta cirurgia chegou a 
virtualmente 100% dos partos em alguns serviços, havendo cidades inteiras 
com incidência acima de 78% . Naquele ano, a cesárea foi a forma de parto de 
nada menos que 84% das mulheres com 11 anos ou mais de escolaridade em 
São Paulo(SEADE,1997), justamente a parcela que tem melhores condições 
de negociar com os serviços. Um estudo mostra que quando se consideram as 
diversas categorias de grau de instrução, a taxa de cesárea passa de 35% entre 
as mulheres sem nenhuma escolaridade para cerca de 73% entre aquelas de 
nível superior (Cecatti e cols, 1998). 
Desde 1998, tem havido um conjunto de iniciativas governamentais no 
sentido de reduzir as taxas de cesárea, entre elas o apoio a que o parto sem 
complicações seja atendido pela enfermeira obstetriz; e o pagamento da 
anestesia de parto nos serviços do SUS (a viabilidade deste pagamento foi 
negada pelos profissionais e serviços, como veremos). Outra iniciativa foi a 
criação de um “teto” percentual decrescente para a cesárea em cada serviço 
(que deveria representar 40% no segundo semestre de 1998, 37% no primeiro 
semestre de 1999, 35% no segundo semestre daquele ano, chegando a 30% no 
primeiro semestre de 2000). Esta iniciativa tem contribuído para estabilizar ou 
reduzir as taxas antes ascendentes, pelo menos nos serviços do SUS e em seus 
 14 
conveniados, ao contrário da realidade dos serviços privados, onde estas taxas 
aumentaram (BSRM, junho/2000). 
O percentual de cesáreas realizadas na rede pública de São Paulo 
diminuiu de 45% em 1997 para cerca de 33% em 1999. Nas maternidades 
privadas, porém, o percentual de cesáreas entre os partos realizados subiu de 
75,2% par 79,6%, havendo serviços, como o Hospital Santa Helena, no 
interior do Estado, em que as cesáreas chegaram a 98% do total. (BSRM, 
junho/2000) Dados do Ministério de 1999 apontavam para uma queda 
nacional do índice de cesárea de 4% em dois anos, com grandes variações, 
sendo a maior queda na região centro-oeste (de 40,7 para 28,7%). 
Existem ainda evidências de que este dado seja fraudado em 
maternidades financiadas pelo SUS, pois “para que a unidade conveniada se 
adequasse ao teto estabelecido, cesarianas estariam sendo registradas como 
parto normal o que, além de mascarar os dados encaminhados ao SUS, estaria 
criando dificuldade para que os familiares investiguem complicações 
resultantes da cirurgia.” (Radis/ENSP, p.44). 
A fidelidade do registro nos prontuários é um dos dados mais 
preocupantes quando se busca estudar a qualidade da assistência. Um estudo 
do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) sobre a 
assistência ao parto e ao recém-nascido no período de 1997 a 1998, estudando 
cerca de 200 serviços, entre públicos, privados e universitários, mostrou que 
94% dos prontuários não estava adequadamente preenchido. Esta realidade 
“reflete o descaso com o documento mais fundamental para o adequado 
seguimento das gestantes, puérperas e recém-nascidos, e para a avaliação 
posterior da qualidade da assistência prestada” (Cremesp, 2000:89). 
Nesse mesmo estudo, as taxas de cesárea informadas ao Cremesp 
(apenas 77 dos 200 serviços estudados informaram suas taxas) mostrou que 
 15 
63% das instituições tinham percentuais acima de 50, e mais de um terço 
(36%) informaram percentagens acima de 70, refletindo, na avaliação dos 
autores, “um cenário sombrio” (2000:86). 
Sabe-se que abuso de cesárea, para além das possíveis repercussões 
sobre a saúde das mulheres, tem um enorme impacto adicional sobre as contas 
do setor saúde, resultante das complicações infecciosas e anestésicas, ou da 
simples ocupação por mais dias de internação dos já reduzidos leitos 
obstétricos. 
O excesso de cesárea tem importantes repercussões sobre os recém-
nascidos, incluindo as complicações de saúde e seu impacto sobre as contas do 
setor. Segundo José Formiga, chefe do Programa da Assistência à Mulher do 
Ministério da Saúde, em 1996, 68% do total de mortes por afecções perinatais 
eram devidos aos nascimentos de prematuros e desnutridos, e o índice de 
cesarianas seria uma das principais causas de nascimento de bebês 
prematuros: “Por falta de treinamento, muitos médicos terminam calculando 
mal a idade gestacional e fazem a cesariana antes do que deviam” 
(FSP,18/09/96). Há um crescente reconhecimento do impacto das práticas 
obstétricas intervencionistas na mortalidade neonatal no caso brasileiro, em 
especial o abuso de cesáreas (Schrimer, 1999). 
Os recentes estudos sobre o impacto das cesáreas eletivas no Estado de 
São Paulo mostram números bastante preocupantes e paradoxais, pois temos 
uma tendência crescente de prematuridade e de baixo peso ao nascer (BPN) no 
Estado de São Paulo. Uma pesquisa sobre os fatores de risco para essa 
tendência em Ribeirão Preto, no interior do Estado, mostrou que, embora as 
taxas de crianças nascidas de parto pré-termo tenham crescido para todas as 
formas de parto, o aumento foi maior no grupo das que tiveram cesárea, 
 16 
sugerindo que a cesárea representa o mais importante fator de prematuridade 
e baixo peso naquela região. (Bettiol e cols., 2000). 
Outro trabalho evidencia que o nascimento de crianças com BPN 
aumentou mais nas faixas mais altas de renda da família e de qualificação 
profissional dos pais. Para explicar esse paradoxo de ter piores indicadores de 
saúde entre as famílias mais ricas, os autores concluem que “o aumento do 
BPN foi provavelmente devido às praticas iatrogências associadas com a 
cesárea eletiva”10 (Silva, AA, 2000). 
Vemos um cenário no qual 
“uma intervenção criada para proteger a vida da mãe e da 
criança, quando indicada e realizada adequadamente, torna-se um 
perigo para um ou para ambos, quando utilizada somente para a 
conveniência do médico ou da mãe, ou como resultado das 
incongruências do sistema de saúde” (Faúndes e Ceccatti, 1991:161). 
A situação chegou a tal extremo que os próprios Conselhos Regionais e 
Federal de Medicina se lançaram em 1998, junto com outros atores sociais, em 
uma campanha pelo parto normal, incluindo eventos de lançamento, simpósios 
com profissionais, cartazes e mensagens na TV (CRM, 1997; 1998; CFM, 
1997; 1998). 
No decorrer do período desde a apresentação do projeto de tese, em 
1998, até o presente ano, é notável a quantidade de iniciativas que foram 
desenvolvidas no sentido de coibir o abuso de cesáreas no Brasil. Além das 
iniciativas das corporações profissionais, em especial as dos médicos, já 
 
10 Estudos em países industrializados mostram que há uma tendência de diminuição do peso ao 
nascer, devido a vários problemas, entre elas a interrupção iatrogênica precoce da gravidez, através 
da indução e da cesárea. Um estudo na Noruega mostra que o baixo peso e a prematuridade 
aumentam mais entre as ricas e não-migrantes, associados ao aumento “dramático” da cesárea 
eletiva, mais freqüente entre esta faixa superior de renda também naquele país (Kramer, 1997). 
 17 
citadas, temos também aquelas organizadas pelas enfermeiras-obstetrizes. 
Estas profissionais têm sido muito valorizadas no novo modelo proposto, e 
encontram na atual conjuntura uma rica oportunidade de ocupação de um 
espaço profissional, antes relativamente restrito aos médicos. Esta 
revitalização da profissião de enfermeira obstetra se reflete também em sua 
organização como categoria, através da Associação Brasileira de Enfermeiras 
Obstetras (ABENFO). 
O Ministério da Saúde, agora gerido por um economista, assumiu o 
conjunto de medidas para a redução das taxas de cesáreas já referidas, com as 
respectivas sanções financeiras para aqueles serviços que não reduzirem suas 
taxas de cesárea. O Ministério desenvolveu outras iniciativas de incentivo às 
mudanças como a criação do prêmio Galba de Araújo11, destinado àqueles 
serviços que se auto-definem como humanizados, tomando como referência 
para esta humanização as recomendações da OMS (OMS-1996). O prêmio, 
concedido a nível estadual, regional e nacional, tem provocado uma 
mobilização considerável dos hospitais e tem tido a participação de um 
número deserviços crescente a cada ano. Esta iniciativa inaugurou um 
processo mais amplo de humanização dos serviços conduzido pelo Ministério, 
com os projetos de “Humanização do Atendimento ao Pré-natal e ao Parto” e 
de “Humanização de Hospitais”, lançados respectivamente em maio e junho 
de 2000, que pretende abranger centenas de instituições. 
 
11 Galba Araújo foi um obstetra e professor da Universidade Federal do Ceará, que iniciou na 
década de 70 programas a incorporação de parteiras tradicionais e seu conhecimento a uma rede de 
referência de assistência à gravidez e ao parto. Admirador do trabalho das parteiras, foi um 
incentivador de seu reconhecimento, e trabalhou com a introdução de tecnologia apropriada para o 
parto e o nascimento, entre eles o parto na posição vertical, o parto na rede e o banquinho de parto. 
Seus projetos de educação em saúde para a diminuição da mortalidade materna e infantil, e de 
participação da comunidade nas ações de saúde, foram reconhecidos internacionalmente e 
reproduzidos em muitos países. 
 18 
Outra medida adotada para reduzir o número de cesáreas tem sido o 
estímulo à criação de Casas de Parto, baseada na evidência de que este pode 
ser um recurso seguro e com boa aceitação pelas mulheres, no contexto de 
uma rede de referência hierarquizada de assistência, em contextos rurais ou 
mesmo em grandes centros urbanos (WHO, 1996). Estas medidas têm 
despertado uma polêmica acalorada e mobilizado defensores e opositores 
apaixonados nos diversos segmentos que estão envolvidos, dentro e fora das 
instituições de assistência ao parto no Brasil. 
Neste período também foi criada a CPI da Mortalidade Materna, em 
junho de 2000. Considerando que o Brasil está estacionado em índice de 
mortalidade materna de cerca de 10 a 20 vezes aquela considerada aceitável, 
criou-se um esforço em três frentes. Numa delas, a referida CPI; em outra, a 
Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (RNFSDR) lançou 
uma ampla companha educativa nacional; e por fim, o Ministério da Saúde, 
além de apoiar as iniciativas anteriores, anunciou uma série de medidas para a 
humanização do parto e redução dos índices de cesárea. 
Desta forma, vemos que mais recentemente a termo humanização passa 
a ser incorporado mesmo por formuladores de políticas. Uma das vertentes 
desta humanização na mudança da assistência materno infantil que vem se 
institucionalizando nos anos recentes tem tem sido aquela ao recém-nascido. 
Na década de setenta se consolida uma crítica ao tratamento ao recém-nascido 
e um questionamente às rotinas de assistência, que tinham como pressuposto a 
necessidade de um conjunto de intervenções de rotina, que se mostraram 
desnecessárias e potencialmente dolorosas e perigosas. 
Além das repercussões do uso de drogas e outras intervenções na mãe, 
entre outras rotinas tínhamos, no momento do parto, vários procedimentos 
agressivos ao bebê, como luzes fortes e o aparelho de ar condicionado ligado, 
 19 
forçando o bebê a um choque térmico entre o ambiente intracorporal de cerca 
de 36 graus e o meio externo. O bebê tinha o cordão clampeado 
imediatamente, levando a uma supressão súbita de oxigênio e à respiração 
forçada e dolorosa, era pendurado pelos pés e não raramente, recebia um tapa 
para atestar sua vitalidade. Depois disso, era separado da mãe e levado por 
outros profissionais, e de rotina, mesmo que estivesse respirando 
perfeitamente, passava por uma “reanimação” que incluía uma sonda 
introduzida até o estômago, sofria ainda instilação de gotas profiláticas nos 
olhos que além de dolorosas, deixavam o recém-nascido com a visão nublada 
por várias horas ou dias. 
O bebê era de rotina separado da mãe para observação por um período 
variável de algumas horas a um dia ou mais, em um berçário (hoje propõe-se a 
extinção dos bercários para bebês normais), lugar onde ficava instalado 
durante toda a estada no hospital. O contato com a mãe era regulado, e em 
muitas instituições restritos a alguns dos horários das mamadas, pois em 
outros horários, a criança era alimentada com leite em pó. Até a década de 
oitenta, com a permissão dos serviços, era comum que todas as mães 
recebessem no hospital a visita de uma representante das companhias de leite 
em pó, vestidas como enfermeiras, que davam latas de leite para os primeiros 
dias do bebê como amostra. Como não havia orientação sobre amamentação, 
houve uma tendência generalizada de desmame precoce, com conseqüências 
catastróficas para a saúde e mortalidade infantis. Os estudos mostraram que os 
bebês alimentados por mamadeiras em condições de pobreza tinham um risco 
até 25 vezes maior de morrer no primeiro ano de vida que um bebê 
amamentado ao seio (UNICEF/WHO/UNESCO, 1989). 
Este quadro vem sendo revertido com um grande esforço mundial 
iniciado pela militância pró-aleitamento, que afrontou a indústria de alimentos 
 20 
infantis através de um boicote mundial, criando uma aliança mundial 
(WABA, World Breastfeeding Alliance)12, incluindo instituições de saúde, 
associações profissionais e órgãos governamentais. No Brasil, esta aliança 
impulsionou a criação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança, uma espécie 
de “título” ganho por serviços que promovem (ou que não boicotam) o 
aleitamento. 
Até recentemente, acreditava-se que os recém-nascidos, em especial 
aqueles prematuros, não tinham sensibilidade normal à dor, o que justificava 
um conjunto de intervenções dolorosas feitas sem anestesia, como a inserção 
de catéteres e numerosas punções venosas. Os prematuros eram mantidos 
afastados da mãe e da família, em UTIs neonatais onde o contato pele a pela e 
a criação do vínculo familiar não eram uma preocupação cotidiana. 
Este movimento de humanização da assistência ao bebê tem muitas 
relações e analogias com a humanização do parto, como nos conta uma 
professora que se dedica ao trabalho de mudança institucional e de docência 
neste campo: 
Então, atualmente, assim, eu tenho feito uma leitura, da iniciativa 
(Hospital Amigo da Criança), um pouco além da promoção da 
amamentação em si, que já é uma questão fundamental e muito 
importante; mas, assim, eu acho que as maternidades que trabalham a 
iniciativa, elas também acabam trabalhando, caminhando no sentido da 
humanização nesse sentido, de estar suprindo as necessidades do bebê, 
desde o momento em que ele nasce. Bom, se em relação a bebês 
saudáveis, as maternidades ainda, no momento, não têm uma 
 
12 A WABA tem ainda um dos mais belos e funcionais sites de saúde do Brasil, o 
www.aleitamento.org.br 
 
 21 
preocupação tão grande em relação a suprir essas necessidades básicas, 
a situação dos prematuros é um pouco pior, porque o prematuro é 
aquele bebê que é mais privado desse contato com a mãe, em geral ele 
fica isolado, na Isolete, exposto aquele ruído super forte ali, 
incomodando os ouvidos, ele tem pouco contato... pouco estímulo, 
praticado pela mãe, pelo pai, pela família, um contato maior com os 
profissionais de saúde; e, assim, são sujeitos a inúmeras intervenções, 
coleta de exames, enfim, então, esses bebês, eles realmente são 
desprivilegiados. Tem alguns estudos mostrando que expor um bebê a 
uma situação, como essa que eu descrevi, pode levar essa situação de 
stress, a que ele é submetido, pode levar até manifestações 
psicossomáticas mesmo. Um exemplo clássico: sangramentos digestivos 
de bebês prematuros em UTI. Então, tem alguns estudos mostrando que 
essas hemorragias, enfim, elas podem ser decorrentes, uma resposta do 
bebê a esse stress da UTI Pediátrica. Teruya, 1999. 
Um dos recursos para a humanização da assistência ao recém-nascido, 
que tem sido incorporado em um número crescente de serviços por ser muito 
custo-efetivo, e recentemente contar com um apoio efetivo do Ministério da 
Saúde, é oprograma Mãe Canguru13. 
 
13 Desenvolvido na Colômbia no final da década de setenta pelo Instituto de Saúde Materno Infantil 
de Bogotá (ISMIB), este projeto foi concebido em um serviço em que se convivia com uma 
carência crônica de leitos de UTI para prematuros, levando a uma grande mortalidade perinatal. 
Resolveu-se substituir as incubadoras ausentes por instalar os prematuros no colo da mães, entre os 
seios, fixado com panos, para permitir o aquecimento pelo contato físico permanente. No início da 
década de oitenta, se constata que além dos bons resultados do método em termos dos parâmetros 
biológicos dos bebês, (temperatura, freqüência cardíaca, amamentação, ganho de peso, etc.), há uma 
evidente vantagem emocional. Além disso o método tinha grandes vantagens econômicas, até 
porque tinha sido concebido pela pressão da carência de recursos, soando para muitos apenas como 
uma forma de “medicina para pobres”. Nessa direção, “foi recebido com restrições pela 
comunidade científica internacional, devido à ausência de evidências científicas sólidas que 
demonstrassem sua eficácia, efetividades e segurança”, até que estudos na década de noventa 
 22 
Este processo de mudança e de ganho de legitimidade do uso e recursos 
alternativos na atenção ao recém-nascido certamente contribui para ampliar o 
espaço de mudança possível no cenário do parto. As duas abordagens 
investem mais na relação humana – tanto em termos de comunicação quanto 
mesmo da relação corporal, pele a pele, e a utilização dos recursos fisiológicos 
do corpo reprodutivo ao invés de sua substituição por máquinas, e ainda, 
ambas adotam, com menor ou maior ênfase, o termo “humanização” desta 
assistência,. 
Mais uma vez se coloca a questão: o que enfim se quer dizer quando se 
fala em “humanização”? Não é objetivo deste trabalho encontrar a 
humanização “correta”; mas sim reconhecer que cada um dos diferentes 
sentidos dados à “humanização” delimita a participação de cada um dos atores 
sociais neste diálogo. Estes diferentes sentidos e o diálogo que ele instaura são 
temas a serem explorados neste trabalho. 
Qual seria, por exemplo, os sentidos da humanização para as mulheres 
organizadas? No caso brasileiro, quando o movimento de mulheres se 
reorganiza a partir da década de setenta, inicialmente enfrenta a fase em que 
era mais importante reafirmar o direito a decidir sobre não ter filhos, uma vez 
que a urgência era questionar a maternidade obrigatória, considerada como 
destino biológico de toda mulher “normal”. Nesta fase do movimento, duas 
correntes políticas igualmente autoritárias disputavam a cena: por um lado os 
anti-natalistas, que alardeavam que o planeta estava à beira do colapso por 
causa da explosão demográfica (portanto as mulheres deveriam ser obrigadas 
a reduzir o número de filhos a qualquer custo, para salvar a economia e o 
planeta), e por outro, os natalistas, que defendiam que as mulheres deveriam 
 
mostraram sua adequação, quando passa a ser adotado em países ricos 
(http://kangaroo.javeriana.edu.co/) 
 23 
ter quantos filhos a natureza lhes trouxesse, pois regular a fertilidade era 
pecado contra Deus e contra os interesses da nação (portanto as mulheres 
deveriam ser proibidas de usar contraceptivos e de interromper a gravidez 
indesejada). Estes dois pontos de vista consideravam a mulher como objeto, 
como meio para alcançar objetivos alheios, jamais como sujeitos de suas 
vidas, cidadãs capazes de fazer escolhas conscientes com relação à sua 
fertilidade (Ávila, 1993; Diniz, 1998). 
Dentro do movimento de mulheres passa a haver, ainda na década de 
setenta, um crescente reconhecimento de que, mesmo quando a maternidade 
era uma escolha consciente, esta era vivida em condições de opressão, 
relacionadas ao controle social das grávidas. As mulheres se viram tratadas 
não como pessoas, com necessidades adicionais e singulares, mas sim como 
embalagens do feto, como uma “pélvis ambulante” assexuada, a ser vigiada e 
submetidas a todo um conjunto de intervenções institucionais, em especial no 
campo da medicina ( Ehrenreich & English, 1973, Rich, 1986; Rothman, 
1992) muitas das quais, como vimos, irracionais, arriscadas, violentas e de 
eficácia duvidosa. 
No Brasil desde a década de oitenta, este movimento passa a ter como 
uma de suas frentes a assistência ao parto, produzindo material educativo e 
propondo políticas públicas, usando o termo humanização da assistência ao 
parto. 
E quais seriam as relações das distintas propostas de mudança da 
assistência, e de seu conteúdo técnico, com as questões dos direitos das 
pacientes, dos direitos reprodutivos e dos direitos humanos? Estas perguntas 
tem sido colocadas mais recentemente por diversos atores sociais, como o 
movimento internacional de mulheres pelos direitos humanos (Bunch e Heilly, 
 24 
1999; Cook, 1996; CLADEM, 1998) e mesmo por agências como a 
Organização Mundial de Saúde (WHO, 1998). 
A discussão sobre humanização é de certa forma uma versão brasileira, 
ou latino-americana, daquilo que nos países de língua inglesa é chamado 
movimento por um “gentle birth” , “respectful birth”, entre outros termos 
mais imediatamente referidos ao cuidado na relação pessoal. Ou daquilo que 
em muitos contextos é referido com termos aparentados, como o “natural 
childbirth” e suas muitas variações, herdeiros da tradição menos ou mais 
crítica da assistência, do parto psicoprofilático de Dick-Read e de Lamaze na 
década de 50, do método Bradley (“husband-coached birth”), que já trazia na 
década de 60 o papel crucial do pai como acompanhante e do nascimento 
como evento familiar. 
Há também a abordagem centrada no parto ativo (“active birth”), 
disseminado pelo trabalho de Janet Balaskas, que preconiza um papel ativo 
física e emocionalmente por parte da mulher, que se educa sobre o nascimento 
e assume seu papel de protagonismo na parto, ao invés de um papel passivo e 
dependente, além de uma linha de parto centrado na mulher (“women-
centered childbirth”), entre outros. 
Cada um destas abordagens, que são de certa forma complementares 
entre si, denota sua respectiva crítica a alguma face do modelo - à falta de 
gentileza e de respeito; à assistência que obriga as mulheres à passividade e à 
imobilidade, que isola a mulher e impede o envolvimento paterno; que é 
centrado na conveniência de profissionais e instituições e não das mulheres, 
etc. 
Desde a década de setenta, temos a importante contribuição de dois 
autores franceses - a crítica vinda da neonatologia e do trabalho de Leboyer 
pelo parto não-violento com o bebê, e a contribuição de Michel Odent e sua 
 25 
anti-obstetrícia. Com estes autores, os termos violência na assistência e 
humanização passam a ser mais popularizados na literatura latina. 
Na década de oitenta, a discussão sobre os modelos de assistência leva à 
distinção entre o modelo baseado na parteira, ou holístico, e o modelo médico 
ou tecnocrático (BWHBC, 1998; Davis-Floyd, 1993), problematizando os 
conflitos filosóficos, corporativos e financeiros envolvidos. 
Mais recentemente, a discussão sobre humanização e direitos humanos 
tem ocupado um espaço relevante no cenário internacional, mesmo em língua 
inglesa. Em setembro de 2000, uma conferência internacional de midwifery 
incluiu em seu programa várias referências a “humane care” e “humane 
approach” (International Midwives Conference). Em novembro de 2000 
ocorreu a Conferência Internacional sobre Humanização do Parto 
(International Conference on the Humanization of Childbirth), apoiada por 
instituições como UNICEF e FNUAP (Fundos das Nações Unidas para 
Infância e para Assuntos de População), que teve entre seus objetivos 
principais discutir comoo conceito de maternidade segura pode incluir as 
questões sobre o cuidado humanizado ao parto; e como o cuidado 
humanizado à maternidade pode ser promovido como um direito humano. 
Assim, vemos que a busca por uma assistência humanizada ao parto é 
um tema de crescente interesse, ainda que os sentidos, conteúdos e finalidades 
desta forma de assistência sejam em grande medida um debate em aberto. 
 
 
 
1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança, 
limites e possibilidades 
 26 
É importante reafirmar que o desenvolvimento de propostas de mudança 
das práticas em direção à sua humanização (como vimos, seja qual for o 
sentido dado pelo ator social participante deste diálogo), por parte de várias 
instituições – inclusive do Ministério da Saúde - é muito marcante nos três 
anos decorridos desde que apresentamos este projeto de tese, criando um 
campo mais amplo de possibilidades de mudança concreta nos serviços que 
aquele vislumbrado originalmente. Temos várias iniciativas institucionais de 
mudança da assistência, em um contexto em rápida transformação. 
Por um lado, em resposta aos incentivos do Ministério da Saúde mas 
agindo desde anos antes deles, temos serviços e indivíduos que tentam 
trabalhar com este novo paradigma, que busca operar uma síntese entre a 
medicina baseada em evidências e o respeito ao direito das usuárias, com 
menor ou maior sucesso. Parte destes sujeitos se organizam a partir do final da 
década de 80 e no início da década de 90, fundam a Rede Nacional pela 
Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que inclui dissidentes 
representantes de segmentos diversos, entre eles profissionais de saúde – 
médicos (sanitaristas, obstetras, pediatras), enfermeiras obstetrizes; parteiras; 
usuárias; formuladores de políticas; diretores de serviços; grupos de mulheres; 
pesquisadores; acadêmicos; movimento popular de saúde, centros de práticas 
alternativas, entre outros. 
Mais recentemente, como veremos, temos em São Paulo a entrada do 
movimento popular de saúde diretamente na cena do parto, como no projeto 
de doulas conduzido pela Comissão de Saúde da Mulher do Movimento de 
Saúde da Zona Leste. Este projeto se traduz em outro tipo de militância, 
aquela que busca intervir com a assistência no momento de sua realização, 
agora como parte da equipe. Temos uma incipiente organização de 
consumidores, mães, pais e simpatizantes, lutando por seu direito de presença 
 27 
na sala de parto, e ainda o surgimento de sites e listas eletrônicas 
(partonatural@Egroups, amigasdoparto@Egroups), onde estes sujeitos 
debatem e buscam assistência para o parto “natural”. 
O papel dos consumidores nas mudanças de políticas tem sido afirmado 
como um fator decisivo em vários contextos, locais ou internacionais. Esta 
importância é reconhecida nos vários documentos da OMS, e a representação 
dos consumidores é obrigatória na Colaboração Cochrane, não apenas na 
proposição de temas dos grupos de trabalho, mas também na leitura das 
revisões sistemáticas: nesses grupos, o que não é compreensível para as/os 
consumidores/as não é aceito para publicação. Os usuários na iniciativa têm 
seu próprio boletim e processos de treinamento para a leitura crítica das 
revisões (Cochrane, 2001, Bastian, 1994). 
A esta amplo e heterogêneo conjunto de atores sociais, incluindo setores 
não-governamentais e governamentais, identificados com as propostas de 
humanização do parto e do nascimento, chamaremos, genericamente, de 
movimento pela humanização do parto. 
Enfim, temos na cena um amplo leque de reações a estas propostas de 
mudança na assistência, positivas ou negativas, de apoio, restrito ou irrestrito, 
ou mesmo de rejeição, vinda de todos os mesmos setores envolvidos, sejam 
eles os profissionais – os médicos em geral e os gineco-obstetras e pediatras 
em especial; enfermeiras, obstetrizes ou não; administradores de serviços, 
públicos e privados; seguros e planos de saúde; usuárias dos serviços privados 
e públicos (e seus acompanhantes/maridos, que agora contam com uma lei 
para a garantia de sua presença no parto). Estas mudanças trazem um 
conjunto de questionamentos a cada um destes sujeitos que ainda estão para 
ser respondidos, num processo de ajuste e reação em que os limites e 
possibilidades das mudanças estarão sendo testados. Estas mudanças 
 28 
envolvem de forma profunda estes sujeitos, propondo ou impondo novos 
papéis para cada um dos envolvidos no drama do parto. 
Quem pode atender aos partos, apenas o médico? Se não, isto não seria 
uma temeridade, em termos da segurança de mãe e criança? Se alguém mais, 
seria a enfermeira obstetriz, de nível superior? Qual seria o lugar da parteira, 
seja ela leiga, treinada, formada, estrangeira, etc.? Quem poderia estar 
presente no parto? Qual o papel, se algum, do marido- que segundo o folclore 
médico, corre risco sério de desmaiar? Qual o papel dos outros 
acompanhantes? E as doulas, ou monitoras perinatais, tão em moda, trazidas 
pela própria MPBEC? Como se preparar para estas novas presenças? Quais as 
novas conveniências, negociações de papéis e responsabilidade trazidas por 
estas interações? 
Estão em cheque também os lugares do parto – será o hospital de fato o 
melhor cenário? O questionamento à segurança de mãe e criança prometida 
pelo parto hospitalar tem sido uma das heresias trazidas pela medicina baseada 
em evidências, que coloca a possibilidade do parto em Casas de Parto ou 
mesmo no domicílio como uma das opções seguras a serem consideradas nos 
partos de baixo risco. E qual o sentido de ter os partos nos centros cirúrgicos? 
E na posição horizontal, porque manter as mulheres numa posição tão 
desfavorável ao bom desenrolar do parto, se há alternativas às quais os 
profissionais podem se ajustar? E o que fazer com o conceito de que o parto só 
é normal em retrospecto? Qual o lugar, se algum, do chamado parto dirigido, 
aquele em que cada uma das funções do corpo feminino no parto – contração, 
dilatação, expulsão, etc. – deve ser substituído por uma intervenção, manejado 
e ter seu tempo controlado? 
Como lidar com o fato muito concreto de que as construções das 
maternidades expressam uma certa concepção de assistência, fragmentada e 
 29 
fragmentadora do processo fisiológico da parturição, que em seus tempos e 
movimentos estipulados para cada fase do trabalho de parto, “conspiram 
contra a evolução fisiológica”? Porque seguir acreditando que o período 
expulsivo não deveria durar mais que meia hora? Porque interromper as 
gestações quando estas completam 40 semanas, quando há evidência da 
segurança de aguardar mais tempo? 
Porque fazer uma mulher ser transferida de leito em leito durante o 
trabalho de parto, como em uma linha de montagem (Martin, 1987; Davis 
Floyd, 1992; Rothman, 1993), freqüentemente em diferentes andares de um 
prédio; primeiro no leito de admissão; depois no de pré-parto, fora do centro 
cirúrgico, até o fim do período de dilatação; para durante a delicada fase 
chamada de transição (fim da dilatação) a mulher ser rebocada para a sala de 
parto, no centro cirúrgico; depois do qual para uma maca num corredor ou 
uma sala de recuperação/pós-operatório; em seguida para o leito de puerpério 
– num movimento conforme a conveniência dos serviços porém atrapalhando 
em todos os sentidos a fisiologia do parto? 
No caso brasileiro, temos ainda a convivência paradoxal de dois 
problemas igualmente graves. Por um lado, temos sérios problemas de acesso 
aos serviços, com grandes áreas geográficas com déficits de leitos de 
maternidade, o que leva a uma distorção conhecida como “peregrinação por 
leito”, com freqüência durante o trabalho de parto e parto, e com 
gravesconseqüências sobre a saúde da mulher e do bebês (Tanaka, 1995). Em 
termos da segurança desta peregrinação, dentre as mortes maternas no período 
do estudo, 55% ocorreram durante a peregrinação.Este é o pólo “falta de 
assistência” do problema. 
Por outro lado, temos o uso abusivo, intensivo e desnecessário de 
procedimentos como a indução de parto, os fórceps de alívio, a manobra de 
 30 
Kristeller, a episiotomia e a cesárea, levam a um maior consumo de material, 
mais complicações, mais custos, mais dias de internação e de incapacidade 
para as puérperas. Este é o pólo do “uso abusivo dos recursos de assistência” 
do problema. 
Este contexto reflete a permanência do que o professor Roberto 
Caldeyro-Barcia14 já apontava na década de 70: 
“A principal distorção da obstetrícia moderna é oferecer tecnologia 
inadequada, cara, potencialmente perigosa e dolorosa para os partos 
normais que delas não se beneficiam; o que muitas vezes resulta em não 
oferecer tecnologia adequada para os partos anormais para os quais esta 
tecnologia poderia ser útil” 
Pode-se dizer que no caso brasileiro, para ter relações sexuais sem ter 
filhos, ou para ter filhos, faz-se necessária uma “mediação cirúrgica” que 
muitas vezes faz parte das histórias de vida de forma tão inevitável quanto a 
menstruação ou a menopausa. (Diniz, 1997; Diniz e d’Oliveira 1998; Citeli e 
cols, 1996; Hotimsky, 2000; Rattner, 1994; Dalsgard, 2000). Este 
cirurgificação parece ter, no contexto brasileiro, uma utilidade ao mesmo 
tempo funcional e estética, reprodutiva e sexual. 
Há muito a cirurgia gineco-obstétrica parece ter avançado seu caráter 
“reparador” de órgão sexuais ‘lesionados’ pela reprodução, para assumir uma 
abordagem claramente estética, aquela da cirurgia plástica. A preocupação 
 
14 O professor uruguaio Roberto Caldeyro-Barcia (1920-1996) foi um dos mais importantes 
personagens médicos do movimento pela humanização do parto. Fisiologista de formação, ele ficou 
conhecido internacionalmente por seus estudos pioneiros sobre a fisiologia da contratilidade uterina. 
Foi professor honorário de várias universidades estrangeiras e indicado ao prêmio Nobel de 
fisiologia. A partir dos seus próprios estudos, fez uma profunda crítica à própria prática e à 
obstetrícia médica, em especial às posições convencionais de parto, consideradas por ele um 
obstáculo à parturição por serem anti-fisiológicas. Escreveu já no final da década de setenta o 
clássico “Bases Fisiológicas e Psicológicas del Manejo Humanizado del Parto Normal” 
(CLAP/OPAS, 1979). 
 31 
com o “estado” do aparelho genital e seu impacto sobre a vida sexual torna-se 
cada vez mais um objeto de trabalho dos médicos no Brasil (www.obsidiana); 
“o culto ao corpo no Brasil direcionou o bisturi dos cirurgiões plásticos para a 
intimidade de homens e mulheres” (Folha de São Paulo, 30/06/96). 
No caso brasileiro, onde a cirurgia plástica sexual vem cada vez mais se 
afirmando como especialidade, cresce a demanda por procedimentos como a 
“reconstrução de episiotomia” (“quando a costura feita no corte que facilita a 
passagem da criança fica ‘torta’ ”) e “estreitamento da vagina” ( “realizada em 
mulheres que já tiveram filhos e sofreram alargamento da vagina”)15. Todos 
estes procedimentos instauram e explicitam o modelo de assistência que 
considera o parto necessariamente como um agravo ao corpo feminino, 
necessitado de reparos posteriores. 
Neste contexto de redefinições e contradições, quais seriam os alcances 
e limites das propostas de humanização do parto? Como estes fatores – 
relativos à formação dos recursos humanos, às corporações profissionais, à 
estrutura física dos serviços, ao papel de suas lideranças institucionais, aos 
mecanismos de financiamento, à cultura sexual e reprodutiva, entre outros, 
influenciariam a mudança, no sentido de promovê-la ou de impedi-la? Qual 
tem sido o resultado das propostas de mudança, quando estas se confrontam 
com os limites do real? 
 
15 Essa especialidade oferece ainda as ninfoplastias (reduções de pequenos lábios), o implante de 
pêlos pubianos, a correção da hipotrofia ou da hipertrofia do púbis, a correção do “clitóris 
enclausurado”; e, para os homens, o engrossamento ou o alongamento do pênis, a neurotomia 
seletiva do pênis (para tratar a ejaculação precoce), a correção de ptose (queda) do saco escrotal, 
entre outros. 
 32 
Capítulo 2 
Material e Método 
 
2.1. Objetivos do estudo 
2.1.1. Objetivo Geral 
Este trabalho tem como objetivo estudar as possibilidades e os limites 
da implementação das propostas sobre a assistência humanizada ao parto, 
tomando como referência as recomendações da OMS (1996) e como caso para 
estudo dois serviços financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no 
município de São Paulo, no período de 1998 a 2000. 
Nesse sentido, buscará compreender como, se e em que circunstâncias 
os fatores extratécnicos (culturais, institucionais, corporativos, financeiros, do 
espaço físico, entre outros) influenciam a adoção e a adesão de profissionais a 
essas novas propostas, rotinas e procedimentos na assistência ao parto, assim 
como identificar os argumentos que buscam justificar essa adesão ou a 
resistência às mudanças. 
 
2.1.2. Objetivos Específicos 
2.1.2.1. Estudar os processos de mudança na assistência ao parto em 
dois serviços de assistência ao parto identificados com o modelo de 
humanização, buscando identificar as características das instituições e dos 
recursos humanos associados à mudança ou à permanência de elementos 
vinculados aos modelos tradicionais. 
2.1.2.2. Estudar, nesses serviços, a percepção de profissionais sobre as 
mudanças nas práticas de assistência no cotidiano do seu trabalho, com 
 33 
destaque para as contradições entre a evidência e a prática; as prescrições de 
mudança e os limites encontrados. 
2.1.2.3. Estudar como os administradores dos serviços estudados 
propõem, implementam e monitoram esses processos de mudança 
institucional e como identificam e manejam possibilidades e limites dos 
processos. 
2.1.2.4. Estudar se, quando e em que circunstâncias a experiência de 
situações injustas ou violentas na assistência ao parto são percebidas como 
contrárias à idéia de humanização pelos sujeitos envolvidos, seja sob a forma 
de violação de direitos estabelecidos, seja sob a forma de maus tratos ou de 
inadequação da assistência. 
2.1.2.5. Contribuir para a reflexão sobre os direitos humanos na 
assistência ao ciclo gravídico-puerperal e suas relações com as propostas de 
humanização dessa assistência. 
 34 
2.2. Material e Método 
2.2.1. Hipótese 
Este trabalho parte da hipótese de que o movimento pela humanização 
do parto tem um papel central na promoção do diálogo entre os diversos 
sujeitos sociais atualmente em conflito na assistência ao parto, na direção de 
um novo arranjo de assistência, orientado tanto por mais respeito à evidência 
empírica da segurança e eficácia dos procedimentos, quanto pela maior 
promoção dos direitos humanos das pacientes. 
Esse novo paradigma da assistência, baseado na busca da síntese entre a 
evidência científica e a promoção dos direitos humanos, encontra, para sua 
implementação na prática, um conjunto de desafios – institucionais, 
corporativos, financeiros, de estrutura física, de formação dos recursos 
humanos, da cultura sexual e reprodutiva, entre outros –, que estão sendo 
enfrentados, com maior ou menor sucesso, por alguns serviços. 
Para desenvolver essa hipótese, este trabalho utilizará uma combinação 
de metodologias qualitativas, incluindo observação de plantões em duas 
maternidades identificadas com o modelo de humanização na cidade de São 
Paulo; análise das discussões realizadas em encontros sobre o tema no período 
de 1998 a 2000; do tratamento dado ao tema em órgãos da imprensa médica e 
documentos normativos a respeito da humanização do parto; da produção de 
depoimentos de profissionais e parturientes por meio de entrevistas semi-
estruturadas e conversas informais durante

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