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Carmen Simone Grilo Diniz Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto Tese apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em Medicina Área de concentração: Medicina Preventiva Orientador: Dr. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres SÃO PAULO 2001 Ficha Catalográfica Preparada pela biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Reprodução autorizada pelo autor. Diniz, Carmen Simone Grilo Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto Carmen Simone Grilo Diniz. – São Paulo, 2001. Tese (doutorado) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de medicina preventiva. Área de concentração: medicina preventiva. Orientador: José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Descritores: 1.direitos humanos / tendências 2.saúde reprodutiva 3.direitos da mulher/organização & administração 4.maternidades / normas 5.parto normal / tendências 6.assistência perinatal / recursos humanos 7.relações hospital - paciente 8.medicina baseada em evidências 9.sus (br) Usp/fm/sbd- 10410 1 i Agradecimentos Diz-se que a gratidão é a primeira das virtudes, aquela a partir da qual todas as demais são possíveis. Menos por virtude que por justiça, quero afirmar, como de praxe dos agradecimentos que se fazem ao se apresentar um trabalho, que sem a ajuda que se agradece, o trabalho seria impossível. Esta tese é em grande medida um trabalho coletivo, o resultado sinérgico de vários encontros felizes. Isentando todas as pessoas listadas de qualquer responsabilidade sobre o resultado do trabalho, gostaria de expressar minha gratidão sincera pelo apoio na concepção, gestação e parto deste tese. Ao professor doutor José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, meu orientador, quero expressar minha enorme satisfação com nosso trabalho conjunto. Agradeço por sua capacidade e talento para de fato orientar, iluminando as questões de pesquisa de forma crítica, inteligente, metódica e estimulante; por sua abertura a questões novas e desafiadoras, por sua dedicação e paciência firmes. Agradeço aos professores Lilia Blima Schraiber, Maria Inês Baptistella Nemes e Ivan França Jr., que participaram da banca de qualificação, pela leitura atenta do material e pelos comentários ao projeto desta tese, que foram muito valiosos e iluminadores na etapa final do trabalho. Às amigas e amigos da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), pela inspiração e apoio, e por partilhar muitas das questões aqui tratadas. Seria enorme a lista de pessoas a agradecer pelas conversas e sugestões, e correndo o risco de esquecer pessoas muito importantes para o processo, agradeço em especial a Adailton Salvatore, Anna Voloshko, Cristina Boareto, Daisuke Onuke, Daniel Klotzel, Daphne Rattner, Hugo Sabatino, Islene Carvalho, Lívia Carneiro, João Batista de Lima e Ivo Lopes, Marcos Dias, Marcos Leite, Marcos Tadeu, ii Marcos Ymayo, Maria Luísa Riesgo, Paula Viana, Ricardo Jones, Sônia Hotimsky, entre tantos outros. É um privilégio contar com a companhia, ainda que virtual na maioria das vezes, de uma comunidade como esta de pessoas envolvidas na reflexão e na transformação da assistência ao parto no Brasil. Ainda na comunidade pela humanização do parto, agradeço os Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto (GENP), e às amigas das listas eletrônicas partonatural@Egroups e amigasdoparto@ Egroups, em especial a Fadynha Teixeira, Ana Cris Duarte e Adriana Tanese. Quero agradecer também minhas companheiras e companheiros de trabalho que partilharam as reflexões deste processo. Agradeço às amigas do Coletivo Feminista Sexualidade Saúde, pela inspiração e especialmente por suportar minha ausência neste momento; agradeço em particular a Sandra Dircinha por seus comentários ao material empírico. A todas as integrantes dos projetos “Gênero, Saúde e Direitos Humanos” e “Saúde da Mulher e Direitos Humanos”, entre elas Paula Francisquetti, Lenira Mazoni e Maria José Araújo; agradeço especialmente a Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira, minha colega de pós-graduação, comadre pessoal e intelectual, cuja companhia e convivência é um privilégio em todos os sentidos; à professora Lilia Schraiber, por sua liderança e reflexão inspirada sobre o tema, e ao professor Ivan França Jr. pela sua estimulante discussão sobre saúde e direitos humanos. Aos meus colegas de pós graduação, agradeço pela ajuda mútua na troca de experiências sobre nossos avanços e dificuldades; em especial agradeço a Maria de Fátima Marinho de Souza, pela ajuda nos assuntos logísticos da tese. Agradeço também à Fundação Ford, nas pessoas de Sarah Costa e Denise Dourado Dora, pela interlocucão, sugestões bibliográficas, e por terem sido de uma enorme sensibilidade para o problema da violência institucional na assistência ao parto, apoiando a pesquisa que veio e se desdobrar nesta tese. Agradeço a generosa atenção e comentários a este trabalho feitos pelo minha madre superiora no tema, Norma Meras Swenson. Agradeço às amigas e amigos do Grupo de Pesquisa Internacional em Direitos Reprodutivos (IRRRAG), pelas inspiradoras iii conversas informais sobre o tema, em especial a Cecília de Mello e Souza, Benedito Medrado, Ana Paula Portella, Rosalind Petchesky e Radhika Ramasuban. Aos amigos e diretores dos serviços que estudamos, agradecemos sua abertura e receptividade ao trabalho, sem a qual este trabalho de fato teria sido impossível. Agradecemos aos doutores Marcos Ymayo e Irmã Monique Bourget, da OSS Hospital Santa Marcelina de Itaim Paulista, por sua disponibilidade, abertura e interesse, e a todo o pessoal técnico e administrativo que se dispôs a cooperar com a pesquisa. Agradecemos à Comissão de doulas deste serviço, especialmente a Fermina Lopes e a Maria Lúcia pelas preciosas informações sobre a implantação das propostas. A elas e às militantes da Comissão de Mulheres do Movimento de Saúde da Zona Leste, nossa grata admiração. Agradecemos aos doutores José Antônio Jordão e Marcos Tadeu pela sua abertura e disponibilidade; a este segundo agradecemos especialmente as muitas vezes que nos acompanhou na observação do Hospital do Ipiranga, e a todos os residentes e funcionários com quem interagimos. Esperamos com confiança corresponder à expectativa de oferecer aos serviços estudados um retorno da pesquisa que seja uma contribuição útil à melhoria da assistência. Às pacientes que nos dois serviços consentiram com a observação de seus partos, nossa gratidão e esperança de que esta intromissão venha a contribuir para que seus próximos partos, ou os de suas filhas, sejam vividos com mais satisfação e segurança. Às minhas colaboradoras nesta pesquisa, minha gratidão sem limites: sem o nosso trabalho conjunto, não haveria a riqueza que resulta da nossa troca sinérgica de idéias e reflexão. Agradeço às antropólogas Sônia Nussenzweig Hotimsky e a Regina Facchini pelo seu talentoso trabalho de observação de serviços, que tive o prazer de partilhar e no qual pude aprender tanto. Jamais esquecerei nossas horas nos plantões, ou nos engarrafamentos de São Paulo, onde surgiram muitos dos insights desta pesquisa. Agradeço também a Lis Pasini, esperando que possamos iv voltar a trabalhar, as quatro juntas. Agradeço a Ana Claudia Fonseca, pela transcrição das fitas, e a Cecilia Marks, pela cuidadosa e criativa revisão dos originais. E ainda, a Renato Cury, pela fotografia do campo, e pelos comentários ao trabalho. Agradeço também à FAPESP, pela bolsa e pela sua reserva técnica que financiou este trabalho. Agradeço aos seus pacientes funcionários, e ainda ao meu parecerista desconhecido, pelos comentários estimulantes, ainda que telegráficos. Agradeço aLuciene de Oliveira e Andréia de Souza pelo apoio na esfera doméstica – sem elas, nem imagino como teria feito este trabalho. Aos amigos ausentes que continuam como fonte de inspiração e de saudade, quero lembrar dois professores, gurus da nossa geração e sempre presentes em nossas reflexões, Paulo R. Michaliszyn e Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. Ainda como ausências inspiradoras deste trabalho, estão Ângela Gehrke, minha parteira e espécie de santa de nossa geração, e David Gabriel, nosso anjo familiar. E por fim, but not least, agradeço à minha família maravilhosa. Aos meus pais, Carlos e Maria Arminda, por terem me ensinado a perseverança, a flexibilidade, o espírito crítico e o bom humor; espero ter aprendido. Aos meus sogros, Anna e Salo, pela ajuda logística e estímulo intelectual. Finalmente, aos meus maiores amores: a meus filhos Beatriz e David, agradeço a inspiração, e a paciência por terem suportado minha presença-ausente em casa. E a Artur Kalichman, pelo mais feliz desses encontros: ao meu amigo, colega, marido, namorado, leitor atento e generoso, agradeço por sua solidariedade, bom humor e apoio amoroso em todo o percurso, enfim, pela partilha. v RESUMO Trata-se de estudo de caso sobre implantação de propostas de reorganização da assistência ao parto em maternidades da cidade de São Paulo, orientados pela idéia de humanização e de medicina perinatal baseada na evidência científica. Foi usada metodologia qualitativa, combinando-se técnicas de observação direta dos serviços em duas maternidades financiadas pelo SUS, durante o ano de 2000, depoimentos orais com informantes privilegiados e análise documental. Os achados sugerem que entre os fatores que podem tornar possível ou limitada esta humanização do parto estão a adequação do acesso aos leitos, da comunicação entre os sujeitos, do manejo da dor e dos tempos no parto; assim como a presença ou não de uma cultura de reconhecimento pelos profissionais tanto da evidência científica quanto dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres. vi ABSTRACT The present dissertation is a case study concerning the implementation of proposals of reorganization of maternity care in São Paulo City hospitals guided by the notions of humanization and of evidence based perinatal medicine. Qualitative methodology was utilized, combining techniques of participant observation, interviews and the analysis of primary sources. Observation of maternity care was conducted during the year 2000, in two hospitals which are financed by the Brazilian public health system, SUS (Sistema Unificado de Saúde). Research findings suggest that among the factors that may contribute towards or, on the other hand, create constraints to the humanization of childbirth are the adequacy of gatekeeping; communication among subjects; the management of pain and of time in labor; as well as the presence or absence of a culture of recognition, on the part of health professionals, with respect to scientific evidence as well as women´s reproductive and human rights. vii SUMÁRIO Agradecimentos i Resumo Abstract 1. Introdução e contexto 1 1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de mudança de paradigma 1 1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência científica e prática obstétrica, e as propostas de humanização 11 1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança, limites e possibilidades 26 2. Material e método 32 2. 1. Objetivos do estudo 32 2.1.1.Objetivo Geral 32 2.1.2. Objetivos Específicos 32 2.2. Material e Método 34 2.2.1.Hipótese 34 2.2.2.Quadro interpretativo 34 2.2.2.1 Da narcose ao quimono alienígena: os muitos sentidos da humanização - um conceito em construção (e em disputa) 34 2.2.2.2. A medicina perinatal baseada na evidência científica: confronto de paradigmas e o caráter ritual da assistência 39 2.2.2.3. Técnica, ritual e intersubjetividade 45 2.2.2.4. Do parto como violência biológica (do corpo contra a pessoa) à assistência ao parto como violência de gênero (das instituições contra as pessoas). 48 2.2.2.5. As pontes entre humanização da assistência e direitos humanos, e os limites e possibilidades de sua promoção 58 2.3. Desenho do estudo 66 2.3.1. Recursos metodológicos e seu ajuste 66 2.3.2. Observação de serviços: o percurso 67 2.3.3. Outras fontes de evidências e reflexões 75 2.3.4. Questões éticas 79 3. Resultados: Possibilidades e limites das propostas de humanização 82 3.1. Os muitos sentidos da humanização 83 3.2. Cenários da humanização 98 viii 3.2.1 A formação dos recursos humanos 98 3.2.2. As propostas de humanização, os médicos e o mercado de trabalho 106 3.2.3. Novas e velhas contradições 110 3.2.4. Os mesmos sujeitos e os sujeitos diferentes 115 3.2.4.1. A parturiente 115 3.2.4.2. O médico 122 3.2.4.3. A enfermeira 127 3.2.4.4. O pai, e a ou o acompanhante 131 3.2.4.5. A doula 139 3.3. A estrutura física 145 3.3.1. Arquitetura, equipamentos, rotas e movimentos 145 3.4. Os mecanismos e estilos de gestão 157 4. Discussão: Assistência ao parto e direitos – aproximações e distância entre intenção e gesto 161 4.1. A reorganização do modelo de assistência: características, permanências e rupturas 167 4.2. Assistência e percepção de direitos 172 4.2.1. O direito à equidade e o acesso ao leito obstétrico 175 4.2.2. O direito à segurança, à integridade corporal e ao usufruto da sexualidade 184 4.2.3. O direito a estar livre de sofrimento desnecessário 193 5. Considerações Finais 204 5.1. Os limites às propostas de humanização 205 5.2. Fatores que contribuem para a implantação das propostas de humanização 214 5.3. Lacunas do percurso e questões para a pesquisa 225 6. Bibliografia 230 7. Anexos 244 - Roteiros preliminares das entrevistas 244 - Exemplo de carta à direção dos serviços formalizando a pesquisa 246 - Formulário de Consentimento Informado para observação, fotografia e acesso ao prontuário 248 - Classificação de Condutas no Parto Normal – Assistência ao Parto Normal Um Guia Prático (OMS) 1996 250 1 Capítulo 1 1. Introdução e contexto 1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de mudança de paradigma No final do século 20, cresce em todo o mundo um movimento por oferecer uma assistência à saúde baseada na evidência empírica da segurança e da efetividade dos procedimentos, em todas as especialidades médicas. No caso da assistência à gravidez e ao parto, esta preocupação com a evidência é ainda mais crucial, uma vez que, diferentemente das outras especialidades, estas práticas irão intervir sobre mulheres e crianças supostamente saudáveis, e num processo supostamente normal, o parto (Chalmers, 1992). Mas a própria definição do que seria um parto normal não é universal ou facilmente padronizável. A partir da crença de que um parto só pode ser considerado normal “em retrospecto”(Rezende, 1974), na segunda metade do século 20, houve uma rápida expansão no uso de muitas tecnologias com a finalidade de desencadear, aumentar, acelerar, regular ou monitorar o processo fisiológico do parto, com o objetivo de torná-lo “mais normal” e melhorar a saúde de mães e crianças. Neste processo, tanto em países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, as tentativas de melhorar a qualidade da assistência ao parto muitas vezes levaram à adoção acrítica de intervenções inapropriadas, desnecessárias e às vezes arriscadas, sem a devida avaliação de sua efetividade ou segurança. (Enkin, 1995, 2000; WHO, 1996). 2 A sistematização da reflexão crítica sobre este modelo de assistência ao parto se inicia, quando, no contexto do Ano Internacional da Criança (1979), é criadona Europa um comitê regional para estudar os limites das intervenções propostas para reduzir a morbidade e a mortalidade peri-natal e materna naquele continente. Ali se detectavam problemas como o aumento de custos, sem a respectiva melhoria, nos resultados da assistência, a falta de consenso sobre os melhores procedimentos e a extrema variabilidade geográfica de opiniões. A partir deste comitê, vários grupos de profissionais passam a se organizar para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e pós-parto, iniciando um esforço que se estendeu mundialmente, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, OMS (WHO, 1985; Chalmers, 1992; Cochrane Collaboration, 1996; Wagner, 1997). No decorrer do processo, foram incorporados nos grupos de trabalhos, além dos especialistas, representantes de grupos de mulheres e de organizações de consumidores dos serviços de saúde, que vieram a cumprir um importante papel neste esforço (Wagner, 1997). Este processo envolveu a utilização de estudos randomizados controlados (randomized controlled trials) como método preferencial de pesquisa, e o uso da metanálise como instrumento de sumarização sistemática das pesquisas quantitativas existentes. Um dos seus resultados mais importantes foi a publicação da revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos sobre 275 práticas de assistência perinatal, que foram classificadas quanto à sua efetividade e segurança. Este trabalho de uma década, coordenado por obstetras1, contou com o esforço conjunto de mais de quatrocentos 1 A primeira versão da publicação de “Effective Care in Pregnancy and Childbirth” Enkin, Kierse, Renfrew, Nielson,1993 incluía todas as revisões e era excessivamente volumoso e caro para ser um recurso prático para o uso em serviços; em 1995, foi lançada uma versão condensada, “A Guide to 3 pesquisadores (incluindo obstetras, pediatras, enfermeiras, estatísticos, epidemiologistas, cientistas sociais, parteiras, etc.), que realizaram uma revisão exaustiva de todos os estudos publicados sobre o tema desde 1950 (Johnson, 1997). O trabalho inteiro está disponível em publicações eletrônicas (página e CD) desde a segunda metade da década de 90. O grupo que trabalhou as revisões sistemática sobre gravidez e parto foi o primeiro de centenas de outros grupos que se organizaram nos anos seguintes para levantar as evidência sobre a eficácia e a segurança de procedimentos em todas as especialidades médicas. Este movimento e seus desdobramentos ficou conhecido como medicina baseada na evidência científica e se organizou em grande medida sob a influência e o entusiasmo do epidemiologista clínico britânico Archie Cochrane2. A colaboração internacional de grupos de pesquisa que compõe este esforço de sistematização e divulgação da evidência científica disponível tomaram o nome de “Iniciativa Cochrane” e “Biblioteca Cochrane” em sua homenagem. A partir mesmo da metade da década de 80, com a publicação da primeira fase destes trabalhos (WHO, 1985; 1986), a avaliação científica das práticas de assistência vem evidenciando a efetividade e a segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de, se alguma, intervenção sobre a Effective Care in Pregnancy and Childbirth”, que passou a ser uma espécie de bíblia dos defensores da medicina perinatal baseada na evidência. 2 Archibald L. Cochrane (1909-1988) ficou conhecido por seu influente livro “Effectiveness and Efficiency: Randon Reflections on Health Services” (1972), onde propõe que, como os recursos para a saúde serão sempre limitados, estes deveriam prover equitativamente aquelas formas de assistência que se provaram efetivas em estudos avaliativos bem desenhados. Ele defendia neste livro que “Certamente é motivo de grande crítica à nossa profissão que não tenhamos organizado um sumário crítico, por especialidade ou subespecialidade, adaptado periodicamente, de todos os estudos clínicos randomizados relevantes”. Cochrane afirmava que em geral a prática médica se orientava por 10% de evidências científicas e 90% de pajelança; uma das áreas que recebeu suas críticas mais agudas – e bem humoradas – foi a obstetrícia, que ganhou dele o prêmio “The wooden spoon” (a colher de pau, ou palmatória), por ser considerada a mais descolada da evidência científica em sua prática. 4 fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das parturientes - ao invés de organizados em função das necessidades das instituições de assistência. Isto resultou em um novo paradigma, que propõe que “O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança saudáveis com o mínimo possível de intervenção que seja compatível com a segurança. Esta abordagem implica que no parto normal deve haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural” (WHO, 1996: 4). Com base nesta concepção de assistência, qualquer intervenção sobre a fisiologia só deve ser feita quando se prova mais segura e/ou efetiva que a não-intervenção. Com o avanço dos estudos nesta direção, a argüição sobre segurança e eficácia estende-se virtualmente a todos os procedimentos de rotina na assistência à gravidez e ao parto. A argüição da segurança e da efetividade se estendeu sobre a assistência pré-natal, onde se constatou que, em grande medida, a extensão e o conteúdo da atenção pré-natal, incluindo o número de consultas e os exames solicitados, são ritualísticos ao invés de baseados na evidência. Esta constatação impõe a necessidade de identificar os elementos da assistência que são de fato provados como efetivos na prevenção ou no alívio de efeitos adversos na mãe e na criança (Villar, J, 1997). Neste processo, o campo da assistência à gravidez e ao parto acumulou o maior volume de avaliação sistemática já desenvolvido como especialidade médica até então (Enkin, 1996; Johnson, 1997). Em meados da década de 90, a OMS passa a divulgar amplamente documentos baseados nestes estudos, classificando os procedimentos de rotina em quatro categorias: 5 A- Condutas que são claramente úteis e que deveriam ser encorajadas; B- - Condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam ser eliminadas; C- - condutas sem evidência suficiente para apoiar uma recomendação e que, deveriam ser usadas com precaução, enquanto pesquisas adicionais comprovem o assunto; e D- - condutas freqüentemente utilizadas de forma inapropriadas, provocando mais dano que benefício. A classificação buscou tornar mais objetiva a consulta por profissionais a respeito de suas decisões na assistência. Este trabalho foi publicado em suas várias versões, inclusive pela OMS, e algumas delas são conhecidos como “recomendações da OMS”. Por “recomendações da OMS” estamos considerando, para efeito deste estudo, quatro documentos: o primeiro é Appropriate Technology for Birth. (World Health Organization. 1985) também conhecido como “Carta de Fortaleza”, foi o primeiro “manifesto” internacional desta corrente, está incluído como anexo, em português. O segundo, Recomendations for Appropriate Technology Following Birth (1986), também conhecido como Carta de Trieste, é uma versão para a neonatologia do que a Carta de Fortaleza é para a obstetrícia. O terceiro é o Care in Normal Birth: A Practical Guide (Maternal and Newborn Health/ Safe Motherhood Unit. WHO, 1996); este trabalho é a versão completa e atualizada da Iniciativa Cochrane nesta área, sistematizando todos os procedimento metanalisados; está desde 2000 disponível em português, em publicação do Ministério da Saúde e colocamos em anexo um quadro resumo dos procedimentos. E finalmente, World Health Day: Safe Motherhood. (WHO, 1998),um documento que retoma os 6 anteriores e coloca a Iniciativa Maternidade Segura também da perspectiva dos direitos humanos das mulheres3. Mas como estes trabalhos têm repercutido na assistência ao parto nos diversos países? Como tem ajudado a promover mudanças? Como acontecem estas mudanças? Se consideramos as referidas recomendações da OMS e os procedimentos reconhecidos como benéficos, vemos que a primeira recomendação é o desenvolvimento de um plano individual feito pela mulher. Os estudos mostram que quando a mulher está informada sobre as suas possibilidades de escolha no parto – aí incluídos o lugar de dar à luz, o profissional e demais pessoas que vão acompanhá-la e os procedimentos eletivos na assistência – este parto tem mais chance tanto de ser mais saudável para mãe e bebê quanto da mulher expressar maior satisfação com a experiência (Enkin, 2000). A partir desta concepção de parceria entre usuária e serviços, e de uma maior simetria nesta relação, surge o conceito de de plano de parto. Como o nome sugere, este é um planejamento dos procedimentos eletivos no parto, a ser elaborado no pré-natal, sobre os diversos aspectos do processo, desde as opções tecnológicas tradicionais e suas alternativas, até formas de comunicação entre os envolvidos. Não se trata de um contrato de 3 A Iniciativa Maternidade Segura é uma campanha mundial liderada pela OMS que busca combater a tragédia da mortalidade materna, ou seja, a morte de mulheres por causas relacionadas à gravidez ou ao parto, considerada um dos fatores de mortalidade mais preveníveis, pois perto de 100% destas mortes são evitáveis. Estas mortes se concentram basicamente no mundo em desenvolvimento, onde em alguns países africanos chega a 1000 mortes por 100.000 nascidos vivos. A taxa no Brasil, corrigida a subnotificação, é de cerca de 110 mortes por 100.000, contra 3,6 mortes no Canadá. (BSRM, 21/6). Infelizmente, constatou-se que a mortalidade materna mundial, que chega a 600.000 anuais, aumentou nos últimos 10 anos, seja por ter havido pouca mudança no quadro mundial e/ou por terem melhorado as informações sobre as mortes. 7 compromisso que não possa ser modificado no decorrer do parto, mas é principalmente uma oportunidade comunicativa e educativa para todos os membros da “equipe”- a mulher, a família, o profissional e o serviço. As recomendações que se orientam por este novo paradigma, ao mesmo tempo baseado na evidência empírica e nas novas tendências nas relações entre profissionais e pacientes, postulam a centralidade do direito à informação e à decisão informada nas ações de saúde. Isto implica uma mudança importante na concepção de relação médico-paciente, pois supõe que a decisão deva ser compartilhada entre os envolvidos, ao invés de decidida de forma unilateral pelo profissional e pela instituição que presta a assistência. A parturiente não seria mais um objeto calado e imobilizado sobre o qual se fazem procedimentos extrativos do feto, mas um sujeito com direito a voz e a movimento, de quem se espera um papel ativo, reconhecendo que será ela a parir, e da equipe se espera que ofereça o apoio quando e se necessário. Na prática, no Brasil como em outros países, esta, como outras recomendações, vem sendo sistematicamente desconsideradas - isto quando são conhecidas. Este é o caso de condutas como o monitoramento de bem- estar físico e emocional da mulher, a oferta oral de fluidos durante o trabalho de parto e parto, as técnicas não-invasivas e não farmacológicas de alívio da dor (como a massagem, o banho e o relaxamento); a liberdade de posição no trabalho de parto e parto, o encorajamento a posturas verticais, entre outros. Os procedimentos reconhecidamente danosos, ineficazes, e que deveriam ser eliminados, continuam a fazer parte do dia a dia da maioria dos serviços, como o uso da posição horizontal durante o trabalho de parto e parto; o uso de rotina do enema; da tricotomia; da infusão intravenosa; a administração de ocitocina para acelerarem o trabalho de parto e; os esforços expulsivos dirigidos durante o segundo estágio do trabalho de parto. Isto sem contar com 8 a perigosa manobra de Kristeller4, entre outros. Mesmo práticas que, devidamente indicadas, poderiam ser úteis são usadas de forma inapropriada, causando mais dano que benefício, como os exames vaginais freqüentes e repetidos. A assistência é organizada como uma linha de montagem (Martin, 1987; Rothman, 1992), com a rígida estipulação dos tempos para cada estágio do parto. A transferência das mulheres de local em local durante o parto, assim como a própria arquitetura das maternidades - fatores que contribuem para inviabilizar o respeito à fisiologia do processo (Enkin e cols.1995), são parte da assistência típica ao parto no Brasil. Nos últimos anos, tem havido uma distinção cada vez mais enfática sobre o que se considera “parto normal”. Em geral, o que consideramos como parto normal é o chamado parto vaginal dirigido, ou seja, aquele que de rotina é conduzido com a mulher imobilizada ou semi-imobilizada, privada de alimentos e líquidos por via oral, usando de drogas para a indução ou aceleração do parto , com a mulher imobilizada e em posição de litotomia no período expulsivo, com eventual uso de fórceps, e com o uso de rotina episiotomia e episiorrafia. Para alguns autores (Gaskin, 2000; Davis-Floyd, 1997; Wagner, 2000), com os quais nos identificamos, por parto normal devemos entender o parto que ocorre conforme a fisiologia, sem intervenções desnecessárias nem seqüelas destas intervenções. Um parto vaginal orientado por uma abordagem médico-cirúrgica e pelo modelo tecnocrático5 acima descrito, que inclua um 4 Esta manobra consiste na expressão do fundo uterino para ajudar na saída do bebê; como veremos, é um procedimento tão associado a complicações maternas e fetais graves que sequer é mencionado em muitos livros e documentos, apesar de ser uma prática corrente nos serviços brasileiros. 5 5 O termo modelo tecnocrático de assistência ao parto (Davis-Floyd, 1992; 1998) é usado para se referir àquela assistência que parte do suposto que a mulher depende da tecnologia para dar à luz, 9 conjunto de intervenções desnecessárias que vão deixar seqüelas físicas e um maior desgaste emocional da mulher com sua experiência, deveria se chamar de “parto típico”6, até por sua variabilidade geográfica, pois como vimos, este “normal” varia de acordo com o país ou o serviço. Em sua extensa revisão sobre os procedimentos de rotina no parto tecnocrático, Enkin e cols. mostraram como a abordagem médico-cirúrgica do parto, superestimando os riscos inerentes ao processo, freqüentemente implica a “substituição do risco potencial de resultados adversos pelo risco certo de tratamentos e intervenções duvidosas” (1995:39)7. Assim, cria-se o chamado efeito cascata, quando os médicos submetem as mulheres a intervenções “que podem levar a complicações, gerando intervenções subseqüentes e a mais complicações, que terminam em uma intervenção final, em geral uma cesárea, que não teria ocorrido se a cascata não tivesse se iniciado” (Mold e Stein,1986). Um dos procedimentos que permanece sendo usado de rotina é a episiotomia, apesar de há muitos anos os abundantes dados disponíveis revelarem que esse procedimento não cumpre os objetivos que justificariam sua realização, sejam eles a prevenção de lesões nos genitais da mãe ou na cabeça do recém-nascido. Não há qualquer justificativa médica para a portanto essa assistência deve ser organizada em função daquele conjunto de recursos tecnológicos, como estações de umalinha de produção, sendo o médico o administrador e manipulador da máquina parturiente, a mulher (Martin, 1989). Nesse modelo, não se trata de uma oposição mulheres x máquinas, mas de “recriar, discursivamente e na prática, a máquina de parir perfeita – uma combinação da mulher e da tecnologia, um cyborg” (Davis-Floyd e Dummit, 1997, Szusek, 1998.) 6 Por “parto típico” entende-se um parto vaginal cuja assistência inclui o conjunto de intervenções de rotina não baseadas nas evidências científicas, típica do seu respectivo contexto geográfico e cultural (Wagner, 2000; Gaskin, 2000). O termo é usado em substituição ao vago termo “parto normal”, que pode incluir desde um parto espontâneo sem intervenções até aquele parto de rotina induzido, anestesiado, com o uso de fórceps e de episiotomia. 7 Literalmente, [...]“replacing a potential risk of adverse outcome with the certain risk of dubious treatments and interventions”, no original. 10 realização da episiotomia de rotina ou para seu uso liberal (Thacker e Banta, 1980; WHO, 1985; Enkin, 1995). Mesmo assim, a episiotomia permanece na rotina de assistência em nossos serviços, implicando em centenas de milhares de lesões inúteis, arriscadas e potencialmente danosas sobre os genitais femininos8. Diz-se que só escapa de episiotomia quem faz uma cesárea: é a escolha entre “cortar em cima ou cortar em baixo”. Nas palavras de um professor universitário que trabalha pela promoção da assistência perinatal baseada na evidência: “Como essa discussão democrática aqui, tem por trás a busca da cidadania, eu fico muito preocupado com as mulheres brasileiras, se eu fosse mulher eu já teria feito... sei lá, pegado em armas, porque é muita violência... porque ela vai para a maternidade, ou lhe fazem um corte na barriga, desnecessário na maioria das vezes, ou no períneo. De todo jeito alguém vai atacá-la com uma faca, então é preciso que isso seja melhor pensado, eu acho que é fundamental essa pressão da clientela para forçar o médico a tomar atitude de acordo com a melhor ciência existente ( Atallah, 1999) Se a incorporação da evidência científica sistematizada à prática cotidiana de profissionais e serviços tem sido lenta, mais problemática ainda é a sua incorporação pelo aparelho formador, que pouco tem se modificado a partir desta mudança de paradigma. (Tew, 1995; Enkin, 1996; Chalmers, 1992). 8Dada a sua permanência de rotina mesmo diante da evidência bem documentada de sua limitada indicação, a episiotomia tem sido motivo de acalorado debate. Segundo Kitzinger, esse procedimento se mantém porque “representa o poder da obstetrícia” e deveria ser considerada “uma forma de mutilação genital” (BWHBC,1993:458). Para Davis-Floyd (1992:129), por meio da episiotomia, “os médicos, como representantes da sociedade, podem desconstruir a vagina (e por extensão, suas representações), e então reconstruí-la de acordo com nossas crenças culturais e sistema de valores”. 11 Ainda que haja uma variação entre os países, o problema até mesmo do reconhecimento da existência destes trabalhos de revisão sistemática e das conseqüências que seus achados apontam parece ser universal, e “apesar do compromisso da comunidade de saúde pública com a saúde materna e infantil, é difícil encontrar, mesmo no discurso da saúde pública, o reconhecimento destes importantes recursos e da distância entre evidência e prática. (Sakala, APHA, 2000)”. Uma das lições aprendidas neste processo de revisões sistemáticas é a de que a disseminação passiva das evidências científicas não é suficiente para mudar a prática clínica (Goer, 1995; Enkin, 1996). A resistência a tais mudanças passa por questões extra-técnicas, relacionadas às percepções e expectativas de profissionais e pacientes quanto ao parto e sua assistência, à estrutura funcional e física dos serviços, aos problemas do acesso ao leito obstétrico, às questões de financiamento do sistema de saúde, à cultura sexual e reprodutiva; entre outras (Kitzinger, 1997; WHO, 1985; Wagner, 1997; Davis-Floyd, 1992, 1997; Faúndes e Cecatti, 1991; Diniz, 1996 ). Neste contexto, uma das questões mais importantes que se colocam para uma agenda de pesquisa seria, portanto, o estudo de como promover as mudanças que estas evidências nos colocam, e de quais seriam os fatores que propiciariam ou impediriam a mudança nas práticas (Goer, 1995; Davis-Floyd e Sargent, 1997; Wagner, 1997). 1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência científica e prática obstétrica e as propostas de humanização do parto Em muitos contextos, como no caso do Brasil, vemos um quadro de mudança muito tímido, quando algum, de incorporação das recomendações emanadas do acúmulo de evidência científica referido. Em alguns contextos, 12 temos mesmo uma radicalização das tendências opostas a estas recomendações, expressa, por exemplo, na manutenção de altas taxas de episiotomia9 e de cesárea. Mesmo nos últimos anos, com a criação de políticas para o controle do abuso de cesárea pelo Ministério da Saúde, temos resultados contraditórios. O aumento da freqüência da cesárea é um fenômeno comum a quase todos os países do mundo, mas em nenhum país a curva de aumento foi tão acentuada nem as taxas alcançam níveis tão altos como no Brasil, que em regiões inteiras ficam acima de 70% (Faúndes e Ceccatti, 1991; Cecatti e cols., 1998). Em alguns serviços mantêm-se acima de 90%, onde se diz que, quando os partos normais acontecem, é porque os bebês “pregaram uma peça no médico, foram mais rápidos do que eles”. O profissional que enfrenta este contexto institucional adverso e insiste no parto vaginal é freqüentemente considerado um “trouxa” pelos colegas. Além dos vários mecanismos de pagamento diferenciado que fazem a cesárea mais rentável para serviços e profissionais, o estabelecimento de nova ordem de produção, marcada pela possibilidade da produção em série, potencializaria, sob a convicção da inocuidade da cesariana, o parto com hora marcada (Chiaravalloti & Goldenberg, 1998). Generaliza-se o recurso à cesárea, sob essas condições, “ressaltando-se que o empresariado da medicina, no mercado livre de controle, favorecia à predominância das cesarianas, particularmente nas instituições privadas e nos níveis de renda mais elevados” (Cecatti e cols., 1998). 9 Não encontramos informações sobre taxas de episiotomia municipais, estaduais ou nacionais, apenas de alguns serviços. Considerando que a recomendação científica há vários anos é aquela do fim da episiotomia de rotina, e a manutenção de taxas entre 5 e 10%, o estudo de como se comportam as porcentagens do seu uso, suas indicações, etc., poderia ser bastante relevante. A análise destes dados só faria sentido em relação as taxas dos partos normais e não do total de partos, sobretudo em serviço ou localidades com altos índices de cesárea. 13 No caso brasileiro, há também uma especificidade relacionada à formação dos médicos obstetras e à cultura médica neste campo. A cesárea a pedido é indicada pelos mais importantes professores e formadores de opinião como tratamento da “neurose de ansiedade” que o parto pode despertar (Rezende, 1974), ou ainda como “preventiva” das supostas lesões genitais do parto, em muitos serviços foi assumida como regra, como rotina de boa técnica (Faúndes e Cecatti, 1991; Mello e Souza, 1992; Diniz, 1996; SEADE, 1997; Voloshko, 1997; CRM-SP, 1997; CFM, 1997). No ano de 1996, 52% dos partos do Estado de São Paulo foram por cesárea; esta cirurgia chegou a virtualmente 100% dos partos em alguns serviços, havendo cidades inteiras com incidência acima de 78% . Naquele ano, a cesárea foi a forma de parto de nada menos que 84% das mulheres com 11 anos ou mais de escolaridade em São Paulo(SEADE,1997), justamente a parcela que tem melhores condições de negociar com os serviços. Um estudo mostra que quando se consideram as diversas categorias de grau de instrução, a taxa de cesárea passa de 35% entre as mulheres sem nenhuma escolaridade para cerca de 73% entre aquelas de nível superior (Cecatti e cols, 1998). Desde 1998, tem havido um conjunto de iniciativas governamentais no sentido de reduzir as taxas de cesárea, entre elas o apoio a que o parto sem complicações seja atendido pela enfermeira obstetriz; e o pagamento da anestesia de parto nos serviços do SUS (a viabilidade deste pagamento foi negada pelos profissionais e serviços, como veremos). Outra iniciativa foi a criação de um “teto” percentual decrescente para a cesárea em cada serviço (que deveria representar 40% no segundo semestre de 1998, 37% no primeiro semestre de 1999, 35% no segundo semestre daquele ano, chegando a 30% no primeiro semestre de 2000). Esta iniciativa tem contribuído para estabilizar ou reduzir as taxas antes ascendentes, pelo menos nos serviços do SUS e em seus 14 conveniados, ao contrário da realidade dos serviços privados, onde estas taxas aumentaram (BSRM, junho/2000). O percentual de cesáreas realizadas na rede pública de São Paulo diminuiu de 45% em 1997 para cerca de 33% em 1999. Nas maternidades privadas, porém, o percentual de cesáreas entre os partos realizados subiu de 75,2% par 79,6%, havendo serviços, como o Hospital Santa Helena, no interior do Estado, em que as cesáreas chegaram a 98% do total. (BSRM, junho/2000) Dados do Ministério de 1999 apontavam para uma queda nacional do índice de cesárea de 4% em dois anos, com grandes variações, sendo a maior queda na região centro-oeste (de 40,7 para 28,7%). Existem ainda evidências de que este dado seja fraudado em maternidades financiadas pelo SUS, pois “para que a unidade conveniada se adequasse ao teto estabelecido, cesarianas estariam sendo registradas como parto normal o que, além de mascarar os dados encaminhados ao SUS, estaria criando dificuldade para que os familiares investiguem complicações resultantes da cirurgia.” (Radis/ENSP, p.44). A fidelidade do registro nos prontuários é um dos dados mais preocupantes quando se busca estudar a qualidade da assistência. Um estudo do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) sobre a assistência ao parto e ao recém-nascido no período de 1997 a 1998, estudando cerca de 200 serviços, entre públicos, privados e universitários, mostrou que 94% dos prontuários não estava adequadamente preenchido. Esta realidade “reflete o descaso com o documento mais fundamental para o adequado seguimento das gestantes, puérperas e recém-nascidos, e para a avaliação posterior da qualidade da assistência prestada” (Cremesp, 2000:89). Nesse mesmo estudo, as taxas de cesárea informadas ao Cremesp (apenas 77 dos 200 serviços estudados informaram suas taxas) mostrou que 15 63% das instituições tinham percentuais acima de 50, e mais de um terço (36%) informaram percentagens acima de 70, refletindo, na avaliação dos autores, “um cenário sombrio” (2000:86). Sabe-se que abuso de cesárea, para além das possíveis repercussões sobre a saúde das mulheres, tem um enorme impacto adicional sobre as contas do setor saúde, resultante das complicações infecciosas e anestésicas, ou da simples ocupação por mais dias de internação dos já reduzidos leitos obstétricos. O excesso de cesárea tem importantes repercussões sobre os recém- nascidos, incluindo as complicações de saúde e seu impacto sobre as contas do setor. Segundo José Formiga, chefe do Programa da Assistência à Mulher do Ministério da Saúde, em 1996, 68% do total de mortes por afecções perinatais eram devidos aos nascimentos de prematuros e desnutridos, e o índice de cesarianas seria uma das principais causas de nascimento de bebês prematuros: “Por falta de treinamento, muitos médicos terminam calculando mal a idade gestacional e fazem a cesariana antes do que deviam” (FSP,18/09/96). Há um crescente reconhecimento do impacto das práticas obstétricas intervencionistas na mortalidade neonatal no caso brasileiro, em especial o abuso de cesáreas (Schrimer, 1999). Os recentes estudos sobre o impacto das cesáreas eletivas no Estado de São Paulo mostram números bastante preocupantes e paradoxais, pois temos uma tendência crescente de prematuridade e de baixo peso ao nascer (BPN) no Estado de São Paulo. Uma pesquisa sobre os fatores de risco para essa tendência em Ribeirão Preto, no interior do Estado, mostrou que, embora as taxas de crianças nascidas de parto pré-termo tenham crescido para todas as formas de parto, o aumento foi maior no grupo das que tiveram cesárea, 16 sugerindo que a cesárea representa o mais importante fator de prematuridade e baixo peso naquela região. (Bettiol e cols., 2000). Outro trabalho evidencia que o nascimento de crianças com BPN aumentou mais nas faixas mais altas de renda da família e de qualificação profissional dos pais. Para explicar esse paradoxo de ter piores indicadores de saúde entre as famílias mais ricas, os autores concluem que “o aumento do BPN foi provavelmente devido às praticas iatrogências associadas com a cesárea eletiva”10 (Silva, AA, 2000). Vemos um cenário no qual “uma intervenção criada para proteger a vida da mãe e da criança, quando indicada e realizada adequadamente, torna-se um perigo para um ou para ambos, quando utilizada somente para a conveniência do médico ou da mãe, ou como resultado das incongruências do sistema de saúde” (Faúndes e Ceccatti, 1991:161). A situação chegou a tal extremo que os próprios Conselhos Regionais e Federal de Medicina se lançaram em 1998, junto com outros atores sociais, em uma campanha pelo parto normal, incluindo eventos de lançamento, simpósios com profissionais, cartazes e mensagens na TV (CRM, 1997; 1998; CFM, 1997; 1998). No decorrer do período desde a apresentação do projeto de tese, em 1998, até o presente ano, é notável a quantidade de iniciativas que foram desenvolvidas no sentido de coibir o abuso de cesáreas no Brasil. Além das iniciativas das corporações profissionais, em especial as dos médicos, já 10 Estudos em países industrializados mostram que há uma tendência de diminuição do peso ao nascer, devido a vários problemas, entre elas a interrupção iatrogênica precoce da gravidez, através da indução e da cesárea. Um estudo na Noruega mostra que o baixo peso e a prematuridade aumentam mais entre as ricas e não-migrantes, associados ao aumento “dramático” da cesárea eletiva, mais freqüente entre esta faixa superior de renda também naquele país (Kramer, 1997). 17 citadas, temos também aquelas organizadas pelas enfermeiras-obstetrizes. Estas profissionais têm sido muito valorizadas no novo modelo proposto, e encontram na atual conjuntura uma rica oportunidade de ocupação de um espaço profissional, antes relativamente restrito aos médicos. Esta revitalização da profissião de enfermeira obstetra se reflete também em sua organização como categoria, através da Associação Brasileira de Enfermeiras Obstetras (ABENFO). O Ministério da Saúde, agora gerido por um economista, assumiu o conjunto de medidas para a redução das taxas de cesáreas já referidas, com as respectivas sanções financeiras para aqueles serviços que não reduzirem suas taxas de cesárea. O Ministério desenvolveu outras iniciativas de incentivo às mudanças como a criação do prêmio Galba de Araújo11, destinado àqueles serviços que se auto-definem como humanizados, tomando como referência para esta humanização as recomendações da OMS (OMS-1996). O prêmio, concedido a nível estadual, regional e nacional, tem provocado uma mobilização considerável dos hospitais e tem tido a participação de um número deserviços crescente a cada ano. Esta iniciativa inaugurou um processo mais amplo de humanização dos serviços conduzido pelo Ministério, com os projetos de “Humanização do Atendimento ao Pré-natal e ao Parto” e de “Humanização de Hospitais”, lançados respectivamente em maio e junho de 2000, que pretende abranger centenas de instituições. 11 Galba Araújo foi um obstetra e professor da Universidade Federal do Ceará, que iniciou na década de 70 programas a incorporação de parteiras tradicionais e seu conhecimento a uma rede de referência de assistência à gravidez e ao parto. Admirador do trabalho das parteiras, foi um incentivador de seu reconhecimento, e trabalhou com a introdução de tecnologia apropriada para o parto e o nascimento, entre eles o parto na posição vertical, o parto na rede e o banquinho de parto. Seus projetos de educação em saúde para a diminuição da mortalidade materna e infantil, e de participação da comunidade nas ações de saúde, foram reconhecidos internacionalmente e reproduzidos em muitos países. 18 Outra medida adotada para reduzir o número de cesáreas tem sido o estímulo à criação de Casas de Parto, baseada na evidência de que este pode ser um recurso seguro e com boa aceitação pelas mulheres, no contexto de uma rede de referência hierarquizada de assistência, em contextos rurais ou mesmo em grandes centros urbanos (WHO, 1996). Estas medidas têm despertado uma polêmica acalorada e mobilizado defensores e opositores apaixonados nos diversos segmentos que estão envolvidos, dentro e fora das instituições de assistência ao parto no Brasil. Neste período também foi criada a CPI da Mortalidade Materna, em junho de 2000. Considerando que o Brasil está estacionado em índice de mortalidade materna de cerca de 10 a 20 vezes aquela considerada aceitável, criou-se um esforço em três frentes. Numa delas, a referida CPI; em outra, a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (RNFSDR) lançou uma ampla companha educativa nacional; e por fim, o Ministério da Saúde, além de apoiar as iniciativas anteriores, anunciou uma série de medidas para a humanização do parto e redução dos índices de cesárea. Desta forma, vemos que mais recentemente a termo humanização passa a ser incorporado mesmo por formuladores de políticas. Uma das vertentes desta humanização na mudança da assistência materno infantil que vem se institucionalizando nos anos recentes tem tem sido aquela ao recém-nascido. Na década de setenta se consolida uma crítica ao tratamento ao recém-nascido e um questionamente às rotinas de assistência, que tinham como pressuposto a necessidade de um conjunto de intervenções de rotina, que se mostraram desnecessárias e potencialmente dolorosas e perigosas. Além das repercussões do uso de drogas e outras intervenções na mãe, entre outras rotinas tínhamos, no momento do parto, vários procedimentos agressivos ao bebê, como luzes fortes e o aparelho de ar condicionado ligado, 19 forçando o bebê a um choque térmico entre o ambiente intracorporal de cerca de 36 graus e o meio externo. O bebê tinha o cordão clampeado imediatamente, levando a uma supressão súbita de oxigênio e à respiração forçada e dolorosa, era pendurado pelos pés e não raramente, recebia um tapa para atestar sua vitalidade. Depois disso, era separado da mãe e levado por outros profissionais, e de rotina, mesmo que estivesse respirando perfeitamente, passava por uma “reanimação” que incluía uma sonda introduzida até o estômago, sofria ainda instilação de gotas profiláticas nos olhos que além de dolorosas, deixavam o recém-nascido com a visão nublada por várias horas ou dias. O bebê era de rotina separado da mãe para observação por um período variável de algumas horas a um dia ou mais, em um berçário (hoje propõe-se a extinção dos bercários para bebês normais), lugar onde ficava instalado durante toda a estada no hospital. O contato com a mãe era regulado, e em muitas instituições restritos a alguns dos horários das mamadas, pois em outros horários, a criança era alimentada com leite em pó. Até a década de oitenta, com a permissão dos serviços, era comum que todas as mães recebessem no hospital a visita de uma representante das companhias de leite em pó, vestidas como enfermeiras, que davam latas de leite para os primeiros dias do bebê como amostra. Como não havia orientação sobre amamentação, houve uma tendência generalizada de desmame precoce, com conseqüências catastróficas para a saúde e mortalidade infantis. Os estudos mostraram que os bebês alimentados por mamadeiras em condições de pobreza tinham um risco até 25 vezes maior de morrer no primeiro ano de vida que um bebê amamentado ao seio (UNICEF/WHO/UNESCO, 1989). Este quadro vem sendo revertido com um grande esforço mundial iniciado pela militância pró-aleitamento, que afrontou a indústria de alimentos 20 infantis através de um boicote mundial, criando uma aliança mundial (WABA, World Breastfeeding Alliance)12, incluindo instituições de saúde, associações profissionais e órgãos governamentais. No Brasil, esta aliança impulsionou a criação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança, uma espécie de “título” ganho por serviços que promovem (ou que não boicotam) o aleitamento. Até recentemente, acreditava-se que os recém-nascidos, em especial aqueles prematuros, não tinham sensibilidade normal à dor, o que justificava um conjunto de intervenções dolorosas feitas sem anestesia, como a inserção de catéteres e numerosas punções venosas. Os prematuros eram mantidos afastados da mãe e da família, em UTIs neonatais onde o contato pele a pela e a criação do vínculo familiar não eram uma preocupação cotidiana. Este movimento de humanização da assistência ao bebê tem muitas relações e analogias com a humanização do parto, como nos conta uma professora que se dedica ao trabalho de mudança institucional e de docência neste campo: Então, atualmente, assim, eu tenho feito uma leitura, da iniciativa (Hospital Amigo da Criança), um pouco além da promoção da amamentação em si, que já é uma questão fundamental e muito importante; mas, assim, eu acho que as maternidades que trabalham a iniciativa, elas também acabam trabalhando, caminhando no sentido da humanização nesse sentido, de estar suprindo as necessidades do bebê, desde o momento em que ele nasce. Bom, se em relação a bebês saudáveis, as maternidades ainda, no momento, não têm uma 12 A WABA tem ainda um dos mais belos e funcionais sites de saúde do Brasil, o www.aleitamento.org.br 21 preocupação tão grande em relação a suprir essas necessidades básicas, a situação dos prematuros é um pouco pior, porque o prematuro é aquele bebê que é mais privado desse contato com a mãe, em geral ele fica isolado, na Isolete, exposto aquele ruído super forte ali, incomodando os ouvidos, ele tem pouco contato... pouco estímulo, praticado pela mãe, pelo pai, pela família, um contato maior com os profissionais de saúde; e, assim, são sujeitos a inúmeras intervenções, coleta de exames, enfim, então, esses bebês, eles realmente são desprivilegiados. Tem alguns estudos mostrando que expor um bebê a uma situação, como essa que eu descrevi, pode levar essa situação de stress, a que ele é submetido, pode levar até manifestações psicossomáticas mesmo. Um exemplo clássico: sangramentos digestivos de bebês prematuros em UTI. Então, tem alguns estudos mostrando que essas hemorragias, enfim, elas podem ser decorrentes, uma resposta do bebê a esse stress da UTI Pediátrica. Teruya, 1999. Um dos recursos para a humanização da assistência ao recém-nascido, que tem sido incorporado em um número crescente de serviços por ser muito custo-efetivo, e recentemente contar com um apoio efetivo do Ministério da Saúde, é oprograma Mãe Canguru13. 13 Desenvolvido na Colômbia no final da década de setenta pelo Instituto de Saúde Materno Infantil de Bogotá (ISMIB), este projeto foi concebido em um serviço em que se convivia com uma carência crônica de leitos de UTI para prematuros, levando a uma grande mortalidade perinatal. Resolveu-se substituir as incubadoras ausentes por instalar os prematuros no colo da mães, entre os seios, fixado com panos, para permitir o aquecimento pelo contato físico permanente. No início da década de oitenta, se constata que além dos bons resultados do método em termos dos parâmetros biológicos dos bebês, (temperatura, freqüência cardíaca, amamentação, ganho de peso, etc.), há uma evidente vantagem emocional. Além disso o método tinha grandes vantagens econômicas, até porque tinha sido concebido pela pressão da carência de recursos, soando para muitos apenas como uma forma de “medicina para pobres”. Nessa direção, “foi recebido com restrições pela comunidade científica internacional, devido à ausência de evidências científicas sólidas que demonstrassem sua eficácia, efetividades e segurança”, até que estudos na década de noventa 22 Este processo de mudança e de ganho de legitimidade do uso e recursos alternativos na atenção ao recém-nascido certamente contribui para ampliar o espaço de mudança possível no cenário do parto. As duas abordagens investem mais na relação humana – tanto em termos de comunicação quanto mesmo da relação corporal, pele a pele, e a utilização dos recursos fisiológicos do corpo reprodutivo ao invés de sua substituição por máquinas, e ainda, ambas adotam, com menor ou maior ênfase, o termo “humanização” desta assistência,. Mais uma vez se coloca a questão: o que enfim se quer dizer quando se fala em “humanização”? Não é objetivo deste trabalho encontrar a humanização “correta”; mas sim reconhecer que cada um dos diferentes sentidos dados à “humanização” delimita a participação de cada um dos atores sociais neste diálogo. Estes diferentes sentidos e o diálogo que ele instaura são temas a serem explorados neste trabalho. Qual seria, por exemplo, os sentidos da humanização para as mulheres organizadas? No caso brasileiro, quando o movimento de mulheres se reorganiza a partir da década de setenta, inicialmente enfrenta a fase em que era mais importante reafirmar o direito a decidir sobre não ter filhos, uma vez que a urgência era questionar a maternidade obrigatória, considerada como destino biológico de toda mulher “normal”. Nesta fase do movimento, duas correntes políticas igualmente autoritárias disputavam a cena: por um lado os anti-natalistas, que alardeavam que o planeta estava à beira do colapso por causa da explosão demográfica (portanto as mulheres deveriam ser obrigadas a reduzir o número de filhos a qualquer custo, para salvar a economia e o planeta), e por outro, os natalistas, que defendiam que as mulheres deveriam mostraram sua adequação, quando passa a ser adotado em países ricos (http://kangaroo.javeriana.edu.co/) 23 ter quantos filhos a natureza lhes trouxesse, pois regular a fertilidade era pecado contra Deus e contra os interesses da nação (portanto as mulheres deveriam ser proibidas de usar contraceptivos e de interromper a gravidez indesejada). Estes dois pontos de vista consideravam a mulher como objeto, como meio para alcançar objetivos alheios, jamais como sujeitos de suas vidas, cidadãs capazes de fazer escolhas conscientes com relação à sua fertilidade (Ávila, 1993; Diniz, 1998). Dentro do movimento de mulheres passa a haver, ainda na década de setenta, um crescente reconhecimento de que, mesmo quando a maternidade era uma escolha consciente, esta era vivida em condições de opressão, relacionadas ao controle social das grávidas. As mulheres se viram tratadas não como pessoas, com necessidades adicionais e singulares, mas sim como embalagens do feto, como uma “pélvis ambulante” assexuada, a ser vigiada e submetidas a todo um conjunto de intervenções institucionais, em especial no campo da medicina ( Ehrenreich & English, 1973, Rich, 1986; Rothman, 1992) muitas das quais, como vimos, irracionais, arriscadas, violentas e de eficácia duvidosa. No Brasil desde a década de oitenta, este movimento passa a ter como uma de suas frentes a assistência ao parto, produzindo material educativo e propondo políticas públicas, usando o termo humanização da assistência ao parto. E quais seriam as relações das distintas propostas de mudança da assistência, e de seu conteúdo técnico, com as questões dos direitos das pacientes, dos direitos reprodutivos e dos direitos humanos? Estas perguntas tem sido colocadas mais recentemente por diversos atores sociais, como o movimento internacional de mulheres pelos direitos humanos (Bunch e Heilly, 24 1999; Cook, 1996; CLADEM, 1998) e mesmo por agências como a Organização Mundial de Saúde (WHO, 1998). A discussão sobre humanização é de certa forma uma versão brasileira, ou latino-americana, daquilo que nos países de língua inglesa é chamado movimento por um “gentle birth” , “respectful birth”, entre outros termos mais imediatamente referidos ao cuidado na relação pessoal. Ou daquilo que em muitos contextos é referido com termos aparentados, como o “natural childbirth” e suas muitas variações, herdeiros da tradição menos ou mais crítica da assistência, do parto psicoprofilático de Dick-Read e de Lamaze na década de 50, do método Bradley (“husband-coached birth”), que já trazia na década de 60 o papel crucial do pai como acompanhante e do nascimento como evento familiar. Há também a abordagem centrada no parto ativo (“active birth”), disseminado pelo trabalho de Janet Balaskas, que preconiza um papel ativo física e emocionalmente por parte da mulher, que se educa sobre o nascimento e assume seu papel de protagonismo na parto, ao invés de um papel passivo e dependente, além de uma linha de parto centrado na mulher (“women- centered childbirth”), entre outros. Cada um destas abordagens, que são de certa forma complementares entre si, denota sua respectiva crítica a alguma face do modelo - à falta de gentileza e de respeito; à assistência que obriga as mulheres à passividade e à imobilidade, que isola a mulher e impede o envolvimento paterno; que é centrado na conveniência de profissionais e instituições e não das mulheres, etc. Desde a década de setenta, temos a importante contribuição de dois autores franceses - a crítica vinda da neonatologia e do trabalho de Leboyer pelo parto não-violento com o bebê, e a contribuição de Michel Odent e sua 25 anti-obstetrícia. Com estes autores, os termos violência na assistência e humanização passam a ser mais popularizados na literatura latina. Na década de oitenta, a discussão sobre os modelos de assistência leva à distinção entre o modelo baseado na parteira, ou holístico, e o modelo médico ou tecnocrático (BWHBC, 1998; Davis-Floyd, 1993), problematizando os conflitos filosóficos, corporativos e financeiros envolvidos. Mais recentemente, a discussão sobre humanização e direitos humanos tem ocupado um espaço relevante no cenário internacional, mesmo em língua inglesa. Em setembro de 2000, uma conferência internacional de midwifery incluiu em seu programa várias referências a “humane care” e “humane approach” (International Midwives Conference). Em novembro de 2000 ocorreu a Conferência Internacional sobre Humanização do Parto (International Conference on the Humanization of Childbirth), apoiada por instituições como UNICEF e FNUAP (Fundos das Nações Unidas para Infância e para Assuntos de População), que teve entre seus objetivos principais discutir comoo conceito de maternidade segura pode incluir as questões sobre o cuidado humanizado ao parto; e como o cuidado humanizado à maternidade pode ser promovido como um direito humano. Assim, vemos que a busca por uma assistência humanizada ao parto é um tema de crescente interesse, ainda que os sentidos, conteúdos e finalidades desta forma de assistência sejam em grande medida um debate em aberto. 1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança, limites e possibilidades 26 É importante reafirmar que o desenvolvimento de propostas de mudança das práticas em direção à sua humanização (como vimos, seja qual for o sentido dado pelo ator social participante deste diálogo), por parte de várias instituições – inclusive do Ministério da Saúde - é muito marcante nos três anos decorridos desde que apresentamos este projeto de tese, criando um campo mais amplo de possibilidades de mudança concreta nos serviços que aquele vislumbrado originalmente. Temos várias iniciativas institucionais de mudança da assistência, em um contexto em rápida transformação. Por um lado, em resposta aos incentivos do Ministério da Saúde mas agindo desde anos antes deles, temos serviços e indivíduos que tentam trabalhar com este novo paradigma, que busca operar uma síntese entre a medicina baseada em evidências e o respeito ao direito das usuárias, com menor ou maior sucesso. Parte destes sujeitos se organizam a partir do final da década de 80 e no início da década de 90, fundam a Rede Nacional pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que inclui dissidentes representantes de segmentos diversos, entre eles profissionais de saúde – médicos (sanitaristas, obstetras, pediatras), enfermeiras obstetrizes; parteiras; usuárias; formuladores de políticas; diretores de serviços; grupos de mulheres; pesquisadores; acadêmicos; movimento popular de saúde, centros de práticas alternativas, entre outros. Mais recentemente, como veremos, temos em São Paulo a entrada do movimento popular de saúde diretamente na cena do parto, como no projeto de doulas conduzido pela Comissão de Saúde da Mulher do Movimento de Saúde da Zona Leste. Este projeto se traduz em outro tipo de militância, aquela que busca intervir com a assistência no momento de sua realização, agora como parte da equipe. Temos uma incipiente organização de consumidores, mães, pais e simpatizantes, lutando por seu direito de presença 27 na sala de parto, e ainda o surgimento de sites e listas eletrônicas (partonatural@Egroups, amigasdoparto@Egroups), onde estes sujeitos debatem e buscam assistência para o parto “natural”. O papel dos consumidores nas mudanças de políticas tem sido afirmado como um fator decisivo em vários contextos, locais ou internacionais. Esta importância é reconhecida nos vários documentos da OMS, e a representação dos consumidores é obrigatória na Colaboração Cochrane, não apenas na proposição de temas dos grupos de trabalho, mas também na leitura das revisões sistemáticas: nesses grupos, o que não é compreensível para as/os consumidores/as não é aceito para publicação. Os usuários na iniciativa têm seu próprio boletim e processos de treinamento para a leitura crítica das revisões (Cochrane, 2001, Bastian, 1994). A esta amplo e heterogêneo conjunto de atores sociais, incluindo setores não-governamentais e governamentais, identificados com as propostas de humanização do parto e do nascimento, chamaremos, genericamente, de movimento pela humanização do parto. Enfim, temos na cena um amplo leque de reações a estas propostas de mudança na assistência, positivas ou negativas, de apoio, restrito ou irrestrito, ou mesmo de rejeição, vinda de todos os mesmos setores envolvidos, sejam eles os profissionais – os médicos em geral e os gineco-obstetras e pediatras em especial; enfermeiras, obstetrizes ou não; administradores de serviços, públicos e privados; seguros e planos de saúde; usuárias dos serviços privados e públicos (e seus acompanhantes/maridos, que agora contam com uma lei para a garantia de sua presença no parto). Estas mudanças trazem um conjunto de questionamentos a cada um destes sujeitos que ainda estão para ser respondidos, num processo de ajuste e reação em que os limites e possibilidades das mudanças estarão sendo testados. Estas mudanças 28 envolvem de forma profunda estes sujeitos, propondo ou impondo novos papéis para cada um dos envolvidos no drama do parto. Quem pode atender aos partos, apenas o médico? Se não, isto não seria uma temeridade, em termos da segurança de mãe e criança? Se alguém mais, seria a enfermeira obstetriz, de nível superior? Qual seria o lugar da parteira, seja ela leiga, treinada, formada, estrangeira, etc.? Quem poderia estar presente no parto? Qual o papel, se algum, do marido- que segundo o folclore médico, corre risco sério de desmaiar? Qual o papel dos outros acompanhantes? E as doulas, ou monitoras perinatais, tão em moda, trazidas pela própria MPBEC? Como se preparar para estas novas presenças? Quais as novas conveniências, negociações de papéis e responsabilidade trazidas por estas interações? Estão em cheque também os lugares do parto – será o hospital de fato o melhor cenário? O questionamento à segurança de mãe e criança prometida pelo parto hospitalar tem sido uma das heresias trazidas pela medicina baseada em evidências, que coloca a possibilidade do parto em Casas de Parto ou mesmo no domicílio como uma das opções seguras a serem consideradas nos partos de baixo risco. E qual o sentido de ter os partos nos centros cirúrgicos? E na posição horizontal, porque manter as mulheres numa posição tão desfavorável ao bom desenrolar do parto, se há alternativas às quais os profissionais podem se ajustar? E o que fazer com o conceito de que o parto só é normal em retrospecto? Qual o lugar, se algum, do chamado parto dirigido, aquele em que cada uma das funções do corpo feminino no parto – contração, dilatação, expulsão, etc. – deve ser substituído por uma intervenção, manejado e ter seu tempo controlado? Como lidar com o fato muito concreto de que as construções das maternidades expressam uma certa concepção de assistência, fragmentada e 29 fragmentadora do processo fisiológico da parturição, que em seus tempos e movimentos estipulados para cada fase do trabalho de parto, “conspiram contra a evolução fisiológica”? Porque seguir acreditando que o período expulsivo não deveria durar mais que meia hora? Porque interromper as gestações quando estas completam 40 semanas, quando há evidência da segurança de aguardar mais tempo? Porque fazer uma mulher ser transferida de leito em leito durante o trabalho de parto, como em uma linha de montagem (Martin, 1987; Davis Floyd, 1992; Rothman, 1993), freqüentemente em diferentes andares de um prédio; primeiro no leito de admissão; depois no de pré-parto, fora do centro cirúrgico, até o fim do período de dilatação; para durante a delicada fase chamada de transição (fim da dilatação) a mulher ser rebocada para a sala de parto, no centro cirúrgico; depois do qual para uma maca num corredor ou uma sala de recuperação/pós-operatório; em seguida para o leito de puerpério – num movimento conforme a conveniência dos serviços porém atrapalhando em todos os sentidos a fisiologia do parto? No caso brasileiro, temos ainda a convivência paradoxal de dois problemas igualmente graves. Por um lado, temos sérios problemas de acesso aos serviços, com grandes áreas geográficas com déficits de leitos de maternidade, o que leva a uma distorção conhecida como “peregrinação por leito”, com freqüência durante o trabalho de parto e parto, e com gravesconseqüências sobre a saúde da mulher e do bebês (Tanaka, 1995). Em termos da segurança desta peregrinação, dentre as mortes maternas no período do estudo, 55% ocorreram durante a peregrinação.Este é o pólo “falta de assistência” do problema. Por outro lado, temos o uso abusivo, intensivo e desnecessário de procedimentos como a indução de parto, os fórceps de alívio, a manobra de 30 Kristeller, a episiotomia e a cesárea, levam a um maior consumo de material, mais complicações, mais custos, mais dias de internação e de incapacidade para as puérperas. Este é o pólo do “uso abusivo dos recursos de assistência” do problema. Este contexto reflete a permanência do que o professor Roberto Caldeyro-Barcia14 já apontava na década de 70: “A principal distorção da obstetrícia moderna é oferecer tecnologia inadequada, cara, potencialmente perigosa e dolorosa para os partos normais que delas não se beneficiam; o que muitas vezes resulta em não oferecer tecnologia adequada para os partos anormais para os quais esta tecnologia poderia ser útil” Pode-se dizer que no caso brasileiro, para ter relações sexuais sem ter filhos, ou para ter filhos, faz-se necessária uma “mediação cirúrgica” que muitas vezes faz parte das histórias de vida de forma tão inevitável quanto a menstruação ou a menopausa. (Diniz, 1997; Diniz e d’Oliveira 1998; Citeli e cols, 1996; Hotimsky, 2000; Rattner, 1994; Dalsgard, 2000). Este cirurgificação parece ter, no contexto brasileiro, uma utilidade ao mesmo tempo funcional e estética, reprodutiva e sexual. Há muito a cirurgia gineco-obstétrica parece ter avançado seu caráter “reparador” de órgão sexuais ‘lesionados’ pela reprodução, para assumir uma abordagem claramente estética, aquela da cirurgia plástica. A preocupação 14 O professor uruguaio Roberto Caldeyro-Barcia (1920-1996) foi um dos mais importantes personagens médicos do movimento pela humanização do parto. Fisiologista de formação, ele ficou conhecido internacionalmente por seus estudos pioneiros sobre a fisiologia da contratilidade uterina. Foi professor honorário de várias universidades estrangeiras e indicado ao prêmio Nobel de fisiologia. A partir dos seus próprios estudos, fez uma profunda crítica à própria prática e à obstetrícia médica, em especial às posições convencionais de parto, consideradas por ele um obstáculo à parturição por serem anti-fisiológicas. Escreveu já no final da década de setenta o clássico “Bases Fisiológicas e Psicológicas del Manejo Humanizado del Parto Normal” (CLAP/OPAS, 1979). 31 com o “estado” do aparelho genital e seu impacto sobre a vida sexual torna-se cada vez mais um objeto de trabalho dos médicos no Brasil (www.obsidiana); “o culto ao corpo no Brasil direcionou o bisturi dos cirurgiões plásticos para a intimidade de homens e mulheres” (Folha de São Paulo, 30/06/96). No caso brasileiro, onde a cirurgia plástica sexual vem cada vez mais se afirmando como especialidade, cresce a demanda por procedimentos como a “reconstrução de episiotomia” (“quando a costura feita no corte que facilita a passagem da criança fica ‘torta’ ”) e “estreitamento da vagina” ( “realizada em mulheres que já tiveram filhos e sofreram alargamento da vagina”)15. Todos estes procedimentos instauram e explicitam o modelo de assistência que considera o parto necessariamente como um agravo ao corpo feminino, necessitado de reparos posteriores. Neste contexto de redefinições e contradições, quais seriam os alcances e limites das propostas de humanização do parto? Como estes fatores – relativos à formação dos recursos humanos, às corporações profissionais, à estrutura física dos serviços, ao papel de suas lideranças institucionais, aos mecanismos de financiamento, à cultura sexual e reprodutiva, entre outros, influenciariam a mudança, no sentido de promovê-la ou de impedi-la? Qual tem sido o resultado das propostas de mudança, quando estas se confrontam com os limites do real? 15 Essa especialidade oferece ainda as ninfoplastias (reduções de pequenos lábios), o implante de pêlos pubianos, a correção da hipotrofia ou da hipertrofia do púbis, a correção do “clitóris enclausurado”; e, para os homens, o engrossamento ou o alongamento do pênis, a neurotomia seletiva do pênis (para tratar a ejaculação precoce), a correção de ptose (queda) do saco escrotal, entre outros. 32 Capítulo 2 Material e Método 2.1. Objetivos do estudo 2.1.1. Objetivo Geral Este trabalho tem como objetivo estudar as possibilidades e os limites da implementação das propostas sobre a assistência humanizada ao parto, tomando como referência as recomendações da OMS (1996) e como caso para estudo dois serviços financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no município de São Paulo, no período de 1998 a 2000. Nesse sentido, buscará compreender como, se e em que circunstâncias os fatores extratécnicos (culturais, institucionais, corporativos, financeiros, do espaço físico, entre outros) influenciam a adoção e a adesão de profissionais a essas novas propostas, rotinas e procedimentos na assistência ao parto, assim como identificar os argumentos que buscam justificar essa adesão ou a resistência às mudanças. 2.1.2. Objetivos Específicos 2.1.2.1. Estudar os processos de mudança na assistência ao parto em dois serviços de assistência ao parto identificados com o modelo de humanização, buscando identificar as características das instituições e dos recursos humanos associados à mudança ou à permanência de elementos vinculados aos modelos tradicionais. 2.1.2.2. Estudar, nesses serviços, a percepção de profissionais sobre as mudanças nas práticas de assistência no cotidiano do seu trabalho, com 33 destaque para as contradições entre a evidência e a prática; as prescrições de mudança e os limites encontrados. 2.1.2.3. Estudar como os administradores dos serviços estudados propõem, implementam e monitoram esses processos de mudança institucional e como identificam e manejam possibilidades e limites dos processos. 2.1.2.4. Estudar se, quando e em que circunstâncias a experiência de situações injustas ou violentas na assistência ao parto são percebidas como contrárias à idéia de humanização pelos sujeitos envolvidos, seja sob a forma de violação de direitos estabelecidos, seja sob a forma de maus tratos ou de inadequação da assistência. 2.1.2.5. Contribuir para a reflexão sobre os direitos humanos na assistência ao ciclo gravídico-puerperal e suas relações com as propostas de humanização dessa assistência. 34 2.2. Material e Método 2.2.1. Hipótese Este trabalho parte da hipótese de que o movimento pela humanização do parto tem um papel central na promoção do diálogo entre os diversos sujeitos sociais atualmente em conflito na assistência ao parto, na direção de um novo arranjo de assistência, orientado tanto por mais respeito à evidência empírica da segurança e eficácia dos procedimentos, quanto pela maior promoção dos direitos humanos das pacientes. Esse novo paradigma da assistência, baseado na busca da síntese entre a evidência científica e a promoção dos direitos humanos, encontra, para sua implementação na prática, um conjunto de desafios – institucionais, corporativos, financeiros, de estrutura física, de formação dos recursos humanos, da cultura sexual e reprodutiva, entre outros –, que estão sendo enfrentados, com maior ou menor sucesso, por alguns serviços. Para desenvolver essa hipótese, este trabalho utilizará uma combinação de metodologias qualitativas, incluindo observação de plantões em duas maternidades identificadas com o modelo de humanização na cidade de São Paulo; análise das discussões realizadas em encontros sobre o tema no período de 1998 a 2000; do tratamento dado ao tema em órgãos da imprensa médica e documentos normativos a respeito da humanização do parto; da produção de depoimentos de profissionais e parturientes por meio de entrevistas semi- estruturadas e conversas informais durante
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