Buscar

IMPRESSÕES E ASSERÇÕES DO NARRADOR EM HE

Prévia do material em texto

IMPRESSÕES E ASSERÇÕES DO NARRADOR EM “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR
É nítido e recorrente o fato de que Clarice Lispector tem uma forma de expressão muito pessoal, uma vez que tenta aproximar o tempo da escrita com o ato de pensar a própria escrita. Daí emerge também outro fato marcante com relação ao estilo da escritora, que é a inovação, assentada numa ruptura da tradição literária como um todo. Isso pode ser notado em A hora da estrela, último romance escrito por Clarice em vida, no qual ela confunde os papéis do narrador através da figura de Rodrigo S.M., um dos pontos mais estilisticamente extraordinários e inovadores do livro. Através da invenção desse narrador – que é, também, um personagem que se assume como tal no decorrer da narrativa – a escritora nos conta a história da personagem Macabéa.
Segundo Nunes (1989), uma das histórias que se conjugam em A hora da estrela, é a que conta a vida de uma moça nordestina que o narrador, Rodrigo S.M., surpreendeu no meio da multidão. A questão do foco narrativo em A hora da estrela é, sem dúvida, um dos ápices do romance. Apesar de desenvolver em seus romances majoritariamente personagens femininas, Clarice Lispector transcende os limites da experiência pessoal da mulher e seu ambiente familiar. No romance em questão, a escritora lança mão de um narrador-personagem masculino que em diversos momentos da obra faz comentários a respeito da questão da migrante nordestina um uma metrópole como o Rio de Janeiro, fazendo reflexões acerca do papel do escritor moderno perante uma sociedade que trata desigualmente os desiguais.
Este artigo busca analisar de que maneira as impressões e asserções feitas pelo narrador em A hora da estrela
 nos revelam o seu perfil através das situações que narra, notando ainda de que modo suas avaliações podem exprimir seus valores e crenças denotados, de certa forma, no transcorrer da narrativa. Além disso, pretende-se observar de que maneira suas interferências oriundas de sua onisciência são recorrentes no transcorrer da obra a fim de determinar o destino das personagens e da história relatada.
Fundamentação teórica
A narrativa de A hora da estrela não se limita em refletir uma imagem fiel à realidade como se fosse um espelho. Segundo Paganini (2000, p. 10), essa narrativa trabalha na verdade como um “espéculo”, refletindo, sondando e questionando a realidade na linguagem. Uma das inovações trazidas por Clarice para a literatura brasileira é o registro fluxo de consciência através da linguagem. A fim de entendermos o que vem a ser isso, basear-nos-emos na definição de Norman Friedman sobre análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência. Pode-se definir o primeiro “[...] como um aprofundamento nos processos mentais da personagem por uma espécie de narrador onisciente; o segundo, um aprofundamento maior, cuja radicalização desliza para o fluxo de consciência onde a linguagem perde os nexos lógicos e se torna caótica” (KADOTA, 1997, p. 74). No caso de Clarice Lispector, não seria necessariamente uma linguagem caótica, apenas a tentativa – muito bem sucedida, diga-se de passagem – de aproximar o tempo da escrita com o ato de pensar a escrita propriamente, daí o fato de seus livros deixarem de conter simplesmente histórias para conter impressões, as suas impressões. Não à toa, tinha consciência de sua condição de (não) escritora, uma vez que se considerava uma “sentidora, intuitiva”. 
Essas intuições e sensações serão fundamentais para a delimitação da discussão do foco narrativo do romance em questão. Leite (1985) cita Friedman
, que para chegar a uma tipologia sistemática do narrador começa por levantar as principais questões a que se necessita responder para tratar do narrador: 
1) quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou terceira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? (Por cima? Na periferia? No centro? De frente? Mudando?); 3) que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor (palavras? Pensamentos? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação disso tudo?); 4) a que distância ele coloca o leitor da história (Próximo? Distante? Mudando?)? (LEITE, 1985, p. 25)
A tipologia do narrador que Friedman descreve vai buscar fornecer elementos para responder a essas questões em cada caso. Para ele, “a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo, mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena” (FRIEDMAN, apud LEITE, p. 26). A tipologia de Friedman engloba algumas categorias, as quais descreveremos brevemente.
A primeira categoria que Friedman propõe em sua tipologia é o “autor onisciente intruso”. Esse tipo de narrador se coloca como bem deseja dentro da narrativa e possui a liberdade de narrar à vontade, podendo colocar-se em qualquer posição, para além dos limites do tempo e do espaço. Suas próprias palavras, pensamentos e convicções predominam como canais de informação. Essa categoria será objeto de percepção e análise neste artigo, uma vez que, como procuraremos demonstrar, a figura de Rodrigo S. M. se encaixa exatamente nesse perfil de narrador onisciente intruso.
A segunda categoria é o “narrador onisciente neutro”, que difere da primeira pelo fato de não dar instruções, não fazer comentários nem expressar o que sente durante o relato. Tal narrador caracteriza as personagens, descrevendo-as e explicando-as para o leitor e, embora fale em terceira pessoa, sua presença interpondo-se entre o leitor e a história é sempre bastante clara.
Como terceira categoria, é apresentado o “eu como testemunha”, o qual narra em primeira pessoa, sem a mediação ostensiva de uma voz exterior, algo de que ele participa ou participou, podendo ser o protagonista ou uma personagem secundária. Trata-se de um “eu” interno à narrativa que pode observar, desde dentro, os acontecimentos e repassá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Por outro lado, esse narrador-personagem é necessariamente mais limitado, uma vez que não tem acesso aos pensamentos e percepções das personagens.
Já a quarta categoria, “narrador protagonista”, possui aspectos da terceira, já que também não tem acesso ao estado mental das demais personagens, ou seja, não é onisciente. Nesse caso, narra somente suas percepções e pensamentos, podendo assim alterar a distância entre leitor e história.
Já as categorias “onisciência seletiva múltipla” e “onisciência seletiva” são muito similares, com a perda do “alguém” que narra e a história, o qual vem através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. A única diferença é que na primeira trata-se de várias personagens, enquanto na segunda de apenas uma.
Há ainda o “modo dramático”, que elimina o narrador e os pensamentos das personagens, de modo que o leitor deve deduzir os sentimentos e significados a partir das ações e falas das personagens. E, por fim, a categoria “câmera”, que seria o ponto máximo de exclusão do autor, uma vez que as cenas são transmitidas como flashes da realidade. 
Em A hora da estrela, temos um claro rompimento de Clarice Lispector em relação à realidade da tradição literária e em especial em relação à sua obra como um todo. A opção por um narrador masculino pela primeira vez gerou críticas negativas em virtude do excesso de subjetivismo, mas a escritora tinha como objetivo propor um jogo de transformação, “[...] assumindo de maneira explícita um fingimento que afirma a autonomia da literatura face à realidade seja ela externa ou interna do autor”. (PAGANINI, 2000, p. 12).
A onisciência intrusa do narrador Rodrigo S.M. 
Afirmar que o foco narrativo de A hora da estrela é em primeira ou em terceira pessoa não é uma questão tão simples de ser respondida, uma vez que se trata de um dos pontos mais inovadores e estilisticamenteextraordinários do livro. A autora inventa um narrador – que, portanto, é também um personagem e se assume dessa forma durante a narrativa – para contar a história de Macabéa. Dessa forma, o narrador, embora pertença à história, não relata uma trama que ocorrera com ele, mas sim com a sua personagem inventada, a qual poderia perfeitamente ser real.
É através dos relatos deste narrador e de suas impressões que podemos construir o seu perfil e determinar de que maneira ele se propõe a participar da história que nos contará. Ele tem indagações às quais não conseguiu obter respostas e como numa reflexão filosófica a respeito da própria existência, afirma: “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?” (HE, p. 11). 
Além disso, o narrador interfere no destino da história, o que é própria do foco narrativo em primeira pessoa com narrador onisciente. Segundo as categorias propostas por Friedman, Rodrigo S. M. seria um narrador onisciente intruso, uma vez que tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, adotando um ponto de vista divino, como diria Sartre, para além dos limites do tempo e do espaço. Essa “divinização” de quem relata a história denota o poder que tem o narrador de conduzi-la pelos caminhos que bem quiser, inclusive em relação à existência dela: “Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo.” (HE, p. 11). 
A onipotência do narrador faz com que ele crie e conduza o destino da história. Rodrigo S. M. deixa clara sua convicção a respeito daquilo que vai criar, tem nítida consciência a respeito dos efeitos que sua narrativa causará tanto em que a ler quanto nos desdobramentos em relação a Macabéa dali em diante. Tanto que chega a afirmar aos leitores que se fosse possível mudaria o destino das coisas: “juro que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas.” (HE, p. 35). Até mesmo em relação ao relacionamento de Macabéa com Olímpico de Jesus, Rodrigo S. M. parece interferir, estando o futuro do casal condicionado à sua onisciência: “Pareciam demais irmãos, coisa que – só agora estou percebendo – não dá para casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso. Casariam ou não? Ainda não sei” (HE, p. 47). O narrador chega, inclusive, a pedir que todos se responsabilizem pelo destino da personagem, dividindo com ele tal responsabilidade:
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostra-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. E se for triste a minha narrativa? Depois na certa escreverei algo alegre, embora alegre por quê?
(HE, p. 19, grifo meu)
Embora a narrativa desvende a problemática interior da protagonista que vai sendo apresentada, o narrador, à medida que nos vai fazendo conhecê-la melhor, também nos mostra – e vai concomitantemente descobrindo – a sua própria identidade “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.” (HE, p. 20). E como se estivesse notando que seu foco principal – o relato da história – parece escapar-lhe em alguns momentos, imediatamente ele tenta retomar tal foco: “Mas voltemos a hoje” (HE, idem). Porém, logo adiante volta a predominar o papel do narrador onisciente e intruso, com o predomínio de suas próprias palavras, pensamentos e percepções, uma vez que ele tem consciência sobre o que vai escrever e novamente admite sua interferência direta na história e nos desdobramentos desta.
Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca. (...) O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal.
(HE, p. 21)
A sua consciência sobre ter o destino da história nas suas mãos existe, embora em alguns momentos ele não tenha certeza sobre o que falava: “Há poucos fatos a narrar e eu ainda não sei o que estou denunciando” (HE, p. 28). E embora o narrador faça parte da história e conte uma trama ocorrida com a sua personagem inventada, e que poderia ser real, ele afirma não tê-la inventado e demonstra certa impaciência diante do que está para narrar:
O definível está me cansando um pouco. Prefiro a verdade que há no prenúncio. Quando eu me livrar dessa história, voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios. Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.
(HE, pp. 29 e 30)
Rodrigo S.M. demonstra sua preocupação em dizer tem consciência da existência da Macabéa e que, embora o contrário não seja uma verdade, no decorrer de seus relatos continua procurando não perdê-la como referencial norteador da história. No entanto, inconscientemente – ou conscientemente – sua narrativa mistura-se com seus comentários e percepções sobre a situação, de modo que ele precisa se lembrar de voltar ao foco central, que é a história da personagem:
Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.
Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar.
(HE, p. 33)
Em muitos comentários feitos pelo narrador, podemos perceber a sua simpatia – ou compadecimento – pela jovem migrante nordestina ou a sua antipatia por ela, que muitas vezes transparece ser um sentimento de repúdio a tal situação. O primeiro sentimento é notado através de singelezas que registram a sensação de alegria devida a situações que, além de raras, impressionam pela simplicidade de uma vida marcada por sofrimento e ausência de sensações prazerosas. Tanto que o narrador tem consciência dessa realidade mesmo ao relatar algum momento de felicidade ainda que singela, quantifica e contrasta as sensações desse momento:
Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem fogos de artifício.
(HE, p. 35, grifo meu)
Porém, o contrastante sofrimento da personagem sobressai imensamente, de modo que as a antipatia traduz-se mais como um repúdio às condições de vida daquela jovem e sofrida alagoana, que muitas vezes mal tinha consciência de seu próprio sofrimento. E o narrador compadece-se disso:
Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. (...) A maior parte do tempo tinha sem saber o vazio que enche a alma dos santos.
(HE, pp. 37 e 38) 
Esse compadecimento para com Macabéa é expresso através das sensações que o narrador apresenta quando se vê diante da imagem da personagem em um momento mais intimista, já que pela onisciência que é própria da figura dele. O realce dado às situações dolorosas é contrastante, mesmo diante de outra pequena alegria despercebida:
Desconfio um pouco de sua facilidade inesperada pedir favor. Então precisava ela de condições especiais para ter encanto? Por que não agia sempre assim na vida? E até ver-se no espelho não foi tão assustador: estava contente, mas como doía.
(HE, p. 42)
É possível perceber que os canais de comunicação do narrador em A hora da estrela são predominantemente as suas próprias palavras, impressões, pensamentos e percepções.Dessa forma, sua onisciência intrusiva se dá porque ele interfere diretamente no destino das personagens, pois ele inventa uma personagem, conduzindo inclusive o destino e os desdobramentos da vida dela. Esse narrador que inventa essa personagem – ou não inventa, uma vez que dela tem consciência, reconhece-a em diversas situações e a conduz por caminhos diversos – acaba por ser personagem da história, mesmo que apenas por conduzi-la da forma como bem quer por ser o escritor encarregado de nos relatá-la.
A metalinguagem na narrativa em A hora da estrela
Além de conduzir os destinos das personagens na história e seus os acontecimentos e desdobramentos, Rodrigo S. M. ainda se apropria de sua posição de narrador a fim de realizar a metalinguagem, explicando a própria obra e o porquê de sua escrita se dar de determinada forma. Na tentativa de adiar ao máximo o início da história, como que para poupar o leitor do sofrimento em relação à personagem que será descrita, por vários momentos o narrador questiona-se a respeito do seu modo de escrever. E logo nas primeiras páginas da obra é possível observar o recorrente uso dessa estratégia por parte de Rodrigo S. M. a fim de rodear o imaginário do leitor, com o qual ele dialoga e lança perguntas como se estivesse sendo questionado. O narrador demonstra inclusive certa preocupação com o que os leitores pensarão a seu respito a partir do que vai escrever e, conseqüentemente, do que eles vão ler:
E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto.
(HE, p. 18)
Segundo Nunes (1989, p.162), “dizendo como será a personagem, Rodrigo S. M. fala da qualidade das palavras, que agrupará em frases, para configurá-la”. Essa exigência de simplicidade no uso das palavras decorre do prévio retrato da moça nordestina que é feito pelo próprio narrador:
Sim, mas não esquecer que para escrever não que para escrever não-importa-o-quê o meu material é básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho vontade de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão virará ouro”
(HE, p. 14)
A preocupação inicial do narrador é em fincar e sustentar suas percepções e impressões a respeito da história que nos irá relatar. Apesar disso, ele se sente inseguro, pois não sabe como narrar uma história que é “simples demais”, mas dessa forma vai cativando o leitor a fim de conquistar sua atenção, visto que a simplicidade dos fatos e mais ainda da personagem podem ser uma espécie de atrativo a menos. Porém traça este diálogo com seus interlocutores em busca da atenção para a história que irá contar.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo.
(HE, p. 19)
Ainda na tentativa de explicar a que se propõe a obra, continuando esse exercício de metalinguagem, o narrador continua tentando cativar seus interlocutores, através da mais uma minuciosa explicação a respeito do fazer narrativo, dos relatos a que se propõe. E a fim de realizar tal fato, novamente relata para que serve o que está fazendo e, principalmente, sobre o instrumento lhe permite concretizar tal objetivo – a palavra:
Tudo isso, sim, a história é a história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.
(HE, p. 20)
Ciente de que a história que irá contar diz respeito a uma história simples, a personagens simples com um cotidiano monótono e sem graça, Rodrigo S. M. prefere não lançar mão de recursos menos sofisticados para relatar sua história, mesmo porque se um de seus objetivos é mostrar de que forma vivem os marginalizados, deve-se aproximar ao máximo dessa simplicidade de vida. E é através da linguagem a melhor maneira para atingir tal objetivo:
Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa.
(HE, p. 36)
E Rodrigo S. M. continuará se posicionando em relação ao que escreve e á personagem tendo como base a linguagem de que se utiliza. Um recurso utilizado pelo narrador a fim de marcar as inúmeras digressões no decorrer da história é o uso dos parênteses para introduzir um comentário. E a metalinguagem também é realizada mediante o uso desse artifício pelo narrador, quando este pondera a respeito do cuidado que deve ter para não perder a simplicidade dos seus relatos: “(Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei.)”. O mesmo recurso é utilizado para novamente cativar a atenção do leitor para o fato de que se está descrevendo vagarosamente cada momento a fim de prepará-lo para o que virá adiante:
(Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar, mas deve haver um réu.)
(HE, p. 39)
Considerações finais
É perceptível, portanto, que são várias as formas e recursos utilizados por Rodrigo S. M. para inserir as suas percepções e pensamentos expressados através de impressões e asserções no transcorrer da obra. Sá (1979, p. 212) comenta que “o narrador se escreve todo através de Macabéa, por entre seus próprios espantos. Sua onipotência se estende ao leitor, com o qual dialoga constantemente. A função fática é uma tônica dessa narrativa”. Para Clarice Lispector, todo narrador inventa o mundo à sua imagem e semelhança; Rodrigo S. M., pois, constrói e narra a história em A hora da estrela à imagem e semelhança das suas percepções advindas de sua onisciência onipotente.
Buscou-se aqui demonstrar como o narrador em A hora da estrela exerce influência indiscutível nos rumos que a história e seus personagens tomam. Conforme já dito anteriormente, responder se o foco narrativo da obra é em primeira ou em terceira pessoa não é uma tarefa tão simples. Nem é nosso objetivo aqui fazer uma afirmação categórica quanto a esse aspecto, porém não há dúvidas de que.a onipotência do narrador permite-lhe criar destinos e sua onisciência transporta todos os detalhes para as páginas da obra, as quais ele conduz de maneira deliberadamente intrusiva. Seus pensamentos e suas palavras são o duto principal que conduz a história aos seus desdobramentos. 
É facilmente perceptível, portanto, que a questão do foco narrativo é um dos pontos altos da novela. Não há limites para os modos de articulação em uma narrativa porque é ilimitada a combinação possível de signos “no engendramento da teia ficcional, e a postura do narrador, em relação às personagens, amplia ainda mais essa possibilidade criativa, oferecendo através de seu ângulo de visão uma fresta por onde se pode descortinaro mundo, o seu mundo” (KADOTA, 1997, p. 71). E a possibilidade criativa da narrativa, além de ilimitável, é surpreendente e inovadora, demonstrando a bela e sensível capacidade inventiva de Clarice Lispector.
Referência bibliográfica
KADOTA, N. P. A tessitura dissimulada: o social em Clarice Lispector. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.
LEITE, L. C. M. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NUNES, B.. O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1989.
PAGANINI, J. Engajamento poético e transfiguração. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 10. Brasília, novembro/dezembro de 2000.
SÁ, O. A escritura de Clarice Lispector. Vozes, Petrópolis: 1979.
� A obra LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, será indicada por HE nas referências.
� Ver FRIEDMAN, N. Point of view in fiction, the development of a critical concept. In: STEVICK, P. The Theory of the Novel. New York, The Free Press, 1967.
PAGE 
5

Continue navegando