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VÍTOR DA FONSECA MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Significação Psiconeurológica dos Factores Psicomotores VÍTOR DA FONSECA MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Significação Psiconeurológica dos Factores Psicomotores Neste livro abrimos um novo paradigma, mais clínico que teórico, com a abordagem psiconeurológica da Observação Psicomotora na Criança, com base na apresentação da Bateria Psicomotora (BPM), instrumento original de observação psicoeducacional cuja construção só foi possível ao longo de vinte anos de convivência dinâmica com inúmeros casos clínicos. O observador não se limita a uma atitude reservada, fria e neutra com o observado. Na observação psicomotora, o observador envolve-se numa mediatização intensa, criativa e mesmo lúdica, encorajando e reforçando a criança a evidenciar o seu potencial como processo e não como produto de comportamento. A BPM não procura medir o produto motor, mas sim a qualidade dos processos psíquicos que estão na origem da sua integração, programação, elaboração e regulação. EDITORIAL NOTÍCIAS L DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA VITOR DA FONSECA I S B N 972-46 .-0572-8 © Vítor da Fonseca Capa: Jorge Machado Dias Direitos reservados por Editorial Notícias N O B A R - Grupo Editorial, Lda. Cruz da Carreira, 4-B - 1100 L I S B O A Edição n.° 17 118-0492 Depósito legal n.° 54 384/92 Fotocomposição e fotolitos: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. I VÍTOR DA FONSECA MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Significação Psiconeurológica dos Factores Psicomotores EDITORIAL NOTÍCI BIBLIOTECA MUNICIPAL O D E M I R A Obras publicadas nesta colecção: 1 — VOCABULÁRIO TÉCNICO E CRÍTICO DA PEDAGOGIA E DAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO J. Leif 2 — CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA GÉNESE DA PSICOMOTRICIDADE (4.» edição) Vítor da Fonseca 3 — O QUOCIENTE I N T E L E C T U A L Michel Tort 4 — A E S C O L A , UMA MÁQUINA D E V O R A N T E Pierre Joncour 5 — DIÁRIO DE UM PROFESSOR (2.' edição) Albino Bernardini 6 — PSICOLOGIA E PEDAGOGIA Alberto L . Merani 7 — NATUREZA HUMANA E EDUCAÇÃO Alberto L. Merani 8 — INSUCESSO E DESINTERESSE NA E S C O L A PRIMÁRIA Liliane Lurçat 9 — AS CRIANÇAS, O S E X O E NÓS Pierre Hanry 10 — O DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO DA CRIANÇA A. A. Liublinskaia 11 — EDUCAÇÃO E S P E C I A L PROGRAMA DE ESTIMULAÇÃO P R E C O C E Vítor da Fonseca 12 — DESENVOLVIMENTO HUMANO DA FILOGÉNESE À ONTOGÉNESE DA MOTRICIDADE Vítor da Fonseca 13 — E S C O L A , E S C O L A , QUEM ÉS TU? (4." edição) Vítor da Fonseca e Nelson Mendes 14 — UMA INTRODUÇÃO ÀS DIFICULDADES D E APRENDIZAGEM Vítor da Fonseca 15 — O ENSINO POR COMPUTADOR Alex Mucchielli 16 — TEORIA DO JOGO António Cabral 17 — QUANDO OS PAIS SE SEPARAM Françoise Dolto 18 — MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA SIGNIFICAÇÃO PSICONEUROLÓGICA DOS FACTORES PSICOMOTORES Vítor da Fonseca INTRODUÇÃO A apresentação deste livro como que encerra um ciclo da nossa actividade clínico-terapêutica e científico-pedagógica dedicada à Psi- comotricidade, desde os lançamentos, também nesta mesma colecção, das obras: — Contributo para o Estudo da Génese da Psicomotricidade (obra de introdução); — Escola, Escola, quem Es tu? — Perspectivas Psicomotoras do Desenvolvimento Humano (obra dedicada às diferentes escolas de desenvolvimento psicomotor); — Desenvolvimento Humano: da Filogénese à Ontogénese da Motricidade (obra centrada nos seus fundamentos antropológi- cos, psiconeurológicos e psicobiológicos), até ao presente trabalho, procurámos essencialmente construir um dado corpo teórico e abordar a sua problemática, as suas hipóteses, os seus axiomas e princípios num ângulo transdisciplinar integrado, visando uma busca sistemática sobre o papel da motricidade no desenvolvi- mento psicológico e no processo de aprendizagem, quer em crianças «normais», quer em crianças com deficiências ou dificuldades. Neste livro abrimos um novo paradigma, mais clínico que teórico, com a abordagem psiconeurológica da observação psicomotora na criança, com base na apresentação da bateria psicomotora (BPM), ins- trumento original de observação psicoeducacional cuja construção só foi possível ao longo de vinte anos de convivência dinâmica com inú- meros casos clínicos. A BPM não é mais do que um conjunto de situações ou tarefas que procuram analisar dinamicamente o perfil psicomotor da criança (perfil intra-individual), procurando cobrir a sua integração psiconeu- rológica, em concordância privilegiada com a organização funcional 5 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA do cérebro proposta pelo grande psiconeurólogo A. R. Luria, para além de equacionar a relação de tal perfil, com o seu potencial dinâmico e a sua propensibilidade de aprendizagem. A BPM consiste numa série de simples tarefas distribuídas por sete factores psicomotores: tonicidade (T), equilibração (E), lateralização (L), noção do corpo (NC), estruturação espácio-temporal (EET), pra- xia global (PG) e praxia fina (PF), que serão apresentados em termos protocolares e explorados, ao longo do livro, na sua significação psi- coneurológica. Não se trata de um exame neurológico clássico, que como se sabe foi desenvolvido em adultos com desordens neurológicas óbvias, e como tal não pode ser um instrumento adequado para avaliar a inte- gridade psiconeurológica de uma criança em desenvolvimento (Bax 1970), nem se trata de uma avaliação psicométrica tradicional, pois o seu objectivo não é reduzir o potencial humano a uma escala numérica. A observação psicomotora, em certa medida, quebra regras das observações neurológicas e psicológicas clássicas, uma vez que se cen- tra numa interacção intencional e recíproca entre o observador (media- tizador) e o observado (criança), aqui entendido como um ser humano único, holístico, sistémico e evolutivo, capaz de modificabilidade e de adaptabilidade. A BPM não procura atingir um valor numérico ou um quociente psicomotor imutável ou infalível; pelo contrário, procura avaliar dina- micamente o potencial humano de aprendizagem que cada criança transporta consigo como sua característica intrínseca. Não se trata de uma avaliação convencional, mas sim dinâmica, visando a possibili- dade de modificar a capacidade psicomotora manifestada e evidenciada pela criança. O observador não se limita a uma atitude reservada, fria e neutra com o observado. Na observação psicomotora, o observador envolve- -se numa mediatização intensa, criativa e mesmo lúdica, encorajando e reforçando a criança a evidenciar o seu potencial como processo e não como produto de comportamento. A BPM não procura medir o produto motor, mas sim a qualidade dos processos psíquicos que estão na origem da sua integração, programação, elaboração e regulação. Não é, portanto, surpreendente que o diagnóstico psicomotor da criança seja muitas vezes considerado como pouco rigoroso ou mesmo não fidedigno. A necessidade da observação psicomotora parece justificar-se porque: 1) existe uma grande abundância de trabalhos de investigação que relacionam a integridade psicomotora com a aprendizagem efi- ciente; 6 INTRODUÇÃO 2) se reconhece a existência de dificuldades de aprendizagem e de perturbações de comportamento em crianças que não podem ser categorizadas como deficientes (paradigma da criança em risco, da criança paranormal ou parapatológica e da criança com dis- funções neurológicas mínimas — soft neurological signs de Tou- wen e Prechtl 1970); 3) a prevenção, a compensação, a reeducação e a terapia de dis- funções psicomotoras podem impedir que um problema ligeiro se transforme num problema mais sério. A BPM não passa, portanto, de um instrumento de identificação (screening tool) da integridade psicomotora e psiconeurológica da crian- ça, pois ela não fornece informação neurológica e patológica muito detalhada. Por isso, não deve ser utilizada para diagnosticar déficesneurológicos nem diagnosticar disfunções ou lesões cerebrais. A observação psicomotora não substitui, consequentemente, os exa- mes neurológicos ou psicológicos estandartizados efectuados por espe- cialistas bem treinados. Todavia, qualquer pessoa com algum síndroma orgânico cerebral (apraxias, agnosias, ataxias, assinergias, assomatogno- sias, etc.) não poderá realizar ou realizará de forma imperfeita e impre- cisa as tarefas componentes da BPM, uma vez que as hiper ou hipo- tonias, as paratonias, as adiadiococinesias, as sincinesias, as desordens vestibulares, posturais e de equilibração, as confusões de lateralização e direccionalidade, as assomatognósias, as dismetrias, as dissincronias, as dispraxias e as perturbações da sensibilidade e da motricidade são sintomas patológicos que se podem manifestar em qualquer idade. Quando é administrada cuidadosamente, a BPM tem demonstrado a sua utilidade e a sua implicação educacional, como evocam as apli- cações já efectuadas por vários especialistas envolvidos nas nossas acções de divulgação e sensibilização, tais como psiquiatras, psicólo- gos, terapeutas e reeducadores de psicomotricidade, professores do en- sino especial, professores de educação física, enfermeiros de reabilita- ção, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, etc. É óbvio que a BPM requer ainda muitos afinamentos, pois o seu suporte clínico-científico, embora apresentando limitações, é promissor, necessitando de mais esforços investigativos para demonstrar a sua inquestionável utilidade, uma vez que, como modelo original de obser- vação dinâmica, procura continuamente aperfeiçoar-se em prol da opti- mização do potencial de aprendizagem da criança. A nossa experiência clínica e reeducativa ao longo de duas déca- das, onde observámos cerca de 3000 casos, levou-nos a adquirir uma rica e variada actividade de diagnóstico e prescrição com crianças e jovens em vários centros de observação, consultórios e clínicas. Dos fundamentos e dos processos de observação que fomos capazes de con- 7 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA cretizar damos conta neste modesto manual de observação psicomo- tora. A aproximação, agora esboçada, entre a psicomotricidade e a psi- coneurologia justifica-se, na nossa óptica, por dois motivos. O primeiro, por ser uma tentativa para aprofundar o estudo científico da Psicomo- tricidade como ramo de conhecimento. O segundo, por tentar introdu- zir uma ciência que estuda as relações entre o comportamento humano e as funções do seu sistema nervoso — a psiconeurologia —, ramo de conhecimento fundamental para o desenvolvimento não só da psi- comotricidade, como da aprendizagem e da educação. Dizemos psiconeurologia e não neuropsicologia porque o primeiro termo designa uma área de estudo que respeita às desordens de com- portamento associadas com disfunções cerebrais nos seres humanos, termo distinto do segundo, que respeita as relações entre o comporta- mento e o sistema nervoso em organismos normais, usualmente asso- ciado a modelos experimentais em animais. Psiconeurologia (e/ou signi- ficação psiconeurológica) compreende, portanto, o estudo das disfunções de comportamento e de aprendizagem que têm uma base neurológica, i . e., desordens, dificuldades ou desvios de comportamento que encerram um problema de aprendizagem (ex.: disgnosia, dispraxia, dislexia, etc.) e não um problema de incapacidade de aprendizagem (ex.: agnósia, afasia, apraxia, alexia, etc). Postos estes pressupostos, que consideramos relevantes, o manual que agora apresentamos aborda, no primeiro capítulo, breves revisões históricas da psicomotricidade e da psiconeurologia, com alguns com- plementos filogenéticos e ontogenéticos da motricidade e da matura- ção do sistema nervoso. O segundo capítulo analisa alguns modelos da relação cérebro com- portamento e apresenta o modelo de A. R. Luria sobre a organização funcional do cérebro humano. O terceiro capítulo apresenta os fundamentos psiconeurológicos da bateria psicomotora que integra a apresentação, o protocolo de obser- vação, a cotação e a significação psiconeurológica dos sete factores: tonicidade e equilibração ( l . a unidade funcional luriana); lateraliza- ção, noção do corpo e estruturação espácio-temporal (2/ unidade fun- cional luriana); praxia global e praxia fina (3." unidade funcional luriana). No quarto capítulo, são levantadas algumas sínteses entre a psico- motricidade e a psiconeurologia, com a revisão dos paradigmas e sub- paradigmas filogenéticos e ontogenéticos, culminando com a apresen- tação do Sistema Psicomotor Humano (SPMH) e das suas propriedades sistémicas. O quinto capítulo, termina com algumas implicações da observação na reeducação e reabilitação psicomotora de crianças com dificuldades 8 INTRODUÇÃO de aprendizagem e de comportamento, com a introdução de estratégias de interacção e de intervenção. Para a concretização deste manual de observação vários agradeci- mentos teremos de realçar. De entre eles queremos destacar os inco- mensuráveis apoios de Melo Barreiros, Vítor Soares e Clementina Di- nis. Neste âmbito não podemos esquecer o encorajamento de Baptista Lopes e de Virgínia Caldeira, que muito nos ajudaram a materializar este trabalho. Não podemos também esquecer todos os colegas e alu- nos do Departamento de Educação Especial e Reabilitação da Facul- dade de Motricidade Humana, que nos têm dado o reforço necessário para prosseguir nesta actividade de produção teórico-prática. Um especial e final agradecimento cabe aqui a todas as crianças e jovens que observámos no nosso percurso clínico, uma vez que elas nos têm ensinado muito através dos seus comportamentos e interac- ções. As crianças e os jovens são o recurso mais precioso de uma sociedade. Por esse facto histórico-social, nenhuma parte dos seus po- tenciais humanos deve ser desperdiçada ou minimizada. No fundo, a observação psicomotora que tentamos aqui perspecti- var procura deslumbrar para cada caso, algumas vias para a modifica- bilidade máxima da sua disponibilidade psicomotora. Nova Oeiras, Setembro de 1990 VÍTOR DA FONSECA 9 CAPÍTULO I COLOCAÇÃO DO PROBLEMA BREVE REVISÃO HISTÓRICA DA PSICOMOTRICIDADE Abordar numa breve revisão histórica a origem e a evolução do conceito da psicomotricidade é, de alguma forma, estudar a significa- ção do corpo ao longo da civilização humana. Da civilização oriental à civilização ocidental, e dentro desta, desde a civilização grega, passando pela Idade Média, até aos nossos dias, a significação do corpo sofreu inúmeras transformações. Desde Aristóte- les, passando pelo cristianismo, o corpo é, de certo modo, negligenci- ado em função do espírito. Descartes, e toda a influência do seu pen- samento na evolução científica levou a considerar o corpo como objecto e fragmento do espaço visível separado do «sujeito conhecedor». Só em pleno século X I X o corpo começa a ser estudado, em pri- meiro lugar, por neurologistas, por necessidade de compreensão das estruturas cerebrais, e posteriormente por psiquiatras, para clarificação de factores patológicos. Krishaber, Von Monakow, Bonnier, Mayer Gross, Weir-Mitchell, Wernicke, Foerster, Peisse, Head, Liepmann, H. Jackson, Gertsmann, Babinski, Lhermitte, Lunn, Meerovitch, Schilder, Nielsen, etc, e tan- tos outros, são alguns dos pioneiros no campo neurológico, psiquiá- trico e neuropsiquiátrico a conferirem ao corpo significações psicoló- gicas superiores, quer no âmbito do estudo das assomatognosias, quer ainda das anosognosias, apraxias ideatórias, ideomotoras, construtivas, apractognosias, etc. No campo patológico, parece dever-se a Dupré 1909, o termo «psicomotricidade», quando introduz os primeiros estudos sobre a debi- lidade motora nos débeis mentais {La debilite motrice dans ces rap- ports avec la debilite mentale e pathologie de V imagination et de 1' emotivité). Henri Wallon é, provavelmente, o grande pioneiro da psicomotrici- dade, vista como campo científico. Em1925, ao publicar UEnfant Tur- bulent, e em 1934, Les Origines du Caracter Chez VEnfant, Wallon 13 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA inicia uma das obras mais relevantes no campo do desenvolvimento psicológico da criança. Médico, psicólogo e pedagogo, impulsiona as primeiras tentativas de estudo da reeducação psicomotora, de onde sobressai Guilmain, que em 1935 publica uma obra clássica de grande impacte: Fonctions Psychomotrices et Troubles du Comportement. A sua concepção de testes, os tipos de acção reeducativa e as pri- meiras orientações metodológicas sobre reeducação psicomotora nas- cem de um efeito estimulador da grande obra de Wallon. Guilmain definiu da seguinte forma os objectivos da reeducação psi- comotora: «Seguindo em todas as crianças a organização das funções do sistema nervoso à medida que se opera a maturação, podemos rea- bilitar as manifestações próprias das suas funções em causa.» O papel da função tónica (sobre a qual repousam as atitudes e os alicerces da vida mental) e da emoção (como meio de acção sobre o e pelo outro) nos progressos da actividade de relação, são encarados, de acordo com Wallon, como processos básicos da intervenção psico- motora. A importância da actividade postural e da actividade sensó- rio-motora com pontos de partida da actividade intelectual são emi- nentemente defendidos na perspectiva do desenvolvimento da criança com os célebres estádios wallonianos: impulsivo, tónico-emocional, sensorio-motor, projectivo e personalístico. Os estudos clínicos sobre os síndromas psicomotores: infantilismo motor, assinergia, extrapirami- dal inferior, extrapiramidal médio, extrapiramidal superior, cerebeloso, hipertonia, automatismo emotivo-motor e de insuficiência frontal, são outro avanço significativo no estudo das relações entre a psicomotri- cidade, a inteligência, a afectividade e a sociabilidade, como sublinha parte da obra de Ajuriaguerra. A obra de Wallon continuou durante décadas a influenciar a in- vestigação sobre crianças instáveis, impulsivas, emotivas, obsessivas, apáticas, delinquentes, etc. A influência da sua obra alastrou a vá- rios campos de formação, quer psiquiátrica, quer psicológica e peda- gógica. Correntes médico-pedagógicas (Descoeudres) e de educação física (Demeny, Hébert, Dalcroze, etc.) são igualmente influenciadas pelo pensamento original de Wallon, sendo o principal responsável pelo nascimento do movimento de reeducação psicomotora, superior- mente conduzido, anos mais tarde, pela mão de Ajuriaguerra e Sou- biran. Independentemente de Wallon ter defendido, de acordo como o conhecimento neurológico da época, uma perspectiva localizacionista (Ajuriaguerra 1974), os seus trabalhos são comparados aos de Hom- burger e Gourevitch, ao mesmo tempo que tendem a perspectivar, so- bretudo, uma nova visão da psicologia da criança (Do Acto ao Pen- samento). 14 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Para Wallon 1925, o movimento é a única expressão e o primeiro instrumento do psiquismo. O alcance desta dimensão do movimento e 00 corpo da criança permite a este célebre autor francês apresentar uma QOItcepção original da evolução mental. Wallon advoga em 1929 que 0 desenvolvimento psicológico da criança é o resultado da oposição e substituição de actividades que se precedem umas às outras. Esta con- u-pção hierárquica e dialéctica é amplamente defendida por muitos au- tores actuais em vários quadrantes do mundo (Ausubel 1970, Bruner 1970, Zaporozhets e Elkonin 1971, Erickson 1963, etc). Wallon, ao longo da sua obra, esforçou-se por demonstrar a acção recíproca entre funções mentais e funções motoras («habilidade ma- nual»), tentando argumentar que a vida mental não resulta de relações unívocas ou de determinismos mecanicistas. Quando muito, para Wal- lon, a vida mental está sujeita, sim, mas ao determinismo dialéctico de ambas as funções. Nos anos 60, a Universidade da Salpêtrière confere o certificado de capacidade em reeducação da psicomotricidade (Fevereiro de 1963), de novo debaixo da acção científica de Wallon, que cria a importante revista psicológica Enfance, onde faz publicar obras de grande relevo científico (Kinesthésie e Image Visuelle du Corps Propre, Espace Pos- tural e Espace Environnant, etc). Citando os neurologistas Rybot, Bonnier, Pick, Head, Schilder, etc, Wallon, através do conceito do esquema corporal, introduz, provavel- mente, dados neurológicos nas suas concepções psicológicas, motivo esse que o distingue de outro grande vulto da psicologia, Piaget, que muito influenciou também a teoria e prática da psicomotricidade (Fon- seca 1978). Wallon refere-se ao esquema corporal não como uma unidade bio- lógica ou psíquica, mas como uma construção, elemento de base para o desenvolvimento da personalidade da criança. De novo a influência directa ou indirecta deste autor se faz sentir; daí resultam, na década de 70, os trabalhos na esfera da educação de Picq e Vayer, le Boulch, Lapierre e Aucouturier, Defontaine, etc. Paralelamente, estimula os trabalhos psicológicos da escola de Zazzo (Laboratório de Psicologia da Criança), principalmente sobre as pes- quisas da imagem especular. Os seus conceitos são reexaminados por Ajuriaguerra, Stambak, N. Galifret-Granjon e Bergés no Hospital Henri- Rousselle, aí tendo marcado influência na formação de terapeutas, para além de ter tido implicações extraordinárias noutras áreas, nomeada- mente na da pedopsiquiatria (Bergeron, Heuyer, Koupernik, etc.) e na da psicologia do desenvolvimento (Malrieu, Lurçat, Lezine, Tran- -Thong, etc). Depois de sair do Hospital Henri-Rousselle, Ajuriaguerra, ao diri- gir a clínica de Bel-Aire em Genebra, continua a ser o líder da escola 15 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA francófona de psicomotricidade. Aí desenvolve intensa actividade cien- tífica, prosseguindo e continuando a obra de Wallon. Ao publicar tra- balhos sobre o tónus e ao desenvolver métodos de relaxação, para além de se tornar um notável psiquiatra infantil de renome mundial, Ajuria- guerra vai consolidando os princípios e as bases da psicomotricidade. Com Hécaen publica obras de grande profundidade científica (Mécon- naissances e Hallucinations Corporelles e Le Córtex Cerebral), que ajudam a aclarar o conceito de psicomotricidade. No campo educacional, Le Boulch (psicocinética) e Ramain (edu- cação das atitudes) divulgam as obras de Wallon e Ajuriaguerra. No campo terapêutico, Soubiran e Mazo desenvolvem pesquisas em muitos domínios lançados por aqueles pioneiros. A Sociedade Francesa de Educação e Reeducação Psicomotora, criada em 1968 por Vayer, Lapierre e Aucouturier, transform os conceitos de «ginástica correctiva» e influencia a maioria das escolas francesas, belgas, suíças e italianas. Na mesma época surgem os métodos de Borel-Maisonny e o «Bon Départ», que igualmente sofrem a sua evolução. Wallon, como pai das «técnicas do corpo» (Carnus 1981), continua a influenciar o pensamento psicológico da década de 70. Os estudos da comunicação afectiva, da sociabilização, das emoções, etc, estão dentro das linhas por si traçadas. Wallon é, de facto, a pedra angular do edifício da psicomotricidade, onde não se pode negligenciar obvia- mente o papel das obras de Piaget, Freud e de Ajuriaguerra. A fecundidade do pensamento de Wallon continua em permanente actualização, uma vez que perspectiva o estudo da criança na sua tota- lidade e renuncia às abordagens unidimensionais ou sectoriais. A psicomotricidade, à luz de Wallon e de Ajuriaguerra, concebe os determinantes biológicos e culturais do desenvolvimento da criança como dialécticos e não como redutíveis uns aos outros. Daí a sua importância para elaborar uma teoria psicológica que estabeleça rela- ções entre o comportamento e o desenvolvimento da criança e a matu- ração do seu sistema nervoso, pois só nessa medida se podem cons- truir estratégias educativas, terapêuticas e reabilitativas adequadas às suas necessidades específicas. O conceito de psicomotricidadeganhou assim uma expressão sig- nificativa, uma vez que traduz a solidariedade profunda e original entre a actividade psíquica e a actividade motora. O movimento é equacio- nado como parte integrante do comportamento. A psicomotricidade é hoje concebida como a integração superior da motricidade, produto de uma relação inteligível entre a criança e o meio e instrumento privi- legiado através do qual a consciência se forma e se materializa. Paralelamente, os autores americanos, partindo de concepções per- ceptivo-motoras baseadas em acções experimentais, colocaram o de- senvolvimento da percepção e do movimento em termos de interde- 16 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA pendência e não de mútua exclusão. Strauss, Werner, Hebb e Gesell, posteriormente Bruner e Piaget, influenciam tais correntes de pensa- mento, onde sobressaem os trabalhos de Kephart, Barsch, Frostig, Get- man, Cruickshank, Doman e Delacato, e fundamentalmente de Cratty e Ayres, trabalhos muito pouco conhecidos pelos continuadores de Wal- lon e Ajuriaguerra. Noutra direcção, e lamentavelmente pouco referidos nos trabalhos quer de autores americanos, quer de autores europeus, surgem os es- tudos dos autores soviéticos, de onde teremos de destacar, na área da psiconeurologia do movimento, os nomes de Ozeretsky (divulgado muito antes por Guilmain), Vygotsky, Bernstein, Zaporozhets, Elkonin, Galperin e Luria. Cabe aos autores soviéticos a introdução em psicologia do conceito de que a origem de todo o movimento e de toda a acção voluntária não se faz dentro do organismo, mas sim, a partir da história social do homem. O movimento assim encarado depende, primeiro, da fun- ção de comunicação, e mais tarde do analisador verbal, ou seja, das sínteses aferentes. Com base nestes novos dados, a psicomotricidade tende actualmente a ser reconceptualizada, não só pela «intrusão» de factores antropoló- gicos, filogenéticos, ontogenéticos paralinguísticos, como essencial- mente cibernéticos e psiconeurológicos. E na integração transdiscipli- nar destas áreas do saber que provavelmente se colocará no futuro a evolução e actualização do conceito de psicomotricidade e é de alguma forma dentro desta óptica que iremos desenvolver a nossa pesquisa. 17 BREVE REVISÃO HISTÓRICA DA PSICONEUROLOGIA A história da psiconeurologia remonta aos primórdios da civiliza- ção. Aristóteles julgou que a mente pensante não tinha nenhuma relação com o corpo ou com os sentidos, e por esse facto não poderia ser des- truída. No século V a. C , Hipócrates afirma que o cérebro era o órgão do intelecto e o coração o órgão dos sentidos. Herófilo, no século III a. C , estuda o cérebro e defende-o como o lugar da inteligência, tendo pen- sado que o ventrículo médio era responsável pela faculdade da cogni- ção e o ventrículo posterior pela memória (Heilman e Valenstein, 1979). Craniotomias são realizadas pelos Incas 3000 anos a. C , provavel- mente com a finalidade da libertação de demónios e não especifica- mente como tratamento de doenças mentais. Galeno, no século II a. C , pensou que as actividades de cérebro eram realizadas mais pela substância do cérebro do que pelos ventrí- culos. Só com Vesalius, no século X V I , esta afirmação foi confirmada, independentemente deste mesmo anatomista considerar que os cérebros do homem, dos mamíferos e dos pássaros eram similares e apenas variavam no tamanho. Leonardo da Vinci defendeu também a teoria ventricular. Mais tarde, a tentativa de localizar a alma (psyke) radicada na cul- tura grega interessou inúmeros pensadores durante muitos anos, até que Descartes, no século X V I I , a localizou na glândula pineal. A sua posi- ção central em relação aos ventrículos levou-o a pensar que tudo ema- nava dela. Gall, nos finais do século xvm, introduz a frenologia, ciência que visava localizar as várias faculdades humanas em vários centros do cérebro. Com o seu discípulo Spurzheim publica um volume sobre a anatomia e a fisiologia do sistema nervoso, tendo defendido que a mente era dependente da estrutura do cérebro e que o córtex cerebral 19 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA era o órgão da mente. Para Gall, a linguagem estava localizada nos lobos anteriores do cérebro, para além de ter localizado várias facul- dades no cérebro (instinto de propagação, agressividade, memória ver- bal, amor da glória, talento poético, etc). Ao contrário de Descartes, Gall concebia o cérebro em estruturas que apresentaram um desenvol- vimento sucessivo. Propôs que as forças vitais se concentravam no tronco cerebral e que as capacidades intelectuais se encontravam situa- das em várias partes dos dois hemisférios. No seu modelo estrutural (three story house), Gall colocou no nível inferior os instintos, no ní- vel médio as propensibilidades animais e no nível superior a razão. Para este autor, a medida do crânio era também uma condição funda- mental para deduzir as características morais e intelectuais da pessoa, por pensar que a forma do crânio era modificada pelo cérebro colo- cado no seu interior. Independentemente das suas concepções originais terem tido grande popularidade, o tempo veio a provar a sua inconsis- tência. Combatido pela Igreja, detestado por Napoleão I (Changeux 1983), o seu ensino todavia, foi o fundamento da moderna psiconeu- rologia (Heilman e Valenstein 1979). Bouillaud, discípulo de Gall, comparou-o a Copérnico, Galileu e Newton, tendo-o considerado como um dos «grandes messias da ciên- cia». Ao contrário do seu mestre, reuniu muitos casos autopsiados, assegurando que a perda da linguagem estava relacionada com lesões dos lobos frontais anteriores. O seu genro Aurburtin, que continuou os seus estudos sobre a «sede da faculdade da linguagem», proferiu em 1861 uma célebre conferência na Sociedade Parisiense de Antropolo- gia, a que, por sinal, assistiu Broca, onde afirmou: «quando um dos doentes afásicos morrer e eu não encontrar qualquer lesão nos lobos frontais, eu renunciarei às minhas ideias.» Por coincidência, passado algum tempo Broca recebe um doente hemiplégico direito com conco- mitante perda da fala e da escrita. Dois dias depois o paciente morre, tendo Broca convidado Aurburtin para a autópsia, onde efectivamente se confirmou a lesão — é o caso Leborgne, que se tornou histórico nos estudos de afasia. Broca denominou por afemia o defeito de linguagem resultante da lesão do lobo frontal e situou-o exactamente na terceira circunvolução frontal. O seu segundo caso famoso (caso Lelong), após autópsia, con- firma uma velha hemorragia na segunda e terceira circunvolução fron- tal. Trousseau contrapôs ao termo «afemia» o termo «afasia», termo este discutidíssimo na altura por Broca, mas posteriormente adoptado. O centro motor da fala (área 44 de Brodmann) passa a ser, desde en- tão, designado por área de Broca. Broca é também responsável por localizar as lesões que interferem com a capacidade da fala no hemisfério esquerdo. Dax (pai), porém, ignorado durante algum tempo, confirmou trinta anos antes as mesmas 20 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA lesões no hemisfério esquerdo. Entra-se no advento das cartas e dos mapas cerebrais, o localizacionismo foi então levado ao extremo. Wernicke (1848-1904) surge entretanto, sugerindo uma nova con- cepção do cérebro, tendo-o dividido em duas partes; uma anterior, motora, e outra posterior, sensorial, clarificando, em certa medida, as duas componentes da linguagem, a receptiva e a expressiva. Para Wernicke, a afasia de Broca (afemia) era uma perda da imagem mo- tora das palavras, defendendo a ideia que o córtex motor continha conceitos de movimentos, perspectiva original que se enquadra per- feitamente na psicomotricidade. O mesmo autor define quatro tipos de afasia: motora, de condução, sensorial e total. Um modelo de lin- guagem é sugerido, modelo esse que encontra confirmação em auto- res mais recentes como Penfield e Geschwind, mesmo que tivesse sido criticado por Head. Wernicke notou que as lesões da região tem-poral posterior superior, causavam afasia, preferencialmente ao nível da compreensão. O mesmo autor situou no centro auditivo as ima- gens sonoras, enquanto a área de Broca continha imagens para o mo- vimento, defendendo ainda que entre ambas existiam comissuras que as ligavam. Na mesma linha localizacionista surgem ainda, Henschen, que se torna original com os estudos das projecções da retina e da actividade do hemisfério não dominante, embora assumindo uma visão estrita- mente localizacionista nas «desordens sensórias da fala», e Liepmann, que publica em 1900 um trabalho sobre apraxia, naturalmente de grande importância para os estudos da psicomotricidade. Este autor che- gou a defender a separação dos actos motores aprendidos dos proces- sos psicológicos que os iniciam, factor esse ainda hoje de grande im- portância quando o quadro afásico se complica com a presença de apraxias. As críticas ao localizacionismo, entretanto, começam a desenvolver- -se. Head (1861-1940) critica severamente a opção de centros (Broca, Wernicke, Lichthein, Exner, etc), a que se seguem P. Marie, H. Jack- son, Kussmaul, Déjérine, Von Monakow, Pick, Freud e outros. P. Marie (1853-1940), depois de se licenciar em Advocacia torna- se médico, assumindo posições iconoclásticas, como, por exemplo, ter afirmado que a terceira circunvolução frontal esquerda não tinha um papel especial na afasia. H. Jackson (1835-1911), considerado o pai da neurologia inglesa, independentemente de ter sido esquecido durante muito tempo, publica extensos trabalhos, sendo famoso pelos seus conceitos de assimetria funcional e de hierarquia representacional dos fenómenos psíquicos, de extremo interesse para a compreensão da integração de aquisições psicomotoras sobre aquisições sensorio-motoras mais simples. Os seus estudos sobre impercepção, linguagem proposicional e não proposicio- 21 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA nal, linguagem emocional e intelectual, linguagem interior e organiza- ção hierárquica funcional do cérebro são ainda reconhecidos como im- portantes para o estudo da neurolinguística e da psiconeurologia do desenvolvimento. Kussmaul (1822-1902), conhecido por introduzir as noções origi- nais de cegueira e surdez para as palavras, é ao mesmo tempo defen- sor de uma posição antilocalizacionista da linguagem, não esquecendo a sua contribuição sobre as desordens da linguagem escrita. Déjérine, Von Monakow (1853-1930) e Pick (1850-1924) distinguem-se pelos seus trabalhos no âmbito da somatognosia e da linguagem e Freud (1856-1939) sugere concepções sobre a afasia de condução, ainda hoje reconhecidas. As relações cérebro-comportamento, entretanto, perderam a popu- laridade, as teorias psicodinâmicas, o gestaltismo e o behaviorismo estagnaram, de certa forma, o estudo do cérebro. As influências so- ciais, políticas e filosóficas fizeram-se sentir. Kant, por um lado, defen- dendo o inatismo, e Locke, por outro, advogando a filosofia da tábua rasa, introduziram um certo interregno no âmbito das relações cérebro- -comportamento. Durante esse período alguns nomes, entretanto, sur- gem: Goldstein (1879-1965), que se distingue na sua perspectiva ho- lística do sistema nervoso, e Kleisst, que desenvolve interessantes estudos no âmbito das afasias e das apraxias. Ambos são dos últimos intervenientes na discussão que marcou nos fins do século X I X e prin- cípios do século X X os estudos da psiconeurologia. Com reconheci- mento internacional surge também a leucotomia pré-frontal de Egas Moniz, que abriu perspectivas novas ao conhecimento da função cere- bral. A época dos modernos investigadores surge com neurologistas, psi- cólogos, patologistas, linguistas, psiconeurólogos, etc. Neles cabem R. Brain, Critchley, Penfield, Geschwind, Luria, Eisenson, Schuell, Wepman, Benton, Damásio, Benson, Denckla, Ajuriaguerra, Hécaen, Trevarthen, Pribram, Kinsbourne, Ojeman, Chalfant, Sperry, Eccles, Gaddes, Galaburda, Myklebust e muitos outros, a que faremos referên- cia ao longo do trabalho, especialmente nas relações entre psiconeuro- logia e psicomotricidade. O futuro da psiconeurologia é deveras promissor: novas técnicas (audição dicótica, visão bilateral, fluxo sanguíneo, etc), novos estudos anatómicos com conexões mais bem desenhadas, novos avanços na neuroquímica e neurofarmacologia, lobectomias e calosotomias, estu- dos electrofisiológicos, experimentação animal, estudos de casos, tomo- grafia axial computorizada, ressonância magnética nuclear, etc, irão certamente influenciar o diagnóstico e o tratamento de muitos pacien- tes, uma vez que as relações cérebro-comportamento se vão desven- dando à luz dos dados da investigação. 22 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA A nossa visão, bem mais modesta, está em transferir e adaptar os conhecimentos da psiconeurologia para a educação e para a reabilita- ção de crianças com necessidades especiais, pois com o conhecimento das relações cérebro-comportamento estaremos, certamente, mais perto da optimização e maximização dos seus potenciais de aprendizagem, e é dentro dessa dimensão que procuraremos com a presente pesquisa uma aproximação entre a psiconeurologia e a psicomotricidade. 23 ALGUNS ASPECTOS FILOGENÉTICOS Ao abordarmos alguns aspectos filogenéticos da evolução do cére- bro queremos apenas situar, de forma esquemática e introdutória, algu- mas relações entre a evolução e a maturação do sistema nervoso e a significação de alguns dos principais vectores da sua filogénese. A evolução tem sido encarada nomalmente como mudança, como adaptabilidade; mas então por que é que algumas estruturas no cére- bro humano não evoluíram ou, se se modificaram estrutural e funcio- nalmente, foi muito pouco? Por que razão algumas estruturas do sistema nervoso (SN) dos ver- tebrados mudaram pouco? Por que razão outras estruturas tiveram um salto quântico? O que é que isto significa? Será que a observação de simples vertebrados nos permite olhar para o cérebro humano e perceber a sua origem e a sua evolução? Estudando o SN de várias espécies, as suas funções e comportamen- tos, podemos compreender e apreciar as suas limitações e capacidades e por essa via analisar as suas semelhanças e desemelhanças adaptati- vas em comparação com a espécie humana. Numa primeira análise, podemos adiantar que as semelhanças são muito maiores que as diferenças. A neurologia comparativa, a homo- logia e a histoquímica revelam-nos a flexibilidade da organização cere- bral que foi necessária para a evolução, revelam-nos como cada ver- tebrado possui as características neuroanatómicas expressas na sua relação com o envolvimento e na sua capacidade de utilização dos recursos ecológicos. Pensa-se muitas vezes que a inteligência superior da nossa espécie é sinónimo de superioridade «as vantagens evolutivas de sermos estú- pidos», como disse Robin 1973, mas verificamos e constatamos que a Natureza, nalgumas circunstâncias, optou por uma pequena massa cere- bral em vez de uma muito grande. A tartaruga, por exemplo, requer muito menos energia que o ser humano e é capaz de funcionar com MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA tensões de oxigénio no sangue iguais a zero, satisfazendo as suas neces- sidades adaptativas por meio de glicólise anaeróbica. Ela tem sobre- vivido há mais de 200 milhões de anos conforme dados recolhidos de fósseis. Não se pode dizer que ela tem sido mal sucedida em termos adaptativos. Se o fornecimento do oxigénio rarear na atmosfera, a tar- taruga, com o seu pequeno cérebro, com o seu lento funcionamento, provavelmente sobreviverá mais tempo do que nós. Efectivamente, a linha de evolução que leva ao Homo Sapiens não pode ser considerada a melhor de todas. Como os dinossauros, o Homem tem a alternativa da sua potencial extinção. Tem sido o estudo comparativo das estruturas esqueléticas das espé- cies fósseis e das espécies vivas aquele que tem fornecido inferências para a compreensão do desenvolvimento filogenético progressivo. Por condiçõesóbvias, o cérebro tem sido menos estudado, só recentemente tem sido abordado no sentido de poder confirmar a sequência da evo- lução, não só pela complexidade do órgão que é, mesmo nas espécies mais simples, mas porque o cérebro é também o órgão que apresenta maior divergência e variação estrutural. Como órgão, o cérebro não tem paralelo com qualquer outro sistema orgânico. E o órgão mais organizado do organismo, e provavelmente do cosmos: trata-se do sis- tema físico mais complexo até hoje conhecido. Muitas discussões se têm tido e se irão ter sobre as relações filo- genéticas das várias espécies de vertebrados. Muito menos concordân- cia se verifica na grande questão da origem dos vertebrados a partir de um invertebrado ancestral. Trata-se de um enigma que se coloca atrás de outro, que é a origem da vida. Hipóteses há que vão desde o puro idealismo às inferências mais ou menos plausíveis. Uma coisa é certa: nenhuma teoria até hoje conseguiu explicar todas as caracterís- ticas da evolução. Na evolução, temos de reconhecer a grande versatilidade do cére- bro em se adaptar a novas necessidades, alterando e modificando a função de sistemas antigos, desenvolvendo e transformando sistemas novos. Na evolução, novos sistemas e novos níveis de complexidade são su- perimpostos sobre unidades funcionais pela progressiva organização e in- tegração de tais unidades num só e único sistema. Os que foram totali- dades a um certo nível tornaram-se partes de uma totalidade superior. Ao longo da evolução damos conta que cada nível de organização possui propriedades únicas de estruturação e de comportamento, que por sua vez são dependentes das próprias propriedades dos elementos constituintes, elementos esses que só aparecem na evolução quando combinados em novos sistemas. O conhecimento dos processos e dos vectores de desenvolvimento dos níveis inferiores, como a medula e o tronco cerebral, podem ser 26 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA de uma importância significativa para o melhor conhecimento dos níveis superiores, como o córtex; daí, em certa medida, o interesse de uma abordagem filogenética. As novas relações organizacionais e as novas relações recíprocas das unidades elementares entre si e com todo o sistema vão-se tradu- zir em processos evolutivos novos (Novikoff 1945). A evolução enca- rada nesta perspectiva é sinónimo da edificação de novos sistemas com novas propriedades, propriedades tais que não se podem conceber como acrescentadas ou adicionadas do exterior, mas sim como resultantes de novos sistemas internos de organização. O aparecimento do sistema piramidal, por exemplo, não pode ser encarado como um sistema exteriormente, ou miraculosamente, intro- duzido no cérebro dos mamíferos superiores. O sistema piramidal, como novo sistema, trouxe novas propriedades e novas funções à mo- tricidade, transformando-a em termos organizacionais tais que no Homo Sapiens causaram a maior mudança do planeta Terra em ape- nas 10 000 anos, quando a existência de seres vivos é reconhecida há cerca de 3 biliões de anos. Por que é que, em tão pouco tempo, os seres humanos causaram tanta transformação no nosso planeta em com- paração com outros seres vivos? Esta impressionante dominância está inexoravelmente relacionada com o desenvolvimento do cérebro, desde um cérebro diminuto de ani- mais simples a um órgão complexo de cerca de 1350 g no homem. Esta capacidade de transformar o transformável é, de certa maneira, a característica de uma nova organização do cérebro, isto é, a sua trans- formabilidade e a sua modificabilidade, novas funções que atingiram uma especificidade única na nossa espécie. Só se reconhecem os grandes traços da evolução, os pormenores estão longe de ser conhecidos, e de certa forma mudam à medida que novas informações se vão obtendo e descobrindo. A exacta sucessão de acontecimentos evolutivos é impossível de reconstituir, porque os dados são incompletos e porque continuam sujei- tos a várias interpretações. Haverão novas descobertas e essas necessariamente que levarão a outras interpretações, interpretações que não se afastarão muito daquilo que hoje se equaciona em termos de evolução. Tradicionalmente, o tamanho do cérebro tem sido encarado como uma medida aproximada de inteligência, indicador esse que tem sido adaptado em termos de comparação homóloga anátomo-funcional com outras espécies. Evidentemente que o tamanho do cérebro em si não explica o que é a inteligência, isto é, a capacidade de transformabili- dade e de modificabilidade a que atrás nos referimos, caso contrário, outras espécies (ex.: elefante, baleia-azul, etc.) exerceriam o domínio adaptativo no nosso planeta. 27 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Desde ter sido considerado o órgão da alma até ser considerado o órgão da civilização (Vygotsky 1960 e Luria 1980), o cérebro, como órgão mais organizado da evolução, apresenta outros factores funcio- nais para além do seu tamanho, dos quais se destacam fundamental- mente os seguintes: — Complexidade dos circuitos internos; — Conexões sinápticas; — Organização das regiões corticais e subcorticais. O tamanho do cérebro está naturalmente relacionado com o tama- nho do corpo, uma vez que os órgãos adicionais e os grupos mus- culares requerem mais mecanismos de controlo. Mas o que é impor- tante reconhecer é a capacidade do cérebro se transformar numa unidade diferenciada e numa unidade funcional mais organizada e com- plexa. Não basta, pois, encarar o binómio tamanho do cérebro-tama- nho do corpo, é necessário colocar outros problemas (Sarnat e Netsky 1981). Os cérebros pequenos, como nos vertebrados inferiores, são moles e tubulares; nos vertebrados superiores, eles adquirem muitas circun- voluções. O cérebro toraa-se esférico e alarga-se para alojar o cere- belo, centro de estratégias motoras, ao mesmo tempo que o progna- tismo se reduz relativamente ao cérebro (Fonseca 1982). Segundo Jerison 1973, o cérebro no homem alargou-se dois terços mais do que o corpo. Como é que o cérebro do homem atingiu tal ta- manho e como é que o ser humano, ao contrário de outras espécies, conseguiu atingir a capacidade de modificar a Natureza. O cérebro largo do homem desenvolveu-se pela cooperação de muitos factores, para além do tamanho do corpo. De um lado, a evolução biológica, dependente dos genes, e por con- seguinte inata, de onde emergem as características do tamanho do corpo, dos órgãos sensoriais, do desenvolvimento muscular, das liber- tações esqueléticas, etc. Do outro, a evolução cultural, dependente do envolvimento, de onde emergem a postura bípede, a manipulação tecnológica, a caça, a lin- guagem e a organização social, que traduzem os comportamentos a aprender, onde, de facto, a motricidade e a psicomotricidade assumem funções verdadeiramente transcendentes (Fonseca 1982). As interacções sistémicas, as novas propriedades, funções e orga- nizações decorrentes destes factores permitiram novas capacidades de informação, formação e transformação, de onde emerge a Antropogé- nese. Agricultura, domesticação de animais, armazenamento de água e comida, transporte e vestuário, habitação domínio do fogo, arte, nor- 28 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA mas e regras, protecção e mediatização das gerações mais novas pelas mais velhas, etc, tornam o cérebro um órgão propenso à construção de novos sistemas funcionais cada vez mais estruturados e hierarqui- zados. A síntese biocultural e biossocial traduziu-se num órgão versá- til e plástico, capaz de controlar e transformar a Natureza pelo traba- lho e de inventar o símbolo, factor esse que o conduziu a capacidades de comunicação e de aprendizagens verdadeiramente ímpares ao longo da evolução. O cérebro alarga-se para poder reagir às mudanças sensoriais, o seu crescimento depende da complexidade da integração sensorial, a que paralelamente se ajusta uma concomitante complexidade da elaboração e regulação motora. Quer a componente sensorial, quer a componentemotora, ambas exercem pressão em termos evolutivos para um cére- bro maior. A evolução progressiva dos mamíferos, como os vertebrados mais bem sucedidos na Terra, nos quais se inclui o homem, está natural- mente ligada à inteligência, ao desenvolvimento de novas capacidades sensoriais e motoras e, evidentemente, aos produtos da sua actividade cerebral. Por que é que o cérebro do homem como vertebrado dominante se desenvolveu e alargou tanto? Por que é que o cérebro humano se de- senvolveu tal como é? As respostas são difíceis, complexas e certamente que envolvem muitas interacções entre o organismo e o envolvimento, interacções essas que terão de ser primeiramente enquadradas em termos filogené- ticos. A perspectiva filogenética do ser humano coloca, segundo Milner 1976, três tipos de comportamento: — Comportamentos não aprendidos, ditos inatos, que repartimos com os mamíferos inferiores. Neles se integram as funções fisio- lógicas básicas: respirar, sugar, mastigar, deglutir, digerir, tossir, sentir fome e sede, urinar, defecar, tensão sexual, cólera, dor, raiva, medo, saborear, ouvir, tocar, vocalizar, distinguir gradua- ções de luz, orientar, explorar, etc; — Comportamentos aprendidos, que também repartimos com outros mamíferos, nomeadamente os primatas. Neles se integram a forma como vemos (ou percepcionamos) o mundo físico à nossa volta, reconhecimento básico das significações do que se vê, ouve, cheira, toca, saboreia, etc; — Comportamentos aprendidos que não repartimos com mais nenhuma outra forma de vida. Neles se integram as praxias, o trabalho, a linguagem falada e escrita, a autoconsciência, o auto- julgamento, o pensamento abstracto, os valores, a ética, etc 29 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Esta perspectiva filogenética de Milner conjuga-se perfeitamente com a perspectiva dos três cérebros de McLean 1970 (reptiliano, pa- leomamífero e neomamífero), bem como com as perspectivas de desen- volvimento psicológico de Wallon 1973 (dados interoceptivos, proprio- ceptivos e exteroceptivos). De notar, todavia, que estes comportamentos surgem antes, no e depois do nascimento, isto é, subentendem um desenvolvimento intra-uterino e outro extra-uterino, ou seja, logo que determinado número de cuidados sócio-afectivos e condições envolvi- mentais seja fornecido. De acordo com esta perspectiva, de grande relevância para o nosso estudo, as aprendizagens e as funções psíquicas superiores são modi- ficações secundárias dos mecanismos inatos. Tinbergen 1951, dentro da mesma visão, afirmou: «Os estudos dos processos humanos supe- riores terão que ser inexoravelmente precedidos pelo estudo dos ali- cerces inatos do comportamento». O aspecto de aprendermos comportamentos que não repartimos com mais nenhuma espécie é o ponto de partida para compreendermos o desenvolvimento da criança, mas para o atingirmos necessitamos de perspectivar os padrões de desenvolvimento e a organização funcional do cérebro. O desenvolvimento neurológico coloca em questão o problema da ontogénese e da filogénese. A ontogénese recapitula, revela ou con- verte a filogénese? Até que ponto a filogénese neurológica servirá de algo? Haverá uma lei de antecipação do desenvolvimento neurológico? O que é que traduz a significativa diferença entre o sistema nervoso do recém-nascido e do adulto? O que é que se passa entre a imaturi- dade e a maturidade neurológica? O que se passa entre os dois even- tos evolutivos esclarece-nos sobre o problema? Para se responder a estas questões é óbvio que o estudo da herança psiconeurológica da nossa espécie é fundamental. Os estudos tradicio- nais do desenvolvimento psicológico da criança não têm equacionado devidamente a importância da filogénese neurológica, uma vez que descrevem e interpretam funções psicológicas das crianças sem muitas vezes arriscarem alicerces e substractos neurológicos. Para se compreender o desenvolvimento psiconeurológico da crian- ça parece-nos essencial o estudo da herança estrutural e funcional dos estádios evolutivos prévios, na medida em que a herança psiconeuro- lógica humana é expressa em forma, funcionamento e desenvolvimento. Para se compreender o processo evolutivo das estruturas primitivas do sistema nervoso humano, que consubstancia a herança psiconeuro- lógica, temos efectivamente de recorrer a vários axiomas filogenéticos. Apenas dentro de uma perspectiva esquemática e introdutória, ire- mos apresentar alguns axiomas filogenéticos que julgamos fundamen- tais para a compreensão do desenvolvimento psiconeurológico e psi- 30 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA comotor da criança. Deles, certamente, emergem inúmeros dados que ajudarão a compreender o objectivo do presente trabalho e os resulta- dos obtidos no respectivo ensaio experimental: 1. ° Espinal medula — o ser humano reparte com os pré-verte- brados a estrutura básica da espinal medula; 2. ° Condução do impulso nervoso — todas as formas caracterís- ticas de condução no neurónio e concomitantes propriedades do impulso nervoso estão presentes desde os pré-vertebrados ao ser humano (Bishop 1956): 3. " Processos de condução — subsiste uma retenção filogenética das redes corticais e das estruturas dos neurónios especializa- dos, que obviamente determinam várias funções (hipótese de Herrick 1956). Tais estruturas caracterizam processos de con- dução lenta, que explicam um funcionamento eléctrico difuso, graduado e por campos de força, bem como por processos de condução rápida, que explicam vias de especialização, parci- almente padronizadas e preferencialmente localizadas, que equivalem a funções analíticas (sensoriais, correlecionais e motoras). Complementaridade dos dois sistemas: sintético-in- tegrativo e analítico-selectivo, que são componentes dos sis- temas de acção dos animais desde o mais elementar ao mais complexo; 4. ° Dualidade visceral-somática — a dualidade visceral-somática da estrutura neuronal subsiste em todos os cordatos (Romer 1958); 5. ° Tendências filogenéticas — as tendências filogenéticas suben- tendem diferencição estrutural crescente das partes, especiali- zação de funções, independência das partes do todo e níveis de organização crescente; 6. ° Encefalização estrutural e funcional — cada nova estrutura decorre de uma transferência de funções das estruturas ante- riores (proto-estruturas e paleoestruturas). Daqui decorre o princípio da encefalização, que se subdivide em dois outros princípios: 1) Princípio da duplicação sucessiva de centros inferiores; 2) Princípio da dominância hierarquizada; 7. " Reduplicação — cada nova estrutura cefálica é adicionada às estruturas filogeneticamente mais antigas, originando uma or- ganização segmentar tipológica. Centros primários reduplica- dos em secundários. Desde a medula que os centros motores são reduplicados no tronco cerebral, no cerebelo, nos gânglios 31 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA da base, etc. Princípio de associação das áreas associativas, que em si reflecte a diferenciação filogenética; Dominância funcional — à medida que as novas estruturas são adicionadas à extremidade cefálica, elas assumem progres- sivamente uma dominância hierarquizada e funcional: paleo sobre proto; arqui sobre paleo; neo sobre arqui); Avanço do córtex associativo — as novas áreas tendem a ser mais vulneráveis às influências externas. O telencéfalo atinge o maior avanço, enquanto o mesencéfalo apresenta o inverso. Salto quântico do neocórtex (Eiseley 1955): secção pré-fron- tal; área associativa; camada supragranular (estratificação e complexidade celular): Córtex Córtex Animal sensorial Percentagem associativo Percentagem sensorial Percentagem associativo Percentagem 90% 10% Carnívoro 70% 30% Primata 40% 60% 15 % 85% Reversibilidade na proporção dos sistemas cerebrais intrínse- cos e extrínsecos; 10.° Mudanças funcionais acompanharam a encefalização: 1) Sistemas viscerais e olfactivo antecedem os outros siste- mas. A pelee a proprioceptividade seguem-se e depois os receptores à distância e o sentido quinestésico. Os siste- mas táctilo-quinestésicos, auditivos e visuais assumem cada vez mais importância nos mamíferos (sistemogénese — Annokine, 1972); 2) Precisão do movimento, em paralelo com uma exacta recepção e localização sensorial. Cada animal tem a motri- cidade que a sua organização cerebral e sensorial lhe faculta. No ser humano, a motricidade decorre da adapta- ção arborial dos hominídeos ancestrais de onde emergem as seguintes características antropomórficas: desenvolvi- mento dos membros como órgãos de preensão; desenvol- vimento dos membros anteriores como órgãos de explora- ção e de manipulação; desenvolvimento dos sistemas herbívoro e carnívoro de digestão e consequente estrutura craniodental; redução do sentido olfactivo; desenvolvi- COLOCAÇÃO DO PROBLEMA mento da actividade visual; mudanças no esqueleto pós- craniano; desenvolvimento do cérebro pela aprendizagem, linguagem e fabricação de instrumentos (Fonseca 1982); 3) Emancipação dos estímulos químicos (hormonais) e dos estímulos do envolvimento que dominam o comporta- mento. Mais interacção com o meio, maior activação bio- química e maior desenvolvimento dos sentidos de orien- tação espácio-temporal; 4) Os factores inatos diminuíram relativamente à experiência individual e à aprendizagem. Da evolução biológica à evo- lução cultural; 11. ° Período de dependência — a imaturidade e a dependência dos mais velhos aumenta significativamente na escala filogenética e dá um grande salto dos primatas inferiores ao homem. Im- portância da componente social (Vigotsky 1968); 12. ° Aumento da capacidade adaptativa — a capacidade de adap- tação a uma variada quantidade de situações externas aumenta na escala filogenética, sendo acompanhada de um repertório mais diferenciado de respostas adaptativas. Variedade, com- plexidade, flexibilidade e modificabilidade. Nível de controlo individual (Nissen 1951); 13. ° Atraso da resposta — a elaboração da resposta é cada vez mais complexa na escala filogenética, daí a evolução das con- dutas «metassensoriais» e «metamotoras». O produto final leva mais tempo a ser processado, implicando uma duração e um tratamento do estímulo externo; daí o acesso ao pensa- mento simbólico e à generalização, à discriminação sensorial, à transformação do envolvimento, à expansão espacial e tem- poral da acção, à capacidade comparativa, à complexidade perceptiva, etc; 14. ° Complexidade — a complexidade do que pode ser aprendido, o potencial de treinabilidade e de modificabilidade e a capa- cidade para formar hábitos complexos, todos evoluem na es- cala filogenética; 15. ° Necessidades — o número de necessidades, a sua variedade e diferenciação, aumenta na escala filogenética. Necessidades psicogenéticas: curiosidade, exploração, jogo, antecipação, previsão, orientação para fins remotos. Necessidades éticas, altruístas e estéticas aumentam na escala, sendo as duas últi- mas exclusivas do homem; 16. ° A incidência de conflitos, frustrações e culpabilidades aumen- tam extraordinariamente no homem, bem como a vulnerabi- lidade dos comportamentos superiores; MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Exclusivos do ser humano 17. ° A herança hereditária do ser humano inclui estruturas neuro- lógicas únicas, aparentemente superimpostas sobre as estrutu- ras básicas dos mamíferos; 18. ° No ser humano, é só depois do nascimento que tais centros neuronais, que medeiam os comportamentos humanos exclusi- vos, começam a funcionar. A herança genética está presente apenas como potencial no momento do nascimento. Desenvol- vimento num envolvimento estável e fisiologicamente regulá- vel e, posteriormente, num meio social complexo, progressiva- mente mais variável. Oportunidades de experiência mediatizada. 19. ° Autoconsciencialização — capacidade para ser um objecto dentro do campo perceptivo do próprio indivíduo. Auto-refe- rência (somatognosia); 20. ° Produção de um mundo sócio-cultural. Noção de «envolvi- mento invisível» («segundo envolvimento»). Envolvimento complexo da aprendizagem. Comunicação interpessoal. Neces- sidade gregária. Relação mãe-filho. Conforto táctil. Emoção. Imitação. Linguagem falada. Escrita. Civilização. A grande inovação da herança psiconeurológica humana está talvez neste último axioma, pois muito do comportamento humano é influen- ciado por este novo envolvimento criado pela civilização e pela histó- ria social. Entre o homem e o animal há certamente homologias, essen- cialmente as de carácter biológico; porém, no campo social e cultural as diferenças são incomparáveis. Devido ao novo envolvimento criado pela acção consciente do ser humano, a criança ascende à sua auto- -consciencialização (somatognosia), e daí à simbolização, mergulhando num envolvimento emocional, moral e semiótico cada vez mais com- plexo. A mediatização na aprendizagem passa a ser uma condição de sobrevivência a que nenhuma nova geração pode escapar. O envolvimento complexo de aprendizagens, a riqueza da comuni- cação interpessoal, as necessidades gregárias, o imprinting social, a vin- culação interactiva mãe-filho (por redução do número de descendentes por nascimento), o conforto táctil, a estabilidade emocional, o diálogo tónico e a segurança gravitacional, que estão na base de um processo único de comunicação, emprestam ao ser humano uma grande dife- rença em termos de herança psiconeurológica, quer filogeneticamente, quer ontogeneticamente. O estudo do comportamento humano e, por conseguinte, do desen- volvimento psiconeurológico exigem cada vez mais a integração de dados evolutivos filogenéticos, pois dessa forma a evolução ontogené- tica resulta mais integrada e coerente. 34 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Filogénese estrutural do neocórtex mamífero índices Tendências Mamíferos Primatas filogenéticos gerais inferiores Mamíferos HOMEM Tamanho dos Quanto mais Rato: propor- Cão: propor- Macaco: 11 %. quatro lóbulos elevado for o ç ã o da área ç ã o da área Chimpanzé: 17%. (T-O-P-F). animal, maior p r é - f r o n t a l p r é - f r o n t a l é o neocórtex 34%. 7%. HOMEM: 29% frontal e pré- (3/4 lob. frontais). -frontal. (3/4 lob. frontais). Áreas associati- vas acusam o maior tamanho. N ú m e r o de Aumento pro- Rato albino: Gato: Trinta e HOMEM: áreas celulares gressivo até à treze áreas ne- seis áreas neo- Cinquenta e duas áreas distintas. escala dos ma- ocorticais. corticais. neocorticais. míferos. Localização e Idem. Rato: maior Macaco: reduz grau de especialização grau de sobre- sobreposição. das f u n ç õ e s p o s i ç ã o nas HOMEM: a destruição sensoriais e duas áreas so- de áreas corticais não motoras. mato-senso- riais (menor diferenciação cortical). permite sobreposição (maior d i ferenc iação cortical). Proporção de Idem. Roedores: Gatos: 70% Macacos: 40% sensó- córtex associa- 90 % sensório- s e n s ó r i o - m o - rio-motor. tivo. -motor. tor. 60% associativo. 10% associa- 30% associa- HOMEM: 15% sensó- tivo. tivo. rio-motor. 85% associativo. Número de ca- madas neocor- ticais (densi- dade). Densidade au- menta e tam- bém as cama- das. Compôs, celular com- plexifica-se na escala. Camada supra- granular, so- brepõe-se ao arquicórtex. O córtex meso e paleo também. Maior densi- dade supragra- nular. Camada subgranular mantém-se. No HOMEM as três ca- madas superiores das seis do neocórtex dife- renciam-se. Aumento da densidade da camada quatro. Padrão de fis- Quanto mais Todos os ma- Girus fusiformes emer- suração. elevado na es- míferos pos- gem no lobo occipital. cala maior é o suem pelo Aumento dos sulcos 2.° número de Fis- menos três fis- e 3.°, devido ao aumento suras corticais. suras. das áreas associativas. N ú m e r o de Aumento à áreas não mie- medida que se l inizadas no ascende na es- nascimento. cala. No homem, nenhuma área cortical se encontra mielinizada no nasci- mento. 35 ALGUNS ASPECTOSONTOGENÉTICOS Segundo Schneirla 1957, as tendências filogenéticas do desenvolvi- mento confirmam-se, não são uma utopia. «O desenvolvimento do comportamento em qualquer nível filoge- nético não é apenas um retraçar dos estádios e dos níveis das formas ancestrais sucessivas, mas sim uma nova totalidade, que tende a um novo padrão distinto.» Como afirma Prechtl 1981, o desenvolvimento ontogénico não é apenas a recapitulação da filogénese (Haeckel 1866), é muito mais do que uma recapitulação, trata-se de uma nova combinação e de uma nova totalidade. Os resíduos filogenéticos, para usar um termo do mesmo autor, são estruturas de transição (transient structures) que es- tão presentes durante períodos particulares da ontogénese, para equi- par o sistema nervoso com certas propriedades que lhe permitem satis- fazer determinadas exigências do desenvolvimento. De alguma forma os axiomas filogenéticos traduzem-se na ontogé- nese neurológica pré-natal, como asseguram Arey 1954, Carmichael 1951 e Zubek e Solberg 1954, todos eles assumindo que os centros do neuroeixo têm uma perspectiva horizontal (de cada centro) e vertical (dos vários centros) do seu desenvolvimento. Segundo aqueles autores, a ontogénese do neuroeixo segue aproxi- madamente a seguinte evolução: — Às 5 semanas formam-se os gânglios espinais, surge a flexura da protuberância (ponte) e emergem os nervos espinais; — As 6 semanas aparecem os elementos que constituem o arco re- flexo, ao mesmo tempo que o hipotálamo se evidencia no dien- céfalo e os dois hemisférios se começam a diferenciar; — Às 7 semanas os reflexos espinais estão aptos a funcionar, alguns dias depois surge o tálamo, o hipocampo e os gânglios da base; MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA — Às 10 semanas a espinal medula termina a sua estrutura interna com a manifestação dos primeiros movimentos fetais, quando simultaneamente surge a diferenciação do neocórtex; — Às 14 semanas aparecem as vias sensoriais intersegmentares do cerebelo; — Aos 4 meses a função motora surge, ao mesmo tempo que o arquicerebelo e os tubérculos quadrigémeos; neste momento os receptores protoquinéticos (básicos de todos os pré-vertebrados e vertebrados inferiores) estão em funcionamento, daí emergindo a motricidade fetal. Surge também o mesencéfalo e as primeiras camadas neocorticais, com demarcação da fissura central, dife- renciando os territórios frontais dos parietais; — Aos 5 meses a mielinização das vias espinais dorsais começa a desenrolar-se simultaneamente com a via piramidal a partir do córtex, seguindo a lei céfalo-caudal; — Aos 6 meses os nervos cranianos começam a sua mielinização, ao mesmo tempo que se opera o completamento das comissuras hemisféricas; — Aos 7 meses a mielinização espinocerebelosa e mesencefalicota- lâmica e a configuração do cerebelo, assim como o aparecimento das fissuras e convoluções neocorticais, começam a estabelecer- -se. Neste momento, o choro é possível e imensos padrões re- flexos podem ser evocados, como se verifica nos próprios pre- maturos. 25 DIAS 35 DIAS 40 DIAS 50 DIAS irjO D I A S . 1 Ontogénese embrionária e fetal do sistema nervoso COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Neurogénese embriológica sequência do desenvolvimento do sistema nervoso central (E. Milner 1983) 2 0 d i a s 4 5 6 7 8 9 10 1 1 1 2 13 14 15 16 17 18 19 2 0 21 2 2 23 2 4 25 2 6 2 7 28 2 9 3 O 3 1 3 2 - 1 • . u t J íj 11 L6 11 jl) jl i l Su lcos 2." e 3." A p . cunvoluções Todas as camadas (1 -6 ) evidentes Maturação das camadas externas Maturação das camadas internas C re sc . v ias piramidais (mov. voluntário) Demarcação do occipital e do temporal Camada 1; demarcação do parietal do frontal Conexões neocórtex - hipocampo Apar. neocórtex área parietal - 1 • . u t J íj 11 L6 11 jl) jl i l Su lcos 2." e 3." A p . cunvoluções Todas as camadas (1 -6 ) evidentes Maturação das camadas externas Maturação das camadas internas C re sc . v ias piramidais (mov. voluntário) Demarcação do occipital e do temporal Camada 1; demarcação do parietal do frontal Conexões neocórtex - hipocampo Apar. neocórtex área parietal Neocórtex - 1 • . u t J íj 11 L6 11 jl) jl i l Su lcos 2." e 3." A p . cunvoluções Todas as camadas (1 -6 ) evidentes Maturação das camadas externas Maturação das camadas internas C re sc . v ias piramidais (mov. voluntário) Demarcação do occipital e do temporal Camada 1; demarcação do parietal do frontal Conexões neocórtex - hipocampo Apar. neocórtex área parietal - 1 • . u t J íj 11 L6 11 jl) jl i l Su lcos 2." e 3." A p . cunvoluções Todas as camadas (1 -6 ) evidentes Maturação das camadas externas Maturação das camadas internas C re sc . v ias piramidais (mov. voluntário) Demarcação do occipital e do temporal Camada 1; demarcação do parietal do frontal Conexões neocórtex - hipocampo Apar. neocórtex área parietal - 1 • . u t J íj 11 L6 11 jl) jl i l Su lcos 2." e 3." A p . cunvoluções Todas as camadas (1 -6 ) evidentes Maturação das camadas externas Maturação das camadas internas C re sc . v ias piramidais (mov. voluntário) Demarcação do occipital e do temporal Camada 1; demarcação do parietal do frontal Conexões neocórtex - hipocampo Apar. neocórtex área parietal Arquicórtex PÉ.. , i * Complet . todas comiss . hemisféricas Apar. da comissura do hipocampo Apar. da comissura anterior Lobo límbico evidente Corpos estriados evidentes; hipocampo também evidente Hemisférios cerebrais tornam-se bojudos uang l ios da base Complet . todas comiss . hemisféricas Apar. da comissura do hipocampo Apar. da comissura anterior Lobo límbico evidente Corpos estriados evidentes; hipocampo também evidente Hemisférios cerebrais tornam-se bojudos 4. ' flexura emerge aos 35 dias Centros Tálamo evidente Evidência do hipotálamo diencefáli- Tálamo evidente Evidência do hipotálamo cos 2: f lexura aparece aos 2 0 dias Mesencéfalo Tubérculos quadrigémeos aparecem Tubérculos quadrigémeos aparecem Ponte e » a r Q L - | A « . . . . Configuração do cerebelo raeminencia do arquicerebelo i.' f lexura aparece aos 32 dias cerebelo « . . . . Configuração do cerebelo raeminencia do arquicerebelo i.' f lexura aparece aos 32 dias « . . . . Configuração do cerebelo raeminencia do arquicerebelo i.' f lexura aparece aos 32 dias 1'ICUUId alongada 1." f lexura aparece aos 20 dias Mie l in . talam.-medular Mie l in . nervos cranianos MlPlini7 V19C f i n r c o i r íc \ Medu la i^iKiuuí, vido uorbais (S.J Mie l inz . vias cerebelo-pônticas Mielinização das vias ventrais (m.) Esp ina l Apar. de vias sensoriais longas Desenvo lv imento das estruturas internas Estrutura interna completa; movimentos localizados Ref lexos espinais A r c o reflexo; gânglios simpáticos V i a s sensoriais emergem Formação gânglios espinais -L Apar. de vias sensoriais longas Desenvo lv imento das estruturas internas Estrutura interna completa; movimentos localizados Ref lexos espinais A r c o reflexo; gânglios simpáticos V i a s sensoriais emergem Formação gânglios espinais 2 0 d i a s 4 5 6 7 8 9 10 1 1 1 2 13 14 15 16 17 18 19 2 0 21 2 2 23 24 25 2 6 27 28 2 9 3 0 31 32 s e m a n a s ' 2 3 * » 6 7 , m e s e s 39 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Esta embriogénese, paralela com os axiomas filogenéticos e supe- riormente governada pelo plano mestre do ADN, retrata de alguma forma os padrões do desenvolvimento ontongenético intra-uterino, que em si demonstram a continuação das tendências filogenéticas já abor- dadas, que consubstanciam os princípios organizacionais filogenéticos (Milner 1976). Dentro dos padrões de desenvolvimento ontogenético pré-natal, devemos destacar, em termos esquemáticos, os seguintes: 1) A emergência embriológica é paralela à emergência filogenética. Os centros inferiores diferenciam-se antes dos superiores; aqui a ontogénese recapitula a filogénese neurológica; 2) A maturação do neuroeixo é vertical,de baixo para cima, da cauda para a cabeça; 3) O crescimento estrutural prefigura o padrão do funcionamento espontâneo do sistema nervoso, quer em termos pré-natais, quer pós-natais; 4) A medula desenvolve-se funcionalmente numa direcção céfalo- -caudal, padrão esse também seguido pelo desenvolvimento da motricidade e evidentemente dependente da mielinização; para- lelamente, os motoneurónios medulares tornam—se funcionais an- tes dos neurónios sensoriais (padrão de crescimento em duali- dade, denominado pela controvérsia Coghil-Windle); 5) A organização do sistema nervoso é hierárquica com uma sequên- cia de aparecimento irreversível, traduzindo o desenvolvimento an- tecipado dos níveis inferiores em relação aos superiores; 6) A hierarquia estrutural está intimamente relacionada com a organização funcional e a maturação do sistema nervoso, confir- mando o princípio de H. Jackson da «redução contínua da suces- são de estruturas nervosas a estruturas coexistentes - «continuous reduction of sucessions to coexistences». 7) O funcionamento coerente do sistema nervoso central é o pro- duto final da incorporação progressiva de padrões funcionais or- ganizados, que se desenvolvem numa sequência ontogénica hie- rárquica e vertical; a evolução ontogénica pressupõe a transição dos centros proto e arquicorticais para os centros paleo e neo- corticais; os círculos coordenados entre o prosencéfalo e o rom- bencéfalo não estão ainda estabelecidos, especialmente os que compreendem as seguintes funções: integração, reforço, inibição, controlo, estabilização, etc; a intervenção dos centros superiores intratelecefálicos, talâmicos, hipotalâmicos, arquicorticais dos gânglios da base e do neocórtex estão inconclusos à nascença, é necessário que subsequentemente surja o padrão ontogenético seguinte; 40 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA 8) No nascimento, a herança mamífera do desenvolvimento humano, com as suas estruturas neurológicas únicas, está presente apenas como potencial, sendo aqui que entra em jogo o factor extrafi- logenético, um novo princípio exclusivo da espécie humana e que influencia certamente os seguintes padrões neurogenéticos, isto é, a dimensão biossocial que caracteriza o desenvolvimento psi- coneurológico da criança. A evolução do cérebro, consequentemente, integra uma organização funcional de padrões filogenéticos e ontogenéticos (Fonseca 1982 e 1985) que parte do mais organizado (medula) para o menos organizado (córtex) dos centros inferiores para os centros superiores, do mais sim- ples ao mais complexo, do mais automático para o mais voluntário. Para se atingir a maturidade, ou seja, os centros menos organiza- dos mas mais complexos e voluntários, é necessário que surjam novos padrões ontogenéticos, dependentes, obviamente, dos padrões filogené- ticos herdados. O sistema nervoso está efectivamente organizado num complexo modelo de reduplicação dos centros inferiores, com os centros supe- riores funcionalmente dominantes sobre aqueles, como confirmam Weiss, Tinbergen, Fulton e Himwich, focados por Milner 1979. As unidades filogenéticas e ontogenéticas mais antigas são também as que ocupam os níveis mais baixos da hierarquia funcional. Em cada nível estão reduplicadas e representadas sucessivamente, obedecendo a uma verticalização estrutural. Tal arranjo anatómico, do inferior ao superior, permite uma perfeita coordenação funcional, que está na base do aparecimento de novos sistemas funcionais. Este padrão traduz a hierarquia da experiência humana (Fonseca 1984) e a evolução das competências da criança, desde as mais simples às mais complexas. A complexidade do desenvolvimento psiconeurológico da criança, pro- vavelmente, só pode ser equacionada nesta perspectiva hierarquizada da ontogénese da aprendizagem, que em certa medida parece traduzir uma espiral evolutiva. H. Jackson em 1822 afirmou: «Quanto mais alto é o centro, mais numerosos, diferenciados, complexos e especiais movimentos ele repre- senta, e quanto maior a região que ele representa, mais justifica a evo- lução. Os centros superiores representam os movimentos mais inume- ráveis, complexos e especiais de todo o organismo, ao mesmo tempo que cada unidade deles representa o organismo total de uma forma diferente.» Desta forma, os arranjos dos centros superiores inibem, controlam e organizam os centros inferiores, e como consequência, quando o superior está disfuncional, eleva a sua actividade, como se verifica em muitas situações patológicas. 41 MANUAL DE OBSERVAÇÃO PSICOMOTORA Os centros inferiores, todavia, fazem parte da coordenação composta que traduz qualquer movimento voluntário, como iremos ver quando abor- darmos a organização funcional do cérebro e os factores psicomotores. As suas funções estão posteriormente representadas noutros centros motores médios, onde se representam consequentemente as coordena- ções simples. Os centros médios, por sua vez, re-representam os cen- tros inferiores, onde já se estabelecem coordenações compostas. A soma destas representações é já uma dupla e indirecta representa- ção da totalidade do organismo. Por último, os centros superiores, são re-re-representações, pois representam triplamente os outros centros, realizando por esse processo de transferência funcional, as coordena- ções complexas. Em cada centro surge, portanto, um aumento de complexidade de representação das partes componentes, daí o aumento da especialidade da representação, como focou Jackson 1822. O desenvolvimento psiconeurológico e psicomotor à luz de Jack- son esclarece-nos, em certa medida, as perspectivas de Wallon, Piaget e Luria. A evolução e a dissolução parecem aqui em contraste dialéc- tico, pois por meio deste padrão filogenético-ontogenético percebemos a evolução da criança do reflexo à reflexão, do acto ao pensamento e do gesto à palavra, como por meio dele percebemos o reflexo das di- ficuldades ou incapacidades de aprendizagem. A ontogénese psiconeurológica e psicomotora parece traduzir várias metamorfoses, que vão desde as representações às re-representações, até culminarem nas re-re-representações. Dos movimentos reflexos (re- presentações) aos hábitos motores (re-representações) e destes às aqui- sições motoras voluntárias, isto é, às praxias (re-re-re-representações). Da mesma forma, a evolução da linguagem, segundo Slobin 1971, e Myklebust 1974, 1975 e 1977, parte da linguagem gestual (represen- tações) à linguagem falada (re-representações) e atinge a linguagem escrita (re-re-representações). Patten 1953, na mesma linha ontogenética de Tinbergen 1951, pos- tula o sistema somático-motor humano no sistema hierárquico dos me- canismos inatos de libertação (innate releasing mechanisms) (v. pág. 43). Todas as vias ontogenéticas de interconexão no sistema nervoso humano parecem confirmar o padrão filogenético hierarquizado redu- plicativo, daí que não se possa conceber hoje o desenvolvimento da criança sem o seu contributo. Da mesma forma, a ontogénese parece ilustrar uma filogénese ina- cabada e constantemente renovada. A revelação da filogénese no decurso da ontogénese obedece, porém, a uma organização funcional do cérebro, organização essa que decorre verticalmente, desde as estru- turas neurológicas mais simples às estruturas mais complexas, seguindo irreversivelmente a sua hierarquização estrutural herdada. 42 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA NÍVEL C E N T R O S S U P E R I O R E S FUNÇÃO E C O M P O R T A M E N T O Arco 6 Neocórtex Controlo voluntário e regulado. Arco 5 Gânglios basais e tálamo Controlo automático associativo. Arco 4 Cerebelo e mesencéfalo Controlo sinergético. Controlo óculomotor automático. Arco 3 Cerebelo, bulbo e medula Controlo do equilíbrio. Arco 2 V á r i o s segmentos espinais actuando em coordenação Reflexos intersegmentares. Arco 1 Só um segmento espinal Reflexo intra-segmentar. 43 CAPÍTULO II MODELO DE ORGANIZAÇÃO FUNCIONAL DO CÉREBRO HUMANO SEGUNDO LURIA RELAÇÕES
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