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A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE NÚMERO NA PERSPECTIVA PIAGETIANA: O QUE PENSAM OS PROFESSORES THE CONSTRUCTION OF THE NUMBER CONCEPT FROM PIAGET’S POINT OF VIEW: TEACHERS’ OPINIONS Clélia Maria Ignatius Nogueira* Marta Bellini** Ozília Geraldini Burgo*** Resumo O objetivo deste trabalho foi investigar quais as concepções epistemológicas de professores de Educação Infantil sobre o ensino de número para crianças de 4 a 6 anos de idade, tendo como referência a teoria piagetiana. Como procedimentos metodológicos realizamos: a) entrevista com dez professoras que atuam com educação infantil; b) aplicação de um jogo 1 e de uma situação lúdica para esclarecer como as professoras organizam atividades com o número em suas aulas e c) análise das respostas de acordo com as concepções apresentadas por Becker (1993). Os resultados da pesquisa indicaram que as concepções das professoras de Educação Infantil em relação ao ensino de número são empiristas mescladas com as visões aprioristas e interacionistas prevalecendo a prática em detrimento da teoria em sala de aula. No entanto, quando da aplicação da situação lúdica, emergiu uma concepção construtivista com as propostas de atividades e de questionamentos às crianças elaboradas pelas professoras, que contemplam a construção do conceito de número na perspectiva piagetiana. Palavras-chave: educação infantil, construção do número, ensino de números, concepção de professores.. Abstract First Grades teachers’ epistemological concepts on the teaching of numbers to 4 – 6 year-old children are investigated with reference to Piaget’s theory. Methodological procedures consisted of (a) an interview with ten kindergarten teachers; (b) the application of game 5 [4] and a game situation to show the manner teachers organize activities with numbers in the classroom context; (c) an analysis of the answers according to Becker’s concepts (1993). Research results show that with regard to the teaching of numbers kindergarten teachers put into practice empirical concepts mixed with a priori and interactive stances with the predominance of practical knowledge rather than of theory. However, the constructive concept emerged in the case of the game situation through children’s activities and questioning proposed by the teachers imbued with the number concept according to Piaget’s perspective. Key words: first grades teachers; number construction; teaching of numbers; teachers’ conceptions. INTRODUÇÃO O trabalho pedagógico com o conceito de número é rediscutido e redirecionado após os estudos de Piaget e colaboradores, afinal, de acordo com Nogueira e Montoya (2004, 119) “nenhuma afirmação piagetiana causou tanto alvoroço entre os educadores quanto a de que ‘não é suficiente a criança saber contar verbalmente para que esteja de posse do número’”, explicitada no livro A gênese do número na criança, de autoria de Jean Piaget e Alina Szeminska. Mesmo com a divulgação dos estudos sobre a construção do conceito de número pelas crianças, o conhecimento dos postulados de Piaget na formação de professores da Educação Infantil e das quatro * Doutora em Educação pela UNESP – Campus de Marília. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática – PCM/UEM.. * * Doutora em Psicologia Social pela USP – São Paulo. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática – PCM/SP. * ** Mestre em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática – PCM/UEM. Professora de Educação Infantil. 1 O jogo Quantifica 1 extraído GOLBERT (2002) Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 94 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores séries iniciais do Ensino Fundamental, sobretudo no que diz respeito ao conhecimento matemático, é precário. De maneira geral, o ensino da matemática na Educação Infantil é sustentado pela crença de que o número é “aprendido” a partir da “habilidade” de contagem, com a seqüência de palavras-número, repetida intensamente, objetivando a memorização; ênfase na leitura e escrita dos numerais, esta última, mediante o “treino” exaustivo dos algarismos. O professor apresenta os algarismos aos alunos, um após o outro, primeiramente até o 5, depois, de 5 a 10 e etc., sempre tomando o cuidado de fazer a identificação entre o símbolo numérico e alguma coleção de objetos.Depois de muitos exercícios nesse sentido, o caminho inverso é percorrido e se apresenta o símbolo numérico e as crianças representam, por desenhos, qual é a quantidade em questão. Nessa perspectiva, o número é concebido como um objeto pré-existente, um saber constituído do qual se podem apresentar determinadas características que a criança deve conhecer e memorizar e, portanto, passível de ser transmitido como um conhecimento social. A partir do movimento da Matemática Moderna2, que é considerado até atualmente como o principal esforço mundial realizado na tentativa de se melhorar o desempenho dos alunos em matemática, o ensino dessa disciplina sofreu grandes transformações, em particular, o ensino do número. E um fator que pode ter colaborado para essa mudança radical é que os resultados de Piaget e Szeminska são contemporâneos ao movimento de Matemática Moderna e, o principal resultado por eles apresentados é que o número é a síntese da classificação e da seriação. Os pesquisadores destacam também o importante papel desempenhado pela correspondência termo a termo nessa construção. Ora, atividades de classificação, seriação e correspondência termo a termo podem ser relacionadas matematicamente à teoria dos conjuntos e, então, o ensino de número passa a ser pedagogicamente encaminhado mediante atividades de relação de pertinência, correspondência termo a termo, cardinal de conjuntos etc., sendo as atividades de contagem postergadas para os sete anos, idade presumível da consolidação do conceito 2 Movimento desencadeado por matemáticos e que procurava aproximar o saber ensinado na escola do saber mais atual da ciência matemática, razão pela qual, a linguagem da teoria dos conjuntos, que é a linguagem da matemática formal passa a ser enfatizada. de número, segundo a teoria piagetiana, conforme assinalam Nogueira e Montoya (2004). Com o advento do movimento da Matemática Moderna, o número praticamente sai de cena, sendo substituído pelas atividades preparatórias para a construção do conceito de número. [...] As atividades recomendadas passaram a ser, particularmente, as de classificação e seriação e o emprego sistemático da correspondência termo a termo. Passou-se a falar em "noção de número natural", que seria elaborado, gradativamente, mediante diversas manipulações de objetos. (NOGUEIRA e MONTOYA, 2004, p.121). Estas duas maneiras de se “ensinar” número ainda permeiam o fazer pedagógico dos professores, embora ambas se fundamentem na transmissão oral, mudando apenas os conceitos que se acredita transmitir. Conforme assinala Nogueira (2002, p.58) É preciso reconhecer que no plano das concepções de aprendizagem não há grandes mudanças em relação ao período anterior à reforma: continua-se a primeiramente aprender conhecimentos (neste ponto, estruturas, relações ou conceitos), para posteriormente aplicá-los na resolução de problemas. É a matemática moderna sendo ensinada via modelo da matemática tradicional. De acordo com Lerner (1995, p. 11), muitos professores compartilham a concepção de ensino e aprendizagem em que “ensinar consiste em explicar, e aprender consiste, em repetir (ou exercitar) o ensinado até repeti-lo fielmente”.Esta crença apóia-se na crença nos postulados empiristas, ou seja, na visão de que o conhecimento do sujeito surge da associação de fragmentos de conteúdos, do menor ao maior, do exercício da repetição desses pequenos conhecimentos que vêm de meio cultural e social para dentro do indivíduo. É por isso que, sobretudo no ensino da matemática, o exercício de repetição dos números, das contas, das tabuadas tem trajetória secular na escola. Neste artigo apresentamos parte de uma investigação realizada em 2006 sobre as concepções de ensino de número de dez professoras de Educação Infantil de escolas públicas e privadas de Maringá, PR. O objetivo foi conhecer quais são os postulados epistemológicos que orientam a prática Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 NOGUEIRA ET AL. 95 docente destes professores, investigando suas concepções de ensino do número para crianças de 4 a 6 anos de idade, tendo como fio condutor a teoria piagetiana. Para isso, iniciamos com a contextualização teórica da pesquisa, comentando acerca das principais obras acerca da construção do conceito de número segundo Piaget e que são acessíveis aos professores da Educação Infantil e Ensino Fundamental no Brasil; a seguir, discutimos os principais postulados do empirismo, inatismo e construtivismo, para poder identificá-los nas falas dos professores, para então descrever a investigação realizada e os resultados encontrados. A divulgação da teoria piagetiana no Brasil: o caso particular do número Na década de quarenta, além dos aspectos verbais e conceituais do pensamento infantil, que resultaram em A formação do símbolo na criança, Piaget já havia analisado as fontes práticas e sensório-motoras do desenvolvimento da criança e publicado seus resultados em duas obras clássicas: O nascimento da inteligência na criança e A construção do real na criança. Para “ultrapassar essas duas etapas preliminares e atingir os mecanismos formadores da própria razão”, era necessário investigar “como os esquemas sensório- motores da assimilação inteligente se organizam no plano do pensamento em sistemas operatórios”, o que só seria possível mediante o estudo do número (PIAGET e SZEMINSKA, 1981, p.11). As pesquisas acerca da gênese do número não se restringiram apenas às realizadas por Piaget e Szeminska e que resultaram no livro A gênese do número na criança (1941). Ao contrário, elas se ampliaram para bem além deste período, com a colaboração da equipe interdisciplinar do Centro Internacional de Epistemologia Genética, a partir da segunda metade da década de cinqüenta e durante os anos sessenta. Como os textos de Piaget são, em geral, de leitura complexa, os resultados de suas pesquisas costumam alcançar os professores da Educação Infantil e Ensino Fundamental pela produção de comentadores ou estudiosos que se fundamentam na epistemologia genética. Constance Kamii é a escritora piagetiana que mais influenciou .e ainda influencia, os professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental brasileiro e de toda a América Latina. Uma prova contundente deste fato é que o exemplar do livro A criança e o número, pesquisado para este trabalho, constitui a 25ª edição do mesmo. Seu livro possui dois méritos indiscutíveis: o primeiro é, sem dúvida, o fato de que a partir do A criança e o número, os professores passam a acreditar não ser possível se “ensinar” número. O outro é o de trazer para discussão, dentro do ensino da matemática, questões de natureza geral da educação piagetiana, como por exemplo, a que se refere ao objetivo geral da educação como sendo o de formar indivíduos autônomos. De acordo com Nogueira (2002), este último aspecto reveste-se da maior importância para os professores de matemática, para quem a possibilidade da matemática promover, ou apenas colaborar, com o desenvolvimento da autonomia é algo que jamais imaginaram ser possível face às peculiaridades da disciplina, com seus conteúdos áridos, aparentemente hierarquicamente cumulativos e exatos, que parecem não proporcionar espaço para discussões de temas sociais. Por ser de fácil e agradável leitura, o livro de Kamii proporciona às pessoas que nunca tiveram contato maior com o pensamento de Piaget a compreensão de como se processa a construção e o uso do conceito de número pelas crianças de 4 a 7 anos. “Com este livro os professores passam a acreditar que não é possível ‘ensinar’ número” (NOGUEIRA, 2002, p. 67). Constance Kamii trouxe à discussão questões ligadas à natureza do número e a aplicação desses conhecimentos à prática pedagógica de professores da Educação Infantil. A aplicação das lições aprendidas com Piaget e compartilhadas com outros pesquisadores é resgatada em sua obra com questões sobre a construção do conceito de quantidade e suas múltiplas aplicações na vida das crianças, com todas as conseqüências pedagógicas. Ainda nessa obra, influenciada pelas idéias de Piaget, Kamii destaca aspectos do desenvolvimento cognitivo infantil, o papel fundamental das relações que a criança estabelece com o meio e a importância do trabalho dos professores. Ao evidenciar a interação com o meio e a importância do papel do professor, Kamii aponta para o fato de Piaget reconhecer fontes internas e externas do conhecimento. A fonte do conhecimento físico (assim como do conhecimento social) é parcialmente externa ao indivíduo. A fonte do conhecimento lógico-matemático, ao contrário, é interna. Este fato inverte as perspectivas de ensino até então usadas na matemática de modo que, conforme com Piaget (1980), o ensino de matemática para Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 96 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores crianças pequenas usando métodos arcaicos, baseados na transmissão verbal do professor para o aluno e com o uso prematuro do formalismo estaria destinado ao fracasso, pois a criança não estaria construindo este conhecimento, apenas memorizando. Um outro livro de Kamii, que contribuiu para a divulgação da teoria piagetiana acerca da construção do conceito de número, foi Reinventando a Aritmética: implicações da teoria de Piaget, publicado, em 1985, em parceria com Geórgia Declark. Este apresenta uma análise da teoria de Piaget e sua aplicação prática na sala de aula objetivando a construção das noções elementares de aritmética. Neste livro, Kamii e Declark mostram que é possível permitir e favorecer, dentro da sala de aula, a construção de pensamento matemático, mediante a exploração de jogos e situações do cotidiano. Em seus livros, Kamii defende que os conceitos numéricos não são ensináveis. As crianças não vão à escola aprender os conceitos numéricos porque os constrói naturalmente, pressupondo-se que o raciocínio lógico-matemático é um conhecimento natural, biológico, universal. Ela sugere o uso de jogos como estratégia de construção do conceito de número. Os jogos são um aporte essencial do ensino construtivista por muitas razões. Do ponto de vista do desenvolvimento da autonomia das crianças, os jogos envolvem regras e são, portanto, especialmente adequados para o desenvolvimento da habilidade das crianças de governarem a si mesmas. Do ponto de vista da aritmética, os jogos é há muito tempo conhecidos como motivadores do treino das quatro operações (KAMII, 1995, p.147). No livro Jogos em Grupo na educação infantil: implicações da teoria de Piaget, em parceria com Rheta Devries, Kamiiapresenta relatos de experiências com diferentes jogos, em uma visão que redimensiona a importância dos jogos em grupo para o desenvolvimento da criança. Segundo Piaget (1979, apud KAMII, 1991), o trabalho com confronto de pontos de vista é indispensável, desde a infância, para a elaboração do pensamento lógico. Para Kamii (1991) o objetivo deste livro é mostrar o que as crianças podem aprender com os jogos e como o professor pode intervir de modo a maximizar a aprendizagem. A principal contribuição de Kamii, todavia, é ter transposto para a prática escolar a tese epistemológica de Piaget de que o pensamento matemático é produto da atividade do sujeito. Kamii enfatiza a importância de se compreender o processo percorrido pela criança nas atividades a serem desenvolvidas, colocando o erro como parte do processo. A importância dos erros não é negligenciada, visto que um erro corrigido é freqüentemente mais instrutivo que um sucesso imediato. Ana Cristina Rangel é autora do livro Educação matemática e a construção do número pela criança: uma experiência na 1ª série em diferentes contextos sócio-culturais. Esse livro foi resultado de um estudo desenvolvido com duas classes de 1ª série de escolas de diferentes níveis sócio-econômicos como parte do Programa PERI- CAMPUS-UFRGS. Esse estudo reexaminou e discutiu a teoria construtivista piagetiana enfatizando as questões relativas à natureza do conhecimento lógico-matemático, às relações entre este e o desenvolvimento afetivo-moral e às relações entre desenvolvimento cognitivo, aprendizagem matemática e determinações sócio- econômicas. Por meio de uma práxis orientada para a construção do pensamento lógico baseado na atividade espontânea da criança frente a contextos problematizadores e que privilegiou a ação cooperativa, aprofundou-se a reflexão sobre o número e sua representação gráfica, discutindo-se, igualmente, resultados de outros estudos na área. Além dos progressos evidenciados pelas crianças, o estudo permitiu estabelecer as linhas básicas de uma proposta metodológica para o currículo e o ensino da Matemática na 1ª série e contribuiu para o aperfeiçoamento de professores em exercício e em formação. Acreditamos, como Piaget, que o principal objetivo do ensino da Matemática é o desenvolvimento das capacidades dedutivas. Temos visto, através das nossas experiências nas escolas, que o maior engano que se vem cometendo está no ensinar a Matemática como se esta tratasse exclusivamente de verdades acessíveis, por meio de uma linguagem artificial, que é a dos símbolos operatórios. Não se leva em conta a maneira como a criança constrói o número e os primeiros conceitos matemáticos. Não se consideram suas experiências diárias, nas quais estabelece Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 NOGUEIRA ET AL. 97 relações de semelhanças e diferenças entre objetos e fatos que manipula, classificando-os, ordenando-os e quantificando-os (RANGEL, 1992, p. 17). Nesta obra, Rangel proporciona um aprofundamento dos estudos sobre Educação Matemática e a teoria de Piaget por desenvolver novos elementos para a compreensão dos processos de construção do conhecimento pela criança. Também procurou estabelecer relações entre os princípios teóricos do funcionamento das estruturas mentais, a natureza do conhecimento lógico- matemático e do número, as interações do meio ambiente da criança e a caminhada em direção a autonomia cognitiva e moral. Íris Barbosa Goulart é a organizadora do livro: “A educação na perspectiva construtivista: reflexões de um equipe interdisciplinar”, que surgiu das discussões de um grupo de professores da UFMG que se reuniram a partir de junho de 1989 e, durante três anos, estudaram a contribuição de Piaget para a educação, o modelo construtivista. O objetivo deste grupo era estabelecer um referencial teórico comum, a partir do qual: a) fossem produzidos textos para consumo de professores; b) fossem desenvolvidas pesquisas; c) fossem discutidas as produções individuais; d) fosse dada continuidade, de maneira mais fundamentada e crítica, à experiência dos que aplicam o construtivismo em suas escolas. Entre os objetivos específicos desse grupo de construtivistas mineiros inclui-se a intenção de se evitar a dissociação teoria/prática, discutindo cada proposição teórica face às possibilidades de sua utilização na realidade da escola (GOULART, 1998, p.14). Esse livro apresenta a novidade de ser o produto de um grupo permanente que uniu teoria e prática, tendo em conta diretamente o ensino no Brasil. Goulart é também a autora do livro: “O construtivismo piagetiano e a Educação”. A maneira como as experiências piagetianas são apresentadas nesse livro, segundo a própria autora, nem sempre é fiel ao método clínico3 utilizado por Piaget, pois, com a finalidade de facilitar o trabalho do professor, sugerem-se mais questões do que Piaget usualmente apresentaria aos seus observados. 3 Método clínico consiste em uma observação natural conjugada com questões destinadas a provocar o raciocínio das crianças. Segundo Goulart (2003), os professores geralmente se mostram tão preocupados em ensinar que não tem paciência suficiente para esperar que as crianças aprendam, perdendo, com isso, a oportunidade de acompanhar, pela análise das respostas espontâneas, a estrutura de raciocínio de seus alunos. Com esse texto, Goulart (2003) tenta responder à questão “Como tem origem e evolui o conhecimento”, fundamentando-se na teoria de Piaget. Ela discute os aspectos e estádios do desenvolvimento psíquico, o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento afetivo. Na parte III do livro a autora faz uso das provas piagetianas para avaliar o desenvolvimento lógico nas crianças. Essa obra ajudou a difundir o pensamento de Piaget e, acima de tudo, mostrou uma forma pedagógica de aplicação das idéias do autor, trazendo um estudo sobre o resultado das provas piagetianas aplicadas em crianças de idades diferentes. A partir das amostras de experiências contidas nos textos, os interessados no trabalho de Piaget poderão criar outras situações destinadas a avaliar o desenvolvimento cognitivo. E, embora não trate diretamente do ensino da matemática, ao explicitar a construção do número e do espaço, Goulart fornece subsídios importantes para o fazer pedagógico do professor. Terezinha Nunes foi uma das divulgadoras da teoria de Piaget por meio de seu livro: Aprender Pensando. Este surgiu de um projeto: Aprender Pensando, composto por um grupo de pesquisadores do SOPV (Serviço de Orientação Pedagógica e Vocacional) da Universidade Federal de Pernambuco, e que tinha como finalidade contribuir para a atualização de professores e pais em relação a certos conhecimentos sobre o desenvolvimento da inteligência. Segundo o grupo, a compreensão de como certos aspectos da inteligência se desenvolvem é útil ao professor. Se um professor sabe como se desenvolve o conceito de número na criança, ele poderá dirigir melhor os trabalhos de aprendizagem do número em sala de aula, entenderá melhor a participação de seus alunos neste trabalho e, conhecendo a razões de sucesso de uns e fracasso de outros, estará em melhores condições de descobrir meios para ajudar alunos com dificuldade (CARRAHER, 2002, p. 9). A primeira edição do livro resultante do projeto, com o mesmo título, foi publicada pela Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10,n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 98 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e Universidade Federal de Pernambuco. Segundo a autora, o livro: Aprender Pensando é uma obra dedicada aos professores, orientadores educacionais e psicólogos comprometidos com a busca de novos caminhos para a educação. O livro indica ao professor que ensine pensando e não repetindo mecanicamente os passos de um determinado método de ensino. A essência do ensinar e do aprender pensando é entender o ponto de vista da criança para saber quais problematizações podem levá-la a novas descobertas. Essa obra descreve o modelo cognitivo proposto por Piaget, que destaca a importância do raciocínio e do pensamento por parte da criança, como fatores responsáveis pela aprendizagem. Com os resultados obtidos nas pesquisas, o livro enfatiza que a escola deve aprender sobre as formas que a criança inventa para resolver problemas e deve procurar utilizar essas descobertas, em vez de impor procedimentos escolares que podem competir e interferir com o raciocínio espontâneo da criança (CARRAHER, 2002, p. 9). Lerner (1995), assim como Kamii, ainda traz à discussão, a questão do “erro”, não como uma resposta totalmente errada, mas como um caminho para se descobrir a verdade, como preconizava Piaget. Os erros não podem ser encarados de forma complacente nem ser motivo de punição. Eles ajudam a descobrir maneiras de ensinar para que o estudante pense mais. Mais importante que a criança acertar é saber justificar como chegou a um resultado. Em seu livro: A matemática na escola: aqui e agora, Lerner (1995b), faz um estudo que ajuda compreender se a forma tradicional de ensinar oferece às crianças oportunidades reais de assimilar o conhecimento matemático. Ela investigou se as novas ações didáticas que salientavam a ação intelectual da criança em detrimento da reprodução de mecanismos estavam sendo refletidas na aprendizagem matemática. Lerner também pesquisou, em conjunto com Sadovsky, como as crianças tinham acesso ao sistema de numeração, pesquisa que deu origem ao artigo: O sistema de numeração: um problema didático, apresentado no livro Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas de Parra & Saiz (2001). As pesquisadoras consideraram que a numeração escrita existe não só dentro da escola, mas também fora dela, pois na didática construtivista as crianças têm condições de elaboraram conhecimentos acerca do sistema de numeração muito antes de ali ingressar. O método clínico de Piaget foi usado nas entrevistas para oferecer oportunidades para as crianças expressarem suas próprias opiniões e compará-las com as das outras crianças, o que possibilitaria elaborar novos procedimentos e tentar justificá-los. “As obrigaria a questionar e reformular suas idéias para aproximar-se progressivamente da compreensão da notação convencional” (LERNER; SADOVSKY, 2001, p.75). No decorrer da pesquisa, Lerner e Sadovsky observaram que as crianças pensam ao mesmo tempo nos dez, nos milhões e nos milhares, elaboram critérios de comparação ao observar as categorias de números muito “grandes”, sem nem mesmo entender os números menores. Segundo Lerner e Sadovsky (2001), elas não precisam lembrar das “dezenas” e “unidades” para produzir escritas numéricas, portanto isso não é requisito para usá-los em contextos significativos. Mais recente, a obra de Golbert é composta por três volumes: Jogos matemáticos: Athurma 1: quantifica e classifica; Jogos: Athurma 2: Matemática nas séries iniciais; Novos rumos da aprendizagem da matemática: conflito, reflexão e situações-problemas. Essas obras foram elaboradas após 20 anos de estudos e pesquisas com crianças com problemas de aprendizagem, procurando desenvolver atividades interativas e colaborativas que ajudassem a criar conflitos cognitivos. Com esses conflitos, as crianças e jovens deveriam ser capazes de propor novas formas de calcular e resolver situações-problemas. A primeira obra traz elementos teóricos e exemplos ilustrados da utilização de um material pedagógico específico para o ensino da matemática na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Designados pela autora por ATHURMA, os jogos apresentados na obra foram criados com o objetivo de oportunizar uma aprendizagem significativa e desafiadora, respeitando os princípios da psicologia da aprendizagem e, naturalmente da própria matemática. ATHURMA vem do grego e significa ‘agilidade prazerosa’. E é isso que esse material visa desenvolver; agilidade mental no estabelecimento de relações lógicas, numéricas, lingüísticas e prazer, através da atividade lúdica, uma das mais autênticas formas de comportamento infantil (GOLBERT, 2002a, p.5). Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 NOGUEIRA ET AL. 99 Essa obra partiu dos estudos da epistemologia genética formulada por Piaget, trazendo para o leitor a utilização dos métodos ativos e a importância de o ensino propiciar a reinvenção do conhecimento pelo aluno ou, pelo menos, de que ele possa ser reconstruído e não transmitido. No primeiro volume, os jogos QUANTIFICA oferecem experiências de correspondência termo a termo e contagem, que conduzem a abstrações relacionadas com a compreensão da cardinalidade ao mesmo tempo que favorecem a construção do conceito de número de maneira solidária e sincrônica com as classes e séries. Já o jogo CLASSIFICA oportuniza experiência de classificação de conjuntos, levando em consideração critérios de compreensão e de extensão. “Como esclareceu Piaget, ao classificar e se defrontar com os determinantes de qualquer combinação de classes, - um, nenhum, todos, alguns, - a criança estabelece relações lógicas indispensáveis para a elaboração do conceito de número” (GOLBERT, 2002a, p. 74). No segundo volume dos JOGOS MATEMÁTICOS, Jogos ATHURMA 2, a autora apresenta o jogo EQUIVALE, que visa favorecer a progressiva compreensão do número como designação de relações de equivalência, bem como fortalecer a escrita dos números, considerando o valor absoluto e relativo dos algarismos. COMPREENDENDO AS CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES: O OLHAR EMPIRISTA, INATISTA E CONSTRUTIVISTA A cultura escolar, em geral, sustenta-se sobre a experiência do sujeito como possibilidade de acesso ao conhecimento matemático. É a crença presente no cotidiano dos professores, dos alunos e dos pais. Todos acreditam que aprender matemática é “prestar bastante atenção no que descreve a professora, fazer, refazer e revisar todos os exercícios”. Desse modo, o professor pensa que aprender matemática é fixar conceitos e técnicas, bom em matemática, que é preciso fazer e refazer muitas vezes os exercícios dados pelos professores. Outro parâmetro do professor é o uso da avaliação dos pais, já que estes adotam a crença - também empirista – que bom professor é aquele que enche o caderno das crianças com longas e repetitivas lições como tabuadas, contas. A partir da difusão das idéias dos construtivistas, para os quais as crianças precisam ser agentes da sua própria aprendizagem, as salas de aula de matemática, desde a Educação Infantil até níveis bem avançados, ficaram repletas de materiais “manipuláveis”, isto é, materiais para serem explorados pelos alunos, como os tradicionais blocos lógicos de Dienes, as barrinhas de Cuisenaire e o material dourado de Montessori.Se uma aparente contradição ocorreu com a Matemática Moderna, que foi ensinada de maneira tradicional, com a utilização de material manipulável em sala de aula, hoje acontece algo semelhante, pois, apesar de se alardearem os pressupostos construtivistas, a ação pedagógica continua empirista, uma vez que os professores não compreendem que tais materiais podem ser tão abstratos e desconectados com a realidade para as crianças quanto os conceitos matemáticos. Ao considerarem a utilização de materiais em sala de aula como um fim em si mesmo e não que eles cumprem apenas o papel de facilitar a construção de conceitos abstratos, os professores deixam transparecer que acreditam que o conhecimento matemático está nos materiais, que eles falam por si e as crianças apenas relatam os resultados que extraem dessas ferramentas. Essas crenças orientam, como descreveu Becker (1993), o trabalho do professor o qual, por sua vez, sustenta-se na linguagem. A inteligência operatória, as coordenações das diferentes ações que levam ao conhecimento cedem lugar apenas à linguagem formal. Outra orientação epistemológica é a inatista. O professor orientando por essa crença pensa que a criança nasce portadora de conhecimentos. Com o seu desenvolvimento cronológico, seu raciocínio também se desenvolve. O ensino guiado pelos postulados inatistas concebe o conhecimento de dentro para fora do sujeito. Piaget admite o papel do empirismo na construção do conhecimento, mas adianta que este, por si só, não explica suficientemente a construção do conhecimento. Piaget opõe-se ao empirismo porque esse postulado explica apenas uma dimensão do conhecimento, isto é, o da experiência. Piaget não nega a importância da experiência na construção do conhecimento, mas, para ele, a experiência pode ser física ou lógico-matemática. A experiência física consiste em agir sobre os objetos e retirar algum conhecimento, por abstração, a partir desses objetos. Na experiência lógico-matemática, identificada por Piaget como o ponto de partida da dedução matemática, o conhecimento é retirado da Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 100 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores coordenação das ações mentais exercidas sobre os objetos. Desse modo, Piaget apresenta uma hipótese epistemológica que se opõe ao inatismo e ao empirismo: a construtivista. Para o construtivismo piagetiano, as idéias têm história; mais do que a compreensão de uma área de conhecimento acabado, Piaget quer que entendamos como se dá o processo da construção dos conceitos científicos. Para ele construir conhecimentos é melhorar noções, aprimorar formas explicativas, ou seja, é o modo como se aproxima do conhecimento científico. Nessa perspectiva, para Piaget é um equívoco acreditar que a formação do pensamento matemático se deve a uma abstração a partir do objeto, como se o conteúdo desse pensamento estivesse contido na realidade exterior e que bastasse extraí-lo para produzir relações numéricas ou espaciais. A investigação Com o objetivo de conhecer as concepções epistemológicas de 10 (dez) professores de Educação Infantil acerca do ensino do número entre crianças de 4 a 6 anos de idade, tendo como fio condutor a teoria piagetiana, realizamos: a) entrevistas semi-estruturadas com 10(dez) professores de Educação Infantil sobre seus conhecimentos da teoria piagetiana em relação à construção do número. b) aplicação: do jogo “Quantifica 1”, para conhecer o modo como os dez professores concebiam e organizavam sua atividades de ensino do número para as crianças; e da situação lúdica “Brincar de casinha” para compreender como os professores utilizavam materiais lúdicos par ao ensino de número. A entrevista, o jogo e a brincadeira foram aplicados individualmente. Cada professor foi entrevistado e realizou as atividades em suas residências, após a aprovação do projeto no Comitê de Pesquisa e Ética da Universidade Estadual de Maringá em abril de 2006. Os professores Os sujeitos da pesquisa são professores da Educação Infantil pública e privada de Maringá, PR e atuavam em sala de aula no momento em que a pesquisa foi realizada, no ano de 2006. Os professores eram graduados em Letras (1), Pedagogia, curso completo (4), Pedagogia curso incompleto (1), ou Normal Superior (3) ou estavam cursando (1). Quatro têm pós-graduação: dois em Psicopedagogia, um em Gestão Escolar, e um tinha Mestrado em Educação. A média de atuação na Educação Infantil é de quatro a quinze anos. A entrevista, o jogo e a brincadeira As entrevistas foram realizadas, nos meses de abril e maio de 2006, a partir de um roteiro com perguntas sobre os conhecimentos teóricos piagetianos acerca da construção do número relacionando-os com a prática pedagógica de cada professora. O jogo “Quantifica 1” foi baseado no modelo de Golbert (2002) e tinha como objetivos: a) oportunizar à criança, simultaneamente, experiências de correspondências termo-a termo e de contagem; b) conduzir à abstrações relacionadas com a compreensão da cardinalidade; c) fortalecer a elaboração do conceito de número como representação simultânea de uma classe e de uma série; d) promover a elaboração da correspondência numérica entre diferentes conjuntos de forma operatória, independentemente da configuração perceptiva. O jogo faz uso de botões e barrinhas coloridas, que deverão ser dispostos em cartelas a partir de uma quantidade retirada em jogadas promovidas por um dado. Na brincadeira “Brincar de casinha”, por nós elaborada, utilizava objetos relacionados à casa, como pires e xícaras de tamanhos e cores diferentes, panelas e tampas de cores e tamanhos diferentes, jarras, copos. Nas duas situações era solicitado às professoras que mostrassem como utilizariam os materiais em sala de aula para o ensino do número. Os procedimentos As perguntas que orientaram a entrevista objetivavam identificar a opinião da entrevistada quanto aos seguintes aspectos: “o que uma criança de 4 a 6 anos deve conhecer sobre números”; se o conceito de número pode ser ensinado; se a criança aprende ou constrói o conceito de número; se a criança de educação infantil já possui o conceito de número; se é possível fazer um bom trabalho pedagógico (prática) sem o conhecimento de uma teoria que sustente essa prática; qual é o papel do professor e o do aluno no processo de aprendizagem e, finalmente, qual o conhecimento matemático do professor de educação infantil. Após os professores responderem a estas questões, eram apresentadas as Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 NOGUEIRA ET AL. 101 situações lúdicas do jogo Quantifica 1 e de Brincar de Casinha. A pesquisadora apresentava os materiais um de cada vez), informava à entrevistada que aqueles materiais poderiam ser utilizados no trabalho pedagógico com números e solicitava à professora que mostrasse como faria uso de cada um dos materiais em sala de aula. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Para examinar as concepções das professoras de Educação Infantil acerca do ensino e aprendizagem do número na perspectiva piagetiana foram selecionados alguns depoimentos das entrevistas realizadas com elas. À pergunta “O que uma criança de 4 a 6 anos devia conhecer sobre números”, cinco professoras disseram considerar a classificação e a seriação como pré-requisitos para a construção do conceito de número. As professoras P3 e P5 enfatizaram a classificaçãoe a seriação, como conceitos pré- numéricos; requisitos necessários à construção do número. P3 - [...] a criança precisa saber a classificação e seriação para depois chegar à idéia de número. P5 - Eu acho que são pré-requisitos que ela vai usar nas fases posteriores. Então assim [...] seriar, classificar, conceitos de menor, maior, antes, depois, grande, pequeno eu acho que são conceitos como esses. Indicaram, com isso, uma concepção apriorista, pois acreditam que o número emerge da “síntese da classificação e da seriação” como uma construção seqüencial, hierárquica e linear. Quanto à contagem, as professoras a consideram um dos requisitos essenciais para a compreensão dos números. O número é, então, associado à contagem para o estabelecimento de quantidade, mesmo que não passe de uma repetição automatizada, como afirmam P6 e P9. P6 - Eu acredito que é preciso saber o básico [...] relação de quantidade, o saber contar, mas isso no cotidiano deles. P9 - Ela tem que saber quantidade, só no oral, saber contar, mas não corretamente. É fato que a contagem favorece a construção do conceito de número, porém é preciso ressaltar que este não é resultado apenas da contagem, ao contrário, é resultante de coordenações das ações realizadas pelas crianças sobre os objetos. As professoras são unânimes em enfatizar que o número é parte integrante do contexto social das crianças desde muito cedo, pois estas, embora não conheçam as regras do sistema de numeração, elaboram hipóteses e decodificam informações numéricas de seus mundos culturais. Conforme enfatizou a professora P10. P10 Toda criança tem que saber número, porque ela começa em casa, contando sua idade, do irmão, vendo o número da rua, da casa, o número do telefone, enfim todos os números, por isso ela tem que conhecer. Para as professoras o número é um conceito que pode ser transmitido socialmente e, inclusive, indicam diferentes estratégias de ensino para atingir tal fim: repetição, reforço, uso de material “concreto” e ludicidade. Como disse P4: P4 - Eu acho que podemos ensinar números, sim, com musiquinhas, com textos, todos os dias. Assim, repetindo, a criança vai aprendendo. A professora P3 defende que não se deve ensinar números de uma maneira tradicional, forçada. Para ela, é preciso ajudar a construção do conceito de número por meio de brincadeiras e jogos. P3 - Pode-se ajudar a construir, mas ensinar não. Ela aprende brincando, não, aquele ensinamento antiquado, tradicional, mas com jogos. O depoimento de P5 indica uma prática docente muito arraigada entre os professores, a de que se deve ensinar os números aos poucos, um a um, na ordem em que a série numérica indica e mediante etapas pré-definidas: primeiro a idéia de número, depois a relação quantidade/numeral. P5 - Nesta fase, é onde começa a construção do conceito do que é o número, da quantidade, depois o símbolo que vai representar aquela determinada quantidade, mas sempre assim, começando de pequenas quantidades. Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 102 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores Ao defender o ensino dos números na ordem seqüencial, P5 não considera o repertório numérico da criança, pois a interação social possibilita que a criança conheça o número 10, por exemplo, antes do número 8. O mesmo acontece com o 100. As crianças costumam “conhecer” a representação escrita do número 100, sabem “ler” esse número, têm idéia da sua grandeza antes de compreenderem o 37, por exemplo. Quanto à concepção de construção de número, a professora P5 acredita que este conceito é construído como um processo, o que é compartilhado pela professora P9. P5 - Constrói, porque é um processo. [...] Ela vê e é preciso construir, não é uma coisa que ela vai lá e pronto. P9 - Ela constrói, porque através do conhecimento dela vai associando uma parte com outra, e vai chegando a um consenso comum que é o aprendizado. Quando ela não constrói, não consegue aprender direito, apenas decora e decorar não é aprender. Quando indagadas como é possível reconhecer se uma criança já construiu o conceito de número, as professoras admitem alguns referenciais, como, por exemplo, a relação entre símbolo e quantidade; no entanto, ter memorizado a seqüência numérica e os correspondentes numerais não significa que ela compreenda as representações numéricas ou mesmo que já tenha consolidado o conceito de número. P4 – Para mim, ver que estão aprendendo é através de alguma atividade prática em que a criança reconheça o símbolo. Nesta idade, nada de escrita, porque acho que a escrita ali não adianta, mas oralmente é que dá para perceber que uma criança aprendeu o número. P8 - Poderia dizer que a criança já aprendeu o número, por exemplo, quando consegue associar o símbolo e o número em si; a partir do momento que você pede para a criança vir ao quadro, ou mostra um numeral qualquer e, independente da ordem seriada a criança consegue detectar o número. As professoras, de modo geral, não conseguem definir, com clareza, a diferença entre símbolo ou algarismo4, número5 e numeral6. Isso dificulta a compreensão do conceito de número, até mesmo para as próprias crianças. P5 - Quando a criança começa a fazer a relação símbolo quantidade quando ela consegue fazer a contagem termo a termo, quando ele consegue relacionar e usar a matemática no dia-a-dia dele para resolver pequenos problemas, resolver situações problemas, quando ele consegue fazer pequenos cálculos mentais, falando assim, de coisas pequenas mesmo, mas consegue resolver mentalmente matematicamente, eu acho que é o momento em que ele está começando a adquirir a construção do número. Quanto à pergunta: “Seria possível fazer um bom trabalho pedagógico sem o conhecimento de uma teoria que lhe desse sustentação?” as professoras P3 e P4 adotam a prática como referencial do trabalho pedagógico com o número, minimizando o papel da teoria. P3 – Pela prática a gente consegue fazer, mas seria melhor com ajuda de um conhecimento específico. P4 - Não, eu acho que muitas vezes a gente necessita de um apoio. [...] Depois a vida, o cotidiano faz com que a gente aprenda mais. A professora P8 reconhece a importância da associação entre teoria e prática no trabalho docente, contudo indica como “teoria”, os conteúdos específicos da disciplina e os “estágios de desenvolvimento” e, como “prática”, a “forma de ensinar”. P8 – [...] para fazer um trabalho com qualidade tenho que saber o que estou ensinando, a forma correta de se ensinar. [...] Saber se aquela criança está “pronta” para determinadas coisas, se você não tem a teoria não vai conseguir 4 Algarismo é todo símbolo numérico que usamos para formar os numerais escritos. Existem apenas dez algarismos no Sistema Numérico Decimal, hoje adotado universalmente. 5 De maneira ampla, podemos dizer que número é a idéia de quantidade que nos vem à mente quando contamos, ordenamos e medimos. 6 Numeral é toda representação de um número, seja ela escrita, falada ou designada. Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 NOGUEIRA ET AL. 103 enquadrar aquela criança em determinada fase. As professoras consideram que suas formações (Magistério, Pedagogia, Escola Normal Superior) não lhes ofereceram os conhecimentos matemáticos necessários para a atuação na Educação Infantil, conforme atestam P5, e P10: P5 - Em partemais foi a teoria, porque a questão da prática não foi trabalhada. Acho que a faculdade de Pedagogia está mais voltada para o ensino fundamental, na educação infantil a gente encontra muito pouca coisa lá, a metodologia mesmo, a professora tem que buscar, correr atrás. P10 - Nós não vimos nada ou quase nada de matemática na graduação de Pedagogia. Estudamos Piaget, mas somente vimos os estágios de desenvolvimento, alfabetização e na matemática não foi falado nada. Mesmo na prática, a matemática foi sempre deixada de lado ocupando meia hora do total de aulas, a ênfase sempre foi dada P2 – Faltou material, faltou muita coisa, porque o que eu aprendi de matemática foi só na prática. Quanto às atividades direcionadas ao trabalho pedagógico com números, todas as professoras afirmaram utilizar material manipulável e lúdico. As professoras P3 e P4 acreditam que a aprendizagem advém da manipulação de diferentes materiais pedagógicos e, deste modo, o ensino de números se realiza com a associação, pelas crianças, entre numeral, quantidade e contagem. Para as professoras P5 e P10 reforçam a importância de atividades relacionadas ao cotidiano das crianças. P3 – Eu uso Jogo de memória, jogo de dados, dominó até um lego por cores, tamanhos. P4 - Eu faço jogo do dado, jogo do boliche, contagens com as próprias crianças. P5 – [...] iniciei esta coisa do número na brincadeira da preparação de brinquedos. Vamos colocar tais brinquedos em tais caixas? Estes brinquedos vão em outras caixas, brinquedos pequenos nestas caixas, brinquedos grandes nestas caixas e, assim na hora da atividade ou do registro relembrando essa coisa de guardar o brinquedo e também estar associando a quantidade com o símbolo. P10 - Como eu já falei, eu uso os números do dia-a-dia para ensinar porque a criança já conhece o número do ônibus, então aproveito e “ensino”, não só a seqüência, mas qualquer número. Quanto ao “Jogo Quantifica 1”, todas as professoras enfatizaram a quantificação que se depreende dos dados. As professoras P1, P2 e P10 destacam, ainda, as possibilidades de classificação quanto às cores e às formas. P1 - Qual a quantidade que caiu no seu dadinho. Três, não é? Vamos contar então, quantos botões poderia colocar na cartela com o círculo. Então pegaria o número de botões, contaria e colocaria na cartela. P2 - Eu faria primeiro jogando o dado e o que daria pegaria a quantidade de botões, por exemplo, se fosse três eu poderia jogar três nessa cartela escolhendo só uma cor ou no retângulo escolhendo outra cor. P10 - Esse jogo dá para trabalhar várias coisas. Primeiro com o dado, fazer quantidade, registrar o número que caiu. Na situação lúdica “Brincar de casinha”, as atividades propostas se assemelharam às do jogo Quantifica 1. As professoras, de maneira geral, destacaram as possibilidades de classificação, seriação, contagem, quantificação e correspondência termo a termo, conforme exemplificam P6 e P9 . P6 - Classificação com os pires, as xícaras. Colocar as tampas nas panelas (correspondência termo a termo), dá para trabalhar com contagem. Dá para seriar as xícaras maiores, menores. P9 - Primeiro iremos trabalhar quantidades. Quantos pires eu tenho? Outra criança poderá colocar as xícaras nos pires. Também posso aproveitar as cores e associar a quantidade de xícaras com os pires, vendo o tamanho dentro, fora, encima, embaixo, ordem crescente e decrescente, menor, maior, frente, atrás, do lado, trabalhar bem as noções. Rev. Teoria e Prática da Educação, v.10, n. 3, p. 349-361, set./dez. 2007 104 A construção do conceito de número na perspectiva piagetiana: o que pensam os professores Apesar do material disponibilizado pelo jogo Quantifica 1 apresentar maiores possibilidades de atividades, pois foi pensado para propor ações de classificação, seriação e quantificação simultaneamente, as professoras não conseguiram se desvincular de suas regras e criar novas situações, ao passo que, na situação lúdica Brincar de casinha, pela familiaridade com o material disponível, elas foram especialmente criativas, formulando situações problema em que a classificação, a seriação e a quantificação eram exigidas ao mesmo tempo. É importante ressaltar que, nas propostas de atividades para o Brincar de Casinha, as professoras não explicitam a necessidade da simultaneidade das ações, indicando que elas não têm consciência da riqueza de suas formulações e do quanto estas eram fiéis à teoria piagetiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados desta pesquisa indicam que as professoras oscilam entre postulados empiristas, aprioristas e construtivistas. No geral a concepção de ensino e aprendizagem de professores é empirista. Acreditam que os objetos, no caso, os números, podem ser transmitidos socialmente, como um conhecimento constituído; basta apresentar a seqüência numérica e as palavras-número, associá-las às quantidades e as crianças se apropriarão do conceito de número. Há situações em que a professora acredita que a criança já conhece os números e a escola irá aprimorá-los por meio de exercícios de treinamento. Mescla-se aí o apriorismo com o empirismo. E, junto a essa situação de ensino, as professoras trabalham atividades interacionistas, como, por exemplo, as que reproduzem o cotidiano do aluno. Temos, então, três concepções que são tomadas juntas na ação docente. Esta prática pode ter origem na formação das professoras que, segundo elas, foi insuficiente para a construção de uma base teórica que fundamentasse suas ações pedagógicas na Educação Infantil. Além disso, os conhecimentos matemáticos das professoras geralmente foram elaborados, no início de sua escolarização, por memorização de fórmulas, repetição de exercícios e treinamento de técnicas e procedimentos. Como esses conhecimentos não foram aprofundados na sua formação, elas ainda têm presente, de maneira arraigada, que a única maneira de aprender e ensinar é por repetição, evidenciando uma concepção empirista. Apesar desse panorama, em que as professoras se apóiam na própria prática ou na de colegas mais experientes para seu fazer pedagógico com concepções empiristas, nas sugestões metodológicas que apresentaram para as situações lúdicas mostraram-se, surpreendentemente, construtivistas, propondo atividades lógicas e numéricas sincrônicas e solidárias, que contemplam a construção do conceito de número, claramente numa perspectiva piagetiana, sem que, contudo, mostrassem consciência deste fato. Diante dos resultados desta pesquisa, surgem, naturalmente, alguns questionamentos: Como deveríamos programar mudanças na formação inicial de professores polivalentes? Quais seriam os procedimentos mais eficazes para uma formação continuada? Será que as concepções de ensino e aprendizagem construídas pelos professores durante toda sua história escolar podem ser alteradas na formação inicial? A que mais nos intrigou foi, porém: como as professoras puderam propor atividades que, sem contestação, poderiam constar como atividades sugeridas em um estudo teoricamente fundamentado na teoria piagetiana, sem que, todavia, tivessem conhecimento desta? Será que esta teoria, aparentemente tão complexa, pode estar implícita no cotidiano escolar, sem que as professoras sejam capazes de verbalizar esta situação? Estas indagações, com certeza, abrem espaço para novas investigações.REFERÊNCIAS BECKER, Fernando. A epistemologia do professor: o cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 1993. CARRAHER, Terezinha Nunes. Aprender pensando: contribuições da Psicologia Cognitiva para a educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. CARRAHER, Terezinha; CARRAHER, David; SCHLIEMANN, Analúcia. Na vida dez, na escola zero. São Paulo: Cortez, 2001. GOLBERT, Clarissa Seligman. Jogos matemáticos. Porto Alegre: Mediação, 2002. 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