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45 Unidade 4 Libras: sistema de transcrição, parâmetros e aspectos morfológicos Já sabemos que a Libras é uma língua visuoespacial, que se estru- tura em um sistema linguístico próprio, sujeito a variações regionais, históricas e sociais e composto de sinais icônicos e arbitrários. Além desses aspectos, também vimos, na unidade anterior, que a Libras se organiza, assim como qualquer língua, nos níveis fonético, fonológico, semântico, morfológico, sintático e pragmático. Agora, estudaremos os parâmetros que formam os sinais na Libras e a relação existente entre estes e os aspectos morfológicos da Libras. Antes disso, porém, precisamos explorar o sistema de transcrição da Libras para que pos- samos desenvolver melhor compreensão do sinais ao longo de nossos estudos. O sistema de transcrição em Libras Antes de iniciarmos o aprendizado prático da Libras, é impor- tante esclarecermos como serão expostos os sinais e os diálogos ao longo deste material. Para tanto, estabeleceremos uma forma de representação. Por ser uma língua visuoespacial visual, a imagem tem sido con- siderada a forma de reprodução mais adequada da Libras, já que a escrita dos sinais ainda está sendo pesquisada. Em virtude dessa con- dição, no decorrer das explicações ora desenvolvidas, utilizaremos o 46 sistema de transcrição da Libras apresentado por Felipe e Monteiro (2001), que emprega palavras da Língua Portuguesa para representar os enunciados em Libras, denominado sistema de notação em pala- vras, ou seja, as palavras do português são utilizadas para representar os sinais com grande proximidade semântica (significado). É preciso que tenhamos claro o princípio de que a transcrição não é a escrita da Libras, mas que ela apenas representa a ordem dos sinais a serem utilizados, ou seja, é uma estratégia utilizada para perceber- mos a ordem e a formação dos sinais. Outra questão importante a ser considerada no decorrer da leitura e estudo desta unidade é que nem sempre as expressões faciais serão e/ou poderão ser representadas, razão pela qual serão dadas explica- ções à parte com relação a elas. Esclarecidos esses aspectos, cabe-nos mencionar que o sistema de notação em palavras dos sinais expressados em Libras apresenta o termo em português escrito totalmente em letras maiúsculas. Por exemplo: DIA – AMAR – GOSTAR – GOSTAR-NÃO – TER – TER-NÃO. Assim, quando apresentarmos esse tipo de escrita no livro, você saberá que ela se refere ao sinal em Libras. Sabendo disso, você poderá consultar o dicionário on-line da Língua Brasileira de Sinais, disponí- vel na página da organização Acesso Brasil (www.acessobrasil.org.br/ libras), que utiliza essa forma de transcrição. O alfabeto manual (datilologia) também está presente em nossa abordagem. Ele é usado para a representação de nomes próprios e de vocábulos cujo sinal não está estipulado na Libras e devem ser trans- critos letra por letra seguidas de hífen. Por exemplo: S-I-M-O-N-E. Outro detalhe presente na transcrição de termos expressados em Libras é a marca (desinência) de gênero existente em vocábulo da lín- gua portuguesa. Em Libras, tal designação é feita pelo sinal HOMEM/ MULHER, realizado antes do sinal principal, ou seja, que repre- senta o que é expresso por nós. Por exemplo: o sinal a ser articulado é TEIMOS@, então, para especificarmos o gênero da palavra, deve- mos efetuar antes o sinal HOMEM ou MULHER. Para registrarmos a transcrição da marca de gênero, usamos o símbolo “@”, deste modo: TEIMOS@ (teimoso ou teimosa), FILH@ (filho ou filha). Além desses aspectos, consideramos importante apresentar os enunciados em Libras com sua respectiva tradução em português. Compreendendo essas notações, você entenderá melhor a organi- zação dos conteúdos abordados aqui. 47 Os parâmetros da Libras Já vimos que os sinais da Libras são compostos pela configuração das mãos e por seu movimento no espaço, além de expressões faciais que podem acompanhar os sinais, que são realizados segundo parâme- tros primários e secundários. Observe a seguir a descrição dessas duas categorias de parâmetros. Parâmetros primários Os primários referem-se à configurações (formas) das mãos (CM), ao ponto de articulação (PA) e ao movimento (M). • Configurações das mãos (CM): Diz respeito às formas “desenhadas” pelas mãos na articulação/expressão do sinal. Inicialmente, foram classificadas 46 configurações de mãos da Libras (BRITO, 1990), porém, atualmente, esse número é maior, pois foram identificadas pequenas diferenças que alte- ram a forma, a disposição das mãos. Configurações de mãos 48 • Ponto de articulação (PA): Consiste na parte do corpo ou espaço neutro em que será realizado o sinal. • Movimento (M): Refere-se ao deslocamento das mãos durante a execução do sinal. Segundo Brito (1990), os movimentos podem ser: retilíneo, helicoidal, circular, semicircular, sinuoso ou angular. Movimento retilíneo Movimento helicoidal Movimento circular ESTUDAR IMPORTANTE GOSTAR Movimento semicircular Movimento sinuoso Movimento angular VAI PEIXE RAIO O exemplo a seguir ilustra como os parâmetros são articulados para a formação de um sinal. 49 Ponto de articulação (queixo) Movimento (bater no queixo) Configuração de mão em S Se um desses parâmetros for modificado, o sentido do sinal mudará totalmente. Por exemplo, essa mesma configuração de mão é usada para o sinal SÁBADO, o que muda é o movimento e o ponto de arti- culação, que são realizados na frente da boca com movimento de abre e fecha, como o movimento de chupar laranja. Parâmetros secundários Os parâmetros secundários abrangem a orientação das mãos e as expressões faciais. • Orientação das mãos: Relaciona-se com a direção dada às pal- mas das mãos na articulação de um sinal – palma da mão para cima, para baixo, para frente, para a esquerda ou para a direita. • Expressões faciais: As expressões faciais e corporais são fun- damentais na Libras, pois, além de darem sentido aos sinais, podem determinar o tipo de frase expressada (afirmação, nega- ção, interrogação, exclamação). Diferentemente do que muitas pessoas imaginam, a expressão facial não é um mero recurso complementar da comunicação em Libras, mas um aspecto gramatical desta. Isso significa que, além de a expressão facial possibilitar que manifestemos estados afetivos, desempenha funções gramaticais como a de intensificador de advérbio, 50 de modo e de grau do substantivo. Assim, segundo Quadros (2006), muitas vezes, são as expressões faciais que garantem a adequada transmissão dos sinais relacionados à afetividade (sentimentos e emoções, como vergonha, medo, tristeza, raiva, alegria etc.). Desse modo, o significado do sinal articulado não é comprometido, muito pelo contrário, ele é apoiado pela expressão facial. Já as expressões gramaticais determinam o significado do sinal e o tipo da frase. Com relação ao signifi- cado do sinal, por exemplo, elas podem demonstrar o grau do adjetivo, a intensidade e o modo de um advérbio e muito mais. Quanto ao tipo de frase, vamos fazer uma comparação com o português: quando escrevemos, marcamos o tipo de frase (afir- mativa, negativa, interrogativa, exclamativa) na pontuação e na entonação da voz quando falamos, certo?! Na Libras, isso é marcado na expressão facial. Portanto, se queremos negar, exclamar, afirmar, perguntar, ao sinalizarmos a frase, devemos expressar facialmente nossa intenção. • Da mesma forma como ocorre no português, as unidades míni- mas da Libras também se combinam na formação de palavras. Essas unidades são os parâmetros abordados anteriormente, que se inter-relacionam para a composição do sinal. Com base em Brito (1997), acompanhe a formação de sinal com suas uni- dades mínimas, tendo como exemplo o sinal “CERTO”: • Configuração de mão: Posicionada de forma semelhante à letra F (veja conjunto de configurações de mãos apresen- tado anteriormente); • Movimento: Linear voltado para baixo com retençãofinal (onde a mão deve parar ao término da articulação do sinal); • Ponto de articulação: Tronco, busto e lado direito; • Orientação da palma da mão: Para a esquerda. Observe a ilustração e acompanhe cada parâmetro explicado: CERTO 51 Esse sinal também pode ser realizado com as duas mãos, depen- dendo do contexto. Em Libras, há casos em que determinada configuração de mãos pode ser usada na sinalização de termos diversos. Esse é o caso da configuração de mão em Y. Veja: Ela pode ser usada na sinalização de TELEFONE, AVIÃO, GORDO, BOI, FOME, entre outras palavras, o que muda é onde (parte e/ou proximidade do corpo) o sinal será articulado e o movi- mento que o acompanhará. Que tal praticar um pouquinho? Tente articular os sinais TELE- FONE, DESCULPA e AZAR seguindo as orientações a seguir. TELEFONE Configuração de mão: Em forma de Y. Ponto de articulação: Localiza-se na orelha. Movimento: Não há movimento se o sinal for configurado na orelha, assemelhando-se à ação de falarmos ao telefone. Orientação da palma da mão: Voltada para baixo. Observação: Os movimentos e o ponto de articulação poderão ser articulados de maneira diferente tendo em vista o contexto que envolve o ato comunicativo em Libras. Portanto, os sinais serão diferentes para o caso de desejarmos expressar que o telefone está tocando, o telefonema é para alguém, solicitarmos que alguém pegue o telefone, entre outras situações. DESCULPA Configuração de mão: Em forma de Y. Ponto de articulação: Localiza-se no queixo. Movimento: Não há movimento. Orientação da palma da mão: Voltada para o queixo. 52 AZAR Configuração de mão: Em forma de Y. Ponto de articulação: Localiza-se no nariz. Movimento: Leve batida no nariz de baixo para cima. Orientação da palma da mão: Voltada para o nariz. Lembre-se de que você poderá consultar o dicionário da Libras na página do Acesso Brasil (http://www.acessobrasil.org.br/libras/) para verificar se articulou os sinais de forma correta! Como você pôde perceber, para articularmos os sinais TELEFONE, DESCULPA e AZAR, usamos a mesma configuração de mão, o que muda é o movimento e o ponto de articulação. Por isso, é fundamen- tal que, ao articularmos um sinal, prestemos atenção nesses aspectos, pois deles depende o significado do sinal. Compreendendo a morfologia da Libras Na unidade anterior, falamos sobre o nível morfológico da Libras e mencionamos a existência dos morfemas, que são as unidades míni- mas de significação dos sinais. No português, ao mudarmos o final de uma palavra, atribuímos outro sentido a ela. Por exemplo: bonito, bonitinho, bonitão. Então, teríamos estes morfemas: Bonit o radical marca de gênero (raiz) (masculino) Bonit inh o radical marca de grau marca de gênero (raiz) (diminutivo) (masculino) Bonit ã o radical marca do grau marca de gênero (raiz) (aumentativo) (masculino) 53 Assim, na palavra “bonito”, temos dois morfemas, certo?! Um é a raiz e o outro marca o gênero. Já na palavra “bonitinho”, temos três morfemas: a raiz, a marca de diminutivo e a marca de masculino. E, na palavra “bonitão”, temos a raiz, a marca de aumentativo e a marca de masculino. Como você pôde perceber, morfema é cada unidade mínima de significação que compõe uma palavra. Precisamos ter em mente que não há equivalência entre alguns morfemas que compõem palavras expressas em português e na Libras. Portanto, existem algumas peculiaridades no nível morfológico des- sas línguas. Assim, um morfema pode ser determinado pela expressão facial e pelo movimento (repetição, por exemplo). Exemplo 1 BONITINH@ BONIT@ BONIT@/LIND@ Exemplo 2 FEI@ MUITO FEI@/HORRÍVEL Exemplo 3 O verbo “falar” pode apresentar diferentes significados depen- dendo da forma como é articulado. 54 FALAR FALAR FALAR MUITO (com movimento (com movimentos longos + rotatório em frente da boca) aspecto continuativo) Vimos que o sinal referente a “falar muito” é articulado com as duas mãos e com movimentos longos (aspecto continuativo), que se constituem em morfemas do sinal que representa a referida expressão. Desse modo, o morfema lexical de “falar muito” é composto pelas duas mãos e o morfema gramatical pelos movimentos longos envol- vidos no sinal. Logo, em Libras, a marca morfêmica relacionada à intensidade recai no próprio sinal por meio do movimento. A observação desses exemplos nos faz perceber melhor como as expressões faciais, o ritmo do movimento e a forma pela qual o sinal é articulado determinam seu significado. Assim como no português a entonação da fala, o modo como nos dirigimos ao interlocutor e a forma como falamos determinam até mesmo o que dizemos nas entre- linhas, na Libras esses aspectos são marcados pela expressão facial, pelo olhar e pelo movimento. Que tal praticar mais um pouquinho? Agora que você já conhece o sinal FEI@, experimente formular frases com diferentes sentidos: a) FEI@! (Que feio!) – referindo-se a um carro. b) FEI@! (Que feio!) – referindo-se a uma pessoa. c) FEI@! (Que feio!) – referindo-se a alguém que fez algo errado. Você compreendeu que o modo de articular o sinal tem de ser diferente?! Isso porque os sentidos implicados nas frases são distintos. Assim, o sinal é sempre o mesmo para FEI@, o que muda é nossa expressão facial e a maneira como articulamos o sinal. Para você entender melhor essa ocorrência, imagine, para a primeira frase pro- posta que, ao ver um carro, você sinaliza que ele é feio (FEI@) e o faz olhando para o veículo com expressão de desdém, como comumente 55 fazemos ao nos expressarmos usando o português. Para a segunda frase, considere que você está olhando para uma pessoa e afirmando que ela é feia – para tanto, você fará o sinal FEI@ olhando para ela. Para a terceira frase, imagine que um colega seu chegou atrasado para um compromisso que vocês combinaram; então, você sinalizará FEI@ com expressão de cinismo e o olhar voltado para ele. Nesse percurso que fizemos no universo da Libras, foi-nos possí- vel compreender sua riqueza expressiva e sua importância na cons- tituição da identidade do sujeito surdo, de sua cidadania e de sua socialização. Uma ótima dica de leitura para você ampliar seus conhecimentos sobre o papel da Libras para a formação da pessoa surda como sujeito e, portanto, para sua inclusão social é o livro escrito por Emmanuelle Laborit, O voo da gaivota, publicado pela edi- tora Best Seller. A autora relata como superou os condicionamentos, as dúvidas, as angústias e a alienação provocados pela não aquisição de uma língua própria, a Língua de Sinais, que lhe foi negada desde o nascimento. Direito esse que foi conquistado por Emmanuelle e que lhe proporcionou alçar altos voos, como o recebimento do prêmio Molière de teatro. Continuemos essa nossa caminhada, pois você deve estar ansioso para conhecer e começar a usar outros sinais da Libras, certo? Então, vamos começar pelo alfabeto manual e a sinalização de numerais!
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