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história da filosofia 6

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HIstória da Filosofia
Volume seis
NicolA Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:
Ângelo Miguel Abrantes.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VI
TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Faldo, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
VII
AS ORIGENS DA CIÊNCIA
§ 388 LEONARDO
O resultado último do naturalismo do Renascimento é a ciência. Nela confluem: as pesquisas naturalísticas dos últimos Escolásticos que tinham dirigido a sua atenção para a natureza, desviando-a do mundo sobrenatural considerado desde então inacessível à pesquisa humana; o aristotelismo renascentista, que elaborara o conceito da ordem necessária na natureza; o platonismo antigo e novo, que insistira na estrutura matemática da natureza; a magia, que havia patenteado e difundido as técnicas operativas destinadas a subordinar a natureza ao homem; e, finalmente, a doutrina de Telésio, que afirmara a autonomia da natureza, a exigência de explicar a natureza por meio da natureza. Por um lado, todos estes elementos são integrados pela ciência mediante a redução da natureza à pura objectividade mensurável: a um complexo de formas ou coisas constituídas essencialmente por determinações quantitativas e sujeitas por isso a leis matemáticas. Por outro lado, os próprios elementos são purificados pelas conexões metafísico-teológicas, que os caracterizavam nas doutrinas a que originariamente pertenciam. Assim a ciência elimina os pressupostos teológicos a que permaneciam vinculadas as investigações dos últimos Escolásticos; elimina os pressupostos metafísicos do aristotelismo em que assentavam a magia e a filosofia de Telésio. Nesta direcção, pode dizer-se que a ciência da natureza foi orientada pelas intuições antecipadoras de Leonardo de Vinci.
Leonardo de Vinci (1452-1519) considerou a arte e a ciência como tendentes a um único escopo: o
conhecimento da natureza. A função da pintura é a de representar para os sentidos as obras naturais; e por isso ela estende-se às suas superfícies, às cores, às figuras daqueles objectos naturais de que a ciência procura conhecer as forças intrínsecas (Tratt. della pitt. ed. Ludwig, n. 3-7). Arte o ciência assentam ambas em dois pilares de todo o
conhecimento verdadeiro da natureza: a experiência sensível e o cálculo matemático. De facto, as artes,
e em primeiro lugar a pintura, que Leonardo 	coloca acima de todas as artes, procuram nas coisas a proporção que as faz belas e 
pressupõem um estudo directo que procura descobrir nas coisas, mediante a experiência sensível, aquela mesma harmonia que a ciência exprime nas suas leis matemáticas. O vínculo entre arte e ciência não é, portanto, acidental na personalidade de Leonardo: é fruto da faina única que Leonardo se propõe: buscar na natureza
a ordem mensurável que é ao mesmo tempo proporção evidente, o número que é também beleza.
Leonardo exclui da pesquisa científica toda a
autoridade e toda a especulação que não tenha o
seu fundamento na experiência. "A sabedoria é filha da experiência" (ed. Richter, n. 1150). A experiência jamais engana; e os que se lamentam dos seus logros deveriam antes lamentar-se da sua
ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta (Cod. atl., fol. 154 r). A matemática é o
fundamento de toda a certeza. "Quem censura a suma certeza da matemática padece de confusão, e nunca porá termo às contradições das ciências sofísticas com as quais se aprende um eterno
estridor" (ed. Richter, n. 1157). Por isso Leonardo faz seu o autêntico espírito de Platão e a legenda que se encontrava à entrada da Academia: "Não entre nesta casa quem não for matemático." Ub., n. 3). A experiência e o cálculo matemático revelam a natureza na sua objectividade, isto é, na simplicidade e na necessidade das suas operações. A natureza identifica-se com a própria necessidade da sua ordenação matemática. "A necessidade é tema e inventora da natureza, é freio e
regra eterna" (Ib., n. 1135). Nestas palavras é reconhecida claramente a essência última da objectividade da natureza: a necessidade que lhe determina a ordem mensurável e se exprime na relação causal entre os fenómenos. É precisamente esta necessidade que exclui toda a força metafísica ou mágica, toda a interpretação que prescinda da experiência e que queira submeter a natureza a princípios que lhe são estranhos. Tal necessidade, enfim, identifica-se com a necessidade própria do raciocínio matemático, que exprime as relações de medida que constituem as leis. Entender a "razão" na natureza significa entender a "proporção" que não se encontra apenas nos números e nas medidas, mas também nos sons, nos 
pesos, nos tempos, nos espaços e em qualquer potência natural (ed. Ravaisson, fol. 49 r	). Foi precisamente a identificação da natureza com a necessidade matemática que conduziu Leonardo a fundar a mecânica e a pôr em luz pela primeira vez os seus princípios. "ó admirável e estupenda necessidade, tu compeles, com a tua lei, todos os efeitos, por brevíssima via, a participarem das suas causas e, com suma e irrevogável lei, todas as acções naturais te obedecem" (Cod. ad., fol. 345 v). Ele pôde assim chegar a formular a lei de inércia, o principio da reciprocidade da acção e da reacção, o teorema do paralelogramo das forças, o da velocidade e outros conceitos fundamentais da mecânica que deviam encontrar em Galileu a sua forma definitiva- A mole imensa dos seus manuscritos contém
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uma soma de intuições felizes, de descobertas, de sinais precursores nos campos mais dispares da ciência, da anatomia à paleontologia, e testemunha a perseverança com que Leonardo prosseguiu no
estudo da natureza, não já com o fim de a enquadrar em fórmulas metafísicas ou teológicas ou de a vergar às operações miraculosas da magia, mas
unicamente com o intuito de a reduzir à objectividade empírica e à necessidade matemática.
§ 389. COPÉRNICO. KEPLER
Nikolaus Copernicus (Kopernicki) partiu do princípio pitagórico-platónico da estrutura matemática do universo para chegar a uma precisa formulação matemática da nova cosmologia. Nascido em Thorn a 19 de Fevereiro de 1473, estudou na Universidade de Cracóvia e depois em Bolonha, Pádua e Ferrara, onde se doutorou em direito canónico (1503). Após uma segunda estada em Pádua (1503-06), voltou à pátria, onde viveu entre os cuidados administrativos de um canonicato e os estudos astronómicos. Morreu em Frauenburgo a 24 de Maio de 1543. A sua obra fundamental De revolutionibus orbium celestium libri VI, foi publicada poucos meses depois da sua morte. Dedicada ao pontífice Paulo IU, apareceu com um prefácio de Osiander, que limitava o
alcance da doutrina de Copérnico apresentando-a
como uma simples "hipótese astronómica", que não representava uma renovação relativamente à concepção do mundo estabelecida pelos Antigos. E, na
realidade, só mais tarde foi entendido o alcance
revolucionário da doutrina de Copérnico que assinala a destruição definitiva da cosmologia aristotélica. Copérnico, de facto, mostrou como todas as
dificuldades que esta cosmologia encontrava na explicação do movimento aparente dos astros se resolveram facilmente admitindo que a terra gira em torno de si mesma, em vez de a considerar o centro imóvel dos movimentos celestes, ele reconheceu três movimentos da terra: o diurno em torno do próprio eixo, o anual em torno do sol e o anual do eixo terrestre relativamente ao plano da elíptica (De rev. 1, 5). Copérnico mostrou que esta hipótese representava uma enorme simplificação no que concernia à explicação dos movimentos celestes e porisso era conforme ao procedimento da natureza que tende a atingir os seus efeitos pelos meios mais simples (Ib., 1, 10). Mostrou também como, por sua vez, os cálculos matemáticos se simplificaram, prestando-se facilmente a explicar a
observação astronómica.
A doutrina de Copérnico foi atacada por motivos religiosos, quer por católicos, quer por luteranos. Um astrónomo dinamarquês, Tycho Brahe (1546-1601), benemérito coleccionador de observações astronómicas, sustentava que só a terra, a Dia e o sol giravam em torno do eixo terrestre, enquanto que os outros planetas giravam em tomo do sol. Mas das próprias observações de Tycho Brahe, o seu amigo e discípulo Kepler tirou a mais importante confirmação da doutrina copernicana, mediante a descoberta das leis reguladoras do movimento dos planetas.
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Johannes Kepler nasceu a 27 de Dezembro de
1571 em Weil, perto de Estugarda, foi professor de matemática e assistente de Tycho Brahe e morreu em Regensburgo a 15 de Novembro de 1630. Teve de lutar asperamente com protestantes e católicos pelas suas ideias e só a custo logrou obter os meios para publicar as suas obras, uma vez, teve mesmo de empregar-se para salvar da fogueira sua
mãe, acusada de bruxaria. Na sua primeira obra, Prodronws dissertationum cosmographicarum, continem mysterium cosmographicum de adnúrabili proportione celestium Orbium (1596), exaltou firmemente a beleza, a perfeição e a divindade do universo e via nele a imagem da trindade divina. No centro do mundo estaria o sol, imagem de Deus Padre, do qual derivariam todas as luzes, todo o calor e toda a vida. O número dos planetas e a sua disposição em torno do sol obedeceria a uma
precisa lei, de harmonia geométrica. Os cinco planetas constituiriam de facto um poliedro regular e mover-se-iam em esferas inscritas ou circunscritas ao poliedro delineado pela sua posição recíproca. Nesta obra, ele atribuía o movimento dos planetas a uma alma motora ou à alma motriz do sol; mas este mesmo esforço para encontrar nas observações astronómicas a confirmação dos filosofemas pitagóricos, ou neoplatónicos conduziu-o a abandoná-los. Nos seus escritos astronómicos e ópticos, substituiu as inteligências por forças puramente físicas; considera o mundo necessariamente participe da quantidade e a matéria necessariamente ligada a uma ordem geométrica. Permaneceu por
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isso sempre fiel ao princípio de que a objectividade do mundo está na proporção matemática implícita em todas as coisas. Era o mesmo principio que animara Leonardo; e a ele se deve a descoberta principal de Kepler: as leis dos movimentos dos planetas. As primeiras duas leis (as órbitas descritas pelos planetas em torno do sol são elipses de que um dos focos é ocupado pelo sol; as áreas descritas pelo raio vector (o segmento de recta que liga o
planeta ao sol) foram publicados na Astronomia nova de 1609; a terceira lei (os quadrados dos tempos empregados por diversos planetas a percorrer as suas órbitas estão entre si como os cubos dos eixos maiores das elipses descritas pelos planetas) aparece pela primeira vez no escrito Harmoníces mundi de 1619. Foram as observações de Tveho Brahe que permitiram a Kepler descobrir as suas leis e corrigir assim a doutrina de Copérnico, que admitia o movimento circular dos planetas em torno do sol. Mas a descoberta de Kepler confirmava definitivamente a validade do procedimento que reconhece a verdadeira objectividade natural da proporção natural.
§ 390. GALILEU: VIDA E OBRAS
Galileu Galilei nasceu em Pisa a 15 de Fevereiro de 1564. Votando-se a estudos de medicina, enquanto aprofundava o conhecimento dos textos antigos em conformidade com os quais esses estudos eram conduzidos, também
se dedicava à observação dos fenômenos naturais. Em 1583, a oscilação de uma lâmpada na catedral permitia-lhe determinar a lei do isocronismo das oscilações do pêndulo, Nos anos seguintes chegou a formular alguns teoremas de geometria e de mecânica que mais tarde deu à estampa. O estudo de Arquimedes levou-o a descobrir a balança para determinar o peso específico dos corpos (1586). A sua culturamatemática proporcionou-lhe a estima e simpatia de muitos matemáticos da época e foi-lhe confiada em 1589 a cadeira de matemática na Universidade de Pisa. Permaneceu nesta cidade três anos, durante os quais fez várias descobertas, nomeadamente, a seguir a repetidas experiências feitas por Campanile de Pisa, a da lei da queda dos graves. Em 1592, passou a ensinar matemática na universidade de Pádua e aí viveu dezoito anos, que foram os mais fecundos e felizes da sua vida. Das numerosas invenções de vários géneros, feitas neste lapso de tempo, a mais importante é a do telescópio (1609); esta invenção abre a sério das descobertas astronómicas. A 17 de Janeiro de 1610, Galileu descobriu o três satélites de Jove, a que chamou planetas medicisianos em honra dos princípios toscanos, tendo-os anunciado no Sidereus nuncius publicado em Veneza a 12 de Março do mesmo ano. Kepler dirigiu-lhe os seus aplausos a propósito desta descoberta e o Grão-Duque deu-lhe o lugar, que ele desejava, de matemático do gabinete de Pisa. Com o seu telescópio Galileu pôde dar-se conta de que a Via Láctea é um conjunto de estrelas; pôde descobrir os anéis de Saturno, obser15
var as fases de Vénus em torno do Sol e reconhecer as manchas solares, as quais (como ele disse) foram o funeral da ciência aristotélica, porque desmentiam a pretensa incorruptibilidade dos céus. Mas, entretanto, as descobertas astronómicas levavam-no a considerar a estrutura do mundo celeste. Numa carta ao seu aluno Castoffi, datada de 21 de Dezembro de 1613, defendia a doutrina copernicana. Mas esta doutrina começava precisamente então a atrair a atenção da Inquisição de Roma, a qual move um processo contra Galileu. Em vão o cientista se dirige a Roma procurando evitar a
condenação da doutrina copernicana. A afirmação da estabilidade do sol e do movimento da terra é condenada; e Galileu é admoestado pelo cardeal Belarmino a abster-se de professá-la (26 de, Fevereiro de 1916). Poucos dias depois, a 5 de Março, a obra de Copérnico De revolutioniãs orbium coefestium é posta no índice. Galileu continuou no entanto as suas especulações astronómicas. Contra o padre jesuíta Lotario Sarsi (Horacio Grassi), autor do to Libra astronómica ac philosophica dirigido contra o seu Discorso delle comete (1619), Galileu publicou em Roma (1623) il Saggiatore. E entretanto continuava a trabalhar nos Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo, o ptolemaico e o copernicano, encorajado também pela subida ao pontificado do cardeal Barberini (Urbano VIII), que lhe havia sempre demonstrado a sua benevolência. O Diálogo foi dado à estampa em Fevereiro de 1632. Mas já em Setembro Gafileu fora citado pelo papa a comparecer perante o
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Santo Oficio de Roma. O processo dura até 22 de Junho de 1633 e conclui-se com a abjuração de Galileu. Tinha então 70 anos. Passou os últimos anos da sua vida na solidão da casa de campo de Arcetrí, perto de Florença, alquebrado pelas doenças e diminuído pela cegueira, mas sem interromper o seu trabalho, escrevendo os Diálogos das novas ciências e mantendo numerosa correspondência com amigos e discípulos. Morreu a 8 de Janeiro de 1642. 
 As obras filosóficas mais notáveis são as já nomeadas: O Ensaiador, os diálogos. sobre os dois máximos sistemas e os Diálogos das novas ciências. Mas em todos os seus escritos estão disseminadas considerações filosóficas e metodológicas.
§ 391. GALILEU: O MÉTODO DA CIÊNCIA
Galileu pretende desimpedir a via da investigação científica dos obstáculos da tradição cultural e teológica. Por um lado, polemiza, contra o "o
mundo de papel" dos aristotélicos; por outro, quer subtrair a investigação do mundo natural aos Emites e aos estorvos da autoridade eclesiástica. Contra os aristotélicos, afirmava a necessidade do estudo directo da natureza. Nada é mais vergonhoso nas disputas científicas, diz ele (Op., VII, p. 139), do que recorrer a textos que amiúde foram escritos com outro propósito e pretenderutilizá-los para responder a observações e experiências directas. Quem escolhe tal método de estudo deveria pôr de parte o nome de filósofo, uma vez que "não
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convêm que aqueles que deixaram de filosofar usurpem o honroso título de filósofo". É próprio de espíritos vulgares, tímidos e servis dirigir antes os olhos para um mundo de papel do que para o verdadeiro e real, que, fabricado por Deus, está sempre diante de nós para nosso ensinamento. Também não se podem, por outro lado, sacrificar os ensinamentos directos que a natureza nos fornece às afirmações dos textos sagrados. A Escritura Sagrada e a natureza procedem ambas do Verbo divino, aquela como ditado do Espírito Santo, esta como executora das ordens de Deus; mas a palavra de Deus teve de adaptar-se ao limitado entendimento dos homens aos quais se dirigia, ao passo que a natureza é inexorável e imutável c
nunca transcende os limites das leis que impõe aos
homens, porque não se importa que as suas recônditas razões sejam ou não compreendidas por eles./ Por isso o que da natureza nos revela a sensata experiência ou o que as demonstrações necessárias nos levam a concluir, não podo ser posto em dúvida, ainda que divirja de algum passo da Escritura (Lett. alla duchessa Cristina, in Op., V, p. 316).
Só o livro da natureza é o objecto próprIo da ciência; e este livro é interpretado e lido apenas pela experiência. A experiência é a revelação directa da natureza na sua verdade, ela nunca engana: mesmo quando os olhos nos fazem ver o pau imerso na água quebrado, o erro não está na vista, que recebe verdadeiramente a imagem quebrada e
reflexa, mas no raciocínio que ignora que a imagem se refracta ao passar de um para outro meio trans18
parente (Op., 111, 397; XVIII, 248). A tarefa do raciocínio, porém, e especialmente do raciocínio
matemático, é igualmente importante porque é a
da interpretação e transcrição conceitual do fenómeno sensível. Por vezes, esta tarefa assume para Galileu uma importância predominante: de modo que a confirmação experimental parece degradar-se a simples verificação, ocasional e não indispensável, de uma teoria elaborada independentemente dela. Diz, por exemplo, Galileu a propósito das leis do movimento: "mas voltando ao meu tratado do movimento, argumento ex suppositione sobre o
movimento, daquele modo definitivo; de maneira que, quando mesmo as consequências não correspondessem aos acidentes do movimento natural, pouco me importaria, uma vez que em nada derroga às demonstrações o facto de não se encontrar na natureza nenhum móbil que se mova por linhas espirais" (Ib., XVIII, 12-13). Considerações como esta que se repelem aqui e ali nas obras de Galileu, foram algumas vezes utilizadas para aproximar a investigação galileica da aristotélica: tal como Aristóteles, Galileu estaria mais interessado em encontrar as "essências" dos fenómenos do que em descobrir as suas leis e as experiências servir-lhe-L,m tão-só de pretexto ou de confirmação aproxiMativa da teoria. E por certo que a experiência, ou melhor, os resultados dela seriam, segundo Galileu, cegos, isto é, sem significado, se
não fossem iluminados pelo raciocínio, isto é, sem
uma teoria que lhes explicasse as causas. Galileu explicitamente afirma que entender matemática19
mente a causa de um evento "supera. por infinito intervalo o simples conhecimento obtido através de outras atestações e mesmo de muitas reiteradas experiências" (Discorsi intorno a due nuove scienze, -IV, § 5). Evidentemente, para Galileu só o raciocínio pode estabelecer as relações matemáticas entre os factos da experiência e construir uma teoria científica dos próprios factos. Mas é do mesmo passo evidente que só a experiência pode fornecer, segundo Galileu, o incentivo para a formulação de uma hipótese e que as deduções que derivam matematicamente destas hipóteses devem, por seu turno, ser confrontadas com a experiência e confirmadas com experimentos repetidos antes de poderem ser declaradas válidas`.<Além. disso, o raciocínio que tem essa função é sempre o raciocínio matemático, dado que, quanto à lógica tradicional, Galileu compartilha a opinião negativa dos escritores do Renascimento: ela não serve para descobrir coisa alguma mas só para saber se os discursos e as demonstrações já feitos e experimentados procedem de maneira concludente (Ib., VIII, 175).
Por outro lado, a experiência não é só o fundamento, mas também o limite do conhecimento humano...A este é impossível alcançar a essência das coisas: deve limitar-se a determinar as suas qualidades e as suas afecções- O lugar, o movimento, a figura, a grandeza, a opacidade, a produção e a dissolução, são factos, qualidades ou
fenómenos que podem ser apreendidos e utilizados para a explicação dos problemas naturais. A experiência é purificada pelos elementos subjectivos e
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variáveis e reduzida aos permanentes e verdadeiramente objectivos. Galileu distingue as qualidades sensíveis que são próprias dos corpos e aquelas que o não são porque pertencem apenas aos órgãos dos sentidos. Não se pode conceber uma substância corpórea senão limitada, provida de figura o de grandeza determinada, situada num corto lugar e
num corto tempo, imóvel ou em movimento, em contacto ou não, una ou múltiplice, mas, em contrapartida, pode-se concebê-la privada de cor, de sabor, de som e de cheiro. Assim, quantidade, figura, grandeza, lugar, tempo, movimento, repouso, contacto, distância, número são qualidades próprias e inseparáveis dos corpos materiais; enquanto que sabores, odores, cores, sons, subsistem apenas nos
órgãos sensíveis mas não são caracteres objectivos dos corpos, se bem que sejam produzidos por estes. A objectividade reduz-se, portanto, exclusivamente às qualidades sensíveis que são determinações quantitativas dos corpos; enquanto que as qualidades não redutíveis a determinações quantitativas são declaradas por Galileu puramente subjectivas.
Isto revela o íntimo móbil da investigação de Galileu, o qual conduz a uma extrema clareza a tese, já apresentada por Cusano e Leonardo_ da -estrutura -matemática da realidade objectiva. Galileu considera que o livro da natureza é escrito em língua matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas. Por isso não se pode entender tal livro se antes não se tiver aprendido a língua e os caracteres em que está
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escrito (Ib., VI, p. 232). Sobro a estrutura matemática do universo, repousa a Sua ordem necessária, que é única e nunca foi nem será diversa (Ib., VII, p. 700). Para entender esta ordem é necessário
que a ciência se constitua como um sistema de rigorosos procedimentos de medida. As determinações genéricas "grande" ou "pequeno", "próximo" ou <longínquo", não captam- coisa alguma da realidade natural: as mesmas coisas podem parecer grandes ou pequenas, próximas ou longínquas. A reflexão científica começa apenas quando se introduz uma unidade de medida e se determinam relativamente a ela todas as relações quantitativas (Ib., VI, p. 263).
Galileu fundou, deste modo em toda a sua clareza o método da ciência- assegurou a medida como o instrumento fundamental da ciência e fez valer o ideal quantitativo como critério para discernir na experiência os elementos verdadeiramente objectivos. o reconhecimento da subjectividade de certas qualidades sensíveis não significa para ele a subjectivação parcial da experiência mas a sua objectivação perfeita e a sua redução aos caracteres que correspondem à estrutura matemática da natureza., Galileu subtraiu explicitamente a investigação natural a todas as preocupações finalísticas ou antropoló gicas. As obras da natureza não podem ser julgadas com uma medida puramente humana, em referência àquilo que o homem possa entender ou ao que se lhe torne útil. É arrogância, e loucura mesmo, da parte do homem, declarar inúteis as
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obras da natureza de que não entenda a utilidade para os seus fins. Nós não sabemos para que serve Jove ou Saturno, nem tão pouco sabemos para que servem muitosdos nossos órgãos, artérias ou cartilagens, os quais nem suspeitaríamos possuir se não nos tivessem sido mostrados pelos anatomistas. Em qualquer caso, para julgar da utilidade ou dos efeitos deles, seria mister fazer a experiência de tirá-los e constatar então as perturbações rosultantes da sua falta. Mas qualquer antecipação em relação à natureza é impossível, uma vez que os nossos pareceres ou opiniões não lhe dizem respeito, nem
têm valor para ela as nossas razões prováveis. A subtileza da inteligência e a força da persuasão estão deslocadas nas ciências naturais; nelas Demóstenes e Aristóteles devem ceder a uma inteligência medíocre, que tenha sabido aceitar algum aspecto real da natureza (Op., VII, p. 80). Por isso qualquer discurso que nós façamos acerca das coisas naturais ou é veríssimo ou falsíssimo; se é falso, cumpre desprezá-lo, se verdadeiro é necessário aceitá-lo porque não há modo de lhe fugir (Ib., IV, p. 24).
O que confirma que, não há filosofia que possa mostrar-nos a verdade da natureza melhor do que a natureza (Ib., IV, p. 166), a qual não antecipa a natureza, senão que a segue e a manifesta na sua objectividade. Com a eliminação de toda e qualquer consideração finalistica ou antropomórfica do mundo natural, Galileu realizou completamente a redução da natureza à objectividade mensurável e conduziu a ciência moderna à sua maturidade.
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§ 392. BACON: VIDA E ESCRITOS
Se Galileu elucidou o método de investigação científica, Bacon entreviu pela primeira vez o poder que a ciência oferece ao homem em relação ao mundo. Bacon concebeu a ciência como essencialmente destinada a realizar o domínio do homem sobre a natureza. O regnum hominis: viu a fecundidade das suas aplicações práticas, de modo que podemos considerá-lo o filósofo e o profeta da técnica.
Francis Bacon nasceu em Londres a 22 de Janeiro de 1561, sendo filho de Sir Nicholas Bacon, ministro da justiça da rainha Elisabeth. Estudou em Cambridge e em seguida passou alguns anos em
Paris, no séquito do embaixador de Inglaterra, onde teve ensejo de completar e enriquecer a sua cultura. De regresso à pátria, quis iniciar a carreira política. Enquanto viveu a rainha Elisabeth, não pôde obter nenhum cargo 'importante, não obstante o apoio do conde de Essex. Mas com a subida ao trono de Jaime I, Stuart (1603), pôde gozar do apoio do favorito do rei, Lord Buckingham, para obter cargos e honras. Foi nomeado advogado geral (1607), depois procurador geral (1613), e, finalmente, ministro das justiças (1617) e Lord Chanceler (1618). Como tal, presidia às principais cortes de justiça e tornava executórios os decretos do rei. Foi, além disso, nomeado barão de Verulam e visconde de Slo Albano. Mas quando Jaime 1 teve de convocar em 1621 o Parlamento, inculpou Bacon de
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corrupção, acusando-o de ter recebido ofertas de dinheiro no exercício das suas funções. Bacon reconheceu-se culpado. Foi condenado então a pagar quarenta mil esterlinos de multa, a permanecer prisioneiro na Torre de Londres até que o rei o quisesse, e foi exonerado de todos os cargos do estado (3 de Maio de 1621). O rei perdoou a Bacon a multa e a prisão, mas a vida política do filósofo estava acabada. Bacon retirou-se para Gorhw, nbury e aí passou os últimos anos da sua vida, entregando-,se ao estudo. Faleceu a 9 de Abril de
1626.
A carreira política de Bacon foi a de um cortesão hábil e sem escrúpulos. Não hesitou em sustentar a acusação como advogado do rei contra o conde Essex que o havia ajudado nos primeiro passos difíceis da sua carreira, e que caíra em
seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz pouco simpática sobre a sua
actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as acusações de corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem ambicioso e amante do dinheiro e
do fausto teve uma ideia altíssima do valor da ciência ao serviço do homem. Todas as suas obras tendem a ilustrar o projecto de uma pesquisa científica que, aplicando o método experimental em
todos os campos da realidade, faça da realidade mesma o domínio do homem. Bacon quis tornar a
ciência activa e operante colocando-a ao serviço do homem e considerando como seu escopo a constituição de uma técnica que devia dar ao homem o domínio de todo o mundo natural. Quando, na
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Nuova Atlântida, pretende dar a imagem de uma
cidade ideal, recorrendo ao pretexto, já empregado por Tomás Moro na Utopia, da descrição de uma
ilha desconhecida, não se deteve a sonhar com formas de vida sociais ou políticas perfeitas, mas imaginou um paraíso da técnica onde fossem postos em prática as invenções e os achados do mundo inteiro. E, de facto, neste escrito (que não chegou a ser concluído) a ilha da Nova Atlântida é descrita como um enorme laboratório experimental, na qual os habitantes procuram conhecer todas as forças ocultas da natureza "Para estender os confins do império humano a todas as coisas possíveis". Os numes tutelares da ilha são os grandes inventores de todos os países; e as relíquias sagradas são os exemplares de todas as grandes e mais raras invenções.
Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da natureza. A sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira vez em 1597 e depois traduzidos em latim com o título Sermones fídeles sive interiora rerum, são subtis e eruditas análises da vida moral e política nas quais a sapiência dos Antigos é amplamente utilizada. Mas a sua ,principal actividade foi a que dedicou ao projecto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar completamente a investigação científica colocando-a numa base experimental. O plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no escrito De augmentis scientiarbim, publicado, em 1623, o qual compreende: as ciências que se fundam na memória, isto é, a história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que se fundam na fantasia, isto é, a poesia, que se
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divide em narrativa, dramática e parabólica (a que serve para ilustrar uma verdade); e as ciências que se fundam na razão, entro as quais, por um lado, a filosofia prima ou ciência universal, por outro as
ciências particulares que concernem a Deus ou à natureza ou ao homem. "A filosofia prima" é considerada por Bacon como "a ciência universal e mãe das outras ciências", consistindo a sua tarefa em recolher "os axiomas que não são próprios das ciências particulares mas comuns a outras ciências" (De augm. séient., 111, 1). Este conceito devia permanecer típico da interpretação da tarefa da filosofia segundo os métodos positivistas, isto é, segundo todo o método que faça coincidir com a ciência a totalidade do saber.
A Instauratio magna deveria dar as directivas de todas estas ciências e devia, consequentemente. compreender seis partes: 1.a Divisão das ciências;
2.a-Novo órgão ou indícios para a interpretação da natureza; 3 a Fenómenos do universo ou história natural experimental para construir a filosofia; 4 a Escala do intelecto; 5 a - Pródromos ou antecipações da filosofia segunda; 6 a - Filosofia segunda ou ciência activa. Deste vasto projecto Bacon &penas realizou adequadamente a segunda parte que é precisamente o Novum organum, publicado em 1620. As outras obras podem-se considerar como esquissos ou esboços das outras partes: O progresso do saber (em inglês, 1605), De sapientia veterum (1609); História naturalis (1622)-, De dignitate et augmentis scientiarum (1623); este último escrito representa a primeira parte da Instauratio nwgna.
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Escritos menores, incompletos ou esboçados foram publicados após a sua morte: De interpretatione natura e proemium (1603), Valerius Terminus (1603); Cogitationes de rerum natura (1605); Cogitata e visa (1607), Descriptio globi intelectualis (1612); Thema coeli (1612). Nos últimos anos compôs e publicou também uma História de Henrique VII.
§ 393. BACON: O CONCEITO DA CIÊNCIA E DA TEORIA DOS ÍDOLOS
Do projecto grandioso de uma Instauratio magna que devia culminar na Sciencia activa, isto é, numa técnica que aplicasse as descobertas teóricas,muito pouco realizou Bacon. O que ele fez reduz-se substancialmente ao Novum Organum, isto é, a uma
lógica do procedimento técnico-científico que é polemicamente contraposta à lógica aristotélica, que ele achava servir apenas para alcançar vitórias nas disputas verbais. Com a velha lógica vence-se o adversário, com a nova conquista-se a natureza. Esta conquista da natureza é a tarefa fundamental da ciência. "0 fim desta nossa ciência, diz Bacon (Nov. org., Distributio operis), é o de encontrar não argumentos mas artes, não princípios aproximativos, mas
princípios verdadeiros, não razões prováveis mas projectos e indicações de obras". A ciência é posta assim inteiramente ao serviço do homem; e o homem, ministro e intérprete da natureza, opera e compreende de acordo com o que observou na ordem
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da natureza, quer mediante a experiência, quer mediante a reflexão: para além disto, não sabe nem
pode coisa alguma. A ciência e o poder humano coincidem: a ignorância da causa toma impossível conseguir o efeito. Não se vence a natureza senão obedecendo-1he, e o que na observação está como causa, na obra vale como regra (Ib., 1, 3). A inteligência humana tem necessidade de instrumentos eficazes para penetrar na natureza e dominá-la: à semelhança das mãos, não pode efectuar nenhum trabalho sem um instrumento adequado. Os instrumentos da mente são os seus experimentos: experimentos pensados e adaptados tecnicamente ao fim que se pretende alcançar. Os sentidos por si só não bastam para nos fornecer uni guia seguro: só os
experimentos são os guardiões e os intérpretes das respostas daqueles. O experimento representa, segundo a imagem de Bacon, w conúbio da mente e do universo", conúbio do qual se espera "uma prole numerosa de invenções e de instrumentos aptos a dominarem e a mitigarem, pelo menos em parte, as necessidades e as misérias dos homens" (lb., Distr. op.).
Mas a união entre a mente e o universo não se pode celebrar enquanto a mente permaneça presa a hábitos e preconceitos que a impedem de interpretar a natureza. Bacon opõe a interpretação da natureza à antecipação da natureza. A antecipação da natureza prescinde do experimento e passa imediatamente das coisas particulares sensíveis aos axiomas generalíssimos, e, à base destes princípios e da sua imóvel verdade, tudo julga e encontra os chamados
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axionas médios, isto é, as verdades intermédias entro os princípios últimos e as coisas. Esta é a via da antecipação, de que se serve a lógica tradicional, via que toca apenas de raspão a experiência porque se satisfaz com as verdades gerais. A interpretação da natureza, ao invés, adentra-se com método e ordem na experiência e ascende, sem saltos e por graus de sentido, das coisas particulares aos aXiomas, chegando só por último aos mais gerais. A vila de antecipação é estéril, uma vez que os axiomas por ela estabelecidos não servem para inventar seja o que for. A via da interpretação é fecunda, porque dos axiomas deduzidos com método e ordem das coisas particulares facilmente brotam novas cognições particulares que tornam activa e produtiva a ciência (lb., 1, 24). A tarefa preliminar de Bacon, na sua tentativa de estabelecer o novo órgão da ciência, é, por conseguinte, o de eliminar as antecipações, e a tal é dedicado substancialmente o primeiro livro do Novum organum. Este livro destina-se a purificar o intelecto de todos os ídolos, para o que estabelece uma tríplice crítica: (redargutio): crítica das filosofias, crítica das demonstrações e crítica da razão humana natural, respectivamente destinadas a eliminar os preconceitos que se radicaram na mente humana através das doutrinas filosóficas ou através das demonstrações extraídas de princípios errados, ou pela própria natureza do intelecto humano. Ele quer "conduzir os homens Perante as coisas Particulares e as suas séries e ordena, afastando-os por algum tempo das noções
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antecipadoras para que comecem a familiarizar-se com as coisas mesmas" (Ib., 1, 36).
As antecipações que se radicam na própria natureza humana são as que Bacon denomina idola tribus e idola specus: os idola tribus são comuns a todos os homens, os idola specus são próprios de cada indivíduo. O intelecto humano é conduzido a supor que existe na natureza uma harmonia muito maior do que a que existe de facto, a dar mais importância a certos conceitos do que a outros, a atribuir maior relevância ao que, impressiona a fantasia do que ao que é oculto e longínquo. Além de ser impaciente, quer progredir sempre para além do que lhe é dado, e pretende que a natureza se
 adapte às suas exigências. rejeitando assim tudo o
que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são fontes de idola tribus,- e a principal fonte de tais idola é a insuficiência dos sentidos aos quais escapam todas as forças ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés, dependem da educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou a ela completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido por certo a uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o descobridor do magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta toda uma filosofia. E assim, em geral, todo o homem tem as suas propensões para os antigos ou para os modernos, para o velho ou para o novo, paira aquilo que é simples ou para aquilo que é complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas estas propensões são fontes
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de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um antro ou uma caverna que refractasse ou desviasse a luz da natureza.
Além destas duas espécies naturais de ídolos, existem os adventícios ou provenientes do exterior: idola fori e idola theatri. Os ídolos da praça derivam da linguagem. Os homens crêem impor .a sua
razão às palavras: também sucede que as palavras retorçam e repercutam a sua força sobre o intelecto. Nascem assim as disputas verbais', as mais longas e insolúveis, que se podem resolver apenas com um recurso à realidade. Os ídolos que derivam das palavras são de duas espécies: ou são nomes de coisas que não existem ou são nomes de coisas que existem, mas que são confusos e mal determinados. À primeira espécie pertencem os nomes
de fortuna, primeiro móbil, órbitas dos planetas, elemento do fogo e quejandos, os quais têm a sua origem em falsas teorias. À segunda espécie pertencem, por exemplo, a palavra húmido, que indica coisas diversissímas, as palavras que indicam acções como gerar, corromper, etc., e as que indicam qualidades, como grave, ligeiro, poroso, denso, etc. Tais são os idóla fori, 'assim chamados porque gerados por aquelas convenções. humanas que as relações entre os homens tornaram necessárias. o último género de preconceitos é o idola theatri que derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações erradas. Bacon denomina-os- assim porque compara os sistemas filosóficos a fábulas, que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. As doutrinas filosóficas, e por conseguinte, os idola theatri, existem em pro32
fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as falsas filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a supersticiosa. Da filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles, que procurou adaptar o mundo natural a categorias lógicas predispostas e se preocupou mais em dar a definição verbal das coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género empírico, pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e restritos experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a que se mistura com a teologia, como acontece em Pitágoras e Platão, e especialmente neste último, que Bacon considera mais subtil e perigoso e ao qual não hesita em atribuir num seu escrito (Temporis partus musculus, Opere, M,
530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado, teólogo mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de demonstrações erróneas. E as demonstraçõessão erróneas porque se fiam demasiado nos sentidos ou abstraem indevidamente das suas impressões ou têm a pretensão de passar de golpe dos pormenores sensíveis aos princípios gerais.
Entre as causas que impedem os homens de se libertarem dos ídolos e progredirem no conhecimento efectivo da natureza, Bacon coloca em primeiro lugar a reverência pela sabedoria antiga. A este propósito, observa ele que, se por antiguidade se entende a velhice do mundo, o termo deveria aplicar-se ao nosso tempo, e não àquela juventude do mundo de que os Antigos foram quase um exemplo.
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Essa época é antiga e fundamental para nós, mas
relativamente ao mundo é nova e menor; e como é lícito esperar de um homem antigo um maior
conhecimento do mundo do que de um jovem, assim deveremos esperar da nossa época muito mais do que dos tempos antigos, porque ela se foi pouco a pouco enriquecendo no curso do tempo através de infinitos experimentos e observações. A verdade, diz Bacon, é filha do tempo, não da autoridade. Como Bruno, ele pensa que ela se
revela gradualmente ao homem através dos esforços que se somam e se integram na históriaPara sair das velhas vias da contemplação improdutiva e empreender a via nova da investigação técnico-científica, é necessário colocarmo-nos no terreno do experimento. A simples experiência não basta, porque procede ao acaso e sem directivas. É semelhante, diz Bacon, (Nov. Org., 1, 82) a uma
vassoura velha, ao avançar às cegas como quem andasse de noite à procura do caminho, quando seria mais fácil e prudente esperar pelo dia ou acender uma luz, e assim enfiar pelo caminho. A ordem verdadeira da experiência consiste em acender a luz, ,iluminando desse modo a via, quer dizer, começar pela experiência ordenada e madura, e não por experiências irregulares e desordenadas. Só assim o experimento pode levar a vida humana a enriquecer-se de novas invenções, a assentar as bases do poder e da grandeza humana e a alargar cada vez mais os seus horizontes. Aliás, o objectivo prático e técnico que Bacon atribui à ciência não a encerra
num estreito utilitarismo. Aos experimentos que dão
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fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão luz (experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis, porquanto revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).
§ 394. BACON: A INDUÇÃO E A TEORIA DAS FORMAS
A pesquisa científica não se funda só nos sentidos nem apenas no intelecto. Se o intelecto por si não produz senão noções arbitrárias e infecundas e se os sentidos, por outro lado, só dão indicações ordinárias e inconcludentes, a ciência não poderá constituir-se como conhecimento verdadeiro e fecundo de resultados senão enquanto impuser à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao
intelecto a disciplina da experiência sensível. O procedimento que realiza aquela exigência é, segundo Bacon, o da indução. Bacon preocupa-se em distinguir a sua indução da aristotélica. A indução aristotélica, isto é, a indução puramente lógica que não incide sobre a realidade, é uma indução por simples enumeração dos casos particulares: Bacon considera-a uma experiência pueril que produz conclusões precárias e é continuamente exposta ao perigo dos exemplos contrários que possam desmenti-la. Ao invés, a indução que é a invenção e a demonstração das ciências e das artes funda-se na escolha e na eliminação dos casos particulares: escolha e eliminação repetidas sucessivamente sob o controle do experimento, até se atingir a deter35
minação da verdadeira natureza do fenómeno. Esta indução procede por isso sem saltos e por graus; quer dizer, remonta gradualmente dos factos particulares aos princípios mais gerais e só por último chega aos axiomas generalíssimos.
A escolha e a eliminação em que se funda tal indução supõem em primeiro lugar a recolha e a descrição dos factos particulares: recolha e descrição que Bacon denomina storia naturale sperimentale, porque não deve ser imaginada ou cogitada, mas recolhida da experiência, ou seja, ditada pela própria natureza. Mas a história natural e experimental é tão variada e vasta que confundiria o intelecto em vez de ajudá-lo se não fosse composta e sistematizada numa ordem idónea. Para tal fim servem as tábuas que são recolhas de casos ou
exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna tais recolhas apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11, 10). As tábuas de presença serão então a recolha das instâncias conhecidas, isto é, das circunstâncias em que uma
certa "natureza", por exemplo, o calor, habitualmente se apresenta. As tábuas de ausência recolhem, ao invés, aqueles casos que são privados da natureza em questão, embora estando próximos ou
ligados àqueles que a apresentam. As tábuas dos graus ou comparativas recolherão, pelo contrário, aquelas instâncias ou casos em que a natureza procurada se encontra em diferentes graus, maiores ou
menores: o que deve fazer-se ou comparando o seu aumento e a sua diminuição no mesmo sujeito ou comparando a sua grandeza em sujeitos diferentes,
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confrontados um com o outro. Formadas estas tábuas, começa o verdadeiro e próprio trabalho da indução, cuja primeira fase deve ser negativa, isto é, deve consistir "em excluir as naturezas que não se encontrem em alguns casos em que a natureza dada é presente ou se encontrem em algum caso em que ela é ausente ou cresce em algum caso em que a natureza dada decresce ou decresce em algum caso em que a natureza dada aumenta". A parte positiva da indução **co~rá apenas após esta longa e difícil obra de exclusão, com a formulação de uma hipótese promissória, acerca da forma da natureza estudada, que Bacon, denomina "primeira vindima". Esta hipótese guiará o desenvolvimento ulterior na pesquisa que consiste substancialmente em pô-la à prova em sucessivas confirmações ou experimentos que Bacon chama instâncias prerrogativas. Ele enumera vinte e sete espécies de tais instâncias, designando-as com nomes pitorescos (instâncias solitárias, migratórias, impressionistas, clandestinas, manipulares, analógicas, etc.). A ,instância decisiva é a instância crucial, cujo nome
Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para indicar as vias. O valor desta instância consiste em que, quando se não sabe ao corto qual das duas ou mais naturezas é a causa da natureza estudada, a instância crucial mostra que a
união de uma das naturezas com ela é segura e
indissolúvel e assim permite reconhecer nesta natureza a causa da natureza estudada. Algumas vezes, acrescenta Bacon, instâncias desta natureza apresentam-se por si; outras vezes, ao contrário, devem ser
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procuradas ou provocadas e constituem verdadeiros e próprios experimentos (M., 11, 36).
No vigésimo sétimo e último lugar das instâncias prerrogativas, Bacon coloca as instâncias da magia, caracterizadas pela desproporção entre a causa material ou eficiente, que é pequena ou insignificante, e o efeito produzido. Devido a esta desproporção, as instâncias mágicas parecem milagres: na realidade, os efeitos mágicos são obtidos por via puramente natural, mediante a multiplicação das forças produtoras devida ou a estas forças mesmas ou às forças de outros corpos (Nov. org., H, 51). Deste modo, a magia, com todos os seus mirabolantes efeitos, foi incluída por Bacon no plano do trabalho experimental.
Todo o processo da indução tende, segundo Bacon, a estabelecer a causa das coisas naturais. E esta causa é a forma. Ele faz seu o principio: vere scire est per causas scire, e aceita finalmente a distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Mas elimina logo a causa
final por ser mais nociva do que benéfica à ciência Ub., 11, 2). "A pesquisa das causas finais, diz ele (De augm., 111, 5), é estéril: como uma virgem consagrada a Deus, não pode parir coisa alguma". Bacon não nega que se possam legitimamente contemplar os fins dos objectos naturais e a harmonia geral do universo para se dar conta do poder e da sabedoria de Quem o criou. Mas esta pesquisa deve ser consagradaao serviço de Deus, não pode ser transposta para o plano da ciência natural, porque esta não é contemplativa mas activa, e deve
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descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o mundo (Ib., 111, 4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon considera que a
eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência verdadeira e activa por serem concebidas como separadas do processo latente que tendo à forma. Resta a forma, que Bacon tem a pretensão de entender de um modo inteiramente diverso de Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por forma é o mais difícil problema da crítica baconiana.
Bacon insiste em primeiro lugar na tese de que só a forma revela a unidade da natureza e permite descobrir o que nunca existiu antes e que nunca
poderia passar pela cabeça de ninguém, e que nem os acontecimentos naturais nem as explorações experimentais nem o acaso poderiam alguma vez produzir. "Só da descoberta das formas, diz ele, nasce a contemplação verdadeira e a liberdade do operam (lb., 11, 3). Para entender o significado da forma é necessário uma observação preliminar. Bacon distingue em todos os fenómenos naturais dois aspectos diferentes: 1º o esquematismo latente (Iatens schematismus), isto é, a estrutura ou a ordem intrínseca dos corpos considerados estàticamente;
2º o processo latente (latens processus ou processus ad formam), isto é, o movimento intrínseco dos próprios corpos, que os conduz à realização da forma. De facto, ele distulgue (Ib., 11, 1) "o processo latente que em todas as gerações ou movimentos parte continuamente da causa eficiente e manifesta e da matéria sensível para a forma inata" e o
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"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento". E mais adiante considera o processo e o esquematismo em dois capítulos separados, insistindo na conexão e na diversidade dos dois aspectos da natureza (Ib., 11, 6 e 7). Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina do esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos movimentos (De augm., 111, 4). A primeira doutrina é por ele comparada ao que é a anatomia dos corpos orgânicos (Nov. org., 11, 7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio do esquematismo e o princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função que lhe atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que constitui essencialmente, e portanto individua e define, um determinado fenómeno natural; por outro lado, a lei que regula o movimento de geração ou de produção do próprio fenómeno. "Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno natural (lb., 11, 1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante ou a fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a coisa), tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é evidente que a forma como diferença verdadeira constitui o princípio do esquematismo, isto é, da ordem intrínseca das partes da matéria, porque é aquilo que individua a estrutura de uma realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte de emanação é a lei que regula o movimento de produção de um determinado fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do
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termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir um dado fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários fenómenos. e é mais geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4): chama forma à " Minição verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e descreve-a. como "a coisa mesma" na sua estrutura interna (Ib., 11, 13). Por outro lado, fala das leis fundamentais e comuns que constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem que na
natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos puros individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa mesma lei, a
busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de fundamento quer ao saber quer ao operar. Esta lei, e os seus parágrafos, é aquilo que nós designamos com o nome de forma, especialmente porque este vocábulo é usado e se tornou familiar" (lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados ao mesmo tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão aquelas leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e
constituem qualquer simples fenómeno natural, como
o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto adaptado. Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma coisa que a lei do calor ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se distinguem os dois significados fundamentais da forma, como lei do movimento e determinação do acto puro, isto é, o esquematismo latente.
Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem feito) a ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma. Na reali41
dade, este significado é necessáriamente duplo em
virtude de uma distinção que Bacon claramente estabeleceu e considerou. fundamental. Resta, porém, uma dúvida: será a doutrina da forma tão original como o próprio Bacon a julgou e, sobretudo, distinguir-se-á ela suficientemente da doutrina aristotélica? Não há dúvida de que Bacon contrapôs o seu
conceito de forma ao do aristotelismo escolástico; mas a forma, tal como ele a concebeu, como princípio estático e dinâmico dos corpos físicos, corresponde exactamente à autêntica forma de Aristóteles: a substância, como princípio do ser, do devir e da inteligibilidade de todas as coisas reais (§ 73). Sem o querer e talvez sem o saber, Bacon reportou-se directamente ao genuíno significado aristotélico, da forma substancial. onde, porém, se afasta de Aristóteles é na exigência, tenazmente mantida, de que a forma seja sempre inteiramente resolúvel em elementos naturais; isto é, que a busca e a descoberta da forma não consiste em processos conceituais mas num processo experimental que chega, mediante o
exame de cada caso, a determinar os elementos precisos e operantes da estrutura interna e do processo generativo de um dado fenômeno. Enxertou assim no tronco do aristotelismo a sua exigência experimentalista. E isto explica a eficácia limitada e quase nula que a sua doutrina exerceu no desenvolvimento da ciência, a qual permaneceu inteiramente dominada pelas intuições metodológicas de Leonardo, Kepler e Galileu, mas quase por completo ignorou
O experimentalismo baconiano que de facto era para ela aproveitável. O experimentalismo científico não
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podia ser enxertado no tronco do aristotelismo; e a
teoria da índução baconiana devia falir nossa tentativa. O experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica e com ela a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era, como se viu (§ 391), a matemática. É significativo que a matemática não encontre lugar na indução baconiana. Bacon preocupou-se, é certo, em situar a matemática na sua enciclopédia das ciências, agregando-a umas vezes à metafísica (Advancement, 11, 82), outras vezes
à física (De augm., 111, 6, Nov. org., 1, 96); mas
não atribuiu à matemática mesma nenhuma função eficaz na investigação científica, e afirmou explicitamente que ela "está no termo da filosofia natural, mas não a deve gerar nem procriam (Nov. org., H,
96). Assim, ao mesmo tempo considera que a matemática é causa de corrupção da filosofia natural; e, aliás, (De augm., 111, 4), diz que a astronomia foi incluída entre as matemáticas, não sem perda da sua dignidade (non sine dignitatis suae dispendio). Na realidade, o experimentalismo de Bacon mantém-se nos quadros da metafísica aristotélica, e não podia fornecer à ciência um novo órgão de investigação. Aliás, a ciência já encontrara (ou estava em vias de encontrar) o seu órgão, que é precisamente a matemática, e era por causa desse órgão que se desinteressava daquelas formas que Bacon considerava como termo último da investi~ gação, e se dispunha a considerar únicamente a ordem mensurável das coisas naturais, isto é, as suas relações matemáticas. A grandeza de Bacon consiste sobretudo em ter reconhecido a estreita
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conexão entre a ciência e o poder humano e em haversido o profeta da técnica, isto é, da possibilidade de domínio que a investigação científica abre ao homem no mundo.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 388. Os manuscritos de Leonardo foram publicados com as reproduções fotográficas por Ravisson-Mdllien, 6 vol. in fol., Paris, 1881-91; Codice atlantico, ed. Piumati, Milão, 1894-1903; 1 manoscritti e disegni di Leonardo da Vinci, publicados pela R. Comissão Vinciana, Roma, 1923 segs.-A mais rica de todas as selecções é de RIGHTER, The Literary Works of Leonardo da Vinci Compiled and Edited from the Original manuscripts, 2 vol., Londres, 1883; 2.1 ed., 1939; Frammenti litterari e filosofici, se'eccionados púr E. Sdlmi, Florença, 1899.-Trattato della pittura, ed.
6udwig, Viena, 1882.
Sobre os precedentes históricos das doutrinas de Leonardo: DUI-TEM; Êtudes sur L. de V., 3 val., Paris,
1906, 1908, 1913.-E. SOLM1; Leonardo, Florença
1900; CROCE, Leonardo filosofo, in Saggio, sullo Hegel, Bari, 1913; GENTILE, Leonardo, in Pe"ero del rinascimento, e. IV, Florença, 1940; 1d., Il pensiero di L., Florença, 1941. C. LuPORINi, Ta mente di L., Florença,
1953; E. GkRIN (Medioevo e renascimento, Ban, 1954, p. 311 segs.; La cultura filosofica del renascimento italiano, FIlorença, 1961, p. 388 segs.) combate, com razões vãlidas, a tese de Duhem da dependência de Leonardo para com Cusano, mostrando as conexões do pensamento de Leonardo com a cultura florentina do tempo.
§ 389. O De revolutionibus de Copérnico foi publicado em Nuremberga, 1543; outras ed.: Basileia,
1566; Amsterdão, 1617; Varsóvia, 1854; Thorn, 1991,
44
-- SCHIAPARELLI, I precursori di Copernico nell'antichità, Milão, 1873; NATORP; Die kosmolog. Reform des K. in ihrer Bedeutung fur d. Philos., in "Press. Jahr",
49.1, p. 355 segs.
De Tycho Brahe: Opera omnia, Praga, 1611; Francoforte, 1648.
De Kepler: Prodromus, Tubi-nga, 1596, 1621; Astronomia nova, Hedelberg, 1609; Harmonices mundi, Linz, 1619; Opera omnia, 8 vol., Francoforte, 1858-71.PRANTL nos "Atti dell'Accademia delle scienze di Monaco", olasse de história, 1875.
§ 390. A ediç" nacional das obras de GaUleu (FlorenGa, 1890-1909) compreende 20 vi o 20., contêm os índices, o 11.1 os documentos, os vo,1s. 10.---18., a oorrespondência. II saggiatore encontra-se no vol. 6.O; os Dialoghi sopra i due massimi sistemi encontram-se no 7.o vol.; os Dialoghi intorno a due nuove scienze no vol. 8., - So-bre a vida de Galficu, as numerosas investigações de, A. FAVARO; BANFI, Vita di C. G., Milão, 1930.
§ 391. FAVARO, G. G., Modena, 1910, GENTILE, TI pensiero dei rinascimento, Florença; L. OUCHIU, G. und seine Zeit, Halle, 1927; A. KOYRÉ, Études galiIéennes, 3 vdl., Paris, 1939. A interpretação a que se faz referéncia no texto, de um Galileu aparentado com Aristóteles, é devida precisamente a KOYRÉ. Ver uma crítica muito equilibrada a esta interpretação: L. GEYMONAT, G. G., Turim, 1957.
§ 392. Sobre a vida de Bacon: RÉMUSAT, Bacon, sa vie, son temps, sa phil. et son influence jusqu'à nos
jours, Paris, 1857; M. M. Rossi, Saggio su F. B., Nápoles, 1935. A melhor ed. das obras de Bacon é a de Ellis, Speliding e Hath, Works, 1857-59, em 5 vol.
-i2 boa ia precedente ed. de Bouillet, en 3 voL, Paris,
1834-35; Novuin org., ed. e com. de T. FowIer, Oxford,
1889; The Advancement of Learning, ao cuidado de
45
H. Morley, Londres, 1905, The New Atlantis, ao cuidado de G. C. Moore Smith, Cambridge, 1960.
Como exemplo das frequentes desvalorizações de que tem sido objsc,to a figura de Bacon, pode ver-se
o escrito de L. VoN LIEBIG, Ueber F. B. und die Methode der Naturforschung, Mónaco, 1863; trad. frane.,
1866 e 1877.
§ 393. Sobre a doutrina de B.: K. -"SCHER, F. B, von V. Die Realphil.und ihre Zeitalter, Leipzig, 1853;
2,1 ed., 1875; HEUSSLER; F. B. und seine ge.-chichtliche Steilung, Breslan, 1889; LEVI, 11 pensiero di F. B., Turim, 1925; BROAD, The phil. of P. B., Cambridge,
1928; FAZIO ATLMAYER, Saggio su F. B., Pa:lermo, 1928; THEOBALD, F. B. Concealed and Revealed, Londres,
1930; M. M. ROSSI, Saggio su F. B., cit.; F. ANDERSON, The Phil. of. P. B., Chicago, 1948; B. FARRINGTON, F. B.: Philosopher of Industrial Science, Nova lorque, 1949, trad. ital. Turim, 1952; P. M. SCHUHL, La pensée de B., Paris, 1949; PAOLO Rossi, F. B., Dalla. magia alla sci"za, Bari, 1957 (esta última obra é destinada especialmente à ilustração das relações entre o pensamento de Bacon e o pensamento escolástico e renascentista).
§ 394. As várias interpretações da teoria das formas são expostas e discutidas nas monogratias mais recentes; LEvi, op. cit., p. 243; ROSsi, op. cit., p. 195 segs.
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QUINTA PARTE
FILOSOFIA MODERNA DOS SÉCULOS XVII E XVIII
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DESCARTES
§ 395. DESCARTES: VIDA E ESCRITOS
A personalidade de Descartes marca a decisiva viragem do Renascimento para a idade moderna, Os temas fundamentais da filosofia do Renascimento, o reconhecimento da subjectividade humana e a exigência de aprofundá-la e esclarecê-la com um retorno a si mesma, o reconhecimento da relação do homem com o mundo e a exigência de a resolver em favor do homem, tornam-se, na filosofia de Descartes, os termos de um novo problema em que são envolvidos a um tempo o homem como sujeito e o mundo objectivo.
Renê Descartes nasceu a 31 de Março de 1596 em Haia, na Touraine. Foi educado no colégio dos Jesuítas em La nèche, onde permaneceu de 1604 a 1612. Os estudos que fez neste período foram por
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ele próprio submetidos a crítica na primeira parte do Discurso: eles não bastaram para lhe dar uma orientação segura e revelaram-lhe a profunda vacuidade da cultura escolástica da época. Descartes, contudo, manteve sempre relações afectuosas com os seus mestres jesuítas, e com um deles, o padre Marino Marsenne, correspondeu-se e manteve relações de amizade por toda a vida. A incerteza em que a primeira educação o havia deixado levou-o a viajar "para ler no grande livro do mundo". Em 1618 alistou-se nos exércitos do príncipe de Nassau, que participou na Guerra dos Trinta Anos. Era um costume militar da época deixar aos jovens ampla liberdade, e Descartes pôde viajar a seu
talante por toda a Europa, dedicando-se aos estudos de matemática e de fíSica e continuando a procurar o fundamento seguro de todo o saber humano. Em
1618 conheceu o médico holandês Isaac Beekman e desta amizade colheu novo incentivo para prosseguir as suas investigações matemáticas e físicas. No ano seguinte, a 10 de Novembro, numa pequena cidade alemã, teve a grande iluminação em que fez a sua descoberta fundamental. Foi uma verdadeira crise de entusiasmo, que induziu o filósofo a fazer o voto de ir em peregrinação ao santuário de Loreto. Em 1622 voltou a França e no ano seguinte viajou ainda pela Suíça e pela Itália. Em 1628 fixou a sua residência na Holanda. Este era então o país da liberdade e da tolerância filosófica e religiosa, e esse foi decerto o motivo principal que levou Descartes a instalar-se aí, se bem que também pesasse na sua deliberação um outro motivo (que ele
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explicitamente aduz), a saber: o de subtrair-se às obrigações sociais que em França lhe tomavam muito tempo. Pôde, assim, nesse país gozar aquela solidão isenta de isolamento que constituiu o ideal de toda a sua vida.
Desde 1619, ano da "iluminação", Descartes estava de posse da ideia central do seu método. Mas só em 1628, provàvelmente, começou a pôr em prática a sua ideia num escrito e a redigir as regras do método nas Regulae ad directionem ingetui que, não obstante, não chegou a publicar em vida: elas só foram dadas à estampa alguns anos após a sua morte. (1701). Na Holanda começou a
compor um tratado de metafísica que será o protótipo das Meditações; e em 1633 terminava o Tratado do Mundo, ao qual pretendia dar o título menos ambicioso de Tratado da Luz. Mas enquanto se preparava para publicá-lo, teve notícia da condenação de Galileu de 22 de Junho de 1633. Como também ele aceitava, no seu tratado, a hipótese copernicana, renunciou desde logo à sua publicação para evitar entrar em conflito aberto com a Igreja. A sua naturezacauta e prudente levou-o a ladear o obstáculo. Tirou do tratado original algumas partes fundamentais e publicou em 1637 três ensaios: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria, antepondo-lhes um prefácio que foi o Discurso sobre o Método. Em seguida retomou o tratado de metafísica que esboçara em 1629 e deu-lhe a redacção definitiva. Antes de publicá-lo, Descartes mandou-o ao padre Marsenne para que ele o sobmetesse ao parecer dos maiores filósofos e teólogos da época. Como
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se dirigia aos doutos, a obra (diversamente do Discurso) era escrita em latim, foi publicada no ano seguinte (1641), seguida de uma série de Objecções a que Descartes acrescentou as suas Respostas, com o título Meditationes de prima philosophia in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstranTur. Esta obra foi publicada em francês em 1641X A matéria integral do Mundo foi depois reelaborada por Descartes numa nova obra em que compendiava. a sua filosofia, e que publicou em latim com o título Principia philosophiae. A obra é composta de breves artigos seguindo -o modelo dos manuais escolares da época, pois Descartes quis dedicá-la precisamente às escolas onde desejava vê-la superar o ensino aristotélico, ainda dominante. Cinco anos depois, desgostoso com a hostilidade que a sua doutrina encontrava nos ambientes universitário holandeses (o que havia provocado a sua Epistola ad Gisbertum Voetium, 1643), pensava em retirar-se para França, quando recebeu o convite da rainha Cristina da Suécia para se dirigir a Estocolmo a fim de a instruir na sua filosofia. Encorajado pelo seu amigo Chanut, embaixador de França junto da rainha, Descartes partiu para a Suécia, depois de ter mandado para o prelo o manuscrito da sua última obra As Paixões da Alma (1649). A rainha Cristina gostava de ter as suas conversações com Descartes às cinco da manhã; uma manhã de Fevereiro de 1650, o filósofo, ao deixar a corte, apanhou uma pneumonia que, após uma semana de delírio e de sofrimentos, lhe foi fatal. Os últimos escritos do filósofo foram uma comédia
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francesa (que se perdeu), e a letra de um balet,
O nascimento da paz, destinado a celebrar o tratado de Westfália, cujo espírito se patenteia na seguinte quadra:
Qui voit comme nous sommes faÍtes Et pense que la guerre est belle Ou quelle vaut mieux que la paix Est estropié de cervelle 1
Após a morte do filósofo, foram publicadas cartas ou escritos que ele deixara -inéditos: Compendium musicae (1650); Tratado do Homem, primeiro em latim (1662) e depois em francês (1664); O Mundo ou Tratado da Luz (1664), Cartas (1657-67), entre as quais se destacam as dirigidas à princesa Elisabeth do Palatinado, Regulae ad directionem ingenii (1701); Inquisitio veritatis per lumen naturale (A investigação da verdade através da luz natural) (1701).
§ 396. DESCARTES: A UNIDADE DA RAZÃO
O problema que domina toda a especulação de Descartes é o do homem Descartes. O procedimento de Descartes é essencialmente autobiográfico, mesmo
quando (como nos Princípios) tem a pretensão de no-lo expor em forma objectiva e escolar. O seu
1 Quem vê como o homem é / E penm que é boa a guerra / Ou que ela é melhor que a paz / Não regula bem da cabeça.
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p~ente e o seu exemplo é Montaigne. "O meu
escopo, diz Descartes (Disc., 1), não é o de ensinar o método que cada um deve seguir para bem conduzir a própria razão, mas tão-só fazer ver de que modo procurei conduzir a minha". Como Montaigne, Descartes não quis ensinar mas descrever-se a si mesmo e teve por isso de falar na primeira pessoa.
O seu problema emerge da necessidade de orientação que ele sente ao sair da escola de La Flèche, quando, embora tivesse assimilado brilhantemente o saber da sua época, se dá conta de que não está de posse de nenhum critério seguro que lhe permita distinguir o verdadeiro do falso e que tudo o que aprendeu de pouco ou de nada lhe serve para a vida.
O problema do homem Descartes e o problema da recta razão ou da bona mens (isto é, da sabedoria da vida) são, na realidade, um só e mesmo problema. Descartes não procurou senão resolver o seu próprio problema; porém, a verdade é que a
solução encontrada por ele não vale apenas para si mas para todos os homens, porque a razão que constitui a substância da subjectividade humana é igual em todos os homens, uma vez que a diversidade entre as opiniões deriva apenas dos diversos modos de conduzi-la e da diversidade dos objectos a que se aplica. Este principio da unidade dá razão, que é, por conseguinte, a substancial unidade dos homens na razão, foi a primeira grande iluminação de Descartes, a de 1619. Nas Regulae, que são, sem dúvida, o primeiro escrito em que a iluminação é
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referida, o filósofo afirma claramente a unidade do saber humano, fundado na unidade da razão. "Todas as diversas ciências, diz ele, não são outra coisa senão a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica por muito que se aplique a diferentes objectos, e não recebe destes maior distinção do que recebe a luz do sol da diversidade das coisas que ilumina "A única sabedoria humana, a que todas as ciências se reportam, é denominada por Descartes bona mens (Reg., 1) e é, ao mesmo tempo, a sageza pela qual o homem se orienta na vida e a razão pela qual decide do verdadeiro e do falso.- É um princípio simultaneamente teórico e
prático, que é a própria substância do homem.
Esta substância é, como tal, única o universal. "A faculdade de julgar bem e distinguir o vero
do falso, que é propriamente aquilo que se chama bom senso ou razão, é, naturalmente, igual em todos os homens", diz Descartes no início do Discurso. Esta universalidade da razão é, sem dúvida, a maior herança que Descartes recebeu da filosofia clássica e, em particular, do estoicismo. Mas, enquanto que para os Estóicos a razão é a Própria substância divina o o homem dela participa só na medida em que Deus nele opera, para Descartes a razão é uma faculdade especificamente humana a
que Deus oferece apenas alguma garantia, subordinada de resto ao respeito de regras precisas. E, como faculdade humana, a razão não opera descobrindo ou manifestando a ordem divina no mundo, mas produzindo e estabelecendo a ordem nos conhe55
cimentos o nas acções dos homens. Descartes leva a efeito aquela mundanização e humanização da razão que a filosofia do Renascimento havia parcialmente iniciado. Porque para Descartes o primeiro fruto da razão é a ciência, e, em particular, a matemática, sobre a qual funda a descoberta do método. A razão, todavia, não se identifica inteiramente com o seu método, mas participa da própria natureza dos elementos sobre que o método se exerce: tais elementos são racionais só na--medida em que possuam clareza e evidência. A clareza e
evidência dos elementos conhecidos (isto é, das ideias) constituem a condição preliminar de todo o
procedimento racional; e não é por acaso que o
reconhecimento desses caracteres é prescrito pela primeira regra do método. Porque Descartes nrivi;.2gia as matemáticas que se servem apenas de semelhantes elementos, mas tal privilégio, tem, como
sua contraparte negativa, a rejeição de uma quantidade de noções aproximativas, "perfeitas ou fantásticas que Descartes se recusa a tomar em consideração porque as considera insusceptíveis de tratamento racional. O ideal da clareza e da distinção, ou seja, o ideal da filosofia como ciência rigorosamente conceptual, é um dos ensinamentos cartesianos que mais poderosamente influíram na tradição ocidental.
Este ideal, além disso, não constituía para Descartes um empobrecimento do horizonte da filosofia ou a sua redução a uma tarefa puramente especulativa. Como Bacon, Descartes tinha em mira uma filosofia "não puramente especulativa mas tam56
bém prática, pela qual o homem possa tornar-se dono e senhor da natureza". Esta filosofia deve pôr à disposição do homem dispositivos que lhe permitam gozar sem fadiga dos frutos da natureza e de
outras comodidades, e visar à conservação da saúde, o primeiro bem paira o homem nesta vida. E Descartes é francamente optimista sobre a possibilidadee sobre os resultados práticos de uma semelhante filosofia, que, segundo pensa, poderia conduzir os
homens a ficarem isentos "de uma infinidade de doenças, tanto do corpo quanto do espírito, e talvez mesmo da decadência da velhice" (Disc., VI). Por isso torna públicos os resultados das suas investigações: sabe que a sua vocação o chama ao serviço da humanidade e que, das suas descobertas, a humanidade pode esperar o benefício e o equilíbrio da vida.
Mas tais resultados são condicionados pela posse do método. É necessário um método que seja fundado na unidade e na simplicidade da razão humana e que, portanto, seja aplicável a todos os domínios do saber e a todas as artes. A descoberta e a justificação deste método é o primeiro escopo da actividade especulativa de Descartes.
§ 397. DESCARTES: O MÉTODO
Descartes descobriu o seu método mediante a consideração do processo matemático. "As longas cadeias de raciocínios tão simples e fáceis, de que os geómetras costumam servir-se para chegar às
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V
suas mais difíceis demonstrações, proporcionaram-me o ensejo de imaginar que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento se seguem do mesmo modo e que, desde que se abstenha de aceitar por verdadeira uma coisa que não o seja e que respeite sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da outra, nada haverá tão distante que não se chegue a alcançar por fim nem tão <)culto que não se possa descobrir (Disc., 11). As ciências matemáticas encontram-se portanto já, praticamente, de posse do método. Mas não se trata &penas de tomar consciência deste método, isto é, de extraí-lo das matemáticas e de formulá-lo em geral, (para o
poder aplicar a todos os ramos do saber. Tal aplicação- não seria possível se não se tivesse previamente justificado o valor universal do método. Cumpre, por conseguinte, justificar o próprio método e a possibilidade da sua aplicação universal, reportando-o ao seu fundamento último, isto é, à subjectividade do homem, como pensamento ou razão. O facto de as matemáticas estarem já de posse da prática do método facilitou decerto a tarefa de Descartes, mas tal tarefa só começa verdadeiramente com a justificação (ou fundação) das regras metódicas, justificação que só consente e autoriza a aplicação delas a todos'os domínios do saber humano. Descartes devia portanto: 1.'-formular as regras do método tendo sobretudo presente o procedimento matemápico no qual elas estariam já presentes e em acção; 2.'-fundar mediante uma investigação científica o valor absoluto e universal do método; 3.o - demonstrar a fecundidade do
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método nos vários ramos do saber. Tal foi de facto a sua tarefa.
Descartes define o método como o conjunto de "regras certas e fáceis que, por. quem quer que sejam exactamente observadas, lhe tornam impossível tomar o falso pelo verdadeiro e, sem nenhum esforço mental inútil, antes aumentando sempre gradualmente a ciência, conduzirão ao conhecimento de tudo o que ele será capaz de conhecer" (Reg. IV).
O método deve conduzir o homem, de um modo fácil e seguro, não só ao conhecimento verdadeiro, mas também "ao ponto mais alto" (Disc., 1) a que ele pode chegar, isto é, simultaneamente ao domínio sobre o mundo e à sabedoria da vida. Nas Regulae ad directionem ingenii,' Descartes expusera não só as regras fundamentais mas também as modalidades ou as particularidades da sua aplicação: tinha assim enumerado vinte e uma regras e depois interrompera, desencorajado, a sua obra. Na 11 parte do Discurso sobre o método reduz a quatro as regras fundamentais.
A primeira é a da evidência. "A primeira era
a de jamais aceitar alguma coisa por verdadeira se
não a reconhecêssemos evidentemente como tal: ou seja, evitar diligentemente a participação e a prevenção; e compreender nos meus juízos tão-só o que se apresentasse tão clara e distintamente ao meu
espírito que eu não tivesse nenhuma possibilidade de o pôr em dúvida". Descartes opõe a evidência à conjectura, que é aquilo cuja verdade não se apresenta ao espírito de modo imediato. O acto com
que o espírito atinge a evidência é a intuição. Des59
cartes entende por intuição "não o flutuante testemunho dos sentidos ou o juízo falaz da imaginação nas suas erradas combinações, mas um conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida permaneça acerca do que pensamos; ou seja, -- é precisamente o mesmo, um conceito não duvidoso da mente pura e atenta que nasce só da luz da razão e é mais certo do que a própria dedução" (Reg. III). A intuição é , portanto, o acto puramente racional com o qual a mente colhe o seu próprio conceito e se torna transparente a si mesma. A clareza e a distinção constituem os caracteres fundamentais de, uma ideia evidente: entendendo-se por clareza (Princ. phil., I,,
21 e 45) a presença e a abertura da ideia à mente que a considera e por distinção a separação de todas as outras ideias de modo que ela não contenha nada que pertença às outras., A evidência define assim um acto fundamental do espírito humano, a intuiçãoo que Descartes nas Regras coloca antes da dedução e a par dela, como os dois únicos actos do intelecto. A intuição é o próprio acto da evidência, o transparecer da mente a si mesma e a certeza inerente a este transparecer. Veremos que a busca metafísica de Descartes será, fundamentalmente, uma justificação do acto intuitivo.
A segunda regra é a da análise. "Dividdir cada uma das dificuldades a examinar no maior número de partes possíveis e necessárias para melhor as resolver". Uma dificuldade é um complexo de problemas em que o falso se mistura com o verdadeiro. A regra implica em primeiro lugar que um pro60
blema seja absolutamente determinado e, portanto, que seja libertado de qualquer complicação supérflua, e, em segundo lugar, que seja dividido em problemas mais simples que se possam considerar separadamente (Reg., 13).
A terceira regra é a da síntese. "Conduzir os meus pensamentos por ordem, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de se conhecer, para pouco a pouco me elevar, como por graus, até aos conhecimentos mais complexos,, supondo que haja uma ordem também entre-os objectos que não procedem naturalmente uns dos outros". Esta regra supõe o procedimento ordenado que é próprio da geometria e supõe, outrossim, que todo o domínio do saber seja ordenado ou, ordenável de modo análogo. A ordem assim pressuposta é, segundo Descartes, a ordem da dedução, que é o outro acto
fundamental do espírito humano. Na ordem dedutiva, estão primeiro as coisas que Descartes chama absolutas, isto é, providas de uma natureza simples e, como tais, quase independentes das outras, são, ao invés, relativas as que, devem ser deduzidas das primeiras através de uma série de raciocínios (Ib. 6). A exigência da ordem dedutiva implica que, quando uma ordem semelhante não se encontre naturalmente, ela deva ser a seu tempo cogitada; assim, no caso de uma escrita em caracteres desconhecidos, que não revele nenhuma ordem, se começa por imaginar uma e pô-la à prova (Ib., 10). A regra da ordem é para a dedução tão necessária como a
evidência o é para a intuição.
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A quarta (regra é da enumeração. "Fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que se fique certo de não omitir nenhuma". A enumeração controla a análise, enquanto que a revisão controla a síntese. Esta regra prescreve a ordem e a
continuidade do procedimento dedutivo e tende a reconduzir este procedimento à evidência intuitiva. De facto, o controle completo que a imaginação estabelece ao longo de toda a cadeia das deduções faz desta cadeia um todo completo e totalmente evidente (Ib., 7).
Estas regras não têm em si mesmas a sua justificação. O facto de as matemáticas se servirem delas com sucesso não constitui uma justificação, porque elas poderiam ter uma utilidade prática para os fins da matemática e serem, não obstante, destituídas de validade absoluta e por isso inaplicáveis noutros domínios. Descartes deve, pois, elaborar uma pesquisa que as justifique remontando à raiz delas; e essa raiz

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