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Universidade Federal do Piauí Centro de Educação Aberta e a Distância ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO Carlos Antônio Mendes de Carvalho Buenos Ayres Ministério da Educação - MEC Universidade Aberta do Brasil - UAB Universidade Federal do Piauí - UFPI Universidade Aberta do Piauí - UAPI Centro de Educação Aberta e a Distância - CEAD Carlos Antônio Mendes de Carvalho Buenos Ayres ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO © 2013. Universidade Federal do Piauí - UFPI. Todos os direitos reservados. A responsabilidade pelo conteúdo e imagens desta obra é do autor. O conteúdo desta obra foi licenciado temporária e gratuitamente para utilização no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, através da UFPI. O leitor se compromete a utilizar o conteúdo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reprodução e distribuição ficarão limitadas ao âmbito interno dos cursos. A citação desta obra em trabalhos acadêmicos e/ou profissionais poderá ser feita com indicação da fonte. A cópia deste obra sem autorização expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sansões previstas no Código Penal. É proibida a venda ou distribuição deste material. PRESIDENTE DA REPÚBLICA MINISTRO DA EDUCAÇÃO GOVERNADOR DO ESTADO REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRESIDENTE DA CAPES COORDENADOR GERAL DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA DA UFPI Dilma Vana Rousseff Linhares Aloizio Mercadante Wilson Nunes Martins José Arimatéia Dantas Lopes Jorge Almeida Guimarães João Carlos Teatini de S. Clímaco Gildásio Guedes Fernandes COORDENADORES DE CURSOS ADMINISTRAÇÃO ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CIÊNCIAS BIOLÓGICAS FILOSOFIA FÍSICA LETRAS PORTUGUÊS LETRAS INGLÊS MATEMÁTICA PEDAGOGIA QUÍMICA SISTEMAS DE INFORMAÇÃO Antonella Maria das Chagas Sousa Fabiana Rodrigues de Almeida Castro Maria da Conceição Prado de Oliveira Zoraida Maria Lopes Feitosa Miguel Arcanjo Costa José Vanderlei Carneiro Lívia Fernanda Nery da Silva João Benício de Melo Neto Vera Lúcia Costa Oliveira Davi da Silva Leonardo Ramon Nunes de Sousa CONSELHO EDITORIAL DA EDUFPI Prof. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro ( Presidente ) Des. Tomaz Gomes Campelo Prof. Dr. José Renato de Araújo Sousa Profª. Drª. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Profª. Francisca Maria Soares Mendes Profª. Iracildes Maria de Moura Fé Lima Prof. Dr. João Renór Ferreira de Carvalho TÉCNICOS EM ASSUNTOS EDUCACIONAIS EDIÇÃO PROJETO GRÁFICO DIAGRAMAÇÃO REVISÃO ORTOGRÁFICA REVISÃO GRÁFICA EQUIPE DE DESENVOLVIMENTO Zilda Vieira Chaves Ubirajara Santana Assunção Djane Oliveira de Brito Roberto Denes Quaresma Rêgo Samuel Falcão Silva Antônio Kerignaldo Moura Júnior José Barbosa da Silva José Barbosa da Silva B928a Buenos Ayres, Carlos Antônio Mendes de Carvalho Administração no setor público. / Carlos Antônio Mendes de Carvalho Buenos Ayres - Teresina: EDUFPI/UAPI, 2013 128p. ISBN: 978-85-7463-621-4 1.Educação a Distância. 2. Política Pública. 3. Administração Pública I. Título. C.D.D. - 371.33 O texto que ora apresentamos aos alunos do curso de Administração do Programa de Educação a Distância da Universidade Aberta do Piauí (UAPI) versa exclusivamente sobre a concepção da atividade administrativa circunscrita ao setor público, ou seja, ao setor de atividades administrativas cuja dinâmica é orientada pelo interesse de toda uma coletividade, em conformidade com os princípios que regem a forma de governo republicana. O tema administração no setor público aponta para a importância do conhecimento acerca da gestão pública na compreensão global da evolução das sociedades locais, regionais, nacionais e internacionais, enfim, do mundo em transformação em que vivemos; e cada vez mais interligado. A disciplina administração no setor público, portanto, foi concebida para tratar de assuntos que desde o início busca identificar as suas caracterizações mais evidentes em comparação com a administração no setor privado. Contudo, não se pretende diferenciar esses dois setores de forma dicotômica, mas de compreender as formas de interação em que eles são submetidos no curso real das relações comerciais, industriais e financeiras, por um lado, e das relações sociais e políticas, por outro, que se verificam entre as civilizações, nações, uniões monetárias e aduaneiras, coletividades, grupos e indivíduos. Daí a importância em se compreender o papel que a administração pública desempenha no controle social, na distribuição de renda, na prestação de serviços, atos administrativos e legais e na ofertas de bens coletivos. Esse papel, no entanto, carece de maiores explanações, uma vez que é necessário situar a administração pública no âmbito sócio- político do Estado e do governo. Significar dizer que qualquer tentativa de compreender a administração pública de forma isolada resultará em fracasso de compreensão de sua dinâmica interdependente em relação ao instituto do Estado e ao instituto do Governo. Além do mais, a conjuntura sócio-política e econômica atual do país, em plena fase de expansão de sua economia, assim como a sua posição como player global no mercado transnacionalizado, tem compelido o governo federal a abrir concursos para o preenchimento de cargos vagos e/ou especialmente criados para dar conta das novas exigências administrativas ditadas pelo Estado, em resposta às demandas internas e externas da nação brasileira. Assim sendo, procuraremos retratar o quadro estrutural e funcional da gestão pública no país, sem perder de vista, no entanto, o momento de transição nos fundamentos do próprio sistema capitalista e as condições gerais das nações em vista da grande crise financeira e econômica mundial e seus subsequentes desdobramentos históricos. O alcance desses objetivos explanatórios obrigatoriamente passa por uma abordagem eclética, transdisciplinar, que contemple a articulação entre distintas áreas do conhecimento: a economia (geral e do setor público), a história, a sociologia, a ciência política, a ciência administrativa e o direito público interno (constitucional e administrativo). A título de indicações gerais sobre o assunto em tela, seguem-se as temáticas gerais que a disciplina em apreço exige, distribuídas em três unidades, a saber: Unidade 1 – Fundamentos históricos-conceituais da administração; Unidade 2 – Fundamentos técnico-operacionais do setor público; Unidade 3 – Setor Público: gestão pública, políticas públicas e os desafios da construção da nova ordem social mundial. UNIDADE 1 FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA ADMINISTRAÇÃO Conceito de administração ........................................................... ..... 11 Falhas do sistema de mercado e o setor público ............................... 14 Componentes do setor público: Estado, União, Governo ................. 23 Administração Pública ....................................................................... 52 Princípios e poderes da administração pública ................................ 57 Modelos teóricos de administração pública ...................................... 63 Síntese ............................................................................................... 70 Atividades .......................................................................................... 71 Glossário ............................................................................................ 71 UNIDADE 2 FUNDAMENTOS OPERACIONAIS DO SETOR PÚBLICO Gestão pública .................................................................................. 75 Financiamento do setor público ........................................................ 76 Gestão orçamentária ......................................................................... 80 Perfil do gestor público .....................................................................90 A Nova administração pública ...........................................................91 Síntese .............................................................................................. 96 Atividades ......................................................................................... 97 Glossário ........................................................................................... 97 UNIDADE 3 SETOR PÚBLICO: GESTÃO PÚBLICA, POLÍTICAS PÚBLICAS E OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DA NOVA ORDEM SOCIAL MUNDIAL Gestão pública e gestão privada ..................................................... 101 Políticas públicas ............................................................................ 108 11 75 101 Estado e capitalismo global ............................................................ 106 Síntese ............................................................................................ 119 Atividades ....................................................................................... 119 Glossário ......................................................................................... 120 REFERÊNCIAS ......................................................................... 123 1. Definição de administração 2. Conceitos básicos da política associados ao setor público 3. Apresentação das justificativas econômicas para a intervenção do Estado no mercado 4. Explicação acerca do funcionamento do poder público na sociedade: a relação dialética entre a administração pública e os institutos do Estado e do Governo 5. Exposição dos princípios, poderes e modelos da administração Pública Brasileira objeti vos UNIDADE 01 FUNDAMENTOS HISTóRICOS E CONCEITUAIS DA ADMINISTRAÇÃO ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 11 FUNDAMENTOS HISTóRICOS E CONCEITUAIS DA ADMINISTRAÇÃO Conceito de Administração A pré-condição para a existência do homem em sociedade é o compartilhamento de regras de conduta, pensamentos e valores, expresso por aquilo que a sociologia positivista-funcionalista consagrou com o termo consenso social, inspirado em August Comte. É preciso um acordo prévio mínimo entre as pessoas em torno da necessidade de construção e estabilidade de algum tipo de organização social e seu respectivo ordenamento jurídico – conjunto de regras de convivência social permitidas pela coletividade, inscrita ou não num documento, ao qual denominamos, em termos modernos, com o vocábulo Constituição. Podemos encontrar indícios na história das civilizações humanas de que em todas as formações socioeconômicas algum tipo de soberania existiu, ou seja, o poder político de uma sociedade que é exercido por um grupo de elite cujo comando garante a supremacia de uma autoridade política que quase invariavelmente se reveste do poder religioso. Um longo trajeto histórico vai ser percorrido pela humanidade até que o poder político e o poder religioso se dissociem, embora ainda perdurem sociedades teocráticas, como a República Islâmica do Irã (antiga Pérsia). Ao nos referirmos à noção de soberania queremos na realidade focalizar a problemática do controle social da sociedade mediante o instrumento técnico da gestão. Pois, o exercício dessa soberania depende da formação de um conjunto de servidores áulicos encarregados do desempenho de atividades administrativas específicas cujo objetivo é a coordenação das funções governamentais que, por sua vez, são voltadas para a satisfação das inúmeras necessidades dos indivíduos em sociedade: segurança interna e externa, sistema de proteção social, educação, saúde, promoção da UNIDADE 0112 justiça etc. Para isso, impõe-se a necessidade de arrecadação de tributos, o planejamento orçamentário, bem como a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Mas, afinal, no que consiste a administração? É fundamental ressaltar que as explicações acerca da noção de administração estão indissociavelmente ligadas ao conceito de organização. Esta pode ser definida como um agrupamento social relativamente permanente cujos membros compartilham entre si esforços, infra-estruturas e meios operacionais visando atingir objetivos comuns. A divisão social do trabalho, na qual cada um dos membros da organização desempenha um papel específico na realização de seus objetivos, e a coordenação dos esforços, ao articular papéis funcionais e combinar recursos variados a serviço de um objetivo em comum, constituem as características mais marcantes de uma organização. É com base na articulação entre a realização dos objetivos e o uso racional dos recursos disponíveis, que podemos avaliar se determinada organização é eficaz ou eficiente. Ela é considerada eficaz apenas sob o ponto de vista do alcance dos objetivos previamente estabelecidos a titulo de metas de trabalho. Porém, é sob o ponto de vista do uso correto dos recursos que uma organização pode ser caracterizada como eficiente. Assim, o diferencial entre eficácia e eficiência resume-se à comparação da capacidade de uma organização atingir os melhores resultados operacionais com redução de custos com aquela que simplesmente atinge seus objetivos operacionais sem economia de recursos. Logo, é exatamente a preocupação com a eficácia e a eficiência de uma organização que nos conduz ao conceito de administração, uma vez que a administração de uma organização consiste em “[...] um processo de planejar, organizar, dirigir e controlar a aplicação de recursos humanos, materiais, financeiros e informacionais, visando à realização de objetivos” (MAXIMIANO, 1985, p. 23; grifo nosso). Em outras palavras, administrar é tomar decisões no sentido da definição de objetivos realistas aliado ao uso racional de recursos indispensáveis para o seu alcance. Mas quais indivíduos ou grupos de indivíduos são responsáveis pelas tomadas de decisões (os decisores) referentes tanto aos objetivos quanto ao uso correto dos recursos para alcançá-los, no interior de uma organização? São aqueles indivíduos que integram uma bem definida estrutura de poder conforme sua especialidade ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 13 funcional e capacidade de gestão, independentemente de sua área de atuação ou nível hierárquico. Trata-se do corpo dirigente ou governante (superiores hierárquicos), que, por sua vez, implica na oposição corpo dirigido ou corpo de governados (subordinados). Tomando como exemplo uma família operária formada de pai, mãe e um casal de filhos, podemos identificar os pais como o corpo dirigente e os filhos como o corpo dirigido. Porém, no interior de cada uma dessas classificações é possível identificar distinção de autoridade, logo, de posição ou status. Uma variedade de formas de relação de subordinação existe entre pai e mãe, irmão (homem) e irmã (mulher), irmão mais velho e Irmã mais nova, com base no poder econômico, no magnetismo pessoal de cada um e na tradição e costume. Observa-se nela, uma singela divisão social do trabalho, expresso por uma acanhada divisão de tarefas, responsável pela manutenção e estabilidade da organização familiar, em que cada um dos membros exerce o seu papel conforme a expectativa gerada pelo próprio grupo a que pertence. Assim, cabe aos pais prover as condições que garantam o bem-estar dos filhos, assim como a educação e formação cívica, de modo a ampliar o seu círculo de relações sociais. Aos filhos, por sua vez, cobra-se o respeito à autoridade dos pais. Ocorre que no exercício da autoridade familiar os pais se convertem em responsáveis pela coordenação dos papéis de cada um dos membros da família em torno de um objetivo comum: a estabilidade sócio-afetiva e a harmonia organizacional, expresso pelo bem-estar de todos. A família, enquanto organização, para subsistir necessita interagir com outras organizações na sociedade. Pelo menos um dos pais precisa arranjar meios de obter o sustento da família. Em troca deste, vende sua capacidade de trabalho, uma vez queé destituído dos meios de produção, ou seja, não é proprietário de fábrica, estabelecimento comercial ou instituição financeira, vivendo exclusivamente de seu salário. Em termos administrativos, os pais, ao tomarem decisões, cumprem as funções de planejamento, organização, direção e controle dos recursos disponíveis de modo a atingir finalidades específicas que assegurem a satisfação das necessidades familiares – fisiológicas (fome e sede), de segurança (procriação e proteção contra a carestia), sociais (amor/sentimento de pertencer a grupos variados, participação social e política), de autoestima (posição social, reconhecimento e credibilidade) e de autorrealização (maximização de potencial próprio, enfrentamento de desafios) (MASLOW apud SANTOS, 2003; SILVA, 2006). UNIDADE 0114 Falhas do sistema de mercado e o setor público Essa interação imperiosa entre a organização familiar e o meio ambiente circundante constitui apenas uma simples ilustração representativa de milhares de inter-relações entre organizações e meio ambiente. Em suma, a sociedade é constituída de milhões de organizações interligadas, entre as quais as mais comuns são as empresas, sejam públicas ou privadas. Nesse caso, o seu meio ambiente é comumente reconhecido como mercado – de produto e de consumo, de capitais e de trabalho, de moeda e de títulos ou derivativos. No mercado de fatores de produção, as famílias vendem seu único recurso, a sua força de trabalho (oferta). Em troca, percebem salários que lhes permitem obter no mercado de bens e serviços os produtos de que necessitam (demanda). As empresas, por seu turno, adquirem no mercado de fatores de produção a força de trabalho necessária à produção de mercadorias, que são vendidas no mercado de bens e serviços. Essa relação de interdependência representa, em termos econômicos, o fluxo real da economia, que só pode ser operacionalizada graças à mediação exercida pela moeda, isto é, ao fluxo monetário da economia – remunera-se os fatores de produção e paga-se os bens e serviços mediante o uso de dinheiro. Em síntese, a fusão entre o fluxo real e o fluxo monetário da economia origina o chamado fluxo circular de renda. O preço tanto dos fatores de produção (os salários das famílias, no nosso exemplo) quanto dos bens e serviços dependem das forças da oferta e da demanda. E uma vez que inclua somente demandas e ofertas de famílias e empresas, o fluxo circular de renda é denominado por fluxo básico. Ao incluir, também, o setor público nas transações acima descritas, temos o chamado fluxo completo (tributos e gastos públicos, operações no mercado de câmbio, exportações e importações, balança de pagamentos etc.). É esse fluxo completo que nos permite entender melhor os termos da relação dinâmica entre o setor público ou governo (primeiro Setor), as empresas privadas (segundo setor) e as famílias (terceiro Setor) no mundo da economia real. Desse modo, cabe, respectivamente, a cada um desses setores um modo particular de expressão: arrecadação de tributos, realização de pagamentos ao setor privado e transferências de recursos (governo/órgãos setoriais); realização de pagamentos de tributos, realização de poupança para reinvestimentos e realização de pagamentos aos fatores de produção (mercado/empresas); ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 15 realização de consumo de bens e serviços, realização de poupança doméstica e realização de pagamentos de tributos (sociedade/famílias). Na Inglaterra do século XVIII, Adam Smith (1723-1790), principal representante e criador da escola clássica e da própria Economia, contribuiu para divulgar as idéias liberais do laissez-faire, laissez-passer (deixar fazer, deixar passar). Em seu repúdio à interferência do setor público sobre as atividades empresariais, fazia apenas algumas concessões à intromissão do poder público no mercado quanto: à administração, à justiça, aos serviços públicos, à defesa nacional e à manutenção da soberania do país, assim como à toda empreitada que não fosse lucrativa para os donos de empresas privadas, mas que deveriam se constituir em empreendimento do setor público devido a sua importância para a sociedade em geral. Tais ideias de cunho neoliberal tinham por objeto a crença na capacidade de autorregulação do mercado, fundado na defesa da liberdade e na crença no individualismo, em que, motivados por um egoísmo natural, os empresários tendem a buscar vantagens ou benefício pessoais. Em assim fazendo, eles concorrem para a estabilidade e manutenção da sociedade via mercado. O que os motivam é o desejo de auferir lucro. Ao persegui- lo, promovem a harmonia social. Esta forma de pensar expressa a base teórica da escola econômica clássica, e que se escora nos pressupostos da “harmonia de interesses” e da ordem natural e providencial – a “mão invisível” do mercado. Concepções e intenções que a vida moderna dos grandes centros urbanos e os desafios trazidos por ela trata de desmoralizar, demonstrando a importância do setor público para o exercício das funções de alocação de recursos (nas situações em que o mecanismo de ação privada (sistema de mercado) mostra-se ineficiente: investimentos em infra-estrutura econômica e provisão de bens públicos (rodovia, iluminação, segurança nacional), bens meritórios ou semi-públicos (educação, saúde e desenvolvimento)), de distribuição da renda e da riqueza (redistribuição de renda cujo processamento se verifica mediante transferências, impostos e subsídios governamentais; o orçamento público constitui o mais importante instrumento para a concretização das políticas públicas de distribuição de renda), e de estabilização econômica (emprego de instrumentos de política econômica (juros, taxas de câmbio, impostos e gastos públicos em geral) visando à promoção e manutenção de elevado nível de emprego, da estabilização dos níveis de preços, do equilíbrio da balança de pagamentos e de expressiva UNIDADE 0116 taxa de crescimento econômico, em face da eventual incapacidade do setor privado em dar conta de tais objetivos, no processo de autorregulação do mercado), objetivos indispensáveis à política orçamentária de qualquer governo, segundo Musgrave (apud RIANI, 2002). Embutidas em tais pressupostos, encontra-se a ideia da situação ótima do mercado ou mercado perfeito, que se refere a uma situação em que os bens e os recursos no mercado são perfeitamente alocados - em economia, dá-se o nome de Teoria do Equilíbrio Geral. Originalmente elaborado por Léon Walras (1834-1910), no século XIX, o conceito de teoria do equilíbrio geral mais tarde foi desenvolvido por Vilfredo Pareto (1848-1923), passando a ser conhecido também como Ótimo de Pareto. Trata-se de uma tentativa de justificar a desnecessidade da intervenção do poder público (Estado e/ou Governo) na economia, uma vez que a livre concorrência levaria ao perfeito funcionamento do mercado, logo, de seu equilíbrio. Acontece, contudo, que esse modelo de equilíbrio geral apresenta problemas ao ser aplicado no mundo da economia real, já que ele fracassa em garantir a maximização e a eficiência da alocação de recursos no mercado e, consequentemente, o bem-estar da sociedade. É aqui que nos defrontamos com a presença do setor público no sistema de mercado, graças às falhas deste na obtenção da produção ótima de bens e serviços via setor privado. São exatamente tais falhas que permitem a intervenção do setor público no mercado, visando garantir a satisfação das necessidades da sociedade. Uma vez que o Ótimo de Pareto não é alcançado em virtude de que no mercado não existe concorrência perfeita, o setor público é obrigado a intervir na alocação de recursos, paralelamente à atuação do setor privado, como via de superação das falhas do sistema de mercado no alcance de uma situação ótima. Pelo menos quatro características da economia real podem ser destacadas para demonstrar as dificuldades do sistema de mercado em garantir o equilíbriona oferta e demanda de bens e serviços na sociedade, a saber: indivisibilidade do produto, externalidades, custo de produção decrescente e mercados imperfeitos, riscos e incertezas na oferta de bens. Como primeira característica do mundo da economia real que justifica a intervenção governamental, em função das próprias falhas do mercado enquanto agente distributivo e autorregulador, temos a indivisibilidade do produto. Ela se refere à situação em que a produção e a oferta de determinados bens e serviços por parte do setor privado é economicamente inviável ou ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 17 proibitiva (custos de produção mais elevados do que as expectativas de lucro). Mas, como a sociedade necessita de tais bens e serviços, e o setor privado não tem interesse em produzi-los e ofertá-los, caberá tal responsabilidade ao setor público. Quando este último, então, se encarrega de produzi-los e ofertá-los para todos os indivíduos, independentemente daqueles que têm condições de pagar por eles, chamamos a tais bens e serviços de bens públicos puros (bens sociais, coletivos ou indivisíveis). Assim são denominados devido ao fato de que os seus preços não são formados através do sistema de mercado. Logo, a eles não se aplica o direito de propriedade nem o princípio da exclusão, e por essa razão são caracterizados como bens não exclusivos. Isto é, o seu consumo por vários indivíduos não implica na diminuição da quantidade de consumo para os demais nem no impedimento de consumo por parte do consumidor, seja ele rico ou pobre. Além do mais, os bens públicos também são caracterizados como bens não rivais – o aumento de consumo pelos indivíduos não tem influência no aumento dos custos de produção. É o caso da defesa nacional. Somente o Estado tem condições de arcar com o custeio das operações de segurança nacional, e o crescimento vegetativo da população não se traduz necessariamente em aumento de despesa para o erário público. Os indivíduos, por sua vez, não têm renda suficiente para arcar com tal serviço, ou mesmo não estaria disposto a pagar para obtê-lo. Os bens privados (econômicos ou visíveis), por sua vez, em oposição aos bens públicos, são exclusivos e rivais. São exclusivos por que a eles se aplica o direito de propriedade (os bens ou serviços adquiridos pelos indivíduos mediante o pagamento de um preço qualquer lhes asseguram a propriedade destes) e o princípio de exclusão (a carência de dinheiro para a aquisição de bens e serviços exclui os indivíduos no mercado). Além do mais, seus preços são fixados pelo sistema de mercado, sendo chamados de bens privados puros quando a iniciativa privada constitui a única fornecedora desses bens. Ocorre o mesmo com os bens públicos puros, assim considerados por terem como seu único fornecedor o setor público. De modo que cada vez mais assistimos no âmbito do mercado a concorrência entre bens privados e bens públicos. Quando o setor privado e o setor público ofertam no mercado, simultaneamente, serviços tais como a educação e a saúde, por exemplo, temos, em ambos os casos, respectivamente, os chamados bens privado impuros e bens públicos impuros – são também chamados de bens mistos. Enfim, o que determina se os bens UNIDADE 0118 e serviços ofertados na economia são considerados puros é a exclusividade em sua oferta por um ou outro setor isoladamente. Como podemos depreender, a partir do conteúdo explicativo acima exposto, o conjunto de empresas que fornecem os suprimentos, equipamentos, máquinas e serviços no mercado (a simples quitanda, a feira, os supermercados, os shopping centers) somente o fazem porque em troca do que a ele destinam percebem uma compensação racionalmente visada – o lucro, sob a forma de dinheiro. Parte deste será transformado em capital, à proporção que essa parte ou excedente do lucro for reintroduzida no ciclo de produção econômica – produção, distribuição, comercialização e consumo (investimento planejado ou formação bruta de capital fixo). Os estudos relativos à implementação do Plano Nacional de Banda Larga pelo Governo atual são um indicativo da necessidade da atuação governamental de maneira a suprir as carências de informação e educação da sociedade, além de ser instrumento de viabilização de procedimentos administrativos cujo escopo é a aceleração da ação do poder público na oferta de atos legais e administrativos; sem o auxílio do Governo não se garante a universalização da internet rápida no país, com a brevidade e a celeridade requeridas pelo desenvolvimento nacional. Assim, quando a satisfação das carências da sociedade não é plenamente realizada pelo setor privado, devido ao fato de a relação de custo-benefício ser economicamente inviável para as empresas, criam-se lacunas de oferta. Ora, é exatamente para preencher tais lacunas que surge o setor público enquanto produtor de bens públicos puros, ou impuros; e a existência destes últimos está relacionada à impossibilidade (ou fracasso) de o sistema de mercado em dar conta das demandas por bens e serviços por parte da sociedade. As externalidades se apresentam como uma das características da economia real que justifica a intervenção do poder público no mercado. Ocorrem nas situações em que as atividades produtivas desenvolvidas pelas empresas resultam em perdas ou ganhos nas atividades de outras empresas. Trata-se dos efeitos internos e externos inerentes à ação das empresas no mercado. Um estado de calamidade pública decorrente de um desmoronamento de uma barragem de uma fábrica de fertilizantes contendo dejetos ou resíduos químicos de grande poder de corrosão e contaminação de mananciais e de rios, tornando-os inadequados para o consumo humano, e mesmo industrial, é um exemplo bem simples do que é externalidade negativa. ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 19 O fenômeno das externalidades negativas constitui um produto, esperado ou não, da operação de uma cadeia (ou rede) de atividades produtivas que extrapolam os mecanismos de controle de segurança, gerando consequências ambientais nefastas que atingem o nível de bem estar da população. Como o acidente tende a provocar prejuízos ecológicos, econômicos, de saúde pública etc., e a responsabilidade pelo prejuízo é imputada à empresa poluidora, esta pode fraquejar diante da perda de patrimônio e preferir furtar-se às suas responsabilidades. É neste contexto que intervém o Governo, em nome do Estado (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios). E para isso lança mão do poder de polícia, ou seja, da prerrogativa constitucional de ação coercitiva, fiscalizadora e investigativa, baseado no princípio da legalidade. A pré-condição para a ação incisiva e legal do Estado no sentido de coibir práticas e condutas de risco é a vigência de legislação ambiental que tipifique e discipline os casos de transgressão às suas cláusulas. A economia de escala determina a redução dos custos de produção dos bens e serviços, resultando na aplicação da alta tecnologia articulada à especialização e à divisibilidade (produção de bens privados puros que são rivais e exclusivos, pois a ela se aplicam tanto os direito de propriedade quanto o princípio de exclusão: o consumo simultâneo de vários indivíduos implica na redução da quantidade disponível de consumo para terceiros e na majoração dos custos dos bens e serviços consumidos). Assim, as empresas que obtém ganhos de produtividade em função da adoção de novas tecnologias conseguem decréscimos nos custos de produção dos bens e serviços demandados pela sociedade, levando à concentração do mercado. A concentração do mercado, por sua vez - seja enquanto monopólio/monopsônio (um único vendedor/um único comprador) ou oligopólio/oligopsônio (poucos vendedores /poucos compradores) -, leva à exclusão das empresas que não conseguiram se manter no mercado, ou seja, à sua falência. Mas como o mercado é imperfeito, a ingerência do poder público no sentido da sua regulaçãoé inteiramente justificável, pois busca impedir, através de mecanismos legais associados ao direito econômico, que haja uma competição selvagem entre os agentes econômicos e financeiros. No Brasil, é o caso do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça – CADE/MJ, por exemplo, ao examinar e emitir parecer acerca da efetivação de fusões, aquisições e joint ventures de empresas. A sua função no sistema econômico é orientar, fiscalizar, prevenir e apurar os UNIDADE 0120 abusos do poder econômico, agindo como instituto de tutela à prevenção e à repressão dos referidos abusos; e o faz em respeito ao princípio da livre concorrência, que o próprio CADE assim define: O princípio da livre concorrência está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 170, inciso IV e baseia-se no pressuposto de que a concorrência não pode ser restringida por agentes econômicos com poder de mercado. Em um mercado em que há concorrência entre os produtores de um bem ou serviço, os preços praticados tendem a se manter nos menores níveis possíveis e as empresas devem constantemente buscar formas de se tornarem mais eficientes, a fim de aumentarem seus lucros. Na medida em que tais ganhos de eficiência são conquistados e difundidos entre os produtores, ocorre uma readequação dos preços que beneficia o consumidor. Assim, a livre concorrência garante, de um lado, os menores preços para os consumidores e, de outro, o estímulo à criatividade e inovação das empresas (www,cade.gov.br; Conceitos Básicos). Os riscos e incertezas na oferta de bens verificados no âmbito do mercado capitalista rechaçam a utópica crença na capacidade do sistema de economia de mercado de, por si mesmo, determinar as exatas quantidades de bens e serviços em relação à demanda por eles, o chamado Ótimo de Pareto, como vimos lá atrás. Há uma diversidade de características do fluxo real da economia no mundo empírico que assinalam as situações em que a produção ótima dos bens econômicos – o Ótimo de Pareto – não se realiza, a saber: ausência de conhecimento perfeito associado aos riscos do mercado por parte de vendedores e compradores (efeito: indisposição do mercado em produzir bens econômicos apesar de eles serem necessários e desejáveis); mobilidade deficiente dos recursos; dificuldade das firmas em calcular adequadamente suas perspectivas quanto à maximização dos lucros (incerteza quanto à lucratividade de certas atividades); assim como a escassez de certos recursos produtivos, tal como os recursos naturais. Eis explicitados, pois, alguns dos muitos obstáculos à produção ótima de Pareto. Bem se constata como a intervenção do Governo na economia é necessária, uma vez que fornece o suporte legal, político, jurídico, administrativo, financeiro e econômico da estrutura da sociedade. As áreas de jurisdição entre o setor público e o setor privado nem sempre são bem demarcadas. O sistema econômico cada vez mais ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 21 globalizado em que vivemos é descrito como sistema capitalista global – ou modo de produção capitalista, ou mesmo formação socioeconômica capitalista –, que, por sua vez, é fundado nos direitos de propriedade e no livre mercado. Assim sendo, numa economia de livre mercado o grosso da oferta de bens e serviços aos consumidores no mercado de consumo é realizado pelas empresas do setor privado. No entanto, dada a complexidade da produção econômica, o setor público logo é convocado para influir no jogo livre do mercado, devido a uma série de distorções operacionais, concorrenciais e distributivas que se manifestam na sociedade. E quando busca influir na atividade econômica, de modo a impulsioná-la, o faz a partir das seguintes funções governamentais: produção de bens e serviços públicos; promoção do desenvolvimento socioeconômico; redistribuição da renda e da riqueza nacional; estabilização da atividade econômica; e regulamentação e controle da atividade econômica. A economia do século XX tem como uma de suas características mais destacadas o crescente aumento das despesas públicas. Várias correntes do pensamento econômico dedicaram-se ao tema das despesas públicas e, por extensão, ao tema do aumento da participação do Estado na economia. Adolf Wagner, economista alemão, por ocasião da década de 1880, elaborou a Lei do Crescimento Incessante das Atividades Estatais, cujo enunciado básico expõe que à proporção que o nível de renda dos países industrializados cresce, o setor público, por seu turno, cresce a taxas incomparavelmente mais altas, de sorte que a participação relativa do Governo no sistema de mercado cresce à medida em que é incrementado o ritmo de crescimento da economia nacional. A supracitada Lei, também conhecida como Lei de Wagner, foi comprovada por Richard Bird, que distingue três causas determinantes da tese postulada por Wagner com relação ao crescimento das despesas públicas, a saber: o crescimento das funções de administração e de segurança; as crescentes demandas por um maior nível de bem-estar social, com destaque para a educação e para a saúde; e maior intervenção, direta e indireta, do Governo, no âmbito do processo produtivo. O crescimento das despesas do setor público é resultante do aumento das intervenções governamentais no sistema de mercado, concebidas de modo a prevenir eventuais excessos de monopolização de algumas parcelas do setor privado. Assim, a amplitude da ação do Estado na economia serve como um eventual antídoto à concentração do mercado, UNIDADE 0122 maximizando a concorrência entre as empresas (públicas e privadas), de maneira a disponibilizar aos consumidores um maior leque de escolha frente à diversidade dos produtos ou mercadorias produzidos pelas empresas. Musgrave e Musgrave (apud GIACOMONI, 2007) seleciona alguns fatores explicativos para a emergência da profusão das funções do Estado na economia: crescimento da renda per capita associado ao aumento da demanda por bens e serviços públicos; mudanças tecnológicas; mudanças populacionais; custos relativos dos serviços públicos; mudança na cobertura das transferências; disponibilidades de alternativas para a tributação; efeito limite e finanças de guerra; e fatores políticos e sociais. Uma vez debatidas as causas do crescimento constante das despesas públicas, com a consequente proliferação das funções do Estado, convém agora explicitar o impacto das compras governamentais sobre a economia como um todo. De antemão, sabe-se que o Governo detém o controle direto sobre o nível da tributação e das compras públicas. Assim, o emprego dos tributos e dos gastos públicos como instrumentos da regulação das atividades econômicas é denominada de política fiscal – o mais importante instrumento de política do setor público, cuja atuação busca assegurar um razoável nível de estabilização econômica e de emprego. Dependendo das necessidades de expansão ou contração da economia, a política fiscal manifesta-se como um movimento anticíclico com fins de controle do nível da renda. Assim, no primeiro caso, a política fiscal é aplicada para expandir o nível de renda através dos seguintes procedimentos macroeconômicos: aumento dos gastos governamentais, diminuição dos tributos e o emprego concomitante e combinado de tais instrumentos. No segundo caso, a política fiscal, ao ser confrontada com a pressão inflacionária, comanda uma política de contração da renda, mediante a diminuição dos gastos governamentais, a majoração dos tributos e o emprego concomitante e combinado desses mesmos instrumentos. Em suma, os dispêndios ou gastos públicos constituem o segundo componente da política fiscal, ao lado da função tributação; revelam-se como o principal instrumento de execução das políticas governamentais; e perfilam- se como um poderoso instrumento de estabilização, a curto prazo, dos níveis de renda e do emprego. Logo, a sua manipulação pelo Governo é altamente estratégica. Mais adiante (Unidade2) trataremos do tema tributação. O setor público é estranho às motivações e à lógica das relações comerciais, porém é visceralmente ligado ao poder político e seus princípios ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 23 de base: legitimidade política e legalidade jurídica. Assim, o Estado é a instância do poder soberano; o Governo, a instância de planejamento e decisão estratégicos; e a Administração Pública, a instância de execução e planejamento tático e operacional das diretrizes governamentais, sejam elas políticas de Estado ou políticas de Governo. É o que veremos a seguir. Componentes do setor público: Estado, União, Governo e Administração Pública A política é o fundamento da existência humana. Esta é plural e expressa um modo de ser particular que se realiza através da convivência social, sobretudo através da ação coletiva de satisfazer certas necessidades (necessidades fisiológicas de alimentação, de segurança, sociais, de auto- estima e de auto-realização) e interesses, ou seja, da ação de busca pelas condições materiais e espirituais de existência, que é totalmente coletiva e somente é concretizada através da colaboração entre os indivíduos, grupos e coletividades. Nesse sentido, a existência humana ‘termina’ por ser o fundamento da política. Mas em que medida a inversão dessa proposição é tão verdadeira quanto à original? Na medida em que elas se retroalimentam ao formar uma relação de auxílio-mútuo (relação simbiótica). Ou seja, na medida em que ação política e existência humana se equivalem e se implicam, pois desenvolver uma é desenvolver a outra. Mas o que é política? Qual é o elemento central do fenômeno político? O conceito de política é diverso, mas tem um suporte comum: a existência do fenômeno social do poder. Para uns, a Política é o conjunto das relações de poder que os indivíduos, grupos e coletividades inteiras desenvolvem no curso de uma competição permanente por bens e serviços escassos, propriedades, riquezas materiais, posição social, prestígio, honra etc. Porém, tal conjunto de relações de poder se desenvolve - às vezes de forma precária - sob o signo da ordem e do poder estabilizado (autoridade: dos pais, sacerdotes, agentes do Estado etc.). Logo, a política tem um fim mínimo, a saber, a manutenção da ordem pública interna e a proteção territorial em relação aos demais Estados nacionais. Para outros, como para Smith (apud MARRAMAO, 1995), a política diz respeito à relação amigo/inimigo, em que tudo se resume na dinâmica de agregar e proteger os amigos e desagregar e combater os inimigos. Assim, a política abrange a arena em que se desenvolve a oposição entre grupos, os chamados conflitos antagonísticos. UNIDADE 0124 O poder é a questão central da política. Ao tê-lo como foco, a política promove o estudo da capacidade que tem alguns atores individuais, coletivos ou institucionais de impor sua vontade a terceiros. E parte dessa capacidade de submeter vontades individuais ou coletivas resulta da diferença entre ter ou não ter propriedade. Daí decorre, também, a distinção entre governantes e governados, reis e súditos, até finalmente chegar à dicotomia contemporânea autoridades e cidadãos, cujo critério de construção baseia-se na cartilha político-constitucional de deveres e obrigações (a Lei), assim como a idéia de dominação do homem pelo homem. Desse modo, a principal temática das obras humanas associada à vida política é aquele das relações assimétricas de poder entre o Estado e a sociedade, em que o primeiro detém a supremacia sobre o segundo. Paradoxalmente, mesmo o próprio poder e seu exercício têm de ser submetidos às leis e aos costumes das nações. E é exatamente a natureza desse poder que perpassa o Estado, a União, o Governo e a administração pública que interessa à nossa disciplina. Conceitos preliminares Para fins de apresentação desta unidade, convém introduzir alguns conceitos preliminares que são centrais na compreensão dos fenômenos políticos institucionais que ordenam a ativação dos papéis do Estado, do Governo e da administração pública. São o que podemos chamar de categorias analíticas, ou seja, instrumentos teóricos que se apresentam sob a forma ideal-típica e que é construída a partir da seleção das principais características dominantes de algo que se pretende definir. São os pares: consenso e conflito, força e poder, autoridade e dominação, legitimidade e soberania. Estes conceitos terminam tendo ponto de contato ou conteúdo comum. Resta-nos identificar, no entanto, os princípios que regulam a pertinente relação entre eles. ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 25 Nem sempre o poder se manifesta claramente. No mais das vezes o poder é latente, oculto. A imagem acima alude à manipulação das pessoas como se estas fossem marionetes (fantoches), que são animadas e por cordões (visíveis e invisíveis) que prendem às pessoas (através de influência, chantagem, opressão etc.) de modo a induzir-lhes a adoção de certos comportamentos dirigidos (condutas ou atitudes impostas uns aos outros, institucionalmente ou não). A dupla consenso/conflito equivale à dupla acordo/desacordo. Elas representam dois momentos sociais distintos: o da convergência de pontos de vista e interesses, fundamento de estabilidade da vida em grupo (coesão grupal); e seu oposto, o da divergência, fundamento de mudança da vida coletiva (desagregação de institutos, costumes, valores). O consenso baseia- se em processo sociais associativos, tais como a cooperação (condutas de auxílio-mútuo), a acomodação (predisposição a seguir regras) e a assimilação (conscientização de valores e concepções morais típicos da cultura de uma dada sociedade). O conflito, por seu turno, baseia-se em processo sociais dissociativos, tais como a oposição (cisão de interesses) e a competição (concorrência pelos bens escassos na sociedade), que, levada às últimas conseqüências, pode resultar num fenômeno de ruptura de tecido social e subseqüentes desdobramentos em cadeia. No geral, o que se observa é a combinação e/ou alternância desses momentos no próprio seio da sociedade – momentos de consenso são combinados e alternados com momentos de conflito, como num pêndulo. Mas existem os consensos de base, tais como o consenso explícito de uma nação S to ck .X C H N G UNIDADE 0126 em torno do direito de governar segundo os limites constitucionais. É nessa busca de equilíbrio da relação dialética consenso/conflito que somos confrontados com o fenômeno do poder e seus subprodutos (a construção da ordem social, econômica e política; regulação de conflitos entre os grupos de interesse, regime de circulação das elites etc.). O poder, enquanto fenômeno político típico da ação humana, somente existe e se mantém no curso das relações sociais gerais que se estabelecem entre os indivíduos, e que vão se ampliando a ponto de constituir uma rede de relações sociais ou rede social. Em cada uma dessas relações é possível de se constatar manifestações do poder. São as chamadas relações de poder: entre marido e mulher, entre pai e filho, entre dois adversários, entre professor e aluno, entre sindicatos patronais e laborais, entre os partidos políticos etc. Força significa o uso de meios que nos permitam influenciar a conduta de outrem. A força é a canalização da potência (algo potente em suspenso); é o fator que determina esta última. A força é um componente que pode ou não ser acionado por ocasião do exercício do poder, seja privado ou público, institucional ou não. O poder, por seu turno, não é tangível e encontra-se distribuído por várias arenas e sítios da estrutura da sociedade. Mas é sentido e percebido como algo dinâmico que de algum modo impacta positiva ou negativamente os indivíduos em interação rumo à persecução de objetivos estratégicos. E o lugar mais apropriado para acomodar e perseguir tais objetivos estratégicos, de modo a demonstrar como o poder é operacionalizado, é a organização,particularmente aquelas de natureza governamental. O exercício do poder, ao desenvolver-se no seio de uma realidade social, econômica, política e cultural, deixa-se transparecer como um jogo, cuja movimentação S to ck .X C H N G ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 27 dá-se segundo regras sócio-históricas específicas e seu objetivo é controlar e regular a disputa pelos bens escassos (riqueza e/ou renda) na sociedade. Daí que a busca pelo poder somente existe em função da valorização, quase invariavelmente excessiva, de tais bens escassos. A respeito do fenômeno do poder, Weber (1991, p. 33; grifo nosso) formula uma definição bem precisa e completa: “Poder significa toda probabilidade [ou oportunidade] de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade [ou oportunidade]”. Esse fundamento de probabilidade, ou de oportunidade, significa os meios (econômicos, financeiros, psicológicos, emocionais, coercitivos etc.) de que se dispõe para impor uma vontade específica a terceiros. O que importa nesse caso é a eficácia do poder como elemento regulador de vontades. O poder, para Foucault (2000), encontra-se disseminado por todo o tecido social, na condição de uma forma de exercício que flui entre os indivíduos, ao contrário do que propugnava as abordagens clássicas da Ciência Política, que centrava no Estado o melhor de suas análises acerca do poder – a vinculação do fenômeno do poder ao Estado. Logo, para ele, poder e Estado não são sinônimos. O poder não é um objeto, uma coisa, mas uma relação, algo que se exerce e que funciona. Por isso dizemos que o poder é um fenômeno sócio-político que somente existe num meio social de desigualdade em termos de capital político. Em termos espaciais, o poder situa-se no centro (instituições políticas) e na periferia (relações de poder vigente em quase todas as relações sociais), no âmbito macro (as grandes organizações do Estado, as relações Estado/sociedade civil, as relações internacionais, o mercado mundial etc.) e no âmbito micro (as pressões sociais pela realização de políticas públicas em conformidade com suas reivindicações por recompensa; as relações de trabalho no chão da fábrica ou no interior de um organismo governamental, por exemplo). Mas aqui o que nos interessa é o poder associado ao Estado, ao Governo e à administração pública, logo, considerar o poder a partir do centro e no curso de uma análise estrutural (macro perspectiva). É nesse ponto que os fenômenos associados ao poder desembocam nos conceitos de autoridade e de dominação. A autoridade é um atributo institucional que supõe a dominação, posto que o subalterno, sob o comando daquele que se situa em posição hierárquica superior, vê-se obrigado ao exercício de suas funções administrativas. É a essa relação administrativa UNIDADE 0128 entre chefia e subalternidade no cumprimento de seus deveres legais que nomeamos por atividades puramente administrativas. Porém, qualquer ato praticado por um agente público no curso de suas atividades administrativas regulares é classificado como ato de autoridade – uso do poder institucional para fins exclusivamente administrativos ou associados a cargos, serviços e atividades públicas e privadas praticado por pessoa investida de parcela do poder do Estado. O conceito de dominação se confunde com o de poder e o de autoridade exatamente porque o tema de que tratam (relações políticas) é, por definição, polissêmico e limítrofe. O próprio Weber (1999) chega a utilizar em alguns contextos explicativos o conceito de dominação como sinônimo do conceito de poder, isto é, a dominação enquanto “sentido muito geral de poder” ou “um caso especial de poder”. O mesmo se aplica a uma diversidade de estudiosos (LEBRUN,1983; STOPPINO, 2000). De resto, a dominação (herr = dominus = “senhor”) é definida como “a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (WEBER, 1999, p. 33). Weber concebe dois tipos radicalmente antagônicos de dominação – a dominação em virtude de uma constelação de interesses (mercado) e a dominação em virtude da autoridade (Estado e/ou família). O primeiro tipo radical, extremado, em sua forma mais pura, é representado pela dominação monopolista no mercado (um único produtor, um único comprador ou um único vendedor). Em tal circunstância de domínio de mercado, destituído de concorrência, no qual pratica o controle artificial dos preços, qualquer entidade com fins lucrativos (segundo setor) passa a exercer uma influência dominadora, no sentido de impor preços aos consumidores, por exemplo. O tipo de dominação em função da autoridade, por sua vez, está associado ao poder de mando e ao dever de obediência, e seu tipo mais puro é o poder do chefe de família ou da autoridade administrativa. Mas o que interessa a Weber (1999, p. 191; grifo do autor), conhecido como o teórico da burocracia, e aos propósitos deste estudo, é o conceito de dominação como “[...] idêntico [...] ao poder de mando autoritário”, e não ao “poder condicionado por situações de interesses”, típico das relações verificadas no mercado. Em outros termos, impõe-se como meta disciplinar o emprego do tipo de dominação compatível com a estrutura de dominação racional-legal ou burocrática, a que Weber designa como dominação em virtude da autoridade, particularmente a autoridade administrativa, que, no exercício de suas funções públicas, se reveste de parcela do poder público. Afinal, “toda dominação manifesta-se ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 29 e funciona como administração” (Ibidem, p.193) e toda administração para ser eficaz necessita que alguém detenha o poder e exerça uma dominação efetiva. A dominação é um processo social que consiste na imposição de vontades de um ou mais indivíduos sobre um ou mais indivíduos, de modo a submetê-los pacificamente, ou, no limite, mediante o uso da força, como é o caso da associação de dominação designada por weber como associação política, cujo quadro administrativo detém o monopólio legítimo do constrangimento físico em sua atuação institucional, uma vez que se faz referência a uma “empresa com caráter de instituição política”, ou seja, trata- se do Estado. No que respeita à identidade entre dominação e autoridade, seu ponto em comum é a noção de poder, e a diferença entre elas não é de grau (como se uma fosse superior à outra), mas de dinâmica (o modo de ser do exercício efetivo do poder no instante fugidio de seu uso empírico) e de racionalidade, de caráter formal (além da competência ou qualificação compatível com o cargo nos quais indivíduos, mediante concurso público, tomam posse, mas não se apodera deles); refere-se, também, ao poder estabilizado na figura da autoridade que gere, por exemplo, um centro de competência especializado, ou órgão administrativo, formalmente instituído e mantido. Quanto à parecença da noção de autoridade com a noção de poder, somente nos resta dizer que a autoridade é uma prerrogativa de domínio formal na administração pública, enquanto que o poder é um atributo de domínio informal que se estabelece no jogo do contato entre os indivíduos no curso de suas atividades administrativas. Não se esquecendo, no entanto, que esse jogo de contato, ou de interesse, não é apenas regulado pela estrutura de normas dos regimentos, estatutos e textos constitucionais (racionalidade formal), mas também pelo magnetismo da atração e da simpatia mútuas e pela identidade de sentimentos de pertença (racionalidade substantiva), Em geral, a legitimidade é derivada do consenso manifesto representado pelo apoio das massas eleitorais. Por essa razão a legitimidade constitui um atributo do Estado que se baseia na construção política de um consenso, fator indispensável à garantia da obediência (momento do consenso), independentemente do uso da força (momento da coerção). Dessemodo, “a crença na legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado” (LEVI, 2000, p. 675). Ela supõe necessariamente a noção de governabilidade. A soberania, por UNIDADE 0130 sua vez, é uma condição política que supõe a autodeterminação dos estados nacionais. Sob o ponto de vista jurídico-político, o conceito de soberania é de exclusividade dos Estados nacionais, sejam eles unitários ou federais (a União). E em contraponto, temos o conceito de autonomia. Logo, à União cabe a soberania indispensável para representar o Estado federal na celebração de tratados ou acordos internacionais; aos estados federativos ou subnacionais, resta apenas a prerrogativa da autonomia, dentro dos limites legais inscritos na Constituição Federal. Concluindo essa tarefa didático-pedagógica relativa a conceitos por demais úteis na apresentação do conteúdo da disciplina em apreço, convém precisar que todos esses pares de conceitos oscilam, ou orbitam, em torno do par principal: força e poder. Logo, é com referência à noção de poder que Weber (1999) classifica os tipos puros de dominação e/ou de autoridade. E os designam como tipos puros devido ao fato de que em nenhuma sociedade histórica, empírica, se verifica com exclusividade um desses tipos. É mais provável que haja o predomínio de um sobre os outros, sobretudo nas sociedades contemporâneas, que adotam o modelo racional-legal. Assim, a estrutura de poder se fundamenta nas seguintes formas de autoridade/ dominação legítima: • tradicional – lastreado na crença na “santidade da tradição vigente”, assim como na legitimidade de agentes que representam a autoridade tradicional, em função de tais tradições, enquanto fonte de poder. Neste tipo de dominação tradicional a obediência é destinada “à pessoa do senhor” indicada pela tradição, graças ao apreço pelos costumes; • carismática – apoia-se na crença nas qualidades extraordinária de uma pessoa ao qual se deposita uma confiança mobilizadora, assim como às ordens por ela instituída, cuja novidade termina por ser a fonte de seu poder. No âmbito da dominação carismática, a obediência é devida ao líder carismático, graças à confiança que seus seguidores depositam em suas qualidades extraordinárias; • racional-legal – funda-se na crença na legitimidade tanto das ordens estatuídas (ordenamento jurídico) quanto do direito de mando dos agentes nomeados em função de tais ordens para o exercício da dominação legal. Trata-se de uma forma de autoridade/dominação que se ampara no imperium da Lei, que é sua fonte de poder, e que disciplina os direitos e garantias fundamentais de administrados e às obrigações e deveres do próprio Estado. ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 31 Como se trata de uma dominação alicerçada em estatutos (racionalidade formal) tem-se como imperativo uma dupla obediência: à ordem impessoal, que é objetiva e estatuída na forma da lei, e aos agentes nomeados por essa mesma ordem impessoal, em função da legalidade formal do conteúdo estatutário e sua vigência no tempo e no espaço. Para Weber (1994, p. 193; grifo nosso), “toda dominação manifesta-se e funciona como administração. Toda administração precisa, de alguma forma, da dominação, pois, para dirigi-la, é mister que certos poderes de mando se encontrem nas mãos de alguém”. Isto quer dizer que a dominação para ser eficaz depende da administração; igualmente, não existe administração que não se apoie em alguma estrutura de dominação, que se expressa pelas posições hierárquicas no quadro administrativo de determinada organização. Ou seja, a condução da administração supõe ou implica que os poderes de mando sejam detidos por um ou mais agentes. Logo, fica patente que o tipo de dominação legítima que caracteriza as organizações governamentais na modernidade, segundo a nomenclatura weberiana, é a dominação racional- legal ou burocrática. Ou seja, a burocracia é o aparelho administrativo do poder legal. A dominação do homem pelo homem ainda é uma constante nas inter- relações sociais. A própria dominação em si constitui um exemplo cabal de desigualdade social, pois quem domina postula privilégios, cuja valorização e manutenção são responsáveis pela continuidade de determinada situação sócio-histórica – o status quo vigente. E para dirimir os excessos dessa relação de dominação que é tão comum à espécie humana quanto à própria Natureza criam-se instituições ou organizações que terminam por convergir e se converter em várias formas de soberanias até aportar no modelo de organização política que modernamente chamamos de Estado. Estado: conceito e ação sociopolítica Embora nem todas as sociedades históricas tenham experimentado algum tipo de representação estatal, assente, portanto, na transferência normativa das funções de governo e de confiança na condução de seus destinos, algum tipo de soberania difusa existiu. Ela alude à relativamente livre autodeterminação dos grupos, das coletividades, dos povos ou sociedades globais na condução de suas escolhas, cujo curso os acontecimentos UNIDADE 0132 históricos condicionaram ou induziram. Algum tipo de proteção social e de controle organizativo da vida coletiva vigorou nas estruturas sociais, operando ora como precários ora como vigorosos liames funcionais. Em síntese, as formas de sociedades que se sucederam, umas após as outras, não deixaram de ser o que sempre – enquanto existiram – foram, ou seja, sociedades de homens, edificadas (ou quase sempre destruídas), mantidas (ou dissolvidas) e gestadas por homens, no encalço de suas propensões finalistas, onde as pugnas manifestas ou veladas pelo poder constituem o fermento de que se servem para gerar as transformações sócio-históricas. No entanto, sem perder aquelas características essenciais que lhe outorgam um estatuto ontológico de existência comum, essas formas de sociedade foram se diferenciando devido aos condicionantes geográficos, econômicos, sociopolíticos e culturais, forçando-as a adotar trajetórias díspares e correspondentes formas de autogestão administrativa, bem como de sistemas de alternância de poder – via disputas em jogos desportivos, em estatutos formais ou positivados, em litígios judiciais, em conflitos civis etc. Na emulação interminável pelos escassos bens disputados – justamente por essa escassez (artificial ou não) ser determinadora da dificuldade de sua posse e usufruto – radicam as razões que alimentam a paulatina complexificação das estruturas sociais no decurso do processo histórico – os jogos de interesses e de forças fomentadores do agir racional teleológico/axiológico e definidores de embates no âmbito do político. No bojo desse empreendimento impulsivo se erige uma ordem sociopolítica cuja atribuição básica é disciplinar o livre movimento das vontades humanas circunscritas a um território: o Estado, que essencialmente é distinguido pela autoridade que encerra e pelo poder que lhe é imputado pelas convenções e concertos sociais politicamente legitimadores, sendo que o exercício da força (legal) – expressão objetiva do poder – constitui um direito exclusivo que lhe é inerente. Submetido a uma perspectiva estrutural, o conceito de Estado envolve a articulação entre os seus componentes essenciais, a saber; poder soberano, povo, território e finalidades. Em outros termos, significa que o Estado é uma organização política dotada de poder soberano (independência, auto-determinação política) frente a outros Estados nacionais, e esse poder soberano emana do povo, que por sua vez encontra-se distribuído num território específico e concebe o imperativo de perseguir finalidades ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 33 compatíveis com o equilíbrio alcançado pelas forças políticas partidárias e não-partidárias quanto ao equacionamento das relações de propriedade, ou, mais precisamente, sobre os critérios de divisão da totalidade da renda e da riqueza produzida peloconjunto das unidades produtivas formais e informais (setor ‘invisível’) do mercado nacional. O conceito de forma de estado deriva diretamente da maneira a partir do qual se exerce o poder político com referência a noção de território. Com base em tal critério, distinguem-se as formas de Estado em Estado unitário e Estado federal. O Estado unitário consiste numa circunscrição territorial politicamente centralizada que regula o fluxo de bens e pessoas em virtude do poder de império. Ao passo que Estado federal (ou Estado composto, ou mesmo federação de Estados) descentraliza o seu poder, fracionando-se no espaço territorial, determinando o surgimento de uma grande diversidade de organizações governamentais que se apresentam regionalmente dispersas. Assim, o núcleo do conceito de Estado federal é a existência da subdivisão regional de coletividades políticas autônomas e a própria União, que por sua vez os representam, configurando uma federação ou Estados federados. Logo, o Estado federal possui soberania nacional e internacional, isto é, não se subordinam a nenhum outro poder temporal ou espiritual, enquanto o Estado enquanto unidade da federação possui apenas autonomia. Mas a autonomia federativa somente é reconhecida uma vez satisfeitos os pressupostos da autonomia federativa constante nos artigos 18 e 42 da Constituição Federal, a saber: a existência de órgãos governamentais próprios (órgãos independentes de seus correlatos a nível federal no tocante à seleção e investidura de cargo administrativo); e a posse de competências exclusivas. Assim, o Estado brasileiro é concebido como República Federativa do Brasil. Daí provém o próprio sentido que exprime a forma de governo, ou seja, a forma de governo republicana. No item que disserta sobre o instituto do Governo, explanaremos com mais vagar o tema. Como já vimos, o poder estatal é, ao mesmo tempo, uno, indivisível e indelegável. Porém, este poder estatal é extensível ao exercício simultâneo de três ordens de poderes (órgãos) com suas respectivas funções administrativas, a saber: Executivo, Legislativo e Judiciário. A diferenciação destas três funções constitucionais do Estado é determinante na compreensão daquilo que permite distinguir administração pública (stricto sensu) em relação ao Governo. Tais funções podem ser classificadas em funções próprias ou típicas e funções atípicas. UNIDADE 0134 Assim, a função típica do Executivo é administrar, o que inclui, por um lado, a função de governo (atribuições políticas e decisão estratégica), e, por outro, a função exclusivamente administrativa (procedimentos de intervenção, fomento e serviço público). Já as funções atípicas do Executivo são a legislativa (uso de medidas provisórias) e de julgamento (contencioso administrativo). A função típica ou predominante do Legislativo é legislar (elaborar normas jurídicas gerais e abstratas) e fiscalizar os atos do Poder Executivo (fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial). As funções atípicas do Poder Legislativo estão associadas aos processos de administração (quando se pronuncia acerca de sua estrutura interna: criação de cargos públicos próprios etc) e julgamento (ação do Senado da República em julgar determinadas autoridades administrativas quanto aos crimes de responsabilidade). A função típica do Poder Judiciário (função jurisdicional ou de julgamento) é aplicar, de forma coercitiva e em caráter definitivo, o ordenamento jurídico (Direito) às controvérsias que lhe são apresentadas mediante propositura de ação; as funções atípicas, por um lado, são aquelas voltadas para administração de bens, serviço e pessoal e, por outro, aquelas relativas à geração de normas gerais para os administrados de sua alçada administrativa. Em suma, no âmbito do exercício dos três poderes da União as funções atípicas tanto servem para a realização de suas principais finalidades como serve para estabelecer restrições à conduta dos outros poderes, funcionando como um mecanismo de freios e contrapesos (checks and balance). Num interregno de duzentos anos, entre os séculos XV e XVII, a humanidade assiste ao solapamento da crença tradicional na unidade teocrática da cristandade e sua substituição pelo conceito de soberania territorial, ocasião em que começa a despontar a diferenciação fundamental entre Estado e Sociedade. Somente bem depois do surgimento da idéia de Estado territorial é que se forma uma consciência efetiva da diferenciação entre relações políticas e relações sociais, provavelmente em meados do século XIX (RUNCIMAN, 1966). O advento do Estado moderno, entre os séculos XIV e XVIII, está intimamente associado às necessidades de defesa e unificação territorial; logo, surge sob o signo da faculdade protetora. O Estado moderno surge paralelamente com a emergência do indivíduo enquanto portador de direitos: à vida, à segurança e à propriedade. No âmbito do Estado-protetor o indivíduo passa a se constituir no sujeito central do político. Aos poucos, o Estado ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 35 moderno transfigura-se em Estado-providência, que, por sua vez, consiste em “um aprofundamento e uma extensão do Estado-protetor ‘clássico’” (ROSANVALLON,1997, p. 20). Durante a vigência do Estado-providência, a providência divina é substituída pela certeza da providência estatal mediante o aperfeiçoamento das técnicas de seguro, que, por sua vez, é beneficiada pelo nível elevado do grau de certeza possibilitado pela probabilidade estatística. Assim, “[...] O Estado-protetor corresponde à garantia de sobrevivência (a proteção física da vida) e o Estado-providência à garantia de uma abundância ‘mínima’ para todos os cidadãos” (Ibidem, p. 27). Mas o que é e no que consiste o Estado moderno? Weber (1999) nos contempla com uma definição formal que identifica bem o caráter político-coercitivo dessa entidade abstrata. Para ele, o Estado constitui uma “empresa”, uma comunidade humana, ou uma associação política de tipo historicamente delineado e criado na Europa ocidental, que reivindica e logra com sucesso o direito ao monopólio legítimo de uso do constrangimento físico, e se traduz pela forma politicamente mais organizada e racional de gestão da vida social dos indivíduos em determinada circunscrição territorial. O autor nos adverte que só é possível definir sociologicamente o Estado moderno em função dos meios particulares que lhe são inerentes. De resto, o que se aplica ao Estado moderno pode ser aplicado a toda e qualquer associação política, como é o caso do uso do constrangimento físico (meio específico), e não em função do que o Estado faz ou deixa de fazer. Afinal, argumenta ele, quase não existe tarefa que uma associação política não tenha executado, assim como não existe tarefa cuja execução tenha sido permanentemente de domínio exclusivo a tais associações de caráter político, e que atualmente são designadas por Estados, consistindo em formas históricas de dominação não-institucional anteriores ao Estado moderno. Logo, apoiando-se na afirmação textual de Trotsky, de que “todo Estado fundamenta-se na coação”, Weber (1999, p. 525) sentencia: a única fonte “jurídica” de exercício da coação é o Estado, somente a ele cabe conceder, ou não, a terceiros, o direito de empregá-la. Além do mais, se todas as instituições até aqui existentes nunca tivessem experimentado qualquer tipo de violência ou coação inexistiria o conceito de “Estado”, e em seu lugar apareceria o conceito de “anarquia”, no exato significado que o vocábulo semanticamente sugere e encerra. Nessa linha de análise, portanto, o Estado não pode ser definido com base nos resultados que manifesta através de sua organização institucional, UNIDADE 0136 ou seja, o Governo e a administração pública, mas com base nos meios de que se instrumentaliza, onde o constrangimento físico é apenas um meio, embora específico, dentre outros. Em outros termos, definir o Estadoem função do que realiza é perigoso por conta de duas questões de ordem lógica – defini-lo pelo que faz significa dizer também que ao deixar de fazer o que normalmente faz implica em vê-lo deixar de ser o que é, ou seja, o Estado deixa de existir; e que qualquer entidade que execute funções típicas de Estado deve ser identificado enquanto tal (RUNCIMAN,1966). Runciman (1996), admitindo, porém, que definir o Estado com base em eventuais “finalidades” é por demais temerário, não concorda totalmente com as consequências lógicas da proposição teórico-metodológica weberiana acerca da definição do Estado, mas reconhece que “[...] na definição de Weber – que se baseia antes nos meios – se um Estado deixa de conservar o seu monopólio reconhecido da fôrça (sic) então será necessário dizer que não se trata mais de um Estado (Ibidem, p. 45); e arremata peremptoriamente que temos apenas que nos preocupar em verificar concretamente o que fazem ou deixam de fazer as instituições que detém o monopólio legítimo da violência física, esvaziando, contudo, os resultados da ação dessas instituições de qualquer eficácia cognitiva na compreensão de seu conteúdo conceptual. O mesmo se aplica ao conceito de política, afinal, o que vincula a noção de Estado à de política é o fenômeno do poder. As razões que embasam tal argumento poderiam nos conduzir a ilações açodadas e imputar a Runciman proposições estranhas a seu pensamento com base nas afirmações de Weber. Assim, inadvertidamente, poderíamos ser levados a conceber a ideia de que a redução das funções públicas ou desestatização redundaria na conclusão lógica segundo a qual o Estado deixaria de ser um Estado, justamente por ser forçado a abdicar do exercício de certas funções, tais como a intervenção na economia mediante o recurso da produção de bens materiais de consumo, ou mesmo de alguns bens e serviços públicos coletivos gratuitos (saúde e educação, por exemplo) ou não, a transferência para a iniciativa privada, mediante concessões públicas, dos serviços de telecomunicações e de geração de energia elétrica. Bobbio (1999) nos apresenta argumentos que ajudam a esclarecer melhor a situação evocada. Segundo ele, apenas poderíamos cogitar a possibilidade de o Estado deixar de ser o que seus predicados enunciam, ou seja, deixaria de existir, numa eventual situação em que os poderes básicos que lhe são inerentes dele fossem subtraídos, a saber, o poder coercitivo, ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 37 o poder jurisdicional e o poder tributacional. O primeiro desses poderes contempla o monopólio quanto à aplicação da força física. O segundo, diz respeito à concepção e à contextura das leis, assim como a sua observância quanto aos casos concretos, conforme os fundamentos axiológicos e deontológicos que socialmente as consubstanciam. O terceiro, por seu turno, refere-se à prerrogativa estatal de impor a cobrança de tributos para financiar a operação funcional do aparelho administrativo do Estado. Tais são os poderes que constituem o núcleo mínimo do todo Estado, sendo que cada um deles corresponde a funções operacionais que lhe equivalem, cuja inoperância absoluta faria com que o Estado abdicasse de ser um Estado. Concluindo. Todos esses poderes e respectivas funções conferem ao Estado os elementos essenciais e distintivos de sua individuação enquanto tal, ao passo que - com exceção das funções acima citadas – todas as outras são meros componentes integrantes que o Estado vai agregando em função das circunstâncias históricas, onde as condições gerais de reprodução das unidades produtivas, assim como seu grau de desenvolvimento e diversificação, a estratégia de inserção no mercado global, os sistemas de intermediação de interesses associados às correlações de forças políticas dominantes e o vigor – ou a debilidade – dos sistemas de representação e participação políticas nele imprimem os sinais de uma outra modalidade estatal – o Estado intervencionista (ou Estado-onipresente). Portanto, essas três funções mínimas aludem ao Estado conforme sua feição primeva, ou seja, alude ao Estado-protetor (Estado liberal), enquanto que as justaposições de outras funções o identificam como Estado- providência (Estado social); logo, o Estado pode abdicar de funções típicas de mercado, deixando de intervir no meio econômico, e mesmo no social, sem, no entanto, deixar de ser um Estado enquanto tal, como advoga Bobbio (ibidem). O difícil é imaginar como isso poderia ser efetivado radicalmente dada a irreversibilidade do Estado de bem-estar social. Retornando a Weber, é evidente que sua conceituação por si só nada elucida sobre as transformações do aparato estatal frente às transformações históricas que ele próprio anteviu com lucidez ao empreender a analogia entre a racionalidade que inere ao Estado – aquela que consiste na rigidez das regras ritualísticas do processo burocrático - e a racionalidade que se instaura no cerne do desenvolvimento capitalista com respectivas, porém equivalentes, expropriações de meios estrutural-funcionais internos; da mesma forma que nas unidades produtivas capitalistas as forças produtivas UNIDADE 0138 (ou proletários) são privadas da propriedade dos meios de produção, os funcionários que compõem a estrutura burocrática também são privados da propriedade dos cargos que ocupam e exercem, logo, dos meios materiais da organização administrativa, e para isso percebem remuneração sob a forma de salários. Na construção da ordem moderna, dois movimentos paralelos terminam por confluírem simbioticamente: o progresso rumo ao capitalismo e o progresso rumo ao funcionalismo burocrático. O primeiro é fator de modernização da economia tanto quanto o segundo, que é fator de modernização do Estado (WEBER, 1999). Ou seja, modernização econômica supõe modernização estatal, e vice-versa - “[...] historicamente o ‘progresso’ em direção ao Estado burocrático [...] encontra-se em conexão muito íntima com o desenvolvimento capitalista moderno” (Ibidem, p. 530). Além de que, Estado nacional e capitalismo implicam-se mutuamente: um fertiliza o outro. Estado capitalista As concepções de Offe (1984) e Carnoy (1976) acerca do Estado são centrais para se entender a dinâmica estatal na sociedade, considerando- se que o Estado precisa constantemente compatibilizar as exigências do capital com as necessidades do trabalho, a integração social com a integração sistêmica, a solução dos conflitos entre as classes com as crises de reprodução/acumulação. Eis o que se pode chamar de problemas da dinâmica do Estado capitalista As formulações teórico-metodológicas de Offe (1984) com relação ao Estado se guiam pelo cuidado em compatibilizar as “razões concretas e de conteúdo” que justificam a ação estatal com os “resultados materiais” decorrentes dessa ação; Essas razões e resultados constituem “pontos de referência funcionais” inerentes ao quadro organizacional da estrutura do Estado burguês. Trata-se, portanto, de confeccionar hipóteses plausíveis acerca da relação funcional entre a ação do Estado e os problemas estruturais que surgem no seio de uma particular formação sócio-econômica, a saber, a formação sócio-econômica capitalista. Nessa linha de estudo, é possível se averiguar como uma sociedade histórica se reproduz e que mecanismos asseguram sua continuidade ou descontinuidade: “A sociologia resolve esse problema (que continua básico e atual) na medida em que indica quais são exatamente ADMINISTRAÇÃO NO SETOR PÚBLICO - MÓDULO III 39 as questões estruturais que problematizam o contexto societário e sua continuidade histórica, e esclarece através de que medidas de ‘integração’ o sistema social é capaz ou não de resolver os seus problemas estruturais específicos” (Ibidem, p. 14; grifo do autor). Uma vez esclarecidos os termos gerais da definição operacional do Estado em Offe, mais precisamente do Estado capitalista, convém adiantar como o autor especificamente
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