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CONTESTANDO AS TESES NEGACIONISTAS DAS PRÁTICAS HOMOERÓTICAS NAS SOCIEDADES AFRICANAS PRÉ-COLONIAIS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG
MATHEUS PEREIRA MILAGRES
CONTESTANDO AS TESES NEGACIONISTAS DAS PRÁTICAS HOMOERÓTICAS NAS SOCIEDADES AFRICANAS PRÉ-COLONIAIS
Belo Horizonte – MG
	
	
	
6
2019
	
	
	
CONTESTANDO AS TESES NEGACIONISTAS DAS PRÁTICAS HOMOERÓTICAS NAS SOCIEDADES AFRICANAS PRÉ-COLONIAIS
Matheus Pereira Milagres[footnoteRef:1] [1: Graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.] 
RESUMO
O presente artigo visa apresentar e contrapor as narrativas que negam a existência de práticas homoeróticas na África pré-colonial afirmando que tais práticas nunca fizeram parte das “tradições africanas”, sendo, portanto, fruto do colonialismo ocidental. A partir disso, busca-se identificar as matrizes discursivas destas teses negacionistas. Na sequência, serão elencados empiricamente dados de estudos que comprovam a existência destas práticas no continente africano antes mesmo da influência europeia. 
com base numa suposta tradição africana
Para tanto, utilizou-se como referencial teórico os escritos de 
O artigo visa apresentar e contrapor as narrativas que negam a existência de práticas homoeróticas na África pré-colonial afirmando que tais práticas nunca fizeram parte das tradições africanas, sendo, portanto, fruto do colonialismo ocidental. Para tanto, serão elencados empiricamente dados de estudos que comprovam a existência destas práticas no continente africano antes mesmo da influência europeia. Na sequência, busca-se estabelecer uma relação entre o processo de imposição do cristianismo nas sociedades africanas e a fundamentação das leis que criminalizam as práticas homoeróticas em vários países da África contemporânea. Conclui-se, a partir do estudo, que o colonialismo não levou as práticas homoeróticas para o continente africano, mas sim a sua criminalização juridicamente fundada em uma concepção cristã que perdura até os dias de hoje.
Palavras-chave: História da África; Homossexualidade;
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INTRODUÇÃO
Neste artigo, o emprego da terminologia “relações homoeróticas” no lugar de “homossexualidade” se dá em razão do aprisionamento epistemológico[footnoteRef:2] que o termo “homossexual” gera, uma vez que trata-se de um conceito ocidental concebido no século XIX e que pressupõe uma identificação, aspecto este muito relativo entre as diferentes culturas humanas. Desta forma, o emprego da expressão “relações homoeróticas” neste escrito não visa compreender a perspectiva da identidade, mas as práticas corporais, isto é, as práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo. É importante ressaltar ainda que, muitas vezes, tais relações homoeróticas “não colocam em causa a masculinidade ou a orientação sexual dos sujeitos, que não se identificam como homossexuais ou gays, mas somente homens que fazem sexo com homens (HSH)”[footnoteRef:3]. [2: MIGUEL, Francisco. Por uma antropologia da homossexualidade em África: o caso de Cabo Verde. 2014. p. 2.] [3: LANGA, Ercílio Neves Brandão. A homossexualidade no continente africano: história, colonização e debates contemporâneos. 2018. p. 54.] 
O debate sobre a existência (ou não) das práticas homoeróticas nas sociedades africanas antes da influência europeia é objeto de grande controvérsia não apenas no âmbito acadêmico, mas também no campo social. Neste sentido, há uma série de narrativas que negam a existência das práticas homoeróticas na África pré-colonial afirmando que tais práticas nunca fizeram parte das tradições africanas, sendo, portanto, fruto do colonialismo ocidental. 
Estas narrativas negacionistas baseiam-se na “noção essencialista de uma Africanidade autêntica, centrada na crença de que há algo intrínseco à África, chamado ‘Cultura Africana e Tradições Africanas’”[footnoteRef:4]. Contemporaneamente, esta perspectiva é defendida pelo Afrocentrismo formulado por Molefi Kete Asante e por vários líderes religiosos e políticos de países como Nigéria, Uganda e Libéria. Neste último caso, evoca-se uma suposta cultura africana nostálgica em que as práticas homoeróticas eram desconhecidas com o intuito de justificar a implementação de leis que criminalizam as relações sexuais entre indivíduos do mesmo sexo. [4: EKINE, Sokari. Narrativas Contestadoras da África queer. 2016. p. 12.] 
Esta perspectiva de que as práticas homoeróticas são exógenas a uma suposta “tradição africana” e que foram introduzidas no continente pelos europeus, entretanto, existe desde, pelo menos, o século XVII, conforme descrito por Luiz Mott em seu escrito Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro. Segundo o autor, “oficialmente, teria sido o historiador inglês Edward Gibbon, em 1781, quem primeiro asseverou a inexistência da homossexualidade no continente africano”[footnoteRef:5] (MOTT, 2055, p. 9). No entanto, a gênese disto, que Mott denomina de “mito da inexistência da homossexualidade na África”, foi em 1630, quando o então governador da Ilha do Cabo Verde, que havia sido denunciado ao Santo Ofício por numerosos atos de sodomia, foi julgado pela Inquisição Portuguesa. Na ocasião, os inquisidores argumentaram que: [5: MOTT, Luiz. Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro. 2005. p. 9.] 
“seria muito contra o serviço de Deus e de Sua Majestade ir para Cabo Verde um governador tão inculpado no pecado nefando e tão murmurado já de muitos tempos, para terra onde pecará sem receio, nem limite, e deixará lá introduzido este abominável pecado [...] Nos erros, convém atalhar nos princípios e não dar lugar que Cabo Verde se faça uma Sodoma [...] pois com seus maus costumes [pode] infeccionar a gente daquela terra”[footnoteRef:6]. [6: Inquisição de Lisboa, 1630 citado por Luiz Mott, 2005, p. 10.] 
Neste breve escrito, busca-se contrapor estas narrativas que negam a existência de práticas homoeróticas na África pré-colonial, identificando suas matrizes discursivas e elencando empiricamente dados de estudos que comprovam a existência destas práticas no continente africano antes mesmo da influência europeia. 
AS MATRIZES DISCURSIVAS DAS NARATIVAS NEGACIONISTAS DAS PRÁTICAS HOMOERÓTICAS NAS SOCIEDADES AFRICANAS PRÉ-COLONIAIS 
O Afrocentrismo é uma corrente filosófica que é tida como um “paradigma alternativo ao eurocêntrico, visando libertar as mentes dos africanos (do continente e da diáspora) das influências ocidentais, enraizadas na experiência colonial e da escravatura”[footnoteRef:7]. Contemporaneamente, o Dr. Molefi Kete Asante figura entre os nomes mais ativos na sustentação deste paradigma. No entanto, segundo Luca Bussotti e António Tembe, “um dos limites que [...] este paradigma encontra, reside na negação da dignidade da homossexualidade e dos homossexuais, com base numa suposta tradição africana”[footnoteRef:8]. Desta forma, os autores consideram que o discurso negacionista de Asante seja uma “contradição insanável na edificação do paradigma afrocêntrico”[footnoteRef:9], pois está alicerçado nos parâmetros de uma cultura ocidental que ele próprio pretende ultrapassar. [7: BUSSOTTI, Luca; TEMBE, Antônio. A homossexualidade na concepção afrocentrista de Molefi Kete Asante: entre libertação e opressão. 2014. p. 15.] [8: BUSSOTTI; TEMBE, 2014, p. 15.] [9: Ibidem, p. 16.] 
Desde os primeiros “descobrimentos”, a civilização europeia vem acumulando uma série de representações estereotipadas dos indivíduos africanos: a mulher negra é comumente vista como um emblema de fertilidade, enquanto o homem negro é representado por sua suposta virilidade e potência sexual. Neste sentido, “um gay preto não trai apenas a categoria dos homens, mas também a dos negros. Assim, ele macula sua negritude simbolizada pela potência sexual”[footnoteRef:10]. Segundo Bussotti e Tembe, a tese negacionista de Molefi Kete Asante, paradoxalmente, está formulada a partir da interiorização destes estereótipos ocidentais que ele pretende combater. [10: BUSSOTTI; TEMBE, 2014, p. 19-20.] 
Asante defende também a perspectiva de que “a natureza africana se centra na vida e na sua reprodução, oque se torna impossível com a homossexualidade”[footnoteRef:11]. Neste sentido, os Bussotti e Tembe argumentam que “a ênfase na vida e no ato sexual como algo válido, enquanto instrumento necessário à reprodução, não é típica da cultura africana, sendo partilhada por quase todas as confissões religiosas, em primeiro lugar a cristã”[footnoteRef:12]. [11: Ibidem, p. 20.] [12: Ibidem, p. 20.	] 
Outro argumento utilizado por Asante para sustentar seu discurso negacionista é o de que as práticas homoeróticas nunca fizeram parte das tradições africanas e que foram introduzidas no continente pelos europeus. Embora este argumento seja “fraco e desprovido de uma sólida base filosófica, originando generalizações e contradições”[footnoteRef:13], é partilhado por vários líderes africanos. [13: Ibidem, p. 20.] 
Com o propósito de justificar as leis que criminalizam as práticas homoeróticas em diversos países da África, diversos líderes políticos e religiosos do continente alegam que tais práticas contrariam, por um lado, uma suposta “tradição africana” e, por outro lado, às tradições religiosas. Neste sentido, “a linguagem escolhida pelos líderes religiosos e políticos africanos para justificar a heterossexualidade como a única ordem aceitável é similar à linguagem usada em outras partes do mundo”[footnoteRef:14]. Desta forma, fala-se sobre os valores culturais e tradicionais, sobre a família, sobre o sexo ser destinado exclusivamente para a procriação, além de inúmeras referências tiradas dos textos religiosos. Além disto, evoca-se também o argumento do antiocidentalismo, isto é, argumenta-se “que as iniciativas pró-queer na África, por parte de países e ONGs ocidentais, são imperialistas”[footnoteRef:15]. Por exemplo, estes aspectos estão presentes nas falas de Yahya Jammeh, então presidente da Gâmbia, e de Samson Osagie, então senador da Nigéria, respectivamente: [14: EKINE, 2016, p. 11.] [15: EKINE, 2016, p. 10.] 
“Não está na Bíblia ou no Corão. É uma abominação. Estou dizendo isso para vocês porque a nova onda de mal que eles querem impor sobre nós não vai ser aceita no país.... Até quando eu for presidente, não irei aceitar isso no meu governo e neste país. Sabemos o que os direitos humanos são. Os seres humanos do mesmo sexo não podem casar ou celebrar - nós não derivamos da evolução, mas da criação e sabemos que o início da criação foi Adão e Eva”[footnoteRef:16]. [16: Jollof News, 2012 citado por Sokari Ekine, 2016, p. 10.] 
“É apenas apropriado que, como africanos, preservemos nossos apreciados valores tradicionais. É definido pelas Escrituras que os casamentos são reconhecidos entre um homem e uma mulher. Rebaixa nossos valores quando você começa a tolerar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para mim, eu acredito que esta é uma decisão que é popular e que terá o suporte da maioria dos membros da casa”[footnoteRef:17]. [17: Vanguard Nigeria, 2011 citado por Sokari Ekine, 2016, p. 11.] 
Francisco Miguel chama a atenção para o fato de que estes discursos estão produzindo um quadro de recrudescimento das leis que criminalizam as práticas homoeróticas em diversos Estados da África. “De acordo com relatório [...] da Anistia Internacional (2013), pelo menos 38 países [do continente africano] criminalizam a homossexualidade e 4 deles aplicam penas de morte”[footnoteRef:18]. [18: MIGUEL, 2014, p. 10.] 
Diante deste contexto, muitos antropólogos e historiadores têm produzido diversos estudos que visam contrapor estes discursos que negam a existência de práticas homoeróticas na África pré-colonial afirmando que tais práticas nunca fizeram parte das “tradições africanas”, sendo, portanto, fruto do colonialismo ocidental. Desta forma, a partir de seus estudos, estes intelectuais vêm mostrando que “longe de ser uma prática [...] estranha introduzida pelos agentes do empreendimento colonial, as ‘práticas homoeróticas’ já se encontravam em várias tradições culturais”[footnoteRef:19] do continente africano. [19: Ibidem, p. 11.] 
AS PRÁTICAS HOMOERÓTICAS NA ÁFRICA PRÉ-COLONIAL
O artigo Sexual Inversion among the Azande de Edward Evan Evans-Pritchard é considerado um clássico no debate acadêmico sobre as práticas homoeróticas nas sociedades africanas pré-coloniais. Neste estudo, que foi escrito no final da década de 30 e publicado somente no ano de 1970, o antropólogo britânico discorre sobre as práticas homoeróticas entre os Azande, um grupo étnico que vive no norte da África Central. Estas práticas aconteciam “entre guerreiros casados e rapazes solteiros com e sem penetração sexual, nas quais, os últimos viviam, temporariamente, nas cabanas dos primeiros, tornando-se ‘rapazes-esposas’”[footnoteRef:20]. A ocorrência desta prática se dava pela escassez de mulheres disponíveis para casamento, uma vez que “os homens ricos tinham verdadeiros haréns de mulheres, causando desequilíbrio nupcial na sociedade Azande” (LANGA). Devido à poligamia em larga escala presente nesta sociedade, as relações homoeróticas também eram comuns entre mulheres, entretanto, desde que elas tivessem permissão de seus esposos. [20: LANGA, 2018, p. 53.] 
 Em 1990, o historiador Wayne R. Dynes organizou uma Enciclopédia da Homossexualidade. Nesta obra, há o relato 
Em “Enciclopédia da Homossexualidade”, organizada pelo historiador Wayne R. Dynes e publicada em 1990, há em certo momento a afirmação do viajante Geoff Puterbaugh de que “a pederastia foi virtualmente pandêmica no Norte da África durante os períodos de dominação árabe e turca.” (PUTERBAUGH, 1990). E o mesmo autor prossegue: “[O] Islam como um todo era tolerante com a pederastia, particularmente no Norte da África”. (MIGUEL)
O viajante, ou globe-trotter, como o autor mesmo se intitula, traz ainda outros relatos de campo – inegavelmente impressionistas – de como a homossexualidade seria encarada em países como Egito, Tunísia, Algeria e Marrocos. Mas para além desta África islâmica do norte, Wayne R. Dynes compilou e publicou uma lista de artigos e monografias sobre “homossexualidade” entre povos africanos subsaarianos, alcançando mais de 500 citações (DYNES apud NEILL, 2009, p.53). (MIGUEL)
Outro pesquisador que se dedicou a compilar referências acerca do homoerotismo em África foi James Neil, autor do livro “The Origins and Role of SameSex Relations in Human Societies” (2011). Nesta obra, o autor dedica algumas páginas para tratar dos “difusos costumes homossexuais entre os povos nativos africanos” (2011:53). Entre as referências expostas, algumas nos reconduzem à obra de Dynes, anteriormente citada. Reproduzirei nas páginas que seguem as referências sobre “homossexualidade”, “sodomia” e “pederastia” encontradas nestas e em outras obras que tratam do continente africano, para somente depois tecer algumas conclusões a respeito delas. (MIGUEL)
A partir da leitura de “The Construction of Homosexuality” (1988) de Greenberg, Neil (2011) sugere que a “homossexualidade” entre adolescentes parece ser uma prática universal entre os povos africanos. Na Tanzânia, diz o autor, teria sido relatado que os meninos da tribo Nayakyusa deixavam a casa dos pais por volta dos dez anos e iam viver com outros rapazes em um acampamento nos arredores da vila principal, onde teriam relações sexuais com jovens da mesma idade até que se casassem. Meninos pastores de Qemant e Amhara, na Etiópia, desenvolveriam relações homossexuais com os outros, o que inclui o sexo anal, até o momento em que se casam. (NEIL, 2011:54, tradução minha) (MIGUEL)
Ainda de acordo com Neil (2009), antropólogos como De Becker (1969) relataram que entre as tribos ubangi do Congo, “os homens consideravam as mulheres como existindo essencialmente para a procriação e os adolescentes do sexo masculino propriamente para o prazer” (NEIL, 2009:54). Por sua vez, sobre as tribos de língua berbere da área do Oasis Siwan, no deserto da Líbia, pesquisadas por Ford & Beach (1951), destaca Neil, “todos os homens buscam relações sexuais com os rapazes, com os quais eles se envolvem em relações sexuais anais.” Esta atividadeseria tão comum que os homens que não praticam essas relações, segundo Neil, seriam considerados como desviantes. Homens Siwan emprestariam seus filhos para os outros homens e eles falariam sobre seus “casos amorosos” masculinos de forma tão aberta quanto eles discutem o amor das mulheres (NEILL, 2009:54). (MIGUEL)
Além da tradição Azande, que possuiria o costume de “práticas homossexuais” na formação de jovens guerreiros (EVANS-PRITCHARD, 1970), Neil (2009) cita “relacionamentos homossexuais” hierárquicos entre homens adultos dominantes e jovens, entre os numerosos povos tribais. Um exemplo seria o Fang, um grande grupo tribal vivendo onde hoje se localiza Camarões, Guiné Equatorial e Gabão. A partir do relato de Günter Tessmann (1913) sobre este grupo de língua Bantu, o antropólogo Stephen Murray (1990) acrescenta que a homossexualidade era encarada como “remédio para o bem-estar, que seria transmitido do passivo para o ativo no intercurso sexual anal” (MURRAY, 1990:23). (MIGUEL)
Ao contrário das relações tipicamente patronais, em que homens mais velhos penetram os mais jovens, Murray recupera o relato de um sujeito chamado Gustave Hultsaert sobre os Nkundo do Congo e conclui que neste contexto: “o parceiro mais jovem penetra o mais velho, [o que seria] um padrão oposto ao da hierarquia geracional nas relações homossexuais” (MURRAY, 1990:23). (MIGUEL)
Sobre as práticas homossexuais entre mulheres, as informações são mais escassas. De acordo com Neil (2011), relações “lésbicas” também seriam comuns entre os Nandi do Quênia, e praticamente universal entre as mulheres solteiras Akan de Gana, por vezes, continuando depois do casamento. Também seria uma prática comum entre os Nkundo do Congo e as adolescentes Dahomey do sexo feminino (NEIL, 2011:53). (MIGUEL)
Deste conjunto de relatos, extraio algumas conclusões. A primeira delas é a de que se tratam de relatos, em sua maioria, dos fins do século XIX e início do século XX e a respeito de povos indígenas do continente. São relatos, muitas das vezes, de viajantes e cronistas não treinados na academia e muitas das vezes nos informam percepções impressionistas como a de Puterbaugh, que em dado momento chama a Algeria de um “strange country” (país estranho) ao notar a contradição entre o orgulho e a rejeição deste país ao colonizador francês. Uma segunda observação é que dado o período histórico e o gênero dos autores (todos homens), a homossexualidade era muitas vezes relegada a notas de rodapé, não sendo tratadas como foco de suas pesquisas ou ao menos com maior profundidade. Isso para nem dizer a eventual subnotificação da “homossexualidade feminina”. Por último, ainda resta a dúvida: Afinal de contas, tratarse-iam nestes casos propriamente de “homossexualidade”? (MIGUEL)
Como já alertamos, apesar da variedade de supostos exemplos de comportamentos “homossexuais” em povos indígenas africanos, sabemos que tais práticas corporais não possuem um valor simbólico em si mesmas e podem variar de função e significação sociais. Nesse sentido, coloco em cheque até que ponto ritos de iniciação como dos Baruya da Nova Guiné, onde os meninos e jovens, em busca da construção de suas masculinidades, se nutrem do sêmen através do contato oral com o pênis dos iniciadores, podem ser tidos como práticas propriamente “homossexuais”, tal como defende Godelier, ainda que estes não pratiquem a sodomia (GODELIER, 1998, pp. 53-4). Ou para usarmos um exemplo já citado do próprio continente africano, a percepção do intercurso anal entre homens Fang como fármaco para o bem-estar pode ser enquadrada como “homossexualidade”? Em outras palavras, é-se possível classificar o ritual de iniciação dos Baruya ou a medicação Fang dentro do marco tão ocidentalmente compartimentado da sexualidade? Apenas o trabalho de campo seria capaz de responder. (MIGUEL)
Se, como vimos, a lista de práticas “homossexuais”, “homoeróticas”, “pederásticas” e “sodomíticas” em África parece diversa, quando buscamos a literatura urbana e contemporânea sobre tais assuntos neste continente, encontramos uma insistente narrativa que advoga a tese de que a “homossexualidade” é uma prática exógena à tradição africana, desconsiderando as supostas evidências do contrário (MOTT, 2005; KAOMA, 2009). Isso vem sendo explicado, por um lado, pela recente e forte influência que os ortodoxos cristãos norte-americanos têm exercido em África; e, por outro lado, a ressonância desse discurso no continente se faria não por uma “homofobia inata” do africano, mas pela associação simbólica entre “homossexualidade” e uma crítica latente ao ocidente (KAOMA, 2009)4 . Além dessas explicações, há a evidência de existir em África diversas formas indígenas de significar práticas que chamaríamos no Ocidente de “homossexuais” (O‟MARA, 2013; TUSHABE, 2013). (MIGUEL)
Neste complexo conjunto africano, o fato é que o discurso antihomossexualidade – o que quer que esta categoria signifique em cada local – baseado na tese exogênica, está produzindo um quadro de recrudescimento das leis antihomossexualidade em diversos Estados5 . De acordo com relatório recente da Anistia Internacional (2013), pelo menos 38 países criminalizam a homossexualidade e 4 deles aplicam penas de morte (Amnesty International, 2013)6 . (MIGUEL)
Em resposta às recorrentes afirmações sobre a homossexualidade se configurar como prática exógena ao continente, alguns antropólogos, historiadores e militantes, mais “essencialistas”, porém, vêm tentando demonstrar como, longe de ser uma prática e uma identidade estranha introduzida pelos agentes do empreendimento colonial, as “práticas homoeróticas” já se encontravam em várias tradições culturais deste continente (MOTT, 2005; NEILL, 2009)7 . Para o antropólogo Luis Mott, que advoga pela comprovação da existência do homoerotismo através de registros históricos, a “homossexualidade nativa” africana teria sofrido um incremento e “diversificação/mestiçagem cultural” com a chegada do europeu. Este, munido da moralidade judaico-cristã tentou impor a penalização (frequentemente, o exílio) e o fim das práticas de travestismo e de relação sexual entre indivíduos do mesmo sexo, através de uma série de processos jurídico-religiosos da Santa Inquisição (MOTT, 2005). Tal fato corroboraria com a tese de Marc Epprecht, de Murray e tantos outros pesquisadores contemporâneos de que a “homofobia” – e não a homossexualidade – seria exógena à tradição africana, uma vez que a partir da colonização, negar a “homossexualidade” foi associado à civilização e ao progresso (apud KAOMA, 2009, p. 14). (MIGUEL)
Se devemos ser cautelosos em aceitar as teses essencialistas de que tratar-se-iam em outros tempos e lugares de práticas propriamente “homoeróticas” ou “homossexuais”, penso que estes vários registros históricos, aos quais poderíamos acrescentar outros de diferentes regiões etnográficas, nos deixa igualmente alertas para o risco da atual crítica do construcionismo social que vincula a identidade “homossexual” em África como única e exclusivamente decorrente de um processo recente de globalização das identidades sexuais. Não quero negar a existência de recentes fluxos globais de valores e ideias, principalmente no que diz respeito à emergência de movimentos LGBT no continente (entre eles a Associação Gay Caboverdiana, como veremos adiante), mas os registros coloniais não devem ser descartados imediatamente, pois eles podem ser um poderoso argumento de desnaturalização de discursos que ontologizam a não-existência das práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo em áreas etnográficas como África(MIGUEL)
CONCLUSÃO
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Por mais que as práticas homoeróticas foram encaradas de formas distintas em difernrtes regiões africanas, não pode-se partir de um pressuposto generalizante para afirmar que estas práticas não existiam no continente.
Para o antropólogo Luis Mott, que advoga pela comprovação da existência do homoerotismo através de registros históricos, a “homossexualidade nativa” africana teria sofrido um incremento e “diversificação/mestiçagem cultural”com a chegada do europeu. Este, munido da moralidade judaico-cristã tentou impor a penalização (frequentemente, o exílio) e o fim das práticas de travestismo e de relação sexual entre indivíduos do mesmo sexo, através de uma série de processos jurídico-religiosos da Santa Inquisição (MOTT, 2005). Tal fato corroboraria com a tese de Marc Epprecht, de Murray e tantos outros pesquisadores contemporâneos de que a “homofobia” – e não a homossexualidade – seria exógena à tradição africana, uma vez que a partir da colonização, negar a “homossexualidade” foi associado à civilização e ao progresso (apud KAOMA, 2009, p. 14). (MIGUEL) [FALAR QUE ALGUNS 
se levar em consideração que as percepções e os comportamentos corporais são relativos e podem variar de sociedade para sociedade. (MIGUEL)
	
	
	
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BUSSOTTI, Luca; TEMBE, Antônio. A homossexualidade na concepção afrocentrista de Molefi Kete Asante: entre libertação e opressão. 2014.
EKINE, Sokari. Narrativas contestadoras da África queer. 2016.
LANGA, Ercílio Neves Brandão. A homossexualidade no continente africano: história, colonização e debates contemporâneos. 2018.
MIGUEL, Francisco. Por uma antropologia da homossexualidade em África: o caso de Cabo Verde. 2014.
MOTT, Luiz. Raízes históricas da homossexualidade no atlântico lusófono negro. 2005.

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