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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Ana Cecilia Oñativia 2 SUMÁRIO 1 ALFABETIZAÇÃO AO LONGO DA HISTÓRIA............................................... 3 2 PSICOGÊNESE DA LECTO-ESCRITA ......................................................... 13 3 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO ........................................................... 26 4 PROCESSOS ENVOLVIDOS NO ATO DE LER E ESCREVER ......................... 37 5 DIFICULDADES DE LEITURA E ESCRITA ................................................... 47 6 LITERATURA E CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS .............................................. 55 3 1 ALFABETIZAÇÃO AO LONGO DA HISTÓRIA Por que abordar a alfabetização ao longo da história? O ensino das primeiras letras sempre foi um tema que problematizou educadores de diferentes épocas e contextos históricos. Qual a melhor forma de alfabetizar? Quais seriam os mais eficientes recursos metodológicos para garantir não só o acesso às letras, mas o uso funcional da leitura e escrita? Estas e outras muitas perguntas possivelmente já foram formuladas em algum momento por você e por quem se dedica à importante tarefa de ensinar. A ação de alfabetizar não é um mero ato mecânico desprovido de um substrato ideológico. Mesmo quando não se tem consciência disto, o ato de alfabetizar implica num comprometimento com uma concepção de homem e de educação inserida num determinado contexto sócio-histórico e cultural. É por este motivo que não é possível enfrentar os desafios que hoje se apresentam em nossa sociedade, quando falamos em alfabetização, sem compreender os percursos históricos que seguiu a humanidade a partir do momento em que ensinar a ler e escrever foi uma necessidade para algumas comunidades para garantir o seu desenvolvimento e perpetuidade. Neste primeiro bloco de conteúdo, objetiva-se conhecer o processo de criação da escrita por parte da espécie humana, assim como seu desenvolvimento ao longo das diferentes culturas a fim de realizar posteriormente um paralelo deste processo com o caminho percorrido pela criança ao adquirir a escrita. Por outro lado, busca-se apresentar o processo histórico do desenvolvimento das práticas alfabetizadoras e as concepções que subjazem nessas práticas, pois, acredita- se ser fundamental que o profissional que se dedica à tarefa de alfabetizar tenha uma consciência crítica das diferentes ações de ensino de leitura e escrita, inclusive das que irá adotar. 4 1.1 A história da escrita O surgimento da escrita apresenta-se como o divisor de águas entre a história e a pré- história, já que a partir do momento em que a escrita começou a existir iniciou-se o registro dos acontecimentos. A partir do surgimento das primeiras comunidades se fez necessário um instrumento que permitisse registrar contratos econômicos, civis e religiosos, entre outros, possibilitando o desenvolvimento social e econômico. No Oriente Médio, a primeira forma de escrita registrada é a cuneiforme. Por volta do ano 3000 a.C. os sumérios desenvolveram, na Mesopotâmia, uma escrita silábica para representar a língua falada. Os acádios também adotarão este método, levando assim à criação dos alfabetos. No mesmo período há o surgimento da escrita hieroglífica no Egito Antigo. As civilizações pré-colombianas na América adotam, por exemplo, a escrita chinesa. Outros tipos de escrita tiveram origens independentes. Com a escrita, a memória se fixa, fica documentada. O pensamento humano deixa de ser mítico e se faz reflexivo, racional. É possível rever o que está escrito, repensar o passado, analisar o presente e inferir o futuro. O surgimento da escrita implica não somente um avanço para a sociedade, mas uma verdadeira transformação do ser humano, a linguagem oral é enriquecida pela linguagem escrita tornando-se mais elaborada e racional. 1.2 Breve história das metodologias Há alguns anos as páginas de jornal de maior circulação no país e de conhecidas publicações na área educacional apresentavam manchetes como: “MEC discute a volta do ‘vovô viu a uva’”; “Governo vai rever processo de alfabetização”; “Debate opõe linha construtivista, predominante hoje no país, e o método fônico”, entre outras (OÑATIVIA, 2009). Conforme Oñativia (2009, p. 11), “O debate ultrapassou o âmbito das autoridades educacionais e de renomados escritores e pedagogos e chegou às salas de aula”. Assim, surgiram questões fundamentais: a revisão proposta em torno das metodologias de alfabetização significa necessariamente um retorno ao tradicional 5 “vovô viu a uva”? Por que, apesar das inovações pedagógicas, cresce o número de alunos que chegam ao ensino médio sem saber ler e escrever? Para compreender melhor essas questões, podemos olhar para esse cenário sob o prisma dos processos sócio-históricos presentes nas práticas alfabetizadoras (MORTATTI, 2000 apud OÑATIVIA, 2009). Nesta seção, propomo-nos realizar uma revisão da origem histórica das diferentes metodologias e propostas de ensino de leitura e escrita, descrevendo brevemente o contexto em que surgiram. Entender o atual cenário das práticas alfabetizadoras só será possível se considerarmos a perspectiva histórica da alfabetização (OÑATIVIA, 2009). Sabemos que as práticas pedagógicas não nascem de um dia para outro, mas são o resultado de um movimento de questionamento do já estabelecido, o que ao mesmo tempo não nega uma tentativa de continuidade em relação ao passado. Vamos conhecer como aconteceu esse processo histórico? De acordo com Oñativia (2009, p. 11-2), José Juvêncio Barbosa, em sua obra Alfabetização e Leitura (1994), distingue três períodos principais na história do ensino da leitura e escrita: 1. O primeiro período vai da Antiguidade a meados do século XVIII e é marcado pelo uso exclusivo dos chamados métodos sintéticos. 2. O segundo período começa ainda no século XVIII, e nele se inicia um processo de oposição teórica aos métodos sintéticos pelos defensores dos métodos analíticos (ou globais), que se efetivam no século XX com Ovide Decroly. 3. O período atual (devemos lembrar que o texto de Barbosa foi escrito em 1994) ultrapassa a luta dos defensores das metodologias sintéticas e analíticas, questionando-se aquilo que é a peça chave desses métodos: será preciso passar pela mediação da fala para aprender a ler? Hoje sabemos que, independente do método de alfabetização adotado, o desenvolvimento da consciência fonológica é de grande valor para um processo de alfabetização. Porém, sem esquecer que a língua escrita é mais do que um código, é antes de tudo um sistema de representação (OÑATIVIA, 2009). 6 1.3 Métodos sintéticos Você já ouviu falar nestes métodos? São os mais antigos. Consideram a língua escrita como um objeto de conhecimento externo ao aprendiz. O ensino procede do simples para o complexo, num processo cumulativo em que a criança aprende primeiro as unidades menores da língua (letras, sílabas, palavras) até chegar às unidades maiores (frases e textos) (BARBOSA, 1994 apud OÑATIVIA, 2009). Segundo Barbosa (1994 apud OÑATIVIA, 2009), nos primórdios do método sintético (cerca de 2 mil anos atrás) a criança deveria primeiro dominar o alfabeto, nomeando cada uma das letras, independentemente do valor fonético e da grafia, processo este conhecido como soletração. Logo após, mostrava-se a grafia das letras “e, numa primeira síntese, apresentavam-se as sílabas de forma sistemática e ordenada, para depois introduzir as palavras mais simples (monossílabas) e então as mais longas”. Nessa prática não acontecia o processo de correspondência entre som (fonema) e grafia (letra), já que a passagem se dá diretamente do nome da letra para a sílaba com seu respectivo som silábico, por exemplo: be + a = ba. Este procedimento pode resultar um tanto confuso para a criança, não é mesmo?E a leitura? Como aconteceria? De acordo com Barbosa (1994), “Como a aprendizagem da leitura estava estreitamente ligada à aprendizagem da oratória, o ato de ler era sempre um exercício de articulação” que buscava aperfeiçoar a pronúncia das palavras. “(...) os textos não tinham [sinais de] pontuação, as palavras não eram separadas por espaços em branco”, o traçado das letras era rebuscado e a ortografia não estava normatizada. O aluno demorava anos para ler um texto completo. Só depois desse período é que se iniciava a aprendizagem da escrita. Essa forma de ensino se estendeu por toda a Antiguidade e prevaleceu também na Idade Média. Você pode imaginar qual é o contexto teórico que dá lugar a estas práticas? Bom, evidentemente no início não havia uma teoria pedagógica que as sustentasse. Porém, séculos depois, segundo Oñativia (2009, p. 13), “o behaviorismo, teoria do conhecimento que considera a aprendizagem como o conjunto de respostas observáveis que são obtidas graças a uma ação precisa e determinada de 7 fornecimento de estímulos por parte do professor”, passa a ser um bom fundamento que justifica estas práticas. Por outro lado, o método fônico (ou fonético), atualmente utilizado por algumas instituições, que parte do ensino do som das letras, é também um tipo de método sintético. Foi usado pela primeira vez por educadores alemães já no começo do século XVI (OÑATIVIA, 2009). Seu ressurgimento com uma nova abordagem é atribuído, no século XX, ao psicólogo Jeanne Chall. (...) Já no século XIX, M. de Laffore lança uma proposta metodológica baseada no ensino do som da letra. Nesse momento, as propostas sintéticas já começam a coexistir com as analíticas, as quais estudaremos adiante (OÑATIVIA, 2009). 1.4 Métodos analíticos Segundo Oñativia (2009, p. 14), no final do século XIX e início do século XX, a psicologia genética influenciou apoiadores dos métodos analíticos, que se opõem aos métodos sintéticos, alegando que estes não levam em conta a psicologia da criança e acabam por se tornar mecânicos, artificiais e não funcionais. Já no século XVIII, Nicolas Adam lançava as bases desse novo método. “Sua metodologia propunha que se escrevessem palavras significativas para a criança em pedaços de papel de diferentes formatos.” Aos poucos, a criança se familiarizava com essas palavras, passando a escrevê-las formando frases. “Segundo Adam, a análise da palavra deveria ocorrer numa etapa bem posterior ao domínio das palavras apreendidas globalmente.” Posteriormente, outro apoiador dos métodos analíticos, Jacotot, sugere que essa análise de palavras comece de maneira mais precoce, fazendo surgir assim uma proposta mais eclética: o método analítico-sintético. As ideias de precursores como Adam e Jacotot necessitaram aguardar uma base teórica que desse fundamento a elas. É por isso que só serão colocadas em prática no século XX, com o auge da Psicologia da forma ou gestalt. 8 Decroly abandona a ideia da oralização, afirmando que a escrita é uma linguagem autônoma que remete diretamente ao sentido, sem a passagem obrigatória pelo oral. (...) Portanto, a aprendizagem da leitura é baseada no reconhecimento global de frases significativas para a criança, fase que deve durar o maior tempo possível (BARBOSA, 1994 apud OÑATIVIA, 2009). 1.5 Práticas alfabetizadoras na atualidade De acordo com Oñativia (2009, p. 14-15), Hoje, as práticas alfabetizadoras variam de acordo com os princípios teóricos e metodológicos que norteiam as propostas curriculares de cada país. Assim, por exemplo, na Itália, desde 1995, deixou-se de adotar apenas um método de ensino e passou a ser utilizada uma concepção chamada de natural, que trabalha simultaneamente com a instrução fônica e as técnicas visuais, além de levar em conta a experiência prática da criança. (...) Na Espanha, as escolas empregam vários métodos, entre eles o fônico, mas a proposta construtivista possui demarcada influência. No Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais, no que se refere à língua portuguesa têm como base a concepção construtivista. Antes de abordar o momento atual da alfabetização no Brasil, seria interessante apresentar um breve panorama histórico das metodologias de alfabetização neste país. Mortatti (2000) realiza um estudo do desenvolvimento das metodologias de alfabetização que abrange o período de 1876 a 1994 (OÑATIVIA, 2009). Vejamos quais são estes momentos. Num primeiro momento, tem destaque o embate entre os partidários do “método João de Deus” (baseado na palavração) e os partidários dos então tradicionais métodos sintéticos (soletração e silabação) em que se fundamentavam as primeiras cartilhas feitas por brasileiros. O método “João de Deus” passa a ser difundido no Brasil a partir do início da década de 1980 por Antonio da Silva Jardim, sendo apresentado como um método de base científica (OÑATIVIA, 2009). Num segundo momento, acontece grande polêmica entre os partidários de um e outro método. A Diretoria Geral de Instrução do Estado de São Paulo determinou a obrigatoriedade da adoção do método analítico nas escolas públicas. Em 1920 essa lei foi revogada, estabelecendo a liberdade de cátedra na opção do método de alfabetização. Foi a chamada Reforma Sampaio Dória. Num terceiro momento, a partir de 1920, defensores do método misto (analítico-sintético ou sintético-analítico) e partidários do método analítico 9 voltam a disputar a primazia dessas diferentes tendências, porém com uma propensão cada vez maior de relativizar a importância de cada método (...) (OÑATIVIA, 2009). O quarto momento, o mais próximo do atual, caracteriza-se pela emergência de uma “revolução conceitual”, aproximadamente no final da década de 1970. Emilia Ferreiro é quem a propõe e ela muda radicalmente o foco do processo, que estava colocado em quem ensina, para o sujeito que aprende, o sujeito cognoscente. Não se tratava de uma nova metodologia, mas sim de uma concepção pedagógica que parte do princípio de que o sujeito que aprende constrói conhecimento ao interagir com seu objeto de conhecimento. Portanto, em se tratando de leitura e escrita, o sujeito ao interagir com sua língua é capaz de “recriar” a escrita. “Tal concepção baseia-se na epistemologia genética de Jean Piaget (1896-1980) e passa a se denominar construtivismo” (OÑATIVIA, 2009). Segundo Mortatti (2000 apud Oñativia, 2009, p. 16), “Essas mudanças são resultado de uma intensificação dos estudos e pesquisas centrados na psicologia e, mais recentemente, na psicolinguística, na sociolinguística e na linguística”. Com base nesses estudos surgiram propostas didático-pedagógicas que procuram respeitar o processo de construção do conhecimento por parte da criança. Por outro lado, Atualmente, defensores do método fônico questionam a eficiência do construtivismo, baseando-se em detalhadas pesquisas experimentais que relacionam as cifras de analfabetismo no Brasil e os números correspondentes aos países desenvolvidos que adotaram o método fônico (OÑATIVIA, 2009, p. 16). Mas será que esta problemática brasileira pode ser atribuída apenas às práticas alfabetizadoras? Pensamos que as causas do analfabetismo no Brasil passam por outros contextos muito mais complexos da nossa realidade socioeconômica e cultural. De qualquer maneira, é importante analisar as ideias que subjazem nas práticas de alfabetização. Toda prática pedagógica não acontece de forma isolada. É evidente que por trás dela há sempre um conjunto de ideias que a sustenta, mesmo quando o professor não tem consciência dessas ideias, concepções e teorias, elas estão presentes (WEISZ, 1999). 10 É desta forma que Telma Weisz (1999) aborda esta temática colocando que para compreender a ação do professor é preciso analisá-la com o intuito de desvelar os seguintes aspectos: • Qual é a concepçãoque o professor tem do conteúdo que ele espera que o aluno aprenda? • Qual é a concepção que o professor tem do processo de aprendizagem? • Qual é a concepção que o professor tem de como deve ser o ensino? O empirismo é a teoria que historicamente mais vem influenciando as concepções sobre o que é ensinar, quem é o aluno e como ele aprende. O modelo de aprendizagem que se deriva desta teoria é conhecido como de “estímulo-resposta”. A aprendizagem então é entendida como a substituição de respostas erradas por respostas certas (WEISZ, 1999). Segundo Weisz (1999), a hipótese que subjaz a essa concepção é a de que o aluno precisa fixar informações das mais simples para as mais complexas. O modelo de cartilha, que na maioria das vezes responde ao método sintético, tem como base esta ideia. Qual seria então a concepção de língua escrita (conteúdo) que subjaz ao modelo de cartilhas? Elas trabalham com uma concepção de língua escrita como transcrição da fala. Em geral, apresentam palavras-chave e famílias silábicas usadas de forma exaustiva. Portanto, a função do material presente nas cartilhas é apenas a de ajudar o aluno a decodificar o sistema alfabético (WEISZ, 1999). Como se apresenta o texto, portanto, no modelo de cartilhas? Os textos nas cartilhas são um agregado de frases desconectadas. São textos artificiais e sem criatividade. E em relação ao processo de aprendizagem? Qual a concepção deste processo nas práticas que estamos analisando? Na concepção empirista, o conhecimento está fora do sujeito e será internalizado através dos sentidos. O aluno é como uma folha em 11 branco que será preenchida pelo professor. Paulo Freire referia-se a esta forma de ensinar como “educação bancária”. Portanto, o aprendiz vai juntando informações e supõe-se que em algum momento irá se produzir um “estalo” no processo de aprendizagem (WEISZ, 1999). Em relação ao processo de ensino, este é caracterizado por práticas que se sustentam na cópia, na escrita sob o ditado, na memorização, na mecânica da leitura. Qual seria uma saída para a mudança deste modelo? Segundo Weisz (1999), para mudar será necessário reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma teórico. Na perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real, ele pressupõe uma ação por parte de quem aprende sobre o objeto de conhecimento, neste caso a língua escrita, que organiza e integra os novos conhecimentos àqueles já existentes. Porém, Weisz (1999) chama a nossa atenção para os casos em que o professor procura inovar sua prática adotando um modelo de ensino construtivista sem compreender suficientemente as questões que o sustentam. Desta forma, termina mesclando em sua própria prática um modelo que lhe era familiar com outro pelo qual não tem muito domínio. Outra distorção destas práticas espontaneístas, é a de pensar que o professor não precisa intervir no processo de alfabetização ou intervir muito pouco, já que o sujeito por si só será quem irá construir o conhecimento (WEISZ, 1999). Weisz (1999) também nos chama a atenção para a complexidade dos conteúdos escolares e que, portanto, devem ser dados a conhecer aos alunos por inteiro. Se partirmos do princípio de que a língua escrita é complexa, ela deverá ser oferecida por inteiro para os alunos. Pensando assim caberá ao professor criar situações que permitam aos alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada, o sistema alfabético (WEISZ, 1999). 12 Levar o aluno a participar de situações sociais nas quais os textos reais são usados e ensinar a pensar sobre os usos e funcionamento da língua escrita deverão ser as principais metas de um professor alfabetizador (WEISZ, 1999). Podemos concluir, então, que num modelo empirista a informação é introjetada de fora. Num modelo construtivista, o aprendiz tem que transformar a informação para poder assimilá-la. Portanto, destas concepções derivam-se práticas diferentes. Conclusão A partir do que foi apresentado até agora, gostaríamos de refletir acerca da distância entre a prática e o discurso teórico. Em muitos casos, existe uma grande distância entre o que a escola declara fazer e o que de fato faz (OÑATIVIA, 2009). Muitas vezes adota-se uma determinada metodologia sem saber os princípios que a fundamentam, e ainda mais, sem saber ao certo como aplicá-la. Consideramos de suma importância que o professor alfabetizador seja antes de tudo um atento observador de seus alunos, identifique as necessidades deles e esteja familiarizado com a proposta a ser aplicada. Seja qual for ela, a pedra angular do processo é o uso de materiais e orientações estruturados e previamente elaborados. O educador deverá entender os fundamentos da proposta que aplica, ou seja, não apenas como aplicar, mas também por que e quando aplicar (OÑATIVIA, 2009). REFERÊNCIAS BARBOSA, J. J. Alfabetização e leitura. 2. ed. rev. São Paulo: Cortez, 1994. OÑATIVIA, A. C. Alfabetização em três propostas: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 2009. WEISZ, T. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 1999. 13 2 PSICOGÊNESE DA LECTO-ESCRITA Segundo Omodei e Martini (2016, p. 35), Por muito tempo, a principal preocupação dos pesquisadores na área da alfabetização girou em torno da técnica, procurando-se definir qual é a melhor e mais eficaz metodologia para alfabetizar. A partir da segunda metade do século XX, os estudiosos mudaram radicalmente o foco de suas pesquisas: deixaram de se perguntar qual é o melhor método para alfabetizar e começaram a se perguntar como pensa a criança que está aprendendo a ler e a escrever. Essa pergunta foi a porta de entrada para outras questões importantes. Questões estas como: o processo de aquisição da leitura e da escrita inicia-se com o ingresso da criança na escola? Ou a criança já traz conhecimentos sobre leitura e escrita quando ingressa na escola? Se ela traz conhecimentos consigo, que tipo de conhecimentos são esses? As habilidades consideradas pré-requisitos para o processo de alfabetização, tais como coordenação motora e discriminação auditiva, garantem por si só sucesso nesse processo? Ou existem outros aspectos que devem ser levados em conta? Em que momento o educador pode considerar que o aluno está alfabetizado: quando termina o conteúdo da cartilha e reconhece todas as letras do alfabeto ou quando é capaz de usar funcionalmente a escrita e consegue ler e interpretar textos? O que deve ser ensinado primeiro: a leitura ou a escrita? Ou esses processos podem ocorrer simultaneamente? Deve-se iniciar a escrita pela letra cursiva ou pela letra de forma? Ou ambas devem ser apresentadas simultaneamente? Essas são algumas de tantas questões que têm acometido e ainda acompanham o professor alfabetizador. Emilia Ferreiro e alguns colaboradores realizaram investigações científicas que demonstraram que a criança reconstrói o código linguístico pensando sobre o que a escrita representa e como ela se organiza. Com essas pesquisas, muitos dos questionamentos apresentados acima começaram a ser respondidos. 14 Neste bloco temos por objetivo discutir como ocorre o processo de construção do conhecimento sobre a escrita na criança, assim como oferecer direcionamentos para a intervenção neste processo. 2.1 Níveis de construção do sistema alfabético1 No processo de aprendizagem da leitura e da escrita, Fernandes e Hailer (1996) distinguem cinco níveis conceituais linguísticos: • Nível 1: pré-silábico (que se divide em fase pictórica, fase gráfica primitiva e fase pré-silábica propriamente dita). • Nível 2: intermediário I. • Nível 3: silábico. • Nível 4: intermediário II ousilábico-alfabético. • Nível 5: alfabético. A seguir, apresentaremos com mais detalhes cada um deles. Nível 1: pré-silábico Fase pictórica Assim como no caso do homem primitivo, o primeiro registro da criança é o desenho, inicialmente sem figuração (a garatuja ou os rabiscos que o professor do ensino infantil observa com tanta frequência). Falamos “sem figuração” porque inicialmente o traçado da criança é muito mais a expressão de um ato motor, de um gesto que se imprime no papel (VIGOTSKI, 1989). Inicialmente esses rabiscos são linhas retas em ziguezague ou em diferentes direções que aos poucos vão se fechando, tomando formas arredondadas, as conhecidas “bolinhas”, que futuramente representarão letras. (...) 1 Texto extraído do capítulo 2 do livro Alfabetização em três propostas: da teoria à prática de Ana Cecilia Oñativia, Editora Ática, 2009. p 27-32 15 Fase gráfica primitiva Nessa fase, a criança começa a diferenciar o ato de desenhar do ato de escrever. Mesmo não sabendo realizar a grafia correta das letras, ela realiza tentativas de aproximação da escrita, e em resultado produz pseudoletras, letras misturadas com números, rabiscos. A grande diferença em relação à fase anterior reside no fato de que, mesmo se tratando de rabiscos, eles têm uma intencionalidade bem definida: escrever. (...) Vejamos um exemplo de escrita nesta fase: Fase pré-silábica Na fase pré-silábica propriamente dita, a criança começa a diferenciar letras de números, desenhos ou símbolos e reconhece o papel das letras na escrita. Entende que elas servem para escrever, porém ainda não sabe como, e por isso apresenta algumas hipóteses sobre a escrita: • Percebe que o traçado segue uma linearidade, da esquerda para a direita e de cima para baixo. Já possui uma organização maior no espaço gráfico. • Usa letras do próprio nome ou de palavras que conhece de memória para arriscar suas hipóteses de escrita. • (...) • Tem uma leitura global; identifica a palavra como um todo sem fazer a análise dela. 16 • Relaciona as palavras que escreve com as características dos objetos que representam, porém sem atribuir ainda sua relação com o som. Essa característica é denominada realismo nominal. • (...) • Tem a concepção de que só é possível escrever com muitas letras (em geral mais de três ou quatro). (...) Seguem alguns exemplos de escrita da criança nesta fase: Nível 2: intermediário I Como em todo momento de transição, neste nível a criança começa a repensar suas hipóteses do nível pré-silábico e fica insegura, pois ainda não conseguiu descobrir a organização do sistema linguístico. Geralmente ocorre a negação da escrita, e surgem muitos questionamentos. (...) Neste nível, o alfabetizador começa a notar certa constância na escrita da criança, já que ela percebe algumas relações entre pronúncia e escrita, principalmente no que se refere a sons iniciais. Por exemplo, ela identifica a letra inicial de uma palavra e a escreve ou relaciona a letra do seu nome com a mesma de outros nomes ou palavras. (...) 17 Nível 3: silábico Este nível representa um grande avanço no processo de construção do sistema alfabético da escrita, já que é a partir deste momento que a criança realiza uma grande descoberta: a escrita representa a fala. De início, ela supõe que a forma de representação é silábica. É muito comum ouvir crianças dizendo que precisam escrever o número de letras que corresponde à quantidade de vezes que abriram a boca para falar. Isso confere uma sistemática à escrita da criança. Muitas vezes ela “conta” os pedaços sonoros antes de escrever. Outras vezes, principalmente no início desta fase, a criança não prevê a quantidade de letras que deve colocar na palavra, mas ao ler, como sua leitura já é silábica, percebe que sobram elementos e decide apagá-los ou riscá-los. (...) Outras características comuns deste nível são a escrita de uma letra para cada palavra nas frases e a falta de definição das categorias linguísticas (artigo, substantivo, verbo etc.). Nível 4: intermediário II ou silábico-alfabético Os conflitos cognitivos vivenciados no nível anterior levam a criança a repensar a lógica do nível silábico. Ninguém consegue ler o que ela escreve, e a escrita do adulto é diferente da sua. É o momento em que se torna necessário respeitar o valor sonoro, e a criança começa a acrescentar letras, principalmente na primeira sílaba. Exemplo: MACC (macaco), TIGE (tigre). (...) Sua leitura, como no nível anterior, é termo a termo, e não mais global. Neste momento, a criança encontra-se a um passo do nível alfabético, e é fundamental que o professor a leve a refletir sobre seus conflitos, repensando o sistema linguístico, comparando sua escrita com a escrita convencional e assim reconstruindo o código. 18 Nível 5: alfabético Nesse nível, a criança compreende a lógica da base alfabética da escrita e descobre que uma sílaba geralmente é grafada por mais de uma letra (em geral, duas ou três). Portanto, ela evolui significativamente no conhecimento do valor sonoro convencional de todas as letras – ou pelo menos de grande parte delas –, juntando-as para formar sílabas e palavras. No texto, a criança inicia a discriminação entre letra, sílaba, palavra e frase. É claro que, principalmente no começo, ainda não divide a frase de maneira convencional, mas sim de acordo com o ritmo. Por exemplo, a criança escreveria a seguinte frase: “Gostomuito daminha escola”. Assim, sua escrita é inicialmente fonétic,a e não ortográfica; ela escreve como fala, e não segundo as regras do sistema ortográfico. Já a sua leitura, que era termo a termo, passa aos poucos a adquirir característica lexical, isto é, a criança lê a palavra como um todo e gradativamente vai ganhando fluência, sobretudo nas palavras muito conhecidas, que já fazem parte de seu repertório. 2.2 Sondagem de leitura e escrita Esta avaliação inicial pode ser empregada com diferentes objetivos: • A avaliação de alunos com dificuldades de aprendizagem, para iniciar um trabalho de intervenção psicopedagógica; • Para identificar em que momento do processo de construção de leitura e escrita se encontram os alunos que iniciam o 1º ou 2º ano do ensino fundamental. Curto, Morillo e Teixidó (2000), no livro “Escrever e Ler”, apresentam uma proposta de avaliação completa e de fácil aplicação. Essa proposta se divide em dois grandes itens. 19 Avaliação inicial dos procedimentos de escrita A primeira parte desta avaliação é bastante conhecida pelos educadores, propõe-se que o aluno escreva, em primeiro lugar, seu nome. A seguir pede-se que escreva quatro nomes, em forma de lista (um debaixo do outro), pertencentes a um mesmo campo temático (animais, plantas, brinquedos, alimentos, etc.) Por último, uma frase simples que contenha um das quatro palavras anteriores. Após cada palavra escrita pela criança e após a frase solicita-se que leia, marcando com o dedo onde está lendo. É fundamental que o professor registre a forma em que a criança lê, já que isto influenciará na identificação do nível em que se encontra a criança. Procedimentos de escrita a partir do domínio da transcrição Textos memorizados Propõe-se à criança que escreva um texto, ou parte dele, que conheça de memória, com o objetivo de evitar a interferência de processos de construção do texto. Pode ser uma parlenda, letra de uma música etc. É preciso observar: • O alinhamento, a caligrafia e o manejo do lápis; • Separação de palavras, noções de ortografia; • Escrita do título, diferenciação ou não do texto. Reescrita de um texto conhecido Solicita-se que a criança escreva um fragmento de um conto infantil, previamente conhecido, com ou sem imagem de apoio. É preciso observar:• Como a criança organiza oralmente suas ideias; • Diferenciação entre formas próprias da linguagem oral e a estrutura da linguagem escrita; 20 • Formas específicas do texto narrativo; • Coloca título e o diferencia do corpo do texto. Avaliação inicial dos procedimentos de leitura. O que tem neste cartão serve para ler? Apresentam-se à criança diversos cartões com grafismos diferentes (palavras em cursiva, bastão, letras repetidas ou não, cartão em branco, pseudoletras, cifras etc.). Colocam-se os cartões misturados em cima da mesa e convida-se a criança a fazer duas pilhas: • Uma, com os cartões que servem para ler, ou que podem ser lidos; • Outra, com os cartões que não servem para ler, ou não podem ser lidos. O objetivo desta atividade é averiguar as ideias que a criança formula sobre a escrita, como interpreta os símbolos gráficos. Por isso, é importante anotar todas as justificativas dadas pela criança. Hipótese sobre o conteúdo do escrito Apresentar à criança uma folha com três ou quatro nomes próprios escritos, entre os quais esteja o nome dela. Será observado o tipo de leitura que realiza e lhe pediremos que aponte o seu nome. Interpretação de textos com imagens: usam-se quatro cartões com imagens que contenham texto, combinando imagem e texto. Procedimentos de leitura a partir da decifração Textos memorizados ou muito conhecidos Propõe-se a leitura de um texto, ou parte dele, que a criança saiba de cor (poema, parlenda etc.). Serão observados aspectos referentes à decodificação da escrita (conhecimento das letras e sua correspondência sonora, identificação de palavras ou determinados fragmentos etc.). 21 Textos desconhecidos Preferencialmente, se escolhe um texto curto, narrativo, adequado à idade da criança. Será observada a qualidade da decifração, a capacidade de integração do significado de cada palavra, capacidade de inferir o significado de cada palavra, identificação da estrutura do texto. Após a identificação do nível em que o aluno se encontra é importante saber quando e como intervir de modo adequado para que ele possa passar qualitativamente de um nível para outro. É sobre isso que trataremos a seguir, fazendo referência aos principais níveis de construção da escrita. 2.3 Didática do nível pré-silábico2 Neste nível existem alguns importantes desafios para a criança: • Reconhecer a escrita como uma representação diferente do desenho e identificar que a leitura de palavras se realiza com base nos caracteres gráficos e não dos desenhos. • Descobrir o significado dos sinais escritos e o que eles representam. • Superar o realismo nominal, isto é, descobrir que o “tamanho da palavra” (quantidade de letras) não está diretamente ligado ao tamanho ou às características do objeto que representa, mas sim aos sons que a palavra representa. • Distinguir categorias linguísticas, ou seja, letras, palavras, frases e textos. De acordo com a proposta de Esther Grossi (1990), abordaremos algumas estratégias que o alfabetizador pode seguir no nível pré-silábico, em três instâncias: letras, palavras e textos. 2 Texto extraído do capítulo 3 do livro Alfabetização em três propostas: da teoria à prática de Ana Cecilia Oñativia, Editora Ática, 2009. p 33-35 22 1. Letras • (...) • Realize atividades que permitam a análise dos aspectos topológicos das letras: pode-se cobri-las com barbante a fim de perceber espaços abertos e fechados, linhas curvas e retas; pode-se também passar o dedo em letras confeccionadas com lixa e outros materiais que se destaquem no papel. • (...) • Introduza aspectos sonoros por meio da percepção de rimas e sons iniciais. 2. Palavras • Relacione os objetos ou as imagens à representação do nome (palavras). • (...) • Propicie a análise das palavras, mas não de forma silábica, e sim em relação às suas letras iniciais, finais, número e variedade de letras e ordem em que aparecem. • (...) Textos • Vincule o discurso oral ao texto escrito; para isso, é muito útil que o professor leia para seus alunos, que os alunos “imaginem” o que está escrito, com base em figuras, acompanhem uma poesia, música ou parlenda escrita à medida que a ouvem, entre outras atividades. • (...) 23 2.4 Didática do nível silábico3 A seguir, apresentamos algumas estratégias possíveis para o professor do nível silábico: 1. Letras • Estabeleça uma relação entre as letras e os sons que elas representam. Essa análise deverá acontecer espontaneamente e dentro de contextos significativos. Em geral, o aluno começa a identificar os sons iniciais das palavras. 2. Palavras • Proporcione a identificação do som das letras por meio da análise da sílaba inicial das palavras. • Contraste as palavras que o aluno escreve com base na memória ou lê globalmente e a sua escrita silábica; classifique conjuntos de palavras segundo o número de letras; segmente oralmente as palavras em sílabas; troque oralmente o lugar das sílabas nas palavras. 3. Textos • Dê continuidade ao trabalho com diferentes portadores de texto. • (...) 2.5 Didática do nível alfabético4 Neste nível, a criança por fim compreende que cada um dos grafemas corresponde a valores sonoros menores que a sílaba. Ela conhece o valor sonoro de todas – ou quase todas – as letras; entretanto enfrentará ainda alguns desafios (...): 3 Texto extraído do capítulo 3 do livro Alfabetização em três propostas: da teoria à prática de Ana Cecilia Oñativia, Editora Ática, 2009.p 33-35 4 Idem. p 33-5 24 • Aprender as convenções ortográficas. • Entender que às vezes falamos de um jeito e escrevemos de outro. • Separar as palavras numa frase. • Entender a diferença entre letras, sílabas e frases. Conclusão É importante pensar que atualmente, em virtude de fatores sociais, econômicos e culturais, em muitas sociedades a criança ingressa cada vez mais cedo na escola e no “mundo letrado”. Atualmente a escrita está presente em grande parte de nossas atividades do cotidiano e acaba ultrapassando os muros escolares. Para darmos conta de muitas tarefas, apropriamo-nos dela nas suas mais diversas formas e meios: cartazes, televisão, jornais, produtos de consumo etc., e a isso chamamos mundo letrado. De acordo com Oñativia (2009), esse fator nos leva a repensar as práticas de alfabetização. Segundo a postura socioconstrutivista, a alfabetização é um processo de interação com a língua escrita em que o grande desafio não é apenas decodificar, mas também compreender os usos sociais da escrita. Um ser alfabetizado é aquele capaz de utilizar a escrita como um instrumento que lhe permite sugerir, pensar, apreciar, se comunicar, ou seja, entrar na cultura escrita e ser membro de pleno direito. REFERÊNCIAS CURTO, L. M.; MORILLO, M. M. e TEIXIDÓ, M.M. Escrever e ler: como as crianças aprendem e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler. Tradução de Ernani Rosa; Supervisão e revisão técnica da tradução: Ana Maria Netto Machado. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. Vol. 1 GROSSI, E. P. Didática da Alfabetização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Vols. 1, 2 e 3. 25 OMODEI J. D.; MARTINI A. B. O processo de alfabetização e letramento praticado pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental. Revista Conteúdo, Capivari, v.11, n.1, jul./dez. 2016. Disponível em: <http://tiny.cc/r7aa6y>. Acesso em: 5 maio 2019. OÑATIVIA, A. C. Alfabetização em três propostas: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 2009. 26 3 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO No bloco 1 fizemos uma apresentação do caminho percorrido pelas práticas alfabetizadoras ao longo da história no mundo e no Brasil. Como foi possívelobservar, de acordo com Soares (2011, p. 96), nos deparamos com sucessivas mudanças conceituais e, consequentemente, metodológicas. Atualmente parece que de novo estamos enfrentando um desses momentos de mudança (...): pesquisas que têm identificado problemas nos (...) resultados da alfabetização de crianças no contexto escolar (...). Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque estimula a revisão dos caminhos já trilhados e a busca de novos caminhos, mas é também ameaçador, porque pode conduzir a uma rejeição simplista dos caminhos trilhados e a propostas de solução que representem desvios para indesejáveis descaminhos. A autora encontra possíveis explicações para os caminhos e descaminhos que vimos percorrendo na área da alfabetização na relação entre os conceitos de alfabetização e letramento. Daí a importância de abordá-los. Portanto, temos como objetivo neste bloco abordar os conceitos de alfabetização e letramento, bem como a necessidade de uma formação continuada para professores alfabetizadores competentes. Também buscamos uma compreensão da leitura e escrita como competências de desenvolvimento social e intelectual. 3.1 Escrita, alfabetização e letramento Quando falamos de escrita estamos nos referindo a um objeto de estudo e ao mesmo tempo a um produto cultural que não é adquirido de forma espontânea, mas pelo contrário, exige um esforço sistemático e direcionado. Daí que falar em escrita nos conduz necessariamente a falar em alfabetização que pode ser entendida como o processo pelo qual se adquire o sistema convencional de escrita. Já o letramento refere-se ao conjunto de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e escrita em práticas sociais. Segundo Soares (2011, p. 97), “distinguem-se tanto em relação aos objetos de conhecimento, quanto em relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem e, portanto, também de ensino desses diferentes 27 objetos”. Vale ressaltar que, embora distintos, estes processos são interdependentes e indissociáveis. De acordo com o que já estudamos no bloco 1, podemos dizer que até os anos 80 a alfabetização escolar no Brasil buscava em primeiro lugar ensinar o código da língua escrita, para só depois desta etapa ensinar a ler textos e escrever com autonomia. A influência do construtivismo no processo de alfabetização nos faz rever estes conceitos diluindo a distinção entre aprendizagem do código alfabético e as práticas efetivas de leitura e escrita. Segundo a proposta construtivista, a criança, quando se alfabetiza, já se encontra em um contexto letrado. Portanto, a tarefa de alfabetização deve acontecer levando-se em conta esse contexto e oferecendo ferramentas para que a criança se aproprie dessas práticas com o uso de materiais reais de leitura e escrita. Segundo Soares (2011), a aplicação da teoria construtivista para alfabetização trouxe um equívoco entre os professores, já que ao enfatizar os (...) processos espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita (...), os professores foram levados a supor que (...) as relações entre a fala e a escrita seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como decorrência natural de sua interação com inúmeras e variadas práticas de leitura e de escrita, ou seja, através de atividades de letramento, prevalecendo, pois, estas sobre as atividades de alfabetização. Tentou-se corrigir o problema dos métodos tradicionais que enfatizavam a mecânica da escrita, ressaltando-se o processo de letramento e relevando-se o ensino sistemático da correspondência entre as letras e seus respectivos sons. Possivelmente isto explique, segundo Soares (2011), o fato de virem “surgindo (...) propostas de retorno a um método fônico como solução para os problemas que estamos enfrentando” no processo de alfabetização. Qual seria então a solução deste problema? Acreditamos que considerar ambos os processos, o de ensino do código escrito, sem desmerecer a sua importância, isto é, a alfabetização, e o de letramento. Ambos processos devem caminhar juntos. A criança deve ser alfabetizada, construir 28 seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações de letramento, isto é, no contexto de e por meio de interação com material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de escrita (...) (SOARES, 2011). O caminho para a superação dos problemas que estamos enfrentando, todas as facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita devem se articular e integrar. Isto significa que devemos alfabetizar letrando ou letrar alfabetizando (SOARES, 2011). 3.2 Ambiente alfabetizador e agrupamentos produtivos De acordo com Lima e Dantas (2013), o processo de alfabetização não se resume na aplicação de uma determinada metodologia. Mesmo quando direcionada a um grupo, cada aluno apresentará suas necessidades e uma modalidade própria para aprender, apresentando novos desafios para o educador. Emília Ferreiro, discípula de Piaget e seguindo seus ensinamentos, considera o processo de aquisição da leitura como um processo de construção de conhecimento sobre a escrita por parte do aluno. Desta forma, muda o foco, que tradicionalmente era colocado no educador, para colocá-lo no aluno. Segundo Piaget, o conhecimento não é transmitido, nem se deposita unidirecionalmente do adulto para a criança; pelo contrário, o conhecimento é construído na interação com o objeto de conhecimento. Emilia Ferreiro dirá, então, que a criança recria o código linguístico na medida em que interage com esse objeto de conhecimento que é a língua escrita. É como se ela fizesse uma “redescoberta” da escrita. É importante nos determos nesses conceitos: “reconstruir” e “recriar”. O prefixo “re”, nesses casos, refere-se a algo como “retorno” ou “voltar a fazer”. Portanto, não se trata de uma construção nova e original, mas sim de se apropriar de um produto cultural já existente antes mesmo da criança, que tem suas próprias regras. É nesse processo de apropriação que a criança percorre um caminho similar ao seguido pela humanidade na sua engenhosa obra de criação do código da língua escrita. Isso implica que quem já adquiriu o dito código – no caso, o professor alfabetizador – deverá intervir nesse processo, possibilitando que o aluno se aproprie do código, refletindo, 29 criando hipóteses, errando, refazendo e entrando em conflito para sentir-se impulsionado em busca de uma solução. Por outro lado, se faz necessário pensar que atualmente, em virtude de fatores sociais, econômicos e culturais, em muitas sociedades a criança ingressa cada vez mais cedo na escola e no “mundo letrado”. Atualmente, a escrita está presente em grande parte de nossas atividades do cotidiano e acaba ultrapassando os muros escolares. Para darmos conta de muitas tarefas, apropriamo-nos dela nas suas mais diversas formas e meios: cartazes, televisão, jornais, produtos de consumo etc., e a isso chamamos mundo letrado. Esse fator nos leva a repensar as práticas de alfabetização. Afinal, o que devemos fazer com o conhecimento que a criança traz para a sala de aula? De forma alguma eles podem ser ignorados, pois são o ponto de partida para o processo sistemático de alfabetização. Mas o que se entende por “alfabetizar”? Segundo a postura socioconstrutivista, a alfabetização é um processo de interação com a língua escrita em que o grande desafio não é apenas decodificar, mas também compreender os usos sociais da escrita. Um ser alfabetizado é aquele capaz de utilizar a escrita como um instrumento que lhe permite sugerir, pensar, apreciar, se comunicar, ou seja, entrar na cultura escrita e ser membro de pleno direito. Esta concepção nosindica que o que chamamos de “ambiente alfabetizador” não se reduz apenas ao ambiente escolar. A partir do momento em que a criança faz parte de um ambiente letrado, todo ambiente é alfabetizador, desde os livros e jornais que podem circular na sua família até os outdoors da rua, sem falar das mídias eletrônicas. Portanto, o professor deverá saber como aproveitar esses contextos e levá-los para a sala de aula e também saber usar os espaços externos à sala para alfabetizar. No atual cenário educacional, tem sido um grande desafio alfabetizar alunos proporcionando uma atenção individualizada e de qualidade. Em muitos casos, nos deparamos com salas de aula muito heterogêneas e muito numerosas. Existem estudos que demonstram que uma alternativa muito eficiente é a de trabalhar com agrupamentos produtivos. Vejamos então o que vem a ser isso. 30 Um agrupamento produtivo é formado por alunos que possuem níveis diferentes em relação a um determinado assunto, mas que são capazes de contribuir uns com os outros. O grande segredo não é apenas saber formá-lo, mas, sobretudo, saber realizar uma correta mediação pedagógica. Segundo Santos, Girotto e Gonçalves (2017), o agrupamento é de grande valor, “tanto para o parceiro mais experiente quanto para o menos, pois, no processo de alfabetização, é por meio das trocas de experiências e da reflexão sobre os objetos” de conhecimento que o desenvolvimento cognitivo acontece plenamente. Ainda de acordo com estes autores (2017), Para ter um bom aproveitamento no uso dos agrupamentos produtivos, primeiramente se faz necessária uma sondagem, ou seja, uma avaliação diagnóstica para saber em que hipótese se encontra cada um dos alunos. (...) Quando se trata de agrupamentos produtivos, devem-se levar em consideração alguns aspectos importantes, como: as duplas não podem nem devem ser feitas aleatoriamente. É importante que se unam as crianças em hipóteses diferentes, porém próximas entre si, como as exemplificadas a seguir: • As de hipótese pré-silábica com as de hipótese silábica sem valor sonoro. • As de hipótese silábica sem valor com as de hipótese silábica com valor. • As de hipótese silábica com valor com as de hipótese silábico-alfabética. • As de hipótese silábico-alfabética com os alfabéticos ou alfabéticos trabalhando entre si. Crianças em hipóteses muito diferentes acabam reproduzindo o ensino do método tradicional, no qual alguém que sabe mais transmite ao outro que sabe menos, este último acaba apenas recebendo o conhecimento, sem ser levado em consideração aquilo que já sabia anteriormente; daí a importância de hipóteses próximas entre si. Como falamos anteriormente, é fundamental a mediação que o professor realiza dentro destes agrupamentos. O sucesso do trabalho vai depender dela tendo como princípio metodológico a resolução de problemas que desafiem os alunos, mas sempre dentro das possibilidades deles. Os educandos precisam de atividades que gerem um conflito cognitivo e que desestruturem conhecimentos prévios, pois nos grupos produtivos haverá alunos com diferentes hipóteses de escrita, abrindo-se um espaço 31 para o questionamento e a revisão destas hipóteses (SANTOS; GIROTTO; GONÇALVES, 2017). O trabalho com os agrupamentos produtivos é realmente eficiente quando aliado a um bom planejamento. É visível a evolução das crianças no processo de alfabetização em um curto período de tempo, pois ao discutir com o amigo e trocar informações, elas estão contribuindo para as suas concepções cognitivas (SANTOS; GIROTTO; GONÇALVES, 2017). 3.3 Perspectivas históricas e a-históricas do letramento Neste tópico vamos acompanhar os conceitos apresentados por Leda Tfouni (1994) no que diz respeito ao conceito de letramento. A autora realiza uma análise muito pertinente em relação à representação social do conceito de letramento nos diferentes contextos em que ele é utilizado. A autora ressalta que não existe uma ideia unificada e fechada do que seja letramento. As múltiplas interpretações deste termo têm levado a interpretações errôneas deste conceito na prática. Por este motivo Tfouni fala do conceito de letramento dentro de duas perspectivas, a histórica e a- histórica. Na perspectiva a-histórica o conceito de letramento é usado como sinônimo do conceito de alfabetização. Vejamos o que Tfouni diz a respeito: (...) letramento, para mim, é um processo, cuja natureza é sócio-histórica. Pretendo, com esta colocação, opor-me a outras concepções de letramento atualmente em uso, que não são nem processuais, nem históricas, ou então adotam uma posição "fraca" quanto á sua opção processual e histórica. Refiro-me a trabalhos nos quais, muitas vezes, encontra-se a palavra letramento usada como sinônimo de alfabetização (TFOUNI, 1994). Dentro desta posição, a autora destaca três perspectivas: na primeira que denomina de individualista-restritiva, o conceito de letramento fica atrelado exclusivamente à aquisição da leitura e escrita enquanto código; a segunda que denomina de tecnológica, concebe letramento enquanto produto, com seus usos em contextos altamente sofisticados, trazendo uma visão positiva dos usos da leitura/escrita, relacionando-os com o progresso da civilização. Já a terceira perspectiva, a cognitivista, 32 toma a criança como responsável central pelo processo de aquisição da leitura e escrita, ignorando as origens sociais e culturais do letramento (TFOUNI, 1994). Contudo, Tfouni (1994) destaca que seja qual for a perspectiva, “a ênfase é sempre colocada nas ’práticas’, ’habilidades’, ’conhecimento’, voltados sempre para a codificação/decodificação de textos escritos. Ou seja, existe aí uma superposição entre letramento e alfabetização”. Na perspectiva histórica de letramento, a autora estabelece uma relação dialética entre letramento e autoria do discurso. Sendo que ao se referir a discurso, engloba tanto o discurso escrito como o oral. Portanto, pode haver características da oralidade no discurso escrito, como traços do discurso escrito na oralidade. Esta perspectiva nos leva a conceber o letramento como um processo muito mais amplo que o de alfabetização, iniciando-se antes da aquisição formal da leitura e escrita e perdurando perante toda a vida de um indivíduo. Sendo assim, podemos considerar letrada uma pessoa não alfabetizada ou aquela pessoa alfabetizada, mas com um baixo nível de escolaridade. A dimensão histórica do letramento está relacionada ao conceito de autoria do discurso, percebendo-se o autor como sujeito do discurso, aquele que é capaz de produzir, seja de forma oral ou escrita, seu próprio discurso de forma autônoma e dinâmica. Consequentemente, para Tfouni (1994), “a dimensão histórica do letramento só se dará se o sujeito ocupar uma posição tal no interdiscurso [interação com o outro] que lhe possibilite organizar o intradiscurso (oral ou escrito) que está produzindo, de forma a produzir um texto”. 3.4 Trajetória de formação para professores alfabetizadores competentes Faremos referência aqui à formação continuada dos professores alfabetizadores da rede pública, que atuam nas séries iniciais. De acordo com os Referenciais para a Formação dos Professores, Os anos 80 foram tempos de reformas educativas em vários países do mundo: as exigências sociais por uma educação de melhor qualidade começavam a impulsionar um ciclo de mudanças. No Brasil, esse período 33 caracterizou-se pela organização de movimentos de educadores e pela discussão sobre a formação de professores (BRASIL, 1999). Documentos oficiais e acadêmicos consolidaram algumas condições para garantir uma prática de qualidade na função docente. Desta forma, conforme explicitado nos Referenciais para a Formação dos Professores (BRASIL, 1999), uma prática educativa escolar de qualidade devia se compor de Projeto Político Pedagógico(PPP) construído coletivamente pelos diversos segmentos da escola; organização institucional de funcionamento eficaz e flexível; equipe escolar estável; incentivo da direção ao projeto educativo; formação inicial de educadores de qualidade; desenvolvimento de ações de educação continuada internas e externas sistemáticas, entre outras condições. Contraditoriamente, no Brasil, A década de 80 foi marcada, por um lado, pelo crescente achatamento dos salários dos profissionais da educação – uma vez que não havia recomposição frente a uma inflação muito alta – e, por outro, por índices alarmantes de fracasso escolar no ensino fundamental – traduzidos em percentuais de repetência e evasão inaceitáveis. (...) No que se refere à formação de professores, a proposta dos CEFAMs [Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério] foi uma iniciativa muito importante, que vem conseguindo se manter com certa dificuldade ao longo do tempo e merece ser destacada. Surgiu a partir de encontros realizados em 1982 entre o Ministério da Educação e um conjunto de instituições que tinham, na época, a finalidade de elaborar uma proposta de ação integrada do MEC para a formação de professores de 1º grau. Pretendia-se criar um tipo de escola de formação de professores que pudesse promover atualização e aperfeiçoamento dos profissionais da educação, desenvolver práticas inovadoras e pesquisa, formar professores leigos, atuar como agente de mudanças. (...) A entrada nos anos 90 também foi marcado por uma enorme desvalorização profissional do magistério – principalmente em função de salários muito baixos – e pela consequente luta dos profissionais da educação por melhores condições de trabalho e salário. Ao mesmo tempo, foi marcada pelo clima de uma Constituição recém-promulgada, que incorporou em seus princípios a valorização do magistério – consenso que se formou nas lutas da década anterior –, e pela Declaração Mundial de Educação para Todos (Jomtien, Tailândia/1990), compromisso internacional firmado por inúmeros países, inclusive o Brasil, que previa a melhoria urgente "das condições de trabalho e da situação social do pessoal docente, elementos decisivos no sentido de se implementar a educação para todos". Indicava, ainda, a necessidade de medidas em relação à formação continuada, profissão, carreira e salário, ética profissional, direitos e obrigações, seguridade social e condições mínimas para um exercício docente eficaz. Entretanto, os princípios explicitados na constituição não foram implementados e, quanto 34 à Declaração de Jomtien, no Brasil, em nenhum aspecto recebeu a atenção merecida tão logo veio a público (BRASIL, 1999). A formação continuada, de acordo com os Referenciais para formação de professores, é necessidade intrínseca para os profissionais da educação escolar e faz parte de um processo permanente de desenvolvimento profissional que deve ser assegurado a todos. A formação continuada deve propiciar atualizações, aprofundamento das temáticas educacionais e apoiar-se numa reflexão sobre a prática educativa, promovendo um processo constante de autoavaliação que oriente a construção contínua de competências profissionais. Porém, um processo de reflexão exige predisposição a um questionamento crítico da intervenção educativa e uma análise da prática na perspectiva de seus pressupostos. Isso supõe que a formação continuada estenda-se às capacidades e atitudes e problematiza os valores e as concepções de cada professor e da equipe (BRASIL, 1999). Os programas de formação continuada oferecidos aos professores devem ser readequados a cada realidade escolar, já que é este espaço o locus privilegiado de formação. Por outro lado, a formação continuada oferecida aos professores alfabetizadores deve abranger a equipe escolar como um todo, já que se trata de um projeto pedagógico que deve ser construído coletivamente, inclusive com a participação da comunidade. 3.5 A leitura e a escrita como competências de desenvolvimento social e intelectual Segundo Vygotsky (1998), o domínio de relações como a escrita nasce nas relações com o outro, por conta de nascermos em um mundo letrado. Além do registro da fala, a escrita nos possibilita expressar ideias, conceitos e concepções de mundo que revelam as representações que as pessoas fazem do seu cotidiano. É através da escrita que nos adaptamos às exigências de uma sociedade complexa. A escrita preexiste ao nascimento de uma criança, pois é um produto cultural, portanto quando uma criança nasce já se encontra em um ambiente mediado pela escrita. Para se ter pleno acesso à cultura, precisamos nos apropriar da escrita. Ela se apresenta como um pré-requisito para usufruir dos inúmeros recursos que a sociedade nos oferece. Atualmente, se faz muito difícil conviver numa sociedade letrada e complexa como a nossa sem ter tido acesso à aquisição desta ferramenta de fundamental importância. Um adulto analfabeto terá, consequentemente, sérias dificuldades para se adaptar às exigências sociais. Este fato é tão significativo que 35 mesmo o adulto analfabeto termina adquirindo certo grau de letramento que lhe possibilita conviver neste mundo permeado pela escrita. A escrita não apenas nos possibilita a melhor adaptação às exigências sociais, mas também atua como um poderoso instrumento que potencializa o pensamento. A escrita, enquanto segunda expressão da linguagem oral, a supera, a ultrapassa e a retroalimenta. (...) (...) ler e escrever é um fato cultural, isto é, um fato que envolve, de um lado, uma atividade sistemática de ensino-aprendizagem e, de outro, um esforço voluntário e uma motivação gnósica especial do aprendiz. (...) a aprendizagem da leitura e da escrita implica dois elementos imprescindíveis: interação social e motivação pessoal, já que a criança deve aprender a postergar seus impulsos imediatos e desenvolver atividades que são organizadas pelo professor em uma sequência temporal mais longa. Oñativia (1983) (...) [aponta] que a linguagem coloquial e prática, de estrutura gramatical simples, comprometida com os níveis gestuais e analógicos da comunicação, desenvolve-se desde muito cedo, quando se inicia o período simbólico e representativo da percepção. Com a influência do código linguístico social (ou seja, um idioma), que responde a níveis socioculturais de maior organização e diferenciação sintática e semântica, a linguagem vai se aperfeiçoando progressivamente. Um dos mecanismos desse aperfeiçoamento é a aquisição da linguagem escrita, já que esta retroalimenta a linguagem oral, reforçando-a e enriquecendo-a por novos modelos morfossintáticos. Assim, a diferença entre fala e escrita não consiste simplesmente na forma de acesso a cada uma delas (a primeira pelo ouvido; a segunda pela visão e pela motricidade). Há um grande salto evolutivo entre a linguagem oral e a escrita, apesar de existir entre ambas uma mútua influência sociocultural (OÑATIVIA, 2009). Conclusão Alfabetização e letramento são conceitos diferentes, porém intrinsecamente relacionados. Compreender essa relação dialética entre estes processos muda completamente nosso entendimento da prática alfabetizadora. Alfabetizar letrando e letrar alfabetizando, conforme Soares (2011) aponta, implica numa visão muito mais ampla do que se entende por alfabetizar. Introduzir o aluno no universo das letras é muito mais que ensinar um código, implica inseri-lo num universo de representação, já que a escrita, além de representar os sons da fala, representa ideias, conceitos, enfim, pensamentos. 36 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. Referenciais para formação de Professores. Brasília: MEC/SEF, 1999. Disponível em: <https://bit.ly/2Ulc1oC>. Acesso em: 5 abr. 2019. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Programa de Formação de ProfessoresAlfabetizadores – Documento de Apresentação. Brasília: MEC/SEF, 2001. Disponível em: <http://tiny.cc/m15o6y>. Acesso em: 5 maio 2019. LIMA, A.L. de S.; DANTAS, C.V. Alfabetização e letramento: um estudo de caso nos primeiros anos do ensino fundamental na escola pública de Jandira. E-FACEQ, ano 2, n. 2, ago. 2013. Disponível em: <http://tiny.cc/gi2o6y>. Acesso em: 4 maio 2019. OÑATIVIA, A. C. O método integral e a alfabetização de crianças com necessidades educativas especiais. Blog Método Integral com cartelas pictográficas "Dr. Oscar Oñativia", 2013. Disponível em: <http://tiny.cc/7yyo6y>. Acesso em: 5 maio 2019. ______. Alfabetização em três propostas: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 2009. OÑATIVIA, O. V. Fundamentos psicológicos de los procesos de alfabetización. Revista del Instituto de Investigaciones Educativas, Buenos Aires, n. 40, p. 19-36, 1983. SANTOS, C.L. dos; GIROTTO, N.; GONÇALVES, P. R. Os agrupamentos produtivos nos processos de alfabetização e letramento. Ensaios & Diálogos, Rio Claro, v. 10, n. 1, p. 133-154, jan./dez. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2TXarVc>. Acesso em: 5 abr. 2019. SOARES, M. B. Alfabetização e letramento: caminhos e descaminhos. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Pró-Reitoria de Graduação. Caderno de formação: formação de professores: didática dos conteúdos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Vol. 2 (Curso de Pedagogia). Disponível em: <https://bit.ly/2VqdjeK>. Acesso em: 5 abr. 2019. TFOUNI, L.V. Perspectivas históricas e a-históricas do letramento. Cad. Est. Ling., Campinas, n. 26, p. 49-62, jan./jun. 1994. Disponível em: <http://tiny.cc/0sjp6y>. Acesso em: 14 maio 2019. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 6. ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. 37 4 PROCESSOS ENVOLVIDOS NO ATO DE LER E ESCREVER 4.1 Bases neurológicas do desenvolvimento da linguagem: a leitura como uma função cerebral global Neste tópico vamos analisar o processo de leitura e escrita do ponto de vista neurológico. Estudos científicos demonstram que a leitura implica um processamento cerebral global. Leitura bem sucedida requer integração dos dois modos de processamento simbólico acessíveis à mente humana. Desde muito tempo, esses dois modos têm sido dicotomizados como “lógica e intuição”, “análise e síntese”, “mecanização e criatividade”. Todavia, os cientistas têm provado, recentemente, que cada hemisfério funciona diferentemente, de um ou do outro modo, porém eles se integram e complementam. Este enorme avanço em conhecimento sobre o funcionamento cerebral tem afetado as teorias sobre pensamento e aprendizagem. Alguns educadores reconhecem que nossas escolas enfatizam o processamento do hemisfério esquerdo, enquanto o direito fica subdesenvolvido. Guiados por descobertas neurológicas, estes educadores estão revendo métodos de leitura, principalmente para trabalhar com alunos que apresentam dificuldades ou distúrbios de leitura. Embora as duas metades do cérebro sejam especializadas para diferentes funções cognitivas, o uso contínuo de um hemisfério ou de outro pode habituar pessoas ao pensamento “esquerdo” ou “direito”. Se as pessoas são ensinadas a utilizar habitualmente apenas um tipo de habilidades (as do hemisfério esquerdo, por exemplo) sua capacidade para escolher a resposta mais adequada e eficiente se torna diminuída. Todas as crianças aproveitariam um currículo equilibrado, mas as crianças com preferência para o hemisfério direito são especialmente prejudicadas em nossas escolas. 38 A especialização hemisférica não linguística pode ser resumida rapidamente aqui, apesar de que os dados sejam extensos. O hemisfério esquerdo está preocupado com detalhes, mas falha na organização coerente, enquanto o hemisfério direito apreende características globais, mas ignora detalhes. Para ilustrar, o hemisfério esquerdo distingue olhos, nariz, boca, como aspectos importantes do rosto, cada um com sua significação. O hemisfério direito, entretanto, reconhece rostos familiares e não familiares, uma distinção que o hemisfério esquerdo não consegue fazer. O hemisfério direito é superior para percepções visuais, auditivas e cinestésicas não ligadas à linguagem. O hemisfério esquerdo reconhece sons linguísticos e símbolos. Um número de experimentadores descobriu que o uso de imagens pode estimular a compreensão do vocabulário e a aprendizagem. As imagens geradas internamente pelas crianças garantem a evocação do vocabulário. Usar figuras e encorajar elaboração de imagens mentais possibilita ao professor a estimulação do processamento do cérebro direito. Quando as crianças aprendem a elaborar pictogramas para palavras novas, para novos conceitos e histórias, a compreensão e a evocação podem se desenvolver muito. A teoria generativa de cognição oferece uma explicação parcial de por que a visualização ajuda as crianças a aprender a ler. O processamento generativo capacita o ser humano a completar figuras ou sentenças de acordo com expectativas. Na medida em que os professores se tornam mais e mais familiares com os modos cognitivos duais do cérebro humano, estratégias mais e mais efetivas serão desenvolvidas, ao fim de capacitar os alunos a responder holisticamente à leitura. Como outras atividades simbólicas complexas, a leitura exige a participação de ambos os hemisférios. Avaliação e integração de ambos os modos cognitivos elevarão os alunos, de “alunos que leem” a “leitores”. 39 4.2 O papel das funções executivas na aprendizagem da leitura e escrita De acordo com Fonseca (2017), para se adaptar às exigências da sociedade pós- moderna, as pessoas precisam desenvolver um conjunto de habilidades cognitivas para se transformarem em indivíduos ágeis, resolutivos e criativos. Como estimular então em nossos alunos a empatia, o raciocínio e a proficiência da leitura e escrita? Segundo Fonseca (2017, p. 44), “transpor nossos conhecimentos do nível de linguagem oral para o de escrita é um dos marcos de maior complexidade cognitiva da vida de todas as pessoas”. Vamos então entender como as funções executivas podem ser aproveitadas a favor da aprendizagem da leitura e escrita. Iniciaremos então conceitualizando essas funções. Fonseca (2017, p. 44) afirma que Funções Executivas (FE) são habilidades cognitivas exigidas em “tarefas de supervisão, coordenação, revisão e organização de pensamentos, emoções e comportamentos em busca do alcance de um ou mais objetivos, exigindo que nos adaptemos a fatores internos ou externos (...)”. As funções executivas são acionadas quando precisamos sair do nosso padrão de funcionamento, isto é, quando não podemos mais agir de forma mecânica. Fonseca (2017, p. 44) traz algumas metáforas para ilustrar o que entendemos por funções executivas: “maestro de uma orquestra”, “líder de uma empresa”, “controlador de tráfego aéreo”. Vejamos então a comparação que a autora estabelece entre as FE e uma caixa d’água: A água da caixa (...) deve ser distribuída por várias torneiras e chuveiro(s) de uma residência. Quanto maior a demanda de água, ou seja, quanto mais torneiras (...) e chuveiros estiverem sendo utilizados ao mesmo tempo, mais a caixa d’água enche; no entanto, temos de respeitar o limite de uso simultâneo para essa mesma caixa d’água ter tempo hábil de voltar a encher. As FE seriam, neste caso, nosso distribuidor de água, isto é, de energia cognitiva para as tarefas mais novas e complexas executadas ao mesmo tempo no nosso dia a dia. Recentemente tem se destacado três componentes principais das FE: a memória de 40 trabalho, o controle inibitório e a flexibilidade cognitiva. Vejamos separadamente cada uma delas (FONSECA, 2017). A memória de trabalho nos permite executar duas ou mais tarefas ao mesmo tempo e relacioná-las com diferentes informações armazenadas (seja memória delongo prazo ou curto prazo). Por exemplo, para interpretar um texto, precisamos relacionar o que acabamos de ler (para isto precisamos guardá-lo na memória de curto prazo) com informações a respeito que estão armazenadas em nosso reservatório de conhecimentos prévios (memória de longo prazo). Disto se deduz que seremos mais eficientes para compreender o que estamos lendo quanto mais conhecimentos prévios sobre o assunto temos (FONSECA, 2017). O controle inibitório é nossa capacidade de não sucumbir a interferências internas ou externas, sejam de ordem racional (inibição fria) ou emocional (inibição quente) para mantermos a concentração numa atividade que exige de nós foco num determinado período de tempo (FONSECA, 2017). Por último, a flexibilidade cognitiva é aquela habilidade que nos permite adaptarmos o nosso modo de pensar e agir. Esta habilidade exige de nós criatividade e capacidade de reorganização e adaptação (FONSECA, 2017). Vejamos então como esses componentes estão presentes no ato de ler e escrever. Para conseguir fazer uma ponte entre a linguagem oral e escrita, a criança precisará usar suas funções executivas. Na aprendizagem da escrita ortográfica das palavras, por exemplo, a criança conserva em sua memória de longo prazo todos os possíveis grafemas que representam um mesmo fonema e ao escrever uma palavra toma a decisão de qual usar, inibindo as demais. Para construir um texto, precisará usar do controle inibitório para se focar no tema sobre o qual está escrevendo, assim como selecionar os termos mais adequados para construir um texto coerente e coeso, fazendo uso dos seus conhecimentos prévios (memória de trabalho). Na tarefa de alfabetização e letramento, os educadores são os principais mediadores e estimuladores das funções executivas (FONSECA, 2017). 41 A seguir, apresentamos algumas orientações para estimular as funções executivas na criança: • As brincadeiras são um importante mediador para a aprendizagem, pois possuem conteúdos emocionalmente significativos. Portanto, deve-se evitar, principalmente na educação infantil, de submeter a criança a atividades formais de grande sistematização. • Desenvolver de forma natural e espontânea a curiosidade sobre os livros e a leitura. • Canções, principalmente as que envolvem histórias acumulativas, como “Estava a velha a fiar” ou “Loja do mestre André”, vão estimular a memória de trabalho. • Dramatizações auxiliam no desenvolvimento da flexibilidade cognitiva, pois possibilitam a alternância de papéis. • Construção de histórias com a participação de alunos diferentes, cada um acrescentando uma parte, em construção coletiva, desenvolve todas as FE, pois o aluno deverá aprender a esperar sua vez para falar (controle inibitório), usar sua memória de trabalho para lembrar o que os colegas já falaram ao construir a história e ser flexível para mudar o curso da história, caso seja necessário. • Atividades de educação física com circuitos estimulam a flexibilidade cognitiva e o controle inibitório, favorecendo o desenvolvimento psicomotor (FONSECA, 2017). 4.3 Processos envolvidos no ato de ler: estratégias de leitura e conhecimentos prévios O ato de leitura é um processo complexo que envolve tanto habilidades de decodificação (rota fonológica) como de compreensão (rota lexical). A rota fonológica é um caminho indireto que nos possibilita realizar a transposição dos signos gráficos nos seus respectivos sons (fonemas). Estudos demonstram que nossos olhos não deslizam linearmente sobre as linhas – lemos em saltos. Esta rota de leitura é utilizada quando nos deparamos com palavras 42 pouco comuns que não fazem parte do nosso léxico ou que são de uso menos frequente. Já quando as palavras que lemos nos são familiares, fazemos uso da rota lexical ou direta que possibilita acessar certas palavras de forma global em nosso léxico, ou seja, usamos nossos conhecimentos prévios. Ambas as rotas são necessárias para um leitor proficiente. Portanto, o que é fácil para um leitor pode ser difícil para outro, quando lemos construímos significado e essa construção depende do que já sabemos. Ao ler mobilizamos várias estratégias de leitura. De acordo com Duke e Pearson (2002 apud ESTRATÉGIA, 2013), a seguir descrevemos algumas dessas estratégias: 1. Predição: capacidade de antecipar-se ao texto, à medida que vai processando a sua compreensão. 2. Seleção: habilidade de selecionar apenas os índices relevantes para a compreensão e propósitos da leitura. 3. Inferência: completa a informação utilizando as suas competências linguística e comunicativa, o seu conhecimento conceitual e seus esquemas mentais ou conhecimentos prévios. 4. Confirmação: verifica se as predições e as inferências estão certas ou se precisam ser reformuladas. 5. Correção: uma vez não confirmada a predição, o leitor retrocede no texto a fim de levantar outras hipóteses, buscando outras pistas, sempre na tentativa de encontrar sentido no que lê. Com base nestas estratégias que desenvolvemos no ato de ler, seguem algumas dicas para desenvolver na sala de aula: • Explorar textos que se sabe de memória para os alunos que tenham construído a base alfabética recentemente; • Ajudar o aluno a se conscientizar da intencionalidade do autor; • Propor leitura com objetivo, com intencionalidade; 43 • Adotar a prática da leitura nas aulas como atividade permanente; • Propiciar a interação entre todos da sala de aula; • Considerar o texto como processo, sempre aberto a mudanças. 4.4 Bases socioculturais do desenvolvimento da linguagem Não podemos desenvolver este tema sem fazer referência à obra de Vygotsky (1896- 1934) que considera as funções psicológicas superiores sendo de origem sociocultural sendo que os signos são os mediadores por excelência para a constituição destas funções. A linguagem tem essa função simbólica e portanto é um instrumento que potencializa o pensamento, os processos mentais. Segundo Moreira (1999, p. 111), (...) instrumentos e signos são construções sócio-históricas e culturais; através da apropriação (internalização) destas construções, via interação social, o sujeito se desenvolve cognitivamente. Quanto mais o indivíduo vai utilizando signos, tanto mais vão se modificando, fundamentalmente, as operações psicológicas das quais ele é capaz. Da mesma forma, quanto mais instrumentos ele vai aprendendo a usar, tanto mais se amplia, de modo quase ilimitado, a gama de atividades nas quais pode aplicar suas novas funções psicológicas. O desenvolvimento cognitivo dos seres humanos acontece graças a interação que acontece por meio desses instrumentos e signos que são por essência uma propriedade humana e resultam de construções sócio-históricas e culturais. A interação social é, “[...] na perspectiva vygotskyana, o veículo fundamental para a transmissão dinâmica (de inter para intrapessoal) do conhecimento social, histórica e culturalmente construído” (MOREIRA, 1999, p. 112). Para Vygotsky (MOREIRA, 1999, p. 110): (...) os processos mentais superiores (pensamento, linguagem, comportamento volitivo) têm origem em processos sociais; o desenvolvimento cognitivo do ser humano não pode ser entendido sem referência ao meio social. Contudo, não se trata apenas de considerar o meio social como uma variável importante no desenvolvimento cognitivo. Para ele, desenvolvimento cognitivo é a conversão de relações sociais em funções mentais. Não é por meio do desenvolvimento cognitivo que o indivíduo se torna capaz de socializar, é na socialização que se dá o desenvolvimento dos processos mentais superiores. 44 Oñativia (2009, p. 74) afirma que, Com um objetivo fundamentalmente pedagógico, Oñativia (1983) distingue diferentes estágios na evolução da linguagem oral e escrita. Numa primeira etapa, a linguagem subordina-se à ação. Nesse
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