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A REVOLUSSÃO RUSSA 1

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A história da Revolução Russa
1º VOLUME
A QUEDA DO TZARISMO
Leon Trotsky
Tradução de E. HUGGINS
Edição do centenário
Sumário
PREFÁCIO – pág 23
CAPÍTULO I – Peculiaridades do desenvolvimento da Rússia – pág 31
CAPÍTULO II – A Rússia tzarista e a guerra – pág 44
CAPÍTULO III – O proletariado e os camponeses – pág 61
CAPÍTULO IV – O tzar e a tzarina – pág. 80
CAPÍTULO V – A ideia de uma revolução palaciana – pág. 92
CAPÍTULO VI – A agonia de morte da monarquia – pág. 106
CAPÍTULO VII – Cinco dias (23-27 de fevereiro de 1917) – pág. 128
CAPÍTULO VIII – Quem dirigiu à insurreição de fevereiro? – pág. 162
CAPÍTULO IX – O paradoxo da revolução de fevereiro – pág. 179
CAPÍTULO X – O novo poder – pág. 204
CAPÍTULO XI – A dualidade de poderes – pág. 229
CAPÍTULO XII – O comitê executivo – pág. 238
CAPÍTULO XIII – O exército e a guerra – pág. 269
CAPÍTULO XIV – Os dirigentes e a guerra – pág. 291
CAPÍTULO XV – Os bolcheviques e Lenine – pág. 306
CAPÍTULO XVI – O rearmamento do partido – pág. 334
CAPÍTULO XVII – As Jornadas de Abril – pág 351
CAPÍTULO XVIII – A primeira coligação – pág. 376
CAPÍTULO XIX – A ofensiva – pág. 390
CAPÍTULO XX – O campesinato – pág. 407
CAPÍTULO XXI – Reagrupamento nas massas – pág. 427
CAPÍTULO XXII – O Congresso dos Sovietes e a manifestação de junho –
pág. 454
CAPÍTULO XXIII – Conclusão – pág. 473
APÊNDICE I – Ao capítulo I – Peculiaridades do desenvolvimento da Rússia
– pág. 477
APÊNDICE II – Ao capítulo XVI – O rearmamento do partido – pág 487
APÊNDICE III – Ao capítulo XXII – O Congresso dos Sovietes e a
manifestação de junho – pág 495
ÍNDICE ONOMÁSTICO – pág. 503
Prefácio
RÚSSIA, AINDA NOS DOIS primeiros meses de 1917, era a Monarquia
dos Romanovs. Oito meses mais tarde os holcheviques apoderavam-se do
leme, eles que, no princípio do ano, eram desconhecidos, e cujos líderes, no
momento mesmo do acesso ao poder, foram inculpados de alta traição. Não
encontramos na História outro exemplo de uma reviravolta tão brusca,
sobretudo se nos lembrarmos de que se trata de uma nação contando com
150 milhões de habitantes. Claro está que os acontecimentos de 1917 — sob
qualquer prisma em que os consideremos — mereciam ser estudados.
A história de uma Revolução, como toda a História, deve antes de tudo
relatar os fatos que se passaram e como se passaram. Isto porém não basta.
Segundo apropria narrativa, é necessário que se veja claramente por que os
fatos aconteceram desta e não de outra forma. Os acontecimentos não
poderiam ser considerados como um encadeamento de aventuras, nem
inseridos, uns após outros, num fio de moral preconcebida. Devem
permanecer conforme sua própria lei racional. E na descoberta desta lei
íntima que autor vê sua missão.
A característica mais incontestável da Revolução é a intervenção direta das
massas nos acontecimentos históricos. Comumente, o Estado, monárquico ou
democrático, domina a nação; a História, feita pelos especialistas da
matéria: monarcas, ministros, burocratas, parlamentares, jornalistas.
Todavia, nas curvas decisivas, quando um velho regime se torna intolerável
ás massas, estas destroem as muralhas que as separam da arena política,
derrubam os seus representantes tradicionais e, intervindo deste modo, criam
uma posição de partida para um novo regime. Seja isto um bem ou um mal
cabe aos moralistas julgá-lo. Quanto anos, tomamos os fatos tal como se
apresentam em seu desenvolvimento objetivo. A história de uma Revolução,
para nós, inicialmente, é a narrativa de uma irrupção violenta das massas
nos domínios onde se desenrolam seus próprios destinos.
Numa sociedade em Revolução, as classes entram em luta. E, por
conseguinte, absolutamente evidente que as transformações produzidas,
entre o princípio e o fim de uma Revolução, quer nas bases econômicas da
sociedade, quer no substrato social das classes, não são suficientes para
explicar a marcha da Revolução em si, uma vez que, em curto lapso de
tempo, derruba as instituições seculares, e cria novas para, em seguida,
derrubá-las também. A dinâmica dos acontecimentos revolucionários é
diretamente determinada pelas rápidas e intensas e apaixonadas mudanças
psicológicas das classes constituídas antes da Revolução.
Com efeito, uma sociedade não modifica as suas instituições na medida de
suas necessidades, como um artífice renova o seu instrumental. Ao contrário:
a sociedade praticamente considera as instituições que a dominam como
algo para sempre estabelecido. Durante uma dezena de anos, a crítica de
oposição serve apenas como válvula de escapamento ao descontentamento
das massas, o que se constitui em condição da estabilidade do regime social:
tal é, em princípio, o valor adquirido pela crítica social-democrata. São
necessárias circunstâncias absolutamente excepcionais, independentes da
vontade individual ou dos partidos, para libertar os descontentes dos
estorvos do espírito conservador e levar as massas a insurreição.
As bruscas mudanças de opinião e do humor das massas, em épocas de
Revolução, provêm, por conseguinte, não da maleabilidade ou da
inconstância do psiquismo humano, porém de seu profundo
conservadorismo. As idéias e as relações sociais, permanecendo
cronicamente em atraso quanto ás novas circunstâncias objetivas, até o
momento em que tais circunstâncias se abatem como um cataclismo,
provocam em época de Revolução sobressaltos de idéias e paixões que a
cérebros de policiais se apresentam simplesmente como obra de
“demagogos”.
As massas entram em estado de Revolução não com um plano
preestabelecido de transformação social, mas com o amargo sentimento de
não lhes ser mais possível tolerar o antigo regime. Apenas o centro dirigente
da classe possui um programa político, o qual, entretanto, precisa ser
confirmado pelos acontecimentos e aprovado pelas massas. O processus
político essencial de uma Revolução está precisamente no fato de que a
classe toma consciência dos problemas apresentados pela crise social e de
que, ainda, as massas se orientam, ativamente, segundo o método das
aproximações sucessivas. As diversas etapas do processo revolucionário,
consolidadas pela substituição de alguns partidos por outros mais
extremistas, traduzem o impulso sempre crescente das massas para a
esquerda, até que este impulso se quebra de encontro aos obstáculos
materiais. Começa então a reação: desencantos em certos meios da classe
revolucionária, multiplicação do número de indiferentes e, em seguida,
consolidação das forças contrarrevolucionárias. Este foi, pelo menos, o
esquema das antigas revoluções.
E somente através do estado do processus político nas massas que se pode
compreender o papel dos partidos e dos líderes que não temos a menor
intenção de ignorar. Constituem um elemento não autônomo do processus,
porém muito importante. Sem organização dirigente, a energia das massas se
volatilizaria comoo vapor não encerrado em caldeiras com bombas
depistão. O movimento, entretanto, não provém nem da caldeira nem do
pistão, porém, ao contrário, do vapor.
As dificuldades encontradas quando se estudam as modificações da
consciência das massas em época de Revolução, são totalmente evidentes. As
classes oprimidas fazem a História nas fábricas, nos quartéis, nos campos, e,
as da cidade, nas ruas. Não têm, entretanto o hábito de anotar, por escrito, o
que fazem. Nos períodos em que as paixões sociais atingem a mais alta
tensão não há senão um lugar insignificante para a contemplação e as
descrições. Todas as musas, inclusive a musa plebéia do jornalismo, apesar
de apresentar os flancos sólidos, encontram dificuldades para viver em
tempo de Revolução. Mas, apesar disso, a situação do historiador não é de
forma alguma desesperadora. As anotações são incompletas, disparatadas,
fortuitas. Mas, a luz dos acontecimentos, estes fragmentos permitem, muitas
vezes, adivinhar a direção e o ritmo do processo subjacente. Bem ou mal um
partido revolucionário baseia a sua tática na apreciação das modificações
que se operam na consciência das massas. O percurso histórico do
bolchevismo demonstra que esta estimativa, pelo menos em bruto, é
realizável. Por que, então, o que era acessível a um político revolucionário
no torvelinho da luta se tornaria impossível, retrospectivamente, para um
historiador?
Os processus que se produzem na consciência das massas não são,
entretanto, nem autônomos nem independentes. Embora desagradando aos
idealistas e ecléticos, a consciência das massas é, todavia, determinada pelas
condições gerais de existência. Nas circunstâncias históricas da formação da
Rússia, com sua economia, suas classes, seu poder de Estado, assim como na
influência sobre ela exercida pelas potências estrangeiras, deviam estar
inseridas as premissas da Revolução de Fevereiro e da sua substituta — a de
Outubro. Tanto quanto possa parecer particularmente enigmático que um
país atrasado tenha sido o primeiro a levar o proletariado ao poder, é
necessário, preliminarmente, procurar a chave deste enigma nas
peculiaridades de tal país, isto é, naquilo que o diferencia dos outros.
As particularidades históricas da Rússia e o peso específico de tais
particularidades estão caracterizados nos primeiros capítulos deste livro,
que contêm uma exposição sucinta do desenvolvimento da sociedade russa e
de suas forças internas. Esperamos que a inevitável esquematização destes
capítulos não desanime o leitor. Na continuação da obra encontrará as
mesmas forças sociais em plena ação.
Este trabalho não está, absolutamente, baseado em recordações pessoais. A
circunstância de ter o autor participado dos acontecimentos não o exime do
dever de basear sua narrativa em documentos rigorosamente controlados. O
autor fala de si, sempre que obrigado pela marcha dos acontecimentos, na
terceira pessoa. E isto não é apenas uma forma literária: o tom subjetivo,
inevitável em autobiografia ou em memórias, seria inadmissível num estudo
histórico.
O fato de haver participado da luta torna-lhe naturalmente mais fácil
compreender não somente a psicologia dos atores, indivíduos e
coletividades, como, também, a correlação íntima dos acontecimentos. Esta
vantagem pode favorecer os resultados positivos — seja nas pequenas como
nas grandes coisas, seja na exposição dos fatos como em relação aos motivos
determinantes e aos estados de opinião —, porém com uma condição: a de
não lançar mão apenas do testemunho de sua memória. O autor estima que,
no quanto lhe diz respeito, cumpriu tal condição.
Ainda uma questão: a da posição política do autor que, em sua qualidade
de historiador, se mantém nos pontos de vista que eram os seus como
militante nos acontecimentos. O leitor, no entanto, não está obrigado a
participar da opinião política do autor, posição que não tem motivo algum
para dissimular. Tem o leitor, porém, o direito de exigir que um trabalho
histórico não constitua a apologia de uma posição política, mas sim uma
exposição profundamente fundamentada do verdadeiro processus da
Revolução. Um trabalho histórico só alcança plenamente a sua finalidade
quando os acontecimentos se desenrolam página por página, naturalmente, e
na medida em que são necessários.
Será por isso indispensável intervir o que se chama “a imparcialidade” do
historiador? Ninguém até hoje explicou claramente em que consiste esta
imparcialidade. Citou-se muitas vezes certo aforismo de Clemenceau sobre a
necessidade de ser uma revolução estudada “em bloco”; isto não passa de
espirituoso subterfúgio: como nos poderíamos declarar partidário de um
todo que traz, em sua essência, a divisão? A frase de Clemenceau foi ditada,
em parte, por um certo pudor que ele sentia diante dos seus antepassados
demasiadamente resolutos e, em parte ainda, pelo mal-estar do descendente
diante das sombras daqueles antepassados.
Um dos historiadores reacionários e, por conseguinte, muito apreciado da
França contemporânea, o Sr. L. Madelin1, e que na qualidade de homem de
salão tanto caluniou a Grande Revolução — vale dizer, o nascimento da
nação francesa — afirma que “o historiador deve subir nas muralhas de uma
cidade ameaçada e, de lá, observar tanto os sitiantes como os sitiados”.
Somente assim, segundo ele, chegar-se-ia a “justiça que concilia”. Os
trabalhos do Sr. Madelin provam, entretanto que, se escalou as muralhas que
separavam os dois campos, o fez apenas na qualidade de esclarecedor da
reação. Felizmente trata-se, no seu caso, tão somente, dos campos de batalha
do passado: em tempo de Revolução é extremamente perigoso manter-se
sobre as muralhas. Aliás, na hora do perigo, os pontífices de uma “justiça
conciliadora” permanecem em casa quase sempre, esperando ver para que
lado se decide a vitória.
O leitor honesto e dotado de senso crítico não sente a necessidade de uma
imparcialidade falaciosa que lhe apresente a taça do espírito conciliador
saturada de uma boa dose de veneno, de um resíduo de ódio reacionário,
mas necessita, sim, da boa fé científica, que se apoia no estudo honesto dos
fatos, na demonstração das relações reais entre os fatos, na manifestação do
que de racional existe no desenvolvimento deles, para exprimir suas
simpatias ou antipatias, francas e não mascaradas. Somente assim é possível
a objetividade histórica que passe a ser suficiente, porquanto verificada e
comprovada não pelas boas intenções do historiador — da qual ele dá
garantia — mas pela revelação da lei íntima que rege o processo histórico.
As fontes deste trabalho foram numerosas publicações periódicas, jornais e
revistas, memórias e atas de processos, além de outros documentos, alguns
manuscritos, a maior parte porém publicada pelo Instituto Histórico da
História da Revolução, em Moscou e Leningrado. Julgamos supérfluo incluir
no texto referências que pudessem, no mínimo, perturbar o leitor. Dentre os
livros históricos que se caracterizam como estudo de conjunto, utilizamos
principalmente os dois tomos dos Ensaios sobre a História da Revolução de
Outubro (Moscou-Leningrado, 1927). Estes ensaios, redigidos por autores,
não têm todos igual valor, mas contêm uma vasta documentação sobre os
fatos.
As datas registradas no presente trabalho obedecem a velha forma, isto é,
estão atrasadas de treze dias em relação ao calendário universal, atualmente
adotado pelos sovietes. Viu-se o autor forçado a seguir o calendário em uso
na época da Revolução. Não seria difícil, é verdade, transpor as datas
segundo o calendário moderno. Esta operação, porém, eliminando certas
dificuldades, criaria outras mais graves. A queda da Monarquia inscreveu-
se, na História, sob o nome de “Revolução de Fevereiro”. No entanto, de
acordo com o calendário ocidental, teve lugar em março. Determinada
manifestação armada contra a política imperialista do Governo Provisório
foi assinalada na História como “Jornadas de Abril” quando, segundo o
calendário ocidental, aconteceu em maio. Não nos detendo em outros
acontecimentos e datasa intermediárias,chamamos a atenção para o fato de
que a Revolução de Outubro, para a Europa, ocorreu em novembro. Como se
pode ver, o próprio calendário tomou as cores dos acontecimentos e não é
possível ao historiador desembaraçar-se das efemérides revolucionárias por
meio de simples operação aritmética. Queira o leitor recordar-se de que,
antes de suprimir o calendário bizantino, necessitou a Revolução de abolir
as instituições que se empenhavam em conservá-lo.
L. TROTSKY Prinkipo, 14 de novembro de 1930.
1 Louis Madelin — Historiador francês (1871-1956). [Nota da tradutora.]
Capítulo I
PECULIARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA
RÚSSIA
O TRAÇO ESSENCIAL e o mais constante da História da Rússia é a lentidão com que o
país se desenvolveu, apresentando como consequência uma economia atrasada, uma
estrutura social primitiva e baixo nível cultural.
A população da gigantesca estepe, com seu clima rigoroso, exposta ao vento. Este e as
migrações asiáticas, estavam destinados, pela própria natureza, a uma prolongada
estagnação. A luta contra os nômades durou quase até o fim do século XVII. E, ainda hoje,
não encontrou fim a luta contra os ventos portadores de espessa neblina, no inverno, e da
seca, no estio. A agricultura — base de todo o desenvolvimento — progredia de maneira
extensiva: no norte cortavam-se e queimavam-se florestas; no sul desorganizavam-se as
estepes virgens. Tomava-se posse da natureza em extensão e não em profundidade.
Na época em que os bárbaros ocidentais se instalavam sobre as ruínas da civilização
romana e utilizavam tanto pedras antigas como material de construção, os eslavos do
Oriente, em suas inóspitas planícies, nada encontravam para herdar: o nível de seus
predecessores era ainda mais baixo que o seu. Os povos da Europa Ocidental, cedo
bloqueados em suas fronteiras naturais, criavam as aglomerações econômicas e culturais
das cidades industriais. A população da planície oriental, tão logo se sentia comprimida,
embrenhava-se nas florestas ou então emigrava para a periferia, nas estepes. Os elementos
camponeses mais dotados de iniciativa e mais empreendedores transformavam-se, no lado
oeste, em cidadãos, artífices, mercadores. No leste, certos elementos nativos, audaciosos,
estabeleceram-se como comerciantes, porém em maior número fizeram-se cossacos,
guardas-fronteiras ou colonos. O processus de diferenciação social, intenso no Ocidente,
retardava-se no Oriente e se difundia por expansão. “O tzar de Moscóvia — apesar de
cristão — governa um povo de espírito preguiçoso”, escrevia Viço, contemporâneo de
Pedro I. O espírito “preguiçoso” dos moscovitas era um reflexo do ritmo lento da evolução
econômica, das relações amorosas entre as classes, da indigência de sua história anterior.
As civilizações antigas do Egito, da índia e da China tinham um caráter suficientemente
autônomo e, por medíocres que fossem suas possibilidades de produção, dispuseram de
tempo bastante para elaborar relações sociais tão bem acabadas em seus detalhes quanto os
trabalhos dos artífices desses países. Tanto pela sua história quanto pela vida social, e não
somente devido a sua posição geográfica, a Rússia ocupava, entre a Europa e a Ásia, uma
situação intermediária. Diferenciava-se do Ocidente, europeu, mas também diferia do
Oriente, asiático, embora aproximando-se em alguns períodos, em vários aspectos, ora de
um ora de outro. O Oriente impôs o jugo tártaro, que entrou como elemento importante na
edificação do Estado russo. O Ocidente era um inimigo ainda mais temível que o Oriente,
ao mesmo tempo que um mestre. Não foi possível formar-se a Rússia segundo os moldes
do Oriente, compelida como estava em acomodar-se à pressão militar e econômica do
Ocidente. A existência do feudalismo na Rússia, negada pelos antigos historiadores, pode
ser considerada como incontestavelmente demonstrada pelos estudos mais recentes. Ainda
melhor: os elementos essenciais do feudalismo na Rússia eram os mesmos existentes no
Ocidente. O fato de terem sido necessárias longas discussões científicas para demonstrar a
existência de uma época feudal na Rússia trouxe também a prova de que o feudalismo
russo nasceu prematuramente, o que revelava formas indefinidas e pobres quanto aos
monumentos de sua cultura.
Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados.
Não significa isto, porém, que siga servilmente estes países, reproduzindo todas as etapas
de seu passado. A teoria da repetição dos ciclos históricos — a de Viço e, mais tarde, de
seus discípulos — baseia-se na observação dos ciclos percorridos pelas velhas estruturas
pré-capitalistas e, parcialmente, sobre as primeiras experiências do desenvolvimento
capitalista. O caráter provincial e transitório de todo processus admite, efetivamente, certas
repetições das fases culturais em meio ambientes sempre novos. O capitalismo, no entanto,
marca um progresso sob tais condições. Preparou e, em certo sentido, realizou a
universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade. Foi, assim, excluída a
possibilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento em diversas nações. Na
contingência de ser rebocado pelos países adiantados, um país atrasado não se conforma
com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação historicamente atrasada — e este
privilégio existe — autoriza um povo ou, mais exatamente, o força a assimilar todo o
realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série de etapas
intermediárias. Renunciam os selvagens ao arco e à flecha e tomam imediatamente o fuzil,
sem que necessitem percorrer as distâncias que, no passado, separaram estas diferentes
armas. Os europeus que colonizaram a América não recomeçaram ali a História desde seu
início. Se a Alemanha e os Estados Unidos ultrapassaram economicamente a Inglaterra,
isso se deveu exatamente ao atraso na evolução capitalista daqueles dois países. Em
compensação, a anarquia conservadora que reina na indústria carbonífera britânica, como
no cérebro de Mac Donald e seus amigos, é o resgate de um passado durante o qual a
Inglaterra — e por muitos anos — manteve a hegemonia do capitalismo. O
desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma
combinação original das diversas fases do processus histórico. A órbita descrita toma, em
seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado.
A possibilidade de superar os degraus intermediários não é, está claro, absoluta;
realmente, está limitada pelas capacidades econômicas e culturais do país. Um país
atrasado frequentemente rebaixa as realizações que toma de empréstimo ao exterior para
adaptá-las à sua própria cultura primitiva. O próprio processo de assimilação apresenta,
neste caso, um caráter contraditório. Foi este o motivo pelo qual, na Rússia, a introdução de
elementos da técnica e do saber ocidentais e, sobretudo, da arte militar e da manufatura,
sob Pedro I, agravou a lei de servidão, na medida que representava a forma essencial da
organização do trabalho. O armamento segundo os moldes europeus e os empréstimos
feitos à Europa, nos mesmos moldes — incontestáveis resultados de uma cultura mais
adiantada — conduziram ao fortalecimento do tzarismo que, de seu lado, refreava o
desenvolvimento do país.
As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedan-tescos. A desigualdade do
ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e
complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a
vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da
desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada,
chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas
etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais
modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é
impossível compreender a história da Rússia, como, em geral, a de todos os países
chamados à civilização em segunda,terceira ou décima linha.
Sob a pressão da Europa mais rica, o Estado russo, em comparação com o Ocidente,
absorvia uma parte proporcional bem maior da riqueza pública, e, desta forma, não apenas
condenava as massas populares a uma redobrada miséria, mas ainda enfraquecia as bases
das classes possuidoras. Tendo, porém, o Estado necessidade do apoio destas últimas,
apressava e regulamentava sua formação. Como resultado, as classes privilegiadas, bu-
rocratizadas, jamais conseguiram erguer-se em toda a sua pujança, e o Estado russo não fez
senão aproximar-se ainda mais dos regimes despóticos da Ásia. A autocracia bizantina,
adotada oficialmente pelos tzares moscovitas no início do século XVI, submeteu os
grandes senhores feudais boiardos com o auxílio da nobreza, e dominou-os transformando
em servos a classe camponesa e erigindo-se por tais meios em monarquia absoluta: o
absolutismo de São Petersburgo. O atraso no conjunto do processo está suficientemente
caracterizado pelo fato de o direito de servidão, surgindo em fins do século XVI,
estabelecido no século XVII, ter atingido o desenvolvimento no século XVIII, sendo
juridicamente abolida apenas em 1861.
O clero, após a nobreza, desempenhou, na formação da autocracia tzarista, um papel
bastante apreciável, se bem que apenas de um funcionalismo. A Igreja não alcançou na
Rússia a força dominadora idêntica à do Catolicismo no Ocidente; contentou-se com a
condição de domesticidade espiritual ao lado dos autocratas, do que tirava mérito de
humildade. Os bispos e arcebispos dispunham de certo poder, a título de subalternos da
autoridade civil. Os patriarcas eram substituídos sempre que um novo tzar assumia o poder.
Quando a capital se estabeleceu em Petersburgo, a dependência da Igreja ao Estado tornou-
se ainda mais servil. Duzentos mil padres seculares e monges integraram parte da
burocracia, espécie de polícia de confessionário. Em retribuição, o monopólio do clero
ortodoxo nas questões de fé, suas terras e seus rendimentos estavam sob a proteção da
política geral.
O eslavofilismo, messianismo de um país atrasado, edificava sua filosofia sobre a idéia de
que o povo russo e sua Igreja eram profundamente democratas, enquanto que a Rússia
oficial era uma burocracia alemã, implantada por Pedro I. Marx observou sobre este
assunto: “Foi assim que os asnos da Teutônia fizeram recair a responsabilidade do
despotismo de Frederico II sobre os franceses, como se escravos atrasados não tivessem
sempre necessidade do auxílio de outros escravos mais civilizados para o seu indispensável
aprendizado.” Esta breve observação atinge até o fundo não apenas a velha filosofia
eslavófila como também todas as descobertas contemporâneas dos “racistas”.
A indigência, traço característico não somente do feudalismo russo porém de toda a
história da antiga Rússia, encontrou a sua mais triste expressão na falta de cidades do
verdadeiro tipo medieval, como centros de artífices e mercadores. O artesanato, na Rússia,
não conseguiu desvincular-se da agricultura e conservou o caráter de pequenas indústrias
locais. As cidades russas de outrora eram centros comerciais, militares, administrativos,
centros portanto de consumo e não de produção. Novgorod1 mesmo, que fazia parte da
Liga Hanseática e que jamais conhecera o jugo tártaro, era uma cidade comercial e não
industrial. E verdade que as pequenas indústrias rurais, espalhadas pelas diversas regiões
do país, exigiam os serviços intermediários de um comércio bastante extenso. Os
mercadores nômades, porém, não podiam de modo algum ocupar, na vida social, um lugar
idêntico ao ocupado no Ocidente pela pequena e média burguesia das corporações de
artífices, de comerciantes e industriais, burguesia que estava indissoluvelmente ligada à
periferia rural. Além disso, as principais vias de comunicação do comércio russo
conduziam ao estrangeiro, garantindo, desde séculos remotos, um papel dirigente ao capital
comercial externo e emprestando um caráter semico-lonial a qualquer movimento de
negócios nos quais o mercador russo servia apenas de intermediário entre as cidades do
Ocidente e as aldeias russas. Tais relações econômicas continuaram a se desenvolver na
época do capitalismo russo e encontraram sua mais alta expressão na guerra imperialista.
A insignificância das cidades russas contribuiu ao máximo para a formação de um Estado
de tipo asiático, e excluía em particular a possibilidade de uma reforma religiosa, isto é, a
substituição da ortodoxia burocrática feudal por outra forma de cristianismo mais moderno,
adaptado às necessidades da sociedade burguesa. A luta contra a Igreja do Estado não foi
além da formação de seitas de camponeses, das quais a mais poderosa foi a dos “Velhos
Crentes”.
Quinze anos antes da grande Revolução Francesa rebentou, na Rússia, um movimento de
cossacos, de camponeses e de servos operários no Ural, denominado Revolta de Pugachev.
Que faltou para que este terrível movimento popular se transformasse em Revolução? Um
Terceiro Estado. Na falta de uma democracia industrial nas cidades, a guerra camponesa
não se poderia transformar em Revolução assim como as seitas religiosas das aldeias não
puderam atingir a Reforma. O resultado da Revolta de Pugachev foi, contrariamente,
conseguir consolidar o absolutismo burocrático que protegia os interesses da nobreza,
guardiã que demonstrou novamente o quanto valia em hora de perigo.
A europeização do país, iniciada quanto a forma sob Pedro I, transformou-se dia a dia, no
século seguinte, numa necessidade para a classe dirigente, isto é, para a nobreza. Em 1825
os intelectuais pertencentes à casta, dando expressão política a esta necessidade, chegariam
a uma conspiração militar cuja finalidade era restringir a autocracia. Impulsionados pela
burguesia européia que se desenvolvia, os elementos mais avançados da nobreza tentavam
suprir o Terceiro Estado que faltava. Entretanto, era intenção deles o regime liberal com as
bases da dominação de casta e foi por este motivo que temeram sublevar os camponeses.
Não é de admirar, portanto, que esta conjuração tenha sido obra de um grupo brilhante,
porém isolado, de oficiais sacrificados sem quase combater. Tal é o sentido da revolta dos
decembristas.
Os nobres, proprietários de fábricas, foram os primeiros, em suas castas, a opinar pelo
salário livre em substituição ao trabalho de servo. Eram igualmente levados a tais medidas
devido à exportação crescente do trigo russo. Em 1861 a burocracia nobre, apoiando-se
sobre os proprietários liberais, efetuou a reforma camponesa. Impotente, o liberalismo
burguês assistiu a esta operação reduzido a um coro dócil. Inútil dizer que o tzarismo
resolveu o problema essencial da Rússia — a questão agrária — de forma ainda mais ladra
e fraudulenta do que a empregada pela monarquia prussiana, nos dez anos que se seguiram,
a fim de resolver o problema essencial da Alemanha — a unificação nacional. Tomar uma
classe a si o encargo de resolver os problemas de outra classe é uma das muitas
combinações próprias de países atrasados.
A lei do desenvolvimento combinado está demonstrada como sendo a mais incontestável
na história e no caráter da indústria russa. Tardiamente nascida, essa indústria não
percorreu, desde o início, o ciclo dos países adiantados, porém neles se incorporou,
adaptando ao seu estado atrasado as conquistas mais modernas. Se a evolução econômica
da Rússia, em conjunto, passou por cima de períodos do artesanato corporativo, e da
manufatura, muitos de seus ramos industriais pularam parcialmente alguma etapa da
técnica que exigiu, no Ocidente, dezenas de anos. Como consequência, a indústria russa
desenvolveu-se em certos períodos com extrema rapidez. Entre a primeira Revolução e a
guerra a produção industrial da Rússia quase dobrou. Julgaram alguns historiadores russos
ser isto motivo suficiente para concluir que era necessário abandonar a lenda de um país
atrasado e de lento progresso do país.2 Na realidade, a possibilidade de um progresso assim
rápido era precisamente determinadapelo estado atrasado do país, que, infelizmente, não
apenas subsistiu até a liquidação do antigo regime mas que, como sua herança, perdura até
hoje.
O mensurador essencial do nível econômico de uma nação é a produtividade do trabalho,
o qual, por sua vez, depende do peso específico da indústria na economia geral do país. Nas
vésperas da guerra, quando a Rússia dos tzares alcançara o apogeu de sua prosperidade, a
renda pública per capita era oito a dez vezes inferior à dos Estados Unidos, o que não
surpreende se considerarmos que 4/5 da população obreira russa, trabalhando por si
mesma, compunham-se de camponeses, enquanto que, nos Estados Unidos, a proporção era
de um camponês para 2,5 operários industriais. Acrescentemos que nas vésperas da guerra
a Rússia possuía 400 metros de linha férrea para 100 km2, enquanto que, na Alemanha, esta
proporção era de 11,7 km para a mesma área e, na Austria-Hungria, era de 7 km. Os
demais coeficientes comparativos estão na mesma proporção.
Como já dissemos, é precisamente no domínio da economia que a lei da evolução
combinada se manifesta com maior força. Enquanto que a agricultura camponesa, até a
Revolução, em sua maior parte, permanecia quase no mesmo nível do século XVII, a
indústria russa, quanto à técnica e sua estrutura capitalista, encontrava-se no mesmo nível
dos países adiantados e, mesmo sob alguns aspectos, os ultrapassava. Em 1914 as pequenas
indústrias com menos de 100 operários representavam, nos Estados Unidos, 35% do efetivo
total dos operários de indústrias, ao passo que na Rússia a proporção era de 17,8%.
Admitindo-se um peso específico aproximadamente igual para as empresas médias e
grandes, ocupando de 100 a mil operários, as empresas gigantes, que ocupavam mais de
mil operários cada uma, empregavam, nos Estados Unidos, apenas 17,8 da totalidade dos
operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4%. Nas principais regiões
industriais a percentagem era ainda mais elevada: na região de Petrogrado, 44,4%; na
região de Moscou, 57,3%. Chegaremos aos mesmos resultados se estabelecermos uma
comparação entre a indústria russa e a indústria britânica ou a alemã. Este fato apresentado
pela primeira vez por nós em 1908, dificilmente poderia ser inserido na representação banal
que nos dão de uma economia atrasada na Rússia. Entretanto, não nega o caráter
retardatário do país, oferecendo apenas um complemento dialético.
A fusão do capital industrial com o capital bancário efetuou-se na Rússia, de forma tão
integral como talvez não se tenha visto semelhante em qualquer outro país. A indústria
russa, porém, subordinando-se aos bancos, demonstrava efetivamente sua submissão ao
mercado monetário da Europa ocidental. A indústria pesada (metais, carvão, petróleo)
estava quase inteiramente sob o controle financiador estrangeiro que criara, na Rússia, para
uso próprio, uma rede de bancos auxiliares e intermediários. A indústria leve seguia o
mesmo caminho. Se os estrangeiros possuíam, no total, mais ou menos 40% de todos os
capitais investidos na Rússia, esta percentagem nos ramos principais da indústria era bem
mais elevada. Pode-se afirmar, sem receio de exagero, que o centro de controle das ações
emitidas pelos bancos, pelas fábricas e manufaturas russas encontrava-se no estrangeiro, e a
participação da Inglaterra, da França e da Bélgica no capital atingia o dobro da participação
alemã.
As condições em que se organizou a indústria russa, a própria estrutura desta indústria,
determinaram o caráter social da burguesia do país e sua fisionomia política. A forte
concentração da indústria demonstra por si mesma que entre as esferas dirigentes do
capitalismo e as massas populares não existia hierarquia intermediária. A isto se soma o
fato de serem as mais importantes empresas industriais, bancárias e de transportes
propriedade de estrangeiros, que não somente auferiam lucros sobre a Rússia mas, ainda
por cima, fortaleciam a própria influência política nos parlamentos de outros países, razão
pela qual, em vez de fomentar a luta pelo regime parlamentar, na Rússia, a tal se opunham
não raras vezes. Basta lembrar aqui o papel abominável desempenhado pela França oficial.
Foram estas as causas elementares e irredutíveis do isolamento político da burguesia russa
e de sua atitude contrária aos interesses populares. Se na aurora de sua história, mostrou-se
muito pouco amadurecida para realizar uma reforma, ainda mais se encontrava quando
chegou o instante de dirigir a Revolução.
De acordo com a evolução do país, o reservatório de onde saía a classe operária russa não
era um artesanato corporativo: era o meio rural; não a cidade, mas a aldeia. E preciso notar
que o operariado russo se formou não paulatinamente, no decurso dos séculos, arrastando o
enorme fardo do passado, como na Inglaterra, mas sim aos saltos, por meio de
transformações bruscas das situações; de ligações, acordos e, ainda, por meio de rupturas
violentas com tudo o que na véspera existia. Foi precisamente assim — sobretudo durante
o regime da opressão concentrada do tzarismo — que os operários russos puderam
assimilar as deduções mais ousadas do pensamento revolucionário da mesma forma que a
retardatária indústria russa era capaz de compreender a última conquista da organização
capitalista.
O proletariado russo recomeçava sempre a curta história de suas origens. Enquanto que na
indústria metalúrgica, sobretudo em Petrogra-do, se cristalizava o elemento proletário de
procedência autêntica — aquele que, definitivamente, rompera com a aldeia –, nos Urais
predominava ainda o tipo meio proletário meio camponês. O afluxo anual da mão de obra,
oriunda dos campos, para todos os ramos da indústria, restabelecia o contato entre o
proletariado e o reservatório social de onde se originava.
A incapacidade política da burguesia era diretamente determinada pelo caráter de suas
relações com o proletariado e os camponeses. Não era possível arrastar consigo os
operários que a ela se opunham rancorosamente na vida cotidiana e que, muito cedo,
aprenderam a dar um sentido mais geral aos seus objetivos. Por outro lado a burguesia era
igualmente incapaz de arrastar a classe camponesa porque estava enredada nas malhas de
interesses comuns com os proprietários de terras e porque temia um abalo da propriedade
sob qualquer forma em que se apresentasse. Se, portanto, a Revolução russa tardou em
rebentar, não foi tão somente por motivo cronológico: a culpa desta demora cabe também à
estrutura social da nação.
Quando a Inglaterra realizou a sua Revolução puritana, a população do país não ia além
de 5 1/2 milhões de habitantes, dos quais meio milhão viviam em Londres. A França, por
ocasião de sua Revolução, contava com apenas meio milhão de habitantes em Paris, com
25 milhões da população total. A Rússia, no princípio do século XX, contava mais ou
menos uma população de 150 milhões de habitantes, dos quais mais de 3 milhões fixados
em Moscou e Petrogrado. Estes dados comparados encobrem ainda dessemelhanças sociais
da maior importância. Não somente a Inglaterra do século XVII, mas também a França do
XVIII desconheciam o proletariado conhecido em nossa época. Ora, na Rússia, a classe
operária em todos os setores de trabalho, nas cidades e nos campos, contava já em 1905
com pelo menos 10 milhões de pessoas, o que, compreendendo suas famílias, representava
mais de 25 milhões — ou seja, mais do que a população da França na época da sua grande
Revolução. Partindo dos rudes artesãos e dos camponeses independentes que formaram o
exército de Cromwell –, passando em seguida pelos sans-culottes de Paris para chegar aos
proletários industriais de S. Petersburgo, a Revolução teve que modificar profundamente
seu mecanismo social, seus métodos e, por conseguinte, seus desígnios.
Os acontecimentos de 1905 foram o prólogo das duas revoluções de 1917 — a de
Fevereiro e a de Outubro. O prólogo já continha todos os elementos do drama que,
entretanto, ainda não estava concluído. A guerra russo-japonesa abalou o tzarismo.
Utilizandoo movimento de massas como alavanca, a burguesia liberal abalou a monarquia
devido a sua oposição. Os operários organizavam-se independentemente da burguesia,
opondo-se mesmo a ela em sovietes aparecidos pela primeira vez. A classe camponesa,
numa extensão imensa do território, levantava-se para a conquista das terras. Assim como
os camponeses, alguns efetivos revolucionários no exército se voltaram para os sovietes
que, no momento em que o impulso revolucionário era mais forte, disputaram abertamente
o poder à monarquia. Entretanto, todas as forças revolucionárias manifestavam-se, pela
primeira vez, carecendo de experiência e sem confiança em si mesmas. Os liberais
afastaram-se ostensivamente da Revolução e logo se tornou evidente não ser suficiente
apenas abalar o trono, mas que seria necessário derrubá-lo. A ruptura brutal entre a
burguesia e o povo, tanto mais que a burguesia arrastava consigo grupos consideráveis de
intelectuais democratas, facilitou à monarquia sua obra de desagregação no Exército, a
triagem de contingentes fiéis e ainda a repressão sangrenta contra os operários e os
camponeses. O tzarismo saiu de seus sofrimentos de 1905 vivo, suficientemente vigoroso,
apesar de algumas de suas costelas terem ficado quebradas.
Durante os onze anos intermediários entre o prólogo e o drama, quais foram as
modificações provocadas pela evolução histórica na correlação das forças? Durante este
período o regime tzarista conseguiu ainda mais colocar-se em contradição com as
exigências históricas. A burguesia tornara-se economicamente mais poderosa, mas seu
poder, conforme vimos, repousava sobre a concentração mais forte na indústria e sobre a
importância crescente do papel representado pelo capital estrangeiro. Influenciada pelas
lições de 1905, tornou-se a burguesia ainda mais desconfiada e conservadora. O peso
específico da pequena e média burguesia, anteriormente insignificante, diminuiu ainda
mais. Os intelectuais democratas não tinham, em geral, base social estável. Podiam exercer
transitoriamente certa influência política, mas não podiam desempenhar papel
independente: a sujeição dos intelectuais ao liberalismo burguês tinha-se agravado
extraordinariamente. Nestas condições somente o jovem proletariado poderia dar à classe
camponesa um programa, uma bandeira, uma direção. Os grandiosos problemas que se lhe
apresentavam exigiam a criação inadiável de uma organização revolucionária especial que
pudesse englobar as massas populares e torná-las capazes de uma ação revolucionária sob a
direção dos operários. Foi assim que os sovietes de 1905 alcançaram em 1917 um
formidável desenvolvimento. Note-se que os sovietes não são simplesmente um produto do
atraso histórico da Rússia, mas sim o resultado de um desenvolvimento combinado, e isto é
comprovado pelo fato de o proletariado do país mais industrializado do mundo, a
Alemanha, não ter encontrado na época do impulso revolucionário de 1918 a 1919, outra
forma de organização senão a dos sovietes.
A Revolução de 1917 tinha ainda como fim imediato derrubar a monarquia burocrática.
Diferenciava-se, entretanto, das antigas revoluções burguesas, pelo fato de o elemento
decisivo que se manifestava agora ser uma nova classe constituída sobre a base de uma
indústria concentrada, possuidora de nova organização e novos métodos de luta. A lei do
desenvolvimento combinado se revela agora em sua expressão mais alta: começando por
derrubar o edifício medieval apodrecido, a Revolução eleva ao poder, em poucos meses, o
proletariado, encabeçado pelo Partido Comunista.
Assim, segundo as suas finalidades primeiras, a Revolução russa era democrática.
Colocava, porém, sob novo aspecto, o problema da democracia política. Enquanto os
operários cobriam todo o país com os sovietes, neles admitindo soldados e, parcialmente,
camponeses, a burguesia continuava a negociar, perguntando se convocaria ou não a
Assembléia Constituinte. A medida que formos descrevendo os acontecimentos esta
questão se nos apresentará de modo mais concreto. Aqui pretendemos apenas fixar o lugar
dos sovietes na sucessão histórica das idéias e das formas revolucionárias.
Em meados do século XVII, a Revolução burguesa realizada na Inglaterra decorreu sob o
invólucro de uma reforma religiosa. A luta pelo direito de rezar segundo um determinado
livro de orações se identificou com a luta levada a cabo contra o rei, a aristocracia e os
princípios da Igreja e Roma. Os presbiterianos e os puritanos estavam profundamente
persuadidos de terem colocado os seus interesses terrestres sob a égide da Divina
Providência. Os fins pelos quais combatiam as novas classes confundiam-se
indissoluvelmente, em suas mentalidades, com os textos bíblicos e com os ritos
eclesiásticos. Os que emigraram para além dos mares consigo levaram esta tradição
confirmada no sangue. Daí a excepcional vitalidade das interpretações do Cristianismo
apresentadas pelos anglo-saxões. Vemos, ainda hoje, ministros “socialistas” da Grã-
Bretanha esconderem a covardia sob os mesmos textos mágicos com que os homens do
século XVII buscavam a justificação de sua coragem.
Na França, país que pulou sobre a Reforma, a Igreja Católica, em sua qualidade de Igreja
do Estado, conseguiu sobreviver até a Revolução, que foi buscar, não nos textos bíblicos
mas em abstrações democráticas, uma expressão e uma justificação para os desígnios da
sociedade burguesa. Qualquer que seja o ódio dos regentes atuais da França ao
jacobinismo, a verdade é que, precisamente graças à ação rigorosa de um Robespierre, é
que eles ainda têm a possibilidade de dissimular a dominação dos conservadores sob
fórmulas pelas quais, outrora, fizeram explodir a velha sociedade.
Cada uma das grandes revoluções marcou uma nova etapa da sociedade burguesa assim
como novas formas na consciência de suas classes. Assim como a França pulou por sobre a
Reforma, a Rússia ultrapassou de um salto a democracia puramente formal. O partido
revolucionário da Rússia, que poria uma pedra sobre toda uma época, procurou uma
fórmula para os problemas da Revolução não na Bíblia nem no cristianismo secularizado
de uma democracia “pura”, mas nas relações materiais entre as classes. O sistema deu a tais
relações a expressão mais simples, a menos dissimulada, a mais transparente. A dominação
dos trabalhadores encontrou pela primeira vez sua realização no sistema dos sovietes que,
sejam quais forem as vicissitudes históricas que lhes está reservada, penetrou na
consciência das massas de forma tão inextirpável quanto, em outros tempos, em outros
povos, a Reforma ou a democracia pura.
1 Nijinski-Novgorod passou depois a chamar-se Estalingrado e hoje se chama Volgo-grado. [Nota da
editora.]
2 A afirmação é do Professor M. N. Pokrovsky. Ver Apêndice I.
Capítulo II
A RÚSSIA TZARISTA E A GUERRA
PARTICIPAÇÃO DA RÚSSIA na guerra encerrava contradições quer nos
motivos quer nos fins. Em verdade, a luta sangrenta tinha como objetivo o
domínio mundial. Neste sentido ultrapassava as possibilidades da Rússia. O
que se denominava objetivos de guerra para a Rússia (estreitos na Turquia,
Galícia e Armênia) tinha apenas importância muito relativa, de caráter
provinciano, e só poderiam ser solucionados acessoriamente na medida que
conviesse aos interesses dos principais beligerantes.
Ao mesmo tempo, a Rússia, na qualidade de grande potência, não podia
abster-se de participar da guerra dos países capitalistas mais adiantados, da
mesma forma como não lhe fora possível, durante a época precedente,
dispensar a instalação em suas terras de usinas, fábricas, ferrovias, assim
como adquirir fuzis de tiro rápido e aviões. Frequentemente, entre os
historiadores russos da nova escola, surgem discussões com o fim de
investigar até que ponto a Rússia tzarista estava amadurecida para uma
política imperialista moderna; mas, constantemente, estas controvérsias
recaem em escolástica, porquanto se considera a Rússia, no plano
internacional, um elemento isolado assim como um fator independente. Ora,
a Rússia não passou de elo de um sistema.A índia, de fato e na forma, tomou parte na guerra como colônia da
Inglaterra. A intervenção da China, “voluntária”, no sentido formal, foi na
realidade a intervenção de um escravo numa rixa entre senhores. A
participação da Rússia tinha caráter mal definido, intermediário entre a
participação da França e a da China. Pagava assim a Rússia o direito de ser
aliada de países mais adiantados, de importar capitais e de trocar interesses,
isto é, em resumo, o direito de ser uma colônia privilegiada dos seus aliados;
adquiria, porém, concomitantemente, o direito de oprimir e espoliar a
Turquia, a Pérsia e a Galícia e, em geral, os países mais fracos e mais
atrasados do que ela. O imperialismo equívoco da burguesia russa tinha, no
fundo, o caráter de uma agência a serviço das maiores potências mundiais.
O sistema dos compradores, na China, apresenta o tipo clássico de uma
burguesia nacional funcionando como agência, entre o capital financiador
estrangeiro e a economia do seu próprio país. Antes da guerra, a Rússia
ocupava, na hierarquia mundial dos Estados, um lugar bem mais elevado que
o da China. Qual seria o lugar ocupado pela Rússia depois da guerra, caso
não houvesse estalado a Revolução, é outra questão. A autocracia, de um
lado, e a burguesia russa, de outro, tinham características cada vez mais
definidas de compradorismo: uma e outra viviam e subsistiam através dos
vínculos que as uniam ao imperialismo estrangeiro, a cujo serviço estavam e
não poderiam manter-se sem que sobre eles se apoiassem. Verdade é, porém,
que, no final das contas, não puderam resistir, apesar de sustentadas por ele.
Da mesma forma que um representante que recebe percentagem fica
interessado nos negócios de seu patrão, a burguesia russa, semicompradora
da finança estrangeira, tinha interesses imperialistas mundiais.
O instrumento de uma guerra é o exército. Sendo qualquer exército, na
mitologia nacionalista, considerado invencível, as classes dirigentes da
Rússia não tinham motivo para excetuarem o exército do tzar desse mito. Em
verdade este exército não representava força séria sendo diante das
populações semibárbaras dos vizinhos pouco importantes e dos estados em
decomposição; em terreno europeu este exército só poderia agir como
componente de uma coligação; na defesa do país só cumpria a sua missão
favorecido pelas imensuráveis distâncias onde a população era escassa e os
caminhos impraticáveis. O virtuose do exército dos mujiques ao tempo da
servidão foi Suvorov. A semiabolição da servidão e a instituição do serviço
militar obrigatório modernizaram o Exército tanto quanto o país ou, por
outra, introduziram no Exército todos os antagonismos de uma nação que
tinha ainda por fazer a sua Revolução burguesa. A bem dizer, o exército
tzarista se organizava e se armava segundo os moldes ocidentais; mas isto se
relacionava mais com a forma do que com o fundo. Entre o nível cultural do
camponês soldado e o nível da técnica militar não havia correspondência.
Nos corpos de oficiais manifestava-se a ignorância crassa, a preguiça, a
venalidade das classes dirigentes da Rússia. A indústria e os transportes
invariavelmente mostravam-se incapazes face às exigências concentradas do
tempo de guerra. Equipadas como convinha, assim parecia nos primeiros dias
de hostilidades, as tropas viram-se logo após desprovidas não somente de
armas mas até mesmo de botas. No decorrer da guerra russo-japonesa o
exército do tzar demonstrara o que valia. Por ocasião da contrarrevolução, a
monarquia, auxiliada pela Duma, abarrotou seus entrepostos de guerra e fez
no Exército inúmeros remendos, remendando também sua reputação de
invencibilidade. Em 1914 houve ocasião para nova verificação e ainda mais
penosa.
Quanto a equipamentos de guerra e as finanças, a Rússia encontrava-se,
logo à primeira vista, na dependência servil de seus aliados. Isto não é senão
a expressão militar da dependência geral em que vivia relativamente aos
países capitalistas mais avançados. O auxílio prestado pelos aliados não
salvou a situação. A falta de munições, número ínfimo de indústrias que as
fabricavam, a deficiência rodoferroviária que deveria distribuí-las traduziam
o estado atrasado da Rússia na linguagem clara das derrotas que obrigaram os
nacionais-liberais russos a se lembrarem de que seus antepassados não
tinham feito uma Revolução burguesa e que, por conseguinte, estava a
posteridade em débito com a História.
Os primeiros dias da guerra foram os primeiros do opróbrio. Após um certo
número de catástrofes parciais, foi determinada a retirada geral na primavera
de 1915. Os generais vingaram-se de sua incapacidade criminosa sobre a
população civil. Imensos territórios foram devastados pela violência. Os
gafanhotos humanos eram empurrados para a retaguarda a golpes de nagaica.
O desastre no front completava-se com o desastre interno.
O general Polivanov, ministro da Guerra, respondendo às perguntas ansiosas
dos seus colegas sobre a situação no front, declarava literalmente:
“Confiando na imensidade do nosso território, contando com os nossos
lamaçais insuperáveis, confio ainda nas boas graças de são Nicolau
Mirlikisky, patrono da santa Rússia” (Sessão de 4 de agosto de 1915, no
Conselho). Uma semana depois o general Ruszky confessava para os mesmos
ministros: “As exigências modernas da técnica militar são superiores às
nossas possibilidades. Não podemos, de modo algum, rivalizar com os
alemães.” Isto não era uma brincadeira. Um tal Stankevich, oficial, traduziu
assim as palavras de um chefe de corpo de engenheiros: “A guerra contra os
alemães é sem esperança, pois não estamos capacitados para fazer o que quer
que seja. Os novos métodos de luta transformam-se para nós em causas de
reveses.” Existem inúmeros testemunhos desse gênero. A única coisa que os
generais russos conheciam profundamente era a forma de conseguir carne
para canhão no país. Economizou-se muito mais a carne de boi e de porco.
As nulidades que se encontravam à frente do estado-maior Yanushkevich,
sob o comando de Nikolai Nikolaievich, e Alexeiev, sob as ordens do tzar
tapavam todas as brechas com novas mobilizações, e encontravam
consolação, para si e para os seus aliados, em alinhar colunas de números
quando o que faltavam eram colunas de combatentes. Cerca de 15 milhões de
homens foram mobilizados, enchendo depósitos, os quartéis, os
acantonamentos, multidão tumultuosa que patinhava no mesmo lugar,
pisando-se nos pés uns dos outros, multidões em desespero que proferiam
maldições. Se para o front esta massa humana tinha valor ilusório, na
retaguarda ela foi um fator ativo de desagregação. Houve, mais ou menos, 5,5
milhões de vitimas, entre mortos, feridos e prisioneiros. O número de
desertores aumentava. Já no mês de julho de 1915 os ministros
desmanchavam-se em lamentações: “Pobre Rússia! Até o teu exército, que
outrora encheu o mundo com o canglor de suas vitórias, hoje em dia se
compõe apenas de covardes e desertores!” Os próprios ministros, gracejando
em seu estilo chistoso, ridicularizavam “a bravura dos generais ao bater em
retirada” e perdiam horas e horas discutindo sobre se evacuariam ou não as
relíquias de Kiev. O tzar achava que não era indispensável, porquanto “os
alemães não ousariam tocar nelas e, no caso de se arriscarem, se dariam
muito mal!” O Sínodo, entretanto, já empreendera a evacuação: “Partindo”,
declarou, “levamos o que nos é mais precioso.” Isto se passava não na época
das Cruzadas, mas no século XX, quando as derrotas da Rússia eram
anunciadas pelo rádio.
Os sucessos alcançados pela Rússia sobre a Áustria-Hungria provinham
mais da situação desta última que da própria Rússia. A monarquia dos
Habsburgos, em putrefação, reclamava de há muito o seu coveiro, sem exigir
mesmo que fosse altamente qualificado. A Rússia, mesmo no passado,
conseguira o domínio de Estados em decomposição, tais como a Turquia, a
Polônia e a Pérsia. O front do sudoeste das tropas russas, dirigido contra a
Áustria, obteve grandes vitórias, o que o fez sobressair perante as demais
frentes. Alidestacaram-se muitos generais que, a bem dizer, não
demonstraram de modo algum suas aptidões de guerreiros, mas que, em todo
caso, não estavam saturados do fatalismo que caracteriza os capitães
invariavelmente derrotados. Deste meio foi que saíram, mais tarde, alguns
“heróis”, dentre os Brancos, na guerra civil.
Procurava-se a quem responsabilizar, por toda parte. Acusava-se de
espionagem a todos os judeus, sem exceção. Davam como suspeitos todos
cujo nome de família fosse alemão. O estafe do grão-duque Nikolai
Nikolaievich mandou fuzilar o coronel Myasoyedov, da Polícia, como espião
alemão o que provavelmente não era. Prenderam o ministro da Guerra,
Sukhomlinov, homem insignificante e tarado, acusando-o, não sem
fundamento talvez, de alta traição. O ministro dos Negócios Estrangeiros da
Grã-Bretanha, Grey, declarou ao presidente da delegação parlamentar da
Rússia que o governo do tzar agiria temerariamente caso resolvesse em plena
guerra inculpar de alta traição seu próprio ministro da Guerra. O estado-maior
e a Duma acusavam a corte imperial de germanofilia. Todos estavam
invejosos dos aliados e, entretanto, os detestavam. O comando francês
poupava as suas tropas utilizando, em primeiro lugar, os soldados russos. A
Inglaterra preparava-se lentamente. Nos salões de Petrogrado e nos estados-
maiores do front davam-se ao prazer de inocentes pilhérias. “A Inglaterra
diziam jurou resistir até a última gota de sangue... do soldado russo.” Tais
pilhérias se insinuavam nos níveis inferiores e eram repetidas no front. “Tudo
pela guerra!”, diziam os ministros, os deputados, os generais, os jornalistas.
“Sim começou a dizer o soldado nas trincheiras estão prontos para guerrear
até a última gota... do meu sangue.”
O Exército russo, no decurso da guerra, sofreu as maiores perdas que
qualquer outro dos exércitos envolvidos no massacre: mais ou menos 2,5
milhões de homens mortos, ou seja, 40% das perdas sofridas pelos exércitos
da Entente. Durante os primeiros meses, os soldados caíam sob os projéteis
sem refletir ou com pouca reflexão. De um dia para o outro porém, a
experiência deles crescia, a amarga experiência das camadas inferiores que
ninguém é capaz de comandar. Eles mediam a imensidade da desordem
criada pelos generais através das inúteis marchas e contramarchas executadas
sobre a sola dos sapatos gastos, segundo ainda o número de refeições que
deixavam de fazer. Na sangrenta débâcle dos homens e das coisas, uma
palavra se elevava para tudo explicar: “Que absurdo!”, e na linguagem rude
do soldado, o termo empregado era certamente mais apimentado.
A decomposição na infantaria, composta de camponeses, era bem mais
rápida que em outros setores. A artilharia, composta de maior proporção de
operários de indústria, distingue-se em geral pela capacidade bem maior de
assimilar as ideias revolucionárias: isto foi verificado em 1905. Se, em 1917,
contrariamente, a artilharia se mostrou mais conservadora do que a infantaria,
deve-se ao fato de que nos quadros da infantaria foram admitidas,
constantemente, novas massas humanas cada vez menos educadas; a
artilharia, entretanto, sofrendo perdas infinitamente menores, conservava os
antigos quadros. A mesma observação pode ser feita quanto às outras armas
especiais. No final das contas, porém, a artilharia também começou a ceder.
Durante a retirada da Galícia, uma instrução secreta do comandante em chefe
ordenava que fossem açoitados os soldados que desertassem ou que
cometessem outros crimes. O soldado Pireiko conta: “Açoitavam os homens
pelos menores delitos; por exemplo, pelo fato de se ausentarem do regimento
por algumas horas, sem permissão; muitas vezes mesmo usavam o açoite
unicamente para elevar o moral da tropa.” Desde o dia 17 de setembro de
1915, observava Kuropatkin, fazendo referência a Guchkov: “Soldados e
suboficiais iniciaram a guerra com ardor. Estão agora extenuados e de tanto
baterem em retirada perderam toda a fé na vitória.” Mais ou menos na mesma
ocasião o ministro do Interior declarava a respeito dos 30 mil soldados que
convalesciam em Moscou: “São elementos turbulentos que se insurgem
contra qualquer disciplina, dão escândalos, provocam rixas com os agentes da
Polícia (recentemente um policial foi morto pelos soldados), que libertam
pela força os indivíduos aprisionados, etc. Sem dúvida, em caso de
perturbação, toda esta horda tomará o partido do povo.” O soldado Pireiko, já
citado, observa ainda: “Todos, sem exceção, só se interessavam por uma
coisa: a paz... Qual seria o vencedor e o que traria esta paz não eram
preocupações do Exército. Ele queria a paz a qualquer preço porquanto estava
exausto da guerra.”
Uma boa observadora, S. Feodorchenko, que servia como enfermeira,
surpreendeu conversas de soldados, quase adivinhou os seus pensamentos e
anotou-os devidamente em folhas de papel. Disto resultou um pequeno livro,
O povo na guerra, o qual nos permite lançar um golpe de vista nos
laboratórios onde as granadas, as bombas, os gases asfixiantes e a baixeza das
autoridades trabalhavam, durante longos meses, as consciências de milhares
de camponeses russos e onde foram esmagados, juntamente com os ossos das
criaturas, os preconceitos seculares. Muitos dos aforismos originais, emitidos
pelos soldados, continham já naquela época as palavras de ordem da próxima
guerra civil.
O general Ruszky lamentava-se, em dezembro de 1916, pelo fato de Riga
constituir a grande desgraça do front setentrional. Era, segundo ele, um
“ninho de propaganda, o mesmo acontecendo com Dvinsk”. O general
Brussilov confirmava esta opinião: os efetivos que voltavam do setor de Riga
chegavam desmoralizados; os soldados negavam-se a avançar; mataram a
baioneta um capitão; foi preciso fuzilar muitos homens, etc., etc. “O terreno
propício à desagregação definitiva do Exército existia muito antes da
Revolução”, declara Rodzianko, que mantinha relações com o círculo de
oficiais e visitara o jront.
Os elementos revolucionários, dispersos a princípio, sumiram no Exército
sem quase deixar rastro. À medida, porém, que se firmava o
descontentamento geral, iam emergindo. Quando, por medida disciplinar,
enviaram ao jront operários que se declararam em greve, as linhas de
agitadores foram reforçadas e os movimentos de recuo do Exército
forneceram-lhes auditórios favoráveis. O relatório de um agente secreto
informava: “O Exército na retaguarda, e particularmente na vanguarda, está
cheio de elementos, alguns dos quais são capazes de se transformarem em
forças ativas de um levante e outros nada mais saberiam fazer do que se
recusarem a reprimi-los.” A direção da Polícia de Petrogrado comunica, em
outubro de 1916, baseando-se na exposição de um delegado da União dos
Proprietários de Terra, que o estado de espírito do Exército é alarmante, que
as relações entre oficiais e soldados são extremamente tensas, que ocorrem
mesmo choques sangrentos, que, por toda a parte, encontram-se milhares de
desertores. “Quem passou algum tempo nas proximidades do Exército guarda
a impressão completa e sincera de uma incontestável desmoralização das
tropas.” Por prudência o comunicado acrescenta que, se estas informações
parecem pouco verídicas em muitos pontos, deve-se, em todo caso, dar
crédito a elas tanto mais que inúmeros médicos que voltaram do front
prestaram declarações idênticas. O estado de espírito da retaguarda
correspondia com o do front. Na conferência do Partido Cadete, em outubro
de 1916, a maioria dos delegados fez referência à apatia e à falta de fé na
vitória “em todas as camadas da população, particularmente nos campos e
entre a gente pobre das cidades”. A 30 de outubro de 1916, o diretor do
Departamento de Polícia, resumindo um certo número de relatórios, escrevia
o seguinte: “Observa-se em toda a parte e em todas as camadas da população
uma espécie de cansaço provocado pela guerra, o desejo ardente de uma paz
rápida, sob quaisquer condições em que for firmada.” Alguns meses mais
tarde todos esses senhores deputados e policiais, generais e delegados do
poder, latifundiáriosafirmariam com a maior segurança que a Revolução
matara, no Exército, o patriotismo, e que a vitória, de antemão garantida, fora
arrebatada pelos bolcheviques.
O papel de corifeus no concerto belicoso dos patriotas coube aos
constitucionalistas democratas (Cadetes), indiscutivelmente. Tendo rompido
os seus laços problemáticos com a Revolução em fins de 1905, o liberalismo,
logo no início da contrarrevolução, levantou a bandeira do imperialismo. Esta
atitude era consequência da primeira: uma vez que era impossível livrar o
país das antiqualhas do feudalismo, para assegurar à burguesia uma situação
dominante, não restava senão concluir uma aliança com a monarquia e a
nobreza, com a finalidade de melhorar a situação do capital russo no mercado
mundial. Se é exato ter sido a catástrofe universal preparada em diversos
lugares, de tal modo que foi até um certo ponto inesperada, mesmo para os
organizadores mais responsáveis, não é menos duvidoso que na preparação
desta catástrofe o liberalismo russo, na qualidade de animador da política
externa da monarquia, não se encontrasse no último lugar. A guerra de 1914
foi reconhecida pelos líderes da burguesia russa como a sua própria guerra.
No decorrer de uma sessão solene da Duma nacional, a 26 de julho de 1914,
o presidente da fração cadete declarava: “Não apresentamos condições nem
formulamos reivindicações; jogamos apenas na balança a nossa vontade
firme de vencer o adversário.” A união sagrada tornava-se, também na
Rússia, uma doutrina oficial. Durante as manifestações patrióticas de
Moscou, o conde Benkendorff, chefe do Cerimonial, gritou em presença dos
diplomatas: “Muito bem! Foi esta a Revolução que nos profetizaram em
Berlim!” O embaixador da França, Paleologue, reforçava: “Um mesmo
pensamento parece ter-se apossado de todos.” Esta gente acreditava ser do
seu dever nutrir e semear ilusões em circunstâncias que, deveriam ter
calculado, excluíam qualquer possibilidade de engano.
As lições que deveriam remediar esta embriaguez não se fizeram esperar
muito tempo. Logo depois de estalar a guerra, um dos cadetes mais
expansivos, Rodichev, advogado e proprietário latifundiário, gritou no seio
do comitê central do seu partido: “Pois então pensais que com estes imbecis
possamos alcançar a vitória?” Os acontecimentos provaram que não se pode
vencer quando comandados por imbecis. Perdendo grande parte da esperança
na vitória, o liberalismo tentou utilizar a situação criada pela guerra para
proceder a uma depuração na camarilha palaciana e constranger a monarquia
a uma acomodação. O principal meio empregado foi acusar o partido da
Corte de sentimentos germanófilos e de tramar a paz em separado.
Na primavera de 1915, quando as tropas, desprovidas de armamentos,
recuaram em todo o front, decidiu-se nas esferas governamentais, não sem
certa pressão dos Aliados, fazer um apelo à iniciativa industrial para os
fornecimentos ao Exército. Para este fim foi organizada uma conferência
especial constituída, juntamente com os democratas, de industriais
designados entre os mais influentes. As Uniões dos Campos e das Cidades
criadas no início das hostilidades, assim como os Comitês das Indústrias de
Guerra, organizados na primavera de 1915 tornaram-se o ponto de apoio da
burguesia em sua luta pela vitória e pelo poder. A Duma nacional, escorando-
se nessas organizações, devia manifestar-se com mais ousadia como
intermediária entre a burguesia e a monarquia.
As largas perspectivas políticas não desviavam, entretanto a atenção dos
pesados problemas da atualidade. Da conferência especial, que era o
reservatório central, dezenas, centenas de milhões, que somaram bilhões de
rublos, foram distribuídos por meio de canais, irrigando abundantemente as
indústrias e satisfazendo, de passagem, incontáveis apetites. Na Duma
nacional e na imprensa, alguns lucros de guerra para 1915-1916 foram
levados ao conhecimento público. A Companhia Têxtil dos Riabushinskys,
liberais moscovitas, apresentava um lucro líquido de 75%; a Companhia
Tver, 111%; as laminações de cobre Kolchugin, cujo capital era de 10
milhões, ganhou mais de 12 milhões num ano. Neste setor a virtude patriótica
era generosamente recompensada, e notemos, sem retardamento.
A especulação de toda a espécie e as operações na Bolsa atingiram o
paroxismo. Imensas fortunas surgiam da espuma sangrenta. O pão e o
combustível faltaram na capital: isto não impediu que o joalheiro Faberget,
fornecedor da corte, não se vangloriasse de jamais ter feito tão bons negócios.
Vyrubova, dama de honra da tzarina, conta que nunca em temporadas
anteriores foram encomendados tantos ornamentos luxuosos, nem se
comprou tantos diamantes como no inverno de 1915-1916. As casas de
diversões noturnas estavam superlotadas de heróis da retaguarda, de
emboscados,1 e, falando mais simplesmente, de respeitáveis personagens
demasiado idosos para seguirem para o front, embora suficientemente jovens
para levar uma vida alegre. Os grão-duques não foram os últimos a
participarem do festim em tempo de peste.2 Ninguém hesitava em fazer
despesas excessivas. Uma chuva de ouro caía das alturas sem parar. A “alta
sociedade” estendia as mãos, abria os bolsos para “pegar mais” e as damas da
aristocracia levantavam a saia o mais alto possível; todos patinhavam numa
lama sangrenta banqueiros, intendentes, industriais, bailarinas do tzar e grão-
duques, prelados ortodoxos, damas e demoiselles da Corte, deputados
liberais, generais da vanguarda e da retaguarda, advogados radicais,
sereníssimos tartufos dos dois sexos, incontáveis sobrinhos e, sobretudo,
incontáveis sobrinhas. Todos se apressavam em surrupiar e abocanhar,
temerosos de ver terminada a chuva de ouro, tão bendita, e todos afastavam
com indignação a ideia de uma paz prematura.
Os lucros auferidos em comum, as derrotas no exterior, os perigos no
interior, proporcionaram uma aproximação dos partidos das classes
possuidoras. A Duma, dividida nas vésperas da guerra, coseguiu em 1915 a
maioria da oposição patriótica, que tomou o nome de Bloco Progressista. As
finalidades oficialmente declaradas foram, bem entendido, as de “satisfazer
as necessidades provocadas pela guerra”. Neste bloco não entraram, da
esquerda, os sociais-democratas e os trabalhistas, e, da direita, os pequenos
grupos bem conhecidos, como os Cem Negros, de caráter extremamente
reacionário. Todas as outras facções da Duma os cadetes, os progressistas, os
três grupos de outubristas, o centro e parte dos nacionalistas entraram no
Bloco ou se aliaram a ele, o mesmo acontecendo com os grupos nacionais:
poloneses, lituanos, muçulmanos, judeus, etc. Temendo assustar o tzar com a
solicitação de um Ministério responsável, o Bloco pediu “um governo de
coalizão, composto de personalidades que gozassem da confiança do país”.
Desde então o ministro do Interior, príncipe Sherbatov, caracterizara o Bloco
como sendo um agrupamento provisório, “uma coligação nascida das
apreensões existentes a respeito de uma Revolução social”. Aliás, para
compreender este raciocínio, não havia necessidade alguma de grande
perspicácia. Miliukov, líder dos cadetes e, portanto, do bloco oposicionista,
dizia, numa convenção do seu partido: “Andamos sobre um vulcão... A
tensão atingiu o limite máximo. Bastaria um fósforo atirado
imprudentemente, para provocar um incêndio horrível... Qualquer que seja o
poder, bom ou mal, um poder forte é, no momento, mais necessário que
nunca.”
Era tão grande a esperança de ver o tzar, abatido por tantos desastres, fazer
concessões, que na imprensa liberal foi publicada em agosto uma lista
antecipadamente confeccionada dos membros de um “Gabinete de
confiança”: como presidente da Duma, Rodzianko, como primeiro-ministro
(segundo outra versão, designava-se para primeiro-ministro o príncipe Lvov,
presidente da União dos Proprietários de Terra), Guchkov seria o ministro do
Interior, o dos Negócios Estrangeiros Miliukov, e aí por diante. A maioria
dessas personalidades, que se designavam a si próprias para uma aliança com
o tzar e contra a Revolução,devia, dezoito meses mais tarde, fazer parte de
um governo que se dizia “revolucionário”. Tais pilhérias a História se permite
mais de uma vez. No momento a que nos referimos, a brincadeira, ao menos,
não durou muito.
Em sua maioria, os ministros do Gabinete Goremykin eram cadetes
desorientados com a feição que as coisas tomavam e que, por isso,
inclinavam-se para um entendimento com o Bloco Progressista. “Um
Governo que não conta com a confiança do poder supremo, nem do Exército,
nem das cidades, nem dos zemstvos, nem da nobreza, nem dos negociantes,
nem dos operários é incapaz não somente de trabalhar como também de
existir. O absurdo é evidente.” Era nesses termos que o príncipe Sherbatov
apreciava, em agosto de 1915, o governo do qual fazia parte na qualidade de
ministro do Interior. “Se conduzirmos o caso convenientemente e se
deixarmos uma saída aberta”, dizia Sazonov, ministro do Exterior, “os
cadetes serão os primeiros a procurar acordo. Miliukov é um burguês
inveterado e teme, mais do que tudo, a Revolução social. Além disso, a
maioria dos cadetes teme pelos seus capitais.” De seu lado, Miliukov também
esperava que o Bloco Progressista “teria de fazer algumas concessões”. As
duas partes, portanto, estavam dispostas a negociar e poder-se-ia acreditar
que tudo andaria facilmente. A 29 de agosto, entretanto, o presidente do
Conselho, Goremykin, burocrata carregado de desafios e honrarias, um velho
cínico que só se ocupava de política entre duas partidas ganhas no baralho, na
grand-patience, e que afastava todas as queixas dizendo que a “guerra não lhe
dizia respeito”, dirigiu-se ao estado-maior do tzar para apresentar-lhe um
relatório; de lá voltou com a notícia de que tudo e cada um deveria
permanecer no seu lugar, com exceção da Duma nacional, por demais
presunçosa e cuja sessão seria adiada para o dia 3 de setembro. A leitura do
golpe do tzar decretando o adiamento da Duma foi ouvida sem uma só
palavra de protesto: os deputados deram hurras ao tzar e se dispersaram.
Como então o governo tzarista que, segundo suas próprias declarações, não
contava com qualquer espécie de apoio pôde manter-se no poder ainda por
um ano e meio? Os sucessos efêmeros do Exército russo tiveram sem dúvida
alguma influência reforçada por benéfica chuva de ouro. Os sucessos no front
estacionaram na verdade bastante cedo, mas os lucros na retaguarda
subsistiam. Todavia, a causa principal do fortalecimento da monarquia, um
ano antes de sua queda, residia numa diferenciação muito clara do
descontentamento popular. O chefe da Polícia Secreta de Moscou declarava
em relatório que a burguesia começava a tender para a direita levada pelas
“apreensões de excessos revolucionários que se dariam depois da guerra”; no
decorrer das hostilidades, como se vê, era ainda a Revolução considerada
como improvável. O que, além do mais, alarmava os industriais, era o fato de
“certos dirigentes dos comitês das indústrias de guerra estarem em idílio com
o proletariado”. Como conclusão, o coronel Martynov, da Polícia que por
dever profissional não lera sem proveito a literatura marxista declarava que a
relativa melhoria da situação política devia-se a “uma diferenciação cada vez
mais acentuada das classes sociais que punha a descoberto as vivas
contradições de interesses, particularmente sentidas no período que se
atravessa”.
A dissolução da Duma, em setembro de 1915, foi um desafio lançado
diretamente à burguesia e não aos operários. Enquanto, porém, os liberais se
dispersavam aos gritos de hurra ao tzar se bem que proferidos sem muito
entusiasmo os operários de Petrogrado e de Moscou replicaram com greves
de protesto. Foi uma nova ducha fria para os liberais: temiam mais do que
tudo a intromissão indesejável de terceiros no seu dueto familiar com a
monarquia. Entretanto, que fariam em seguida? Sob os tímidos grunhidos de
sua ala esquerda, o liberalismo optou por uma receita experimentada:
permanecer exclusivamente no terreno da legalidade e tornar a burocracia “de
qualquer maneira inútil”, assumindo as funções patrióticas. Foi necessário,
em todo o caso, deixar de lado a lista do Ministério liberal que haviam
projetado.
Nesse meio tempo, a situação se agravava automaticamente. Em maio de
1916 a Duma foi novamente convocada, mas ninguém sabia exatamente para
quê. De qualquer maneira, a Duma não tinha a intenção de lançar um apelo à
Revolução. Além disso, nada tinha para dizer. “Durante esta sessão”, diz
Rodzianko em suas memórias, “as reuniões foram cansativas, os deputados
pouco assíduos... A luta constante parecia infrutífera, o Governo nada queria
ouvir, a confusão crescia, e o país corria para a perda.” O medo da burguesia
diante da Revolução, e sua impotência, mesmo sem Revolução, asseguraram
à monarquia, durante o ano de 1916, uma aparência de apoio social.
Pelo outono a situação ainda mais se agravou. Tornava-se evidente a falta de
esperança na guerra; a indignação das massas populares ameaçava a todo
instante transbordar. Continuando, como anteriormente, a atacar o partido da
corte, acusando-o de germanofilia, os liberais julgavam indispensável sondar
se havia alguma chance de paz, pois preparavam o seu amanhã. Somente
assim se explicam as conferências que se realizaram em Estocolmo, no
outubro de 1916, entre o deputado Protopopov, um dos líderes do Bloco
Progressista, e o diplomata alemão Warburg. A delegação da Duma que
visitou amistosamente os franceses e ingleses pôde, sem dificuldade, verificar
em Paris e em Londres que os queridos aliados tinham, enquanto durasse a
guerra, a intenção de extrair da Rússia todas as suas forças vivas e, após a
vitória, fazer deste país atrasado o campo principal de suas explorações
econômicas. A Rússia, destruída e rebocada pela Entente vitoriosa, seria mais
do que uma colônia. As classes possuidoras da Rússia não tinham outro
recurso senão tentar libertar-se dos abraços por demais apertados da Entente e
encontrar o seu próprio caminho para a paz, utilizando o antagonismo de dois
formidáveis adversários. A entrevista que o presidente da delegação da Duma
manteve com o diplomata alemão, primeiro passo naquele caminho,
significava também uma ameaça aos Aliados, com o fim de conseguir
concessões e, ao mesmo tempo, um esforço de sondagem para verificar as
possibilidades reais de aproximação com a Alemanha. Protopopov agia de
acordo, não apenas com a diplomacia do tzar a entrevista teve lugar em
presença do embaixador da Rússia na Suécia –, mas com toda a delegação da
Duma nacional. Os liberais, ao realizarem este reconhecimento, mantinham
em relação à política interna planos não destituídos de menor importância.
“Confia em nós teriam dito ao tzar e te arranjaremos uma paz em separado
melhor e mais segura do que a de Sturmer.3” Segundo o plano de Protopopov,
isto é, de seus inspiradores, o Governo russo deveria notificar os Aliados,
“com alguns meses de antecedência”, da necessidade de entabular
conversações de paz, e a Rússia deveria assinar a paz em separado com a
Alemanha. Em confissão escrita depois da Revolução, Protopopov fala como
de algo muito natural que “todas as pessoas razoáveis da Rússia, e incluídos
nesse número quase todos os líderes do partido Liberdade do Povo (Cadetes),
estavam persuadidas de que a Rússia não se encontrava mais em condições
de prosseguir na guerra”.
O tzar, a quem Protopopov, logo após seu regresso, fez um relatório sobre a
sua viagem e suas conferências, acolheu a ideia de uma paz em separado com
a maior simpatia. Não via, porém, razão alguma para associar os liberais
neste caso. O fato de o próprio Protopopov, por mero acaso, ter sido admitido
na camarilha do Palácio, rompendo com o Bloco Progressista, se explica
unicamente pelo caráter desse vaidoso que se enamorou, segundo suas
próprias palavras, do tzar e da tzarina, ao mesmo tempo que se apaixonava
por uma pasta inesperada, de ministro do Interior. Que Protopopov tenha
traído o liberalismo é um episódio que em nada modifica o sentido geral da
política externa dos liberais, combinação de cupidez,

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