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Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação OS ADOLESCENTES E O USO DO WHATSAPP: LAÇOS E EMBARAÇOS NAS SUAS SOCIABILIDADES Mestrando: Ângelo Caminha Munhóz Orientador: Prof. Dr. Carlos Ângelo de Meneses Sousa Brasília – DF 2016 ÂNGELO CAMINHA MUNHÓZ OS ADOLESCENTES E O USO DO WHATSAPP: LAÇOS E EMBARAÇOS NAS SUAS SOCIABILIDADES Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Strictu Sensu em Educação da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em educação. Orientador: Prof. Dr. Carlos Ângelo de Meneses Sousa Brasília 2016 Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB M966a Munhóz, Ângelo Caminha. Os adolescentes e o uso do whatsapp: laços e embaraços nas suas sociabilidades. / Ângelo Caminha Munhóz – 2016. 225 p.; il.: 30 cm Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2016. Orientação: Prof. Dr. Carlos Ângelo de Meneses Sousa. 1. Educação. 2. Redes sociais. 3. Adolescentes. 4. Sociabilidades. 5. WhatsApp. I. Sousa, Carlos Ângelo de Meneses, orient. II.Título. CDU 37:004.7 Dedico este trabalho à minha educadora, melhor amiga e conselheira, minha mãe Rosa Maria Caminha Munhoz, pela sua dedicação incondicional em todos os momentos da minha vida. AGRADECIMENTOS Agradeço, antes de tudo, a Deus, pela vida e pela oportunidade concedida para realização deste mestrado. Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Ângelo de Meneses Sousa, pela confiança demonstrada, por todas as aprendizagens gratificantes que me permitiu alcançar, pautadas por uma convivialidade saudável e uma simplicidade que muito admiro e estimo. Um exímio orientador e grande amigo. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Católica de Brasília, que fizeram parte deste caminhar e cujos ensinamentos me permitiram conduzir este trabalho, proporcionando-me experiências pedagógicas muito significativas. Em especial, manifesto minha gratidão à Profa. Dra. Ranilce Mascarenhas Guimarães-Iosif pelo estímulo e ajuda determinante para concretização desta pesquisa. Aos amigos e colegas do Projeto “Juventude, Educação e Tecnologia: Sociabilidades e Aprendizagens – JETSA” do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Católica de Brasília, que compartilharam comigo esses momentos de aprendizado, especialmente à Carmen Dourado, Cintia Faro, Gleice Lemos, Ione Goulart e Sandra Almeida. Aos estudantes adolescentes que se dispuseram a participar da pesquisa e, especificamente, ao Serviço de Orientação Educacional da Escola (SOE), que foram essenciais para os resultados alcançados. À minha família, que soube entender a minha ausência nos muitos momentos desde que ingressei no mestrado até a conclusão desta dissertação. Enfim, a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para que este percurso pudesse ser concluído. Muito grato! “As manifestações da sociabilidade, os grupos, as classes sociais, mudam de caráter em função das sociedades globais em que estão integrados; inversamente, as sociedades globais se modificam de cima abaixo sob a influência da mudança de hierarquia e de orientação das primeiras.” (Georg Simmel) RESUMO MUNHÓZ, Ângelo Caminha. Os adolescentes e o uso do whatsapp: laços e embaraços nas suas sociabilidades. 2016. 225 fls. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica de Brasília – UCB, Brasília-DF, 2016. Com o objetivo de analisar como os adolescentes se apropriam do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp e quais as consequências desse processo para as suas sociabilidades, foi realizado um estudo exploratório com treze estudantes, na faixa etária de 15 a 18 anos, de ambos os sexos, de um escola pública de Ensino Médio do Distrito Federal. A fundamentação teórica se baseou em Simmel, Lévy e Castells, entre outros. Os dados foram coletados por meio de questionários e realização de dois grupos focais e ao material foi dado um tratamento qualitativo, por meio da Técnica de Análise de Conteúdo de Bardin. Como principais resultados, destacaram-se a apropriação fluente do aplicativo WhatsApp na sua rotina diária, a maioria, de maneira moderada a intensa. No entanto, não estão utilizando prioritariamente o aplicativo para suas interações com os seus grupos sociais, prevalecendo, ainda, as interações de modo presencial. Alternam-se nas comunicações ditas offline e online. São motivados a utilizar pela necessidade de uma comunicação imediata e de ubiquidade, cujo aplicativo disponibilizam de modo fácil e simples, propiciando uma conectividade contínua, inerente ao espaço contemporâneo. Também como motivações, recebem influências dos amigos e colegas, do mercado capitalista e da condição financeira familiar. Como oportunidades para as suas sociabilidades, apontaram a manutenção e intensificação dos seus relacionamentos, o gregarismo e a ampliação das redes de contato. Em referência aos desafios, indicaram os conflitos de comunicação, a privacidade digital e o aparecimento pontual de sintomas psíquicos e físicos. As consequências quanto às suas sociabilidades transpareceram de maneira dualística em laços e embaraços, principalmente nos seus círculos sociais básicos. No círculo dos amigos, os laços se formam na intensidade e na afetuosidade que interagem. Os embaraços, entre outros, no receio de exclusão do grupo, na ocorrência de conflitos e na questão da privacidade. No círculo da família, em busca de segurança, contatam com os pais por meio do WhatsApp, mantendo os laços primários. A restrição ao uso do aplicativo, a ausência em grupos de conversa familiares ou uma participação desprazerosa geram os embaraços. No círculo social escolar, oportunizados pelos recursos disponíveis no aplicativo, tornam-se colaborativos no compartilhamento das tarefas escolares, no registro do conteúdo a ser estudado e na participação em grupos de interesse estudantil. Os embaraços surgem na coibição do uso dentro de sala de aula e na pretensa neutralidade da escola quanto à prevenção do cyberbullying. Conclusões são preliminares, induzidas pela revisão da literatura e pela interpretação relatada pelos pesquisados. Diante disso, entendemos que os avanços tecnológicos comunicacionais que estão ocorrendo no século XXI requerem do saber acadêmico novas pesquisas buscando analisar as possíveis consequências na vivência dos adolescentes. Palavras-chave: Redes sociais. Adolescentes. Sociabilidades. WhatsApp. ABSTRACT With the objective of analysing how teenagers appropriate the message app for mobile devices WhatsApp and what are the consequences of this process to their sociabilities, an exploratory study was madewith thirteen students, of ages of 15 to 18 years, of both sexes, in a public high school of the Distrito Federal. The theoretical foundation was based on Simmel, Lévy and Castells, among others. The data was collected by means of questioners and implementation of two focal groups and the material was given a qualitative treatment by means of the Bardin's Content Analysis Technique. As the main results, the fluent appropriation of the WhatsApp app in their daily routine, mostly in a modest to intense way, stands out. However, the app is still not primarily used in their interactions with their social groups, prevailing, still, the face-to-face interactions. The online and offline communication are interchanged. They are motivated to use it by the need of immediate and ubiquitous communication, which the app makes available in an easy and simple way, allowing continuous connectivity, intrinsic to contemporary times. Also, as motivation, they receive influence from friends and colleagues, from the capitalist market and from the families' financial condition. As opportunities for their sociabilities, they pointed out the maintenance and intensification of their relationships, sociality and enlargement of their contact network. In relation to the challenges, they indicated the communication conflicts, digital privacy and the sporadic showing of psychic and physical symptoms. The consequences regarding their sociabilities transpired in dualistic manner as bonds and awkwardness, chiefly in their basic social circles. In the friend circle, the bonds arise from the intensity and warmth with which they interact. The awkwardness, among others, from the fear of exclusion from the group, conflicts and the matter of privacy. In the family circle, seeking security, they contact their parents through WhatsApp, keeping the primary bonds. The restriction to the use of the app, the absence of familiar talking groups or in an unpleasant participation generate the awkwardness. On the social school circle, given opportunity by the resources made available by the app, they become collaborative in sharing the school tasks, registering the subjects needed to be studied and participating in groups of student interest. The awkwardness arise from the restraint of the use inside classroom and from the pretentious neutrality of the school regarding the prevention of cyberbullying. The conclusions are preliminary, induced by the literature review and the interpretation reported by the researched. In face of this, we understand that the communication technology advances that are happening in the 21st century requires of the academic knowledge new researches seeking to analyse the possible consequences in the experience of the teenagers. Keywords: Social Networks. Teenagers. Sociabilities. WhatsApp. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Dados pessoais dos participantes da pesquisa Quadro 2 – Uso do WhatsApp pelos participantes da pesquisa Quadro 3 – Apropriação do WhatsApp pelos adolescentes Quadro 4 – Motivações básicas para a apropriação do WhatsApp pelos adolescentes Quadro 5 – Oportunidades (atribuídas aos adolescentes) que surgiram com o WhatsApp nas suas relações com os seus diversos grupos sociais Quadro 6 – Desafios (atribuídos aos adolescentes) que surgiram com o WhatsApp nas suas relações com os seus diversos grupos sociais SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 1 JUSTIFICATIVA ........................................................................................................... 15 2 OBJETIVOS ................................................................................................................... 18 2.1 OBJETIVO GERAL ...................................................................................................... 18 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ......................................................................................... 18 3 REVISÃO DA LITERATURA ....................................................................................... 19 3.1 REDES SOCIAIS .......................................................................................................... 20 3.1.1 A gênese das redes sociais, uma breve história e suas abordagens .......................... 21 3.1.2 Sociedade ................................................................................................................... 29 3.1.3 Sociabilidade .............................................................................................................. 33 3.1.4 A Sociabilidade em Simmel ....................................................................................... 34 3.1.5 Redes sociais na internet ........................................................................................... 43 3.1.6 Interações no ciberespaço: o que dizem os teóricos e os especialistas ..................... 45 3.1.7 O aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp ................................ 56 3.1.7.1 A trajetória do WhatsApp.......................................................................................... 56 3.1.7.2 Recursos e funcionalidades do WhatsApp ................................................................. 64 3.1.7.3 Algumas considerações sobre o uso do WhatsApp .................................................... 71 3.2 ADOLESCENTES ......................................................................................................... 76 3.2.1 Adolescência, suas conceituações e características ................................................... 76 3.2.2 A socialização dos adolescentes e seus círculos sociais ............................................. 82 3.2.2.1 A família .................................................................................................................. 83 3.2.2.2 A escola ................................................................................................................... 85 3.2.2.3 Os amigos e colegas ................................................................................................. 88 3.2.3 Os adolescentes contemporâneos nas redes sociais na internet ............................... 89 3.2.3.1 Os adolescentes contemporâneos .............................................................................. 89 3.2.3.2 Oportunidades e desafios dos adolescentes contemporâneos nas redes sociais na internet................................................................................................................................. 92 3.2.3.2.1 Crimes eletrônicos e cyberbullying ........................................................................ 94 4 METODOLOGIA ........................................................................................................... 97 4.1 DEFINIÇÃO E DESCRIÇÃO DO TIPO DE PESQUISA .............................................. 97 4.2 SUJEITOS DA PESQUISA ........................................................................................... 98 4.2.1 Critérios para definição dos sujeitos ........................................................................ 99 4.2.2 Uma aproximação com os adolescentes contemporâneos ...................................... 100 4.3 INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS .............................................................. 102 4.4 TÉCNICA DE ANÁLISE DOS DADOS ..................................................................... 105 5 REALIZANDO A PESQUISA ..................................................................................... 108 6 ANALISANDO OS DADOS ......................................................................................... 112 6.1 CARACTERIZANDO OS PARTICIPANTES ............................................................. 112 6.2 CATEGORIZANDOOS DADOS COLETADOS NOS GRUPOS FOCAIS ................ 115 6.3 DESCREVENDO, INTERPRETANDO E DISCUTINDO OS RESULTADOS ........... 119 6.3.1 Apropriação do WhatsApp pelos adolescentes ........................................................ 120 6.3.1.1 Naturalização do uso .............................................................................................. 120 6.3.1.2 Restrições ao uso .................................................................................................... 124 6.3.1.2.1 Quanto ao custo .................................................................................................. 124 6.3.1.2.2 Quanto ao controle .............................................................................................. 127 6.3.2 Motivações básicas para a apropriação do WhatsApp pelos adolescentes ............. 129 6.3.2.1 Comunicação .......................................................................................................... 129 6.3.2.2 Influência ............................................................................................................... 133 6.3.3 Oportunidades (atribuídas aos adolescentes) que surgiram com o uso do WhatsApp nas suas relações com os seus diversos grupos sociais .................................................... 137 6.3.3.1 Manutenção e intensificação dos relacionamentos .................................................. 137 6.3.3.2 Gregarismo ............................................................................................................. 144 6.3.3.3 Ampliação das redes de contato .............................................................................. 149 6.3.4 Desafios (atribuídos aos adolescentes) que surgiram com o uso do WhatsApp nas suas relações com os seus diversos grupos sociais ........................................................... 150 6.3.4.1 Conflitos de comunicação ....................................................................................... 151 6.3.4.2 Privacidade digital .................................................................................................. 155 6.3.4.3 Sintomas psíquicos e físicos pelo uso do WhatsApp ................................................ 161 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 169 APÊNDICE A – CONSULTA À BASE DE TESES E DISSERTAÇÕES ..................... 182 APÊNDICE B – ESTRUTURA DA PESQUISA ............................................................ 186 APÊNDICE C – 1 DIÁRIO DE CAMPO ...................................................................... 187 APÊNDICE D – 2 DIÁRIO DE CAMPO ...................................................................... 190 APÊNDICE E – SOLICITAÇÃO DE AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA NO CENTRO DE ENSINO MÉDIO XXXXX ............................................ 193 APÊNDICE F – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO AOS RESPONSÁVEIS ............................................................................................................. 194 APÊNDICE G – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO AOS PARTICIPANTES ........................................................................................................... 195 APÊNDICE H – CARACTERIZAÇÃO DO PARTICIPANTE .................................... 196 APÊNDICE I – GUIA DE TEMAS PARA OS GRUPOS FOCAIS ............................... 198 APÊNDICE J – TEMAS E VERBALIZAÇÕES ............................................................ 201 11 INTRODUÇÃO Em entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, o sociólogo espanhol Manuel Castells asseverou que já vivemos uma “virtualidade real” e não mais uma “realidade virtual” (FOLHA ONLINE, 2013). De fato, o avanço das Tecnologias de Informação e de Comunicação (TICs) e as suas aplicações nos diversos contextos da vida humana têm provocado uma crescente e irrefreável substituição das atividades presenciais, passando estas a realizar-se em ambiente virtual. O advento da internet na sua primeira geração possibilitou a disseminação de informações por meio da publicação de conteúdos. Na segunda geração, a chamada Web 2.0 ofertou aos seus usuários a criação conjunta e o compartilhamento de conteúdos por meio da utilização de plataformas, transfigurando os próprios processos de comunicação online (RETTBERT, 2008). Diante de tal avanço, as sociedades que dispõem dos novos recursos tecnológicos podem se apropriar de dispositivos móveis com acesso à internet que oportunizam uma comunicação imediata e eficaz, sobrepujando a questão das distâncias espaciais. Um dispositivo móvel (designado popularmente em inglês por handheid) é um computador de bolso equipado com um pequeno écrãn (output) e um teclado em miniatura (input). Atualmente, os dispositivos móveis mais populares são os chamados smartphones. Em tradução literal, smartphone é “um telefone inteligente”. Pode-se dizer que é a evolução do celular. A capacidade de realizar e receber chamadas representa “apenas um detalhe” para esse aparelho, que permite uma infinidade de possibilidades. Eles englobam algumas das principais tecnologias em comunicação em somente um local: Internet, GPS, E-mail, SMS, mensageiro instantâneo e aplicativos para muitos fins. Para muitas pessoas, é como ter o mundo ao alcance de um simples toque ou uma espécie de nosso controle remoto para o mundo. Um relatório intitulado Invasión Móvel Latinoamerica 2013 analisa o mercado móvel da América Latina a partir de diferentes perspectivas. Segundo o relatório, no final de 2013, o número de proprietários de smartphones na América Latina era de 114 milhões e, no final de 2014, 146 milhões. A estimativa é que em 2017 serão 243 milhões de proprietários na América Latina. Ainda de acordo com o mesmo documento, o Brasil registrou 41 milhões de usuários em 2014 e até 2017 terá 70,5 milhões de smartphones em uso (BRASIL LINK, 2014). 12 É nesse novo ecossistema comunicacional, evidenciado pelo surgimento de uma cultura de virtualidade derivada dos fluxos de imagens, de sons e de mensagens produzidos pela nova mídia, que encontramos a base de formação de novos padrões de representação e de comunicação da nossa sociedade (CASTELLS, 2002). Tal ecossistema comunicacional, sublinhado por Castells (2002), evidenciou-se inicialmente nos sites, blogs e, recentemente, nos aplicativos que constituem as redes sociais na internet como o Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp, dentre outros, que facultam a expressão e a troca de ideias das pessoas comuns. Isso significa que essas mesmas pessoas não precisam mais se utilizar dos seus representantes ou editores. Atuam agora como os verdadeiros protagonistas das suas narrativas por meio da tecnologia e da conectividade (LEMOS; FELICE, 2014). Se a forma como as pessoas se comunicam determina a forma como pensam, vivem e se comportam, tal como propôs Mcluhan (1964), então, podemos considerar a hipótese de estarmos perante uma monumental transformação cultural (CROSS, 2011). McMillin (2009) assevera que os adolescentes estão centralmente envolvidos nos sistemas interconectados, característicos da globalização, nos quais as tecnologias de informação e comunicação têm um papel ideológico significativo. A autora enfatiza que a adolescência é um tempo de construção de estruturas e de expressão de identidades, processos em que os sistemas mediáticos interferem de forma decisiva. A utilização das tecnologias de informação e comunicação pelos adolescentes tem como pano de fundo o seu processo de socialização, que é uma das questões primordiais nessa fase da vida (VALKENBURG; SCHOUTEN; PETER, 2005). Pelo que vemos, estamos diante de um grupo de pessoasnovas, a dita “Geração Digital”, diferente no que diz respeito à questão das relações sociais, os quais, aparentemente, caracterizam-se por constituir uma geração mais virtual do que real. Dentre os aplicativos supracitados que configuram as redes sociais na internet, um aplicativo de mensagens instantâneas por dispositivos móveis tem chamado atenção. Trata-se do WhatsApp, um dos aplicativos de mensagem, atualmente, mais usado no mundo todo (REVISTA EXAME, 2013). A pesquisa “O jovem brasileiro na rede”, realizada em julho de 2014 pelo CONECTA, plataforma web do IBOPE Inteligência, organização do Grupo IBOPE, com mais de 1500 jovens e adolescentes de todas as partes do país, indica que 79% do público internauta jovem no Brasil tem o WhatsApp instalado em seus celulares. Outro resultado da pesquisa foi que a grande maioria dos jovens e adolescentes afirmou estar sempre conectada às redes sociais 13 devido à facilidade de acesso pelo celular, sendo que 87% conectados continuamente ao WhatsApp (IBOPE, 2014). Dados como esses reforçam o peso que esse aplicativo adquiriu no país quando o assunto é a sociabilidade dos adolescentes via dispositivos móveis. Isso enseja uma reflexão mais profunda sobre como as tecnologias comunicacionais digitais estão (re)configurando as relações sociais realizadas pelos adolescentes na contemporaneidade. Diante desse contexto, este estudo parte do seguinte problema: Como os adolescentes se apropriam do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp e quais as consequências desse processo para as suas sociabilidades? Apresentamos, portanto, o trabalho realizado, a partir desta Introdução, com a contextualização e o problema de pesquisa aclarados. A seguir, apontamos a Justificativa do estudo, considerando a sua relevância científica, social e a motivação do pesquisador. Descrevemos os Objetivos, cingidos no objetivo geral e nos específicos, configurando-se, assim, após a Introdução, nos dois capítulos iniciais da dissertação. No terceiro capítulo, fazemos a Revisão da Literatura, esquadrinhando temas ponderados como constitutivos do problema proposto: as redes sociais, os adolescentes e as sociabilidades. Abordamos sobre redes sociais, percorrendo desde a sua gênese até as redes sociais na internet, elucidando os recursos e as funções do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp. Focamos na adolescência, suas conceituações e características, e nos adolescentes contemporâneos nas redes sociais na internet. Revimos sociabilidades em redes sociais com enfoque teórico sociológico e na temática adolescentes, observando os prováveis elementos/fatores e motivações que intervêm na sociabilização desses jovens. Apropinquamos, então, as teorias revistas sobre sociabilidade com as interações que acontecem no ciberespaço, direcionando-as ao aplicativo em estudo. O capítulo quatro, a Metodologia, diz respeito ao percurso metodológico adotado pelo pesquisador, definindo o tipo de pesquisa, os sujeitos a serem pesquisados, os instrumentos de coleta dos dados e a técnica a ser utilizada para respectiva análise. No quinto capítulo, Realizando a Pesquisa, relatamos as entrevistas com os adolescentes pesquisados, contextualizando o ambiente e o transcorrer da atividade. No sexto capítulo, Analisando os Dados, caracterizamos os participantes e construímos categorias a partir da decifração dos dados coletados. Com a categorização delineada, descrevemos, interpretamos e discutimos os resultados alcançados. A dissertação se finda com as Considerações sobre a pesquisa realizada, seguidas das Referências 14 Bibliográficas e dos Apêndices, nos quais, o material elaborado pelo pesquisador para o desenvolvimento do trabalho é apresentado. 15 1 JUSTIFICATIVA Em termos gerais, tanto os acadêmicos quanto as instituições de ensino, pesquisa e fomento apontam que um projeto de pesquisa deve ser justificado em observância a três critérios: a sua relevância científica, a sua relevância social e a motivação do pesquisador (GIL, 2010; LAKATOS, 2010; MINAYO, 2012). Após o surgimento da internet, que catapultou as possibilidades de interações virtuais por meio das suas redes, teóricos, pesquisadores e especialistas no tema têm buscado compreender os efeitos dessa conectividade nos diversos âmbitos da existência humana, sejam eles político, econômico, educacional ou social. Tal fato abre um leque imenso para estudos investigativos. Percebe-se que o uso dos aplicativos comunicacionais disponíveis na internet, que propiciam interações sociais, está ocorrendo num ritmo cada vez mais frequente e intenso. Por todos os lados e a todo tempo, vemos indivíduos acessando os seus smartphones, alheios ao seu mundo físico, interagindo online com outras pessoas. Reconhecido que a socialização do indivíduo é primordial para o seu desenvolvimento, bem- estar, integração e conduta na sociedade, que reflexos esse tipo de interação tem na socialização das pessoas? À vista disso, a presente pesquisa pretende discutir possíveis respostas e alternativas que, obtidas e analisadas de forma metodológica, vão agregar conhecimento para uma discussão mais embasada sobre a questão junto aos demais pesquisadores. Decerto, não podemos investigar as redes sociais na internet avaliando apenas os elementos tecnológicos e preterindo as pessoas que interagem por esse meio. Entendemos que as especificidades da interação mediadas por computador se estabelecem na interseção entre os aspectos humanos e os tecnológicos. Como já referido, pesquisas apontam que o aplicativo WhatsApp vem se tornando a nova febre da comunicação móvel e os adolescentes estão constantemente interconectados por intermédio dele. Por isso, optamos por investigar o uso desse aplicativo tendo como sujeitos da pesquisa os adolescentes contemporâneos. Buscando um panorama acadêmico brasileiro, em termos de teses e de dissertações, referentes a pesquisas sobre o uso do WhatsApp pelos adolescentes, realizamos uma consulta à Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT e ao Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, relatada no Apêndice A do presente documento. 16 Indubitavelmente, o estudo da consulta realizada contribuirá tanto conceitualmente quanto nos seus resultados para uma revisão do que se tem produzido nessa temática e também como um reforço ao desenvolvimento da presente pesquisa. Embora a literatura disponibilize autores que se debruçam em estudos e pesquisas, produzindo apontamentos bem fundamentados sobre a relação dos adolescentes com a internet e outras tecnologias comunicacionais, como vimos, por exemplo, na busca à base de dados supracitados, credita-se certo ineditismo ao projeto por tratar-se de um aplicativo muito recente e, por ora, sem pesquisas catalogadas sobre o seu uso com enfoque nos adolescentes, representando, a princípio, uma lacuna no conhecimento. Identificando pela voz dos próprios adolescentes de que forma lidam com o WhatsApp para as suas diversas interações, certamente obteremos informações para desvendar as possíveis consequências nas suas sociabilidades. Indicaremos, então, principalmente aos pais e aos próprios adolescentes, indícios que apontem como a utilização desse aplicativo pode estar supostamente representando oportunidades e desafios para socialização do adolescente, ou seja, quais os laços e embaraços1 que o uso dessa tecnologia pode estar ocasionando para esses pré-jovens nas suas variadas relações. Saliente-se que a repercussão do uso excessivo ou inadequado dessas tecnologias tem preocupado os profissionais de saúde, da educação, da comunicação e do sistema jurídico legal que lidam com crianças e adolescentes como público-alvo. Portanto, nós, pesquisadores da educação, devemos apresentar a nossa contribuição cumulativa para a sociedade com estudos sobre a questão, já que esses mesmos adolescentes serão os futuros adultos que devem assumir responsabilidades como cidadãos, profissionais e líderes do mundo em que vivemos. Justifica-se, então, com essas intenções, a relevância científica e social do projeto. A motivação do pesquisador emerge da sua própria trajetória profissional e da pós- graduação em curso. Tendo ingressado no Centro de Informática da Universidade de Brasília em 1979, como programador de computador, ascendendo, com o decorrer do tempo, a analista de tecnologia da informação, vivenciou toda a evolução da tecnologia comunicacional até culminar nesse intenso mundo digital com todas as facilidades de interação no ciberespaço que hoje usufruímos. Trata-se de uma experiência gratificante remontar aos primeiros passos para implantação da internet no Brasil, com o esforço de alguns professores pesquisadores das 1 Nesse contexto, a expressão “laços e embaraços” está sendo utilizada para designar os aspectos opostos concernentes às interações sociais. “Laços” no sentido figurado significando as oportunidades de aliança, vínculo, união. “Embaraços” representando os desafios ocasionados pela dificuldade, complicação, atrapalhação que podem ser decorrentes da construção ou tentativa dos próprios laços. Ressalte-se que essa expressão foi utilizada recentemente em uma tese de doutorado intitulada “O adolescente e a internet: laços e embaraços no mundo virtual”, descrita resumidamente no Apêndice A do presente trabalho. 17 universidades e restrito a poucos durante um bom tempo, até vislumbrarmos hoje essa disseminação crescente do seu acesso, estabelecida nas mãos de milhares de pessoas (apesar de observada ainda uma grande parcela da população mundial excluída digitalmente), por meio dos seus dispositivos móveis. No entanto, pela própria formação do pesquisador, talvez cingida pela ditadura militar imposta ao nosso país durante esse percurso, a percepção sempre foi da tecnologia pela tecnologia, condicionando-se a reflexões sobre o progresso tecnológico alcançado, sem outras lucubrações. Após os recentes estudos realizados no Mestrado em Educação, aflorou o interesse em compreender tal avanço tecnológico em uma perspectiva humanística, observando os aspectos educacionais, psicológicos e sociológicos intrínsecos ao tema. Com esse propósito, ingressei como participante no Projeto “Juventude, Educação e Tecnologia: Sociabilidades e Aprendizagens – JETSA”. Trata-se de um projeto do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Católica de Brasília, vinculado à Cátedra2 UNESCO de Juventude, Educação e Sociedade. O prazo de vigência do projeto é de três anos (2015 a 2017). O JETSA é coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Ângelo de Meneses Sousa e reúne professores pesquisadores e orientadores, vinculados à Cátedra, estudantes do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da UCB, na função de voluntários e estudantes de graduação na função de bolsistas de Iniciação Científica. O projeto tem como objetivo geral investigar como os adolescentes e jovens se apropriam das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e quais as consequências desse processo para suas aprendizagens e sociabilidades. Com base nesse objetivo geral, serão desdobrados objetivos específicos com diversas subtemáticas como: tipos de aprendizagens (política: ciberativismo, etc.), sociabilidades e linguagens, além de cultura digital, entre outras. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com uso de dados quantitativos e de caráter exploratório O universo e as amostras da pesquisa serão de estudantes universitários e adolescentes de instituições públicas e/ou privadas do DF a serem devidamente especificados na apresentação dos subprojetos. Sendo assim, a pesquisa em tela configura-se como subprojeto do JETSA, tendo como subtemática “sociabilidades” e como sujeitos da pesquisa os “adolescentes”. 2 A Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e Sociedade, criada em 2007 pela Universidade Católica de Brasília e aprovada pela UNESCO em 2008, foi inaugurada em 14 de agosto de 2008 e constitui o nó de uma rede internacional de pesquisa, ensino e extensão a respeito de um tema chave das sociedades no mundo: a juventude (ou juventudes, variando conforme sua classe e circunstâncias sociais). Disponível em: http://www.catolicavirtual.br/catedra/?slT=8. http://www.catolicavirtual.br/catedra/?slT=8 18 2 OBJETIVOS 2.1 OBJETIVO GERAL Analisar como os adolescentes se apropriam do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp e quais as consequências desse processo para as suas sociabilidades. 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Investigar de que forma os adolescentes se apropriam do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp e que motivações básicas estão envolvidas nesta apropriação; e Identificar que oportunidades e desafios atribuídos pelos adolescentes surgiram com o uso do aplicativo de mensagens por dispositivos móveis WhatsApp nas suas relações com os seus diferentes grupos sociais – colegas, amigos, familiares. 19 3 REVISÃO DA LITERATURA Segundo Noronha e Ferreira (2000), as revisões da literatura são estudos que analisam a produção bibliográfica em determinada área temática, circunscritos em um recorte de tempo, propiciando uma visão geral por meio da produção de um relatório do “estado da arte” ou “estado do conhecimento” sobre um tópico específico, apresentando subtemas, ideias, métodos e pesquisas existentes na literatura selecionada. Entendemos que a seleção da literatura deve ser pautada de acordo com os temas mais afins do problema de investigação, estabelecendo conexão com o objetivo geral do trabalho. No presente problema de pesquisa, identificamos três palavras-chave ou descritores que delimitam a revisão temática a ser apurada: WhatsApp, adolescentes e sociabilidades. “WhatsApp”, aplicativo que permite a troca de mensagens em grupo pelo celular de forma rápida e prática, tem se estabelecido como uma rede social na internet (REVISTA EXAME, 2013). Enseja, portanto, um estudo aprofundado sobre o conceito de redes sociais nos aspectos etimológicos, históricos, evolutivos e significativos na atualidade, principalmente quanto à sua abordagem tecnológica que permite interações virtuais nas redes sociais na internet. Os “adolescentes” são os sujeitos protagonistas da pesquisa, por isso, requer-se uma leitura acurada das abordagens teóricas alusivas às suas especificidades. Focaremos nas conceituações de adolescência, sociabilização do adolescente e o uso das redes sociais na internet pelos adolescentes contemporâneos. O termo “sociabilidades” será revisto na temática “redes sociais” com enfoque teórico sociológico e na temática “adolescentes”, observando-se os prováveis elementos/fatores e motivações que nele intervêm. De acordo com os especialistas, revisar significa retomar os discursos de outros estudiosos e pesquisadores não só para reconhecê-los, mas para interagir com eles, por meio de categorização e análise, buscando evidenciar a importância da pesquisa a ser realizada. Assim, manteremos um constante diálogo e entrelaçamento entre os autores revistos. Alves (1992) nos informa que: A produção do conhecimento não é um empreendimento isolado. É uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, completando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema (ALVES, 1992, p.54). 20 Segundo Cardoso (2010, p.7), “[...] cada investigador analisa minuciosamenteos trabalhos dos investigadores que o precederam e, só então, compreendido o testemunho que lhe foi confiado, parte equipado para sua aventura”. Diante dessa assertiva, os achados, conceitos, teorias e diversas conclusões obtidas pelos pesquisadores nessas áreas podem suscitar ajuda na percepção e na compreensão de como os adolescentes lidam com as redes sociais, particularmente com o dispositivo de mensagens móveis WhatsApp, e quais as consequências desse processo para as suas sociabilidades. 3.1 REDES SOCIAIS Redes sociais é um assunto abordado com extrema relevância pela literatura contemporânea, despontando como prioridade nas agendas científica, social e cultural. Como a tecnologia comunicacional evidencia e potencializa as redes sociais, sobretudo nos casos em que o fator espacial impede um contato e uma relação mais próxima, a menção de redes sociais tem sido naturalizada e associada, quase que exclusivamente, à tecnologia da informação. No entanto, ao contrário do modo de pensar da maioria das pessoas, o conceito de redes sociais não está restrito unicamente em reportar-se à internet. A palavra rede origina-se do vocábulo latim retis que, segundo Aurélio B. Holanda, significa o entrelaçamento de fios, cordas, “[..] com aberturas regulares fixadas por malhas formando uma espécie de tecido”. A partir da noção de entrelaçamento, malha e estrutura reticulada, a palavra rede foi adquirindo um caráter polissêmico, passando a ser empregada em diferentes contextos. Por meio de pesquisa bibliográfica sobre redes sociais, tendo como base os campos da Sociologia, Antropologia, Informação e Comunicação (por serem essas as áreas em que a noção de redes teve sua origem, sendo também mais frequentemente utilizada), é perceptível a existência de uma vasta e dispersa literatura produzida nas últimas décadas, com enfoques ora similares ora dissimilares. Na Sociologia, rede representa o conjunto de relações sociais entre um conjunto de atores e também entre os próprios atores. Designa ainda os movimentos pouco institucionalizados, reunindo indivíduos ou grupos numa associação cujos limites são variáveis e sujeitos a reinterpretações (COLONOMOS, 1995). 21 Para a Antropologia Social, a noção de redes sociais constitui “[...] a análise e descrição daqueles processos sociais que envolvem conexões que transpassam os limites de grupos e categorias” (BARNES, 1987, p. 163). No campo da Informação e Comunicação, redes sociais são concebidas como estruturas sociais virtuais compostas por pessoas e/ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações, que partilham valores e objetivos comuns na internet, constituindo para Castells (2002) uma “Sociedade em Rede” e utilizada analogamente por Levý (1999) para explicar a formação de uma possível “Inteligência Coletiva”. Portanto, falar em redes sociais significa trabalhar com abordagens variadas. Mas, como surgiu o conceito redes sociais? Como elas se formam? Como se estruturam? Buscamos, então, apresentar um panorama histórico dos conceitos de redes / redes sociais e propor uma possível identificação de agrupamento das abordagens empreendidas. 3.1.1 A gênese das redes sociais, uma breve história e suas abordagens Segundo Marteleto (2007), o conceito de rede não é um aporte próprio do século XX, mas pelo contrário, traz na sua significação a memória da sua origem orgânica e próxima do imaginário do corpo desde Hipócrates (Cós, 480 – Tessália, 377 a.C.), considerado, por muitos, o Pai da Medicina Ocidental Moderna. De forma metafórica, o termo rede foi utilizado pela primeira vez como semente de uma abordagem científica por Leonhard Euler (BUCHANAN, 2002; BARABÁSI, 2003; WATTS, 2003; 1999). Euler, um proeminente matemático e físico suíço, considerado um dos grandes gênios de sua época, em 1736, publicou um artigo sobre o enigma das Pontes de Königsberg. No século XVIII, a cidade de Königsberg (território da Prússia até 1945, atual Kaliningrado, na Rússia), localizada em meio a ilhas no centro do rio Pregolia, continha ao todo sete pontes e, folcloricamente, conta-se que, na época, um intrigante problema assolava a população local: seria possível encontrar um caminho atravessando as sete pontes sem nunca atravessar uma mesma ponte duas vezes? Euler, em seu trabalho, propôs a solução para o problema, oferecendo uma rigorosa prova matemática de que não existia um caminho que passasse por todas as sete pontes uma única vez. Para tanto, ele conectou as quatro partes terrestres (nós ou pontos) com as sete pontes (arestas ou conexões), mostrando a inexistência da referida rota. Além de resolver o http://ogestor.eti.br/o-que-sao-redes-sociais/## 22 problema das pontes, o autor criou o primeiro teorema da Teoria dos Grafos. Essa teoria é, hoje, a base de todo o conhecimento sobre redes (RECUERO, 2009). Uma rede pode ser representada por um grafo, que é constituído de nós e arestas conectando esses nós. É na Matemática Aplicada, por meio da Teoria dos Grafos, que se estudam as propriedades dos diferentes tipos de grafos. De forma metafórica, diversos sistemas podem ser representados por grafos. Por exemplo, um conjunto de órgãos e suas interações, um conglomerado de rotas de voo e seus respectivos aeroportos, bem como indivíduos e suas interações, todos esses sistemas podem ser observados mediante uma rede ou grafo (RECUERO, 2009). Figura 1: Representação gráfica da cidade de Königsberg Fonte: RECUERO, 2009, p.19 Até o século XIX, grande parte dos cientistas empenhou-se em analisar os fenômenos estudando cada uma de suas partes minuciosamente, buscando compreender o todo, modelo referenciado frequentemente como analítico-cartesiano. No entanto, a partir do século XX, surgem estudos diferenciados que trazem o enfoque para o fenômeno como constituído das interações entre as partes. Com influências do pensamento sistêmico, as redes dão origem a novos valores, novas formas de pensar e a novas atitudes (RECUERO, 2009). A primeira ideia de rede social surgiu no início do século passado como uma simbologia das relações sociais, compondo um tecido que determina a natureza da ação dos indivíduos nele inseridos. Por transposição, a palavra tecido ou rede foi apropriada pela Sociologia para associar o comportamento individual à estrutura a qual ele pertence. (RECUERO, 2009). 23 Desponta, então, uma metodologia denominada Sociometria, criada em 1934, por Jacob Levy Moreno (1889-1974), nos seus estudos sobre a relação entre as estruturas sociais e o bem-estar psicológico. Moreno (1934) designa Sociometria nos seguintes termos: “[...] o estudo matemático das propriedades psicológicas das populações, a técnica experimental e os resultados obtidos pela aplicação de métodos quantitativos e qualitativos.” Derivada do latim, a palavra sociometria é resultante da junção das palavras socius (social) e metrium (medida). Podemos, então, a partir da sua definição etimológica, entender como referente ao estabelecimento de medidas de variáveis sociais, ou medição do grau de vinculação entre indivíduos de um grupo. Na década de 40 do séc. XX, outra aproximação do conceito de redes sociais ancora-se na Antropologia Social por meio de Claude Lévi-Strauss em sua análise etnográfica das estruturas elementares de parentesco. Nesse contexto, a ideia de rede social é orientada para análise e descrição dos processos que envolvem conexões que ultrapassam os limites dos grupos e categorias (LÉVI-STRAUSS, 1976). Os norte-americanos Ray Solomonoff e Anatol Rapoport, em 1951, publicaram Connectivity of Random Net e introduziram o conceito de redes randômicas. Nesse artigo, os autores demonstram uma das propriedades mais importantes dessas redes, constatam que, à medida que aumentam as conexões e os nós, em determinado momento, a rede sofre umatransformação rápida do seu estado de agregação, passando de um conjunto de nós desligados, ou agrupados em pequenos grupos, para um estado em que surge um componente imenso conectado, embora ainda possam existir vários componentes dispersos. Tratou-se do primeiro artigo científico abordando o estudo sistemático do que hoje é conhecido por redes aleatórias (WATTS, 2003). Ao antropólogo e etnógrafo britânico Jonh A. Barnes, em 1954, é atribuído o primeiro uso do termo rede social (social network), quando começou a usá-lo sistematicamente para mostrar os padrões dos laços, incorporando os conceitos tradicionalmente usados pelos cientistas sociais (MITCHEL, 1969). Barnes enuncia por meio do seu célebre artigo intitulado Class and Committees in a Norwegian Island Parish (fruto de sua pesquisa sobre as relações entre os indivíduos de uma comunidade localizada em uma ilha no oeste da Noruega) a sua primeira definição de rede social: 24 La imagen que tengo es de un conjunto de puntos algunos de los cuales están unidos por líneas. Los puntos de la imagen son personas o a veces grupos, y las líneas indican que individuos interactúan mutuamente. Podemos pensar, claro está, que el conjunto de la vida social genera una red de este tipo (BARNES, 2003, p.127)3. Ainda na década de1950, Radcliffe-Brown introduz o conceito de rede social total para caracterizar a estrutura social enquanto rede de relações institucionalmente controladas ou definidas. Dessa forma, a rede social é percebida como uma rede na qual todos os membros da sociedade ou parte dela se encontram envolvidos (BARNES, 1972). No período compreendido entre 1958 a 1968, os matemáticos húngaros Paul Erdös e Alfréd Rényl publicaram oito artigos que revolucionaram o estudo das redes e estabeleceram a Teoria Randômica dos Grafos. Os autores entendiam os grafos e o mundo que os mesmos representavam como fundamentalmente aleatórios, propondo que as ligações entre os vértices das redes fossem, também, aleatórias. O trabalho de Erdös e Rényl é considerado fundamentalmente importante porque foi o primeiro a relacionar grafos com redes sociais e tentar aplicar suas propriedades e características para grupos humanos. Surge, então, o conceito de clusters4: grupos de nós conectados (BARABÁSI, 2009). Em 1964, nos EUA, quando do auge da Guerra Fria, o governo norte-americano pede a um pequeno grupo de investigadores que crie uma rede de comunicação militar que, para fazer face à ameaça soviética, fosse capaz de resistir a um ataque nuclear. Paul Baran, um engenheiro investigador da RAND Corporation percebeu que um sistema centralizado era vulnerável porque a destruição do seu núcleo provocava a destruição das comunicações. Baran (1964) classificou dois tipos fundamentais de redes: as centralizadas e as distribuídas. As primeiras, que definem uma estrutura hierárquica, têm um nó central que, se for eliminado, afetará toda a rede. As redes distribuídas são redes cuja estrutura forma uma malha, em que os nós têm a mesma importância entre si e, para alcançar um deles, existem vários caminhos possíveis. Isso significa que, ao contrário das centralizadas, a eliminação de um ponto não afetará significativamente a estrutura da rede. Baran criou então uma rede híbrida de arquitetura em estrela e com malhas, na qual os dados se deslocaram de forma dinâmica, “procurando” o caminho menos sobrecarregado, e “esperando” se todas as estradas estivessem sobrecarregadas. Tal tecnologia foi chamada “packet switching”. O conceito dessa 3 Tradução do autor: A imagem que eu tenho é um conjunto de pontos, alguns dos quais estão ligados por linhas. Os pontos de imagem são indivíduos ou, às vezes, grupos, e as linhas indicam que os indivíduos interagem mutuamente. Podemos pensar, claro, que toda a vida social cria uma rede desse tipo. 4 Em termos de redes sociais, os clusters são considerados grupos sociais coesos. Eles são unidos a outros grupos por meio de laços individuais de seus membros (RECUERO, 2009). 25 rede assentava num sistema descentralizado, permitindo a ela funcionar, apesar da destruição de uma ou várias máquinas (BARAN, 1964). A ideia revolucionária de Baran na década de 1960 ajudou a criar os fundamentos técnicos para a Arpanet, a precursora da internet de hoje. Um dos primeiros e relevantes estudos quantitativos de estrutura de redes sociais foi realizado por Stanley Milgram, um psicólogo social e professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em 1967. Milgram, a partir de um estudo científico, defendeu a tese, segundo a qual, estamos distantes de qualquer outra pessoa do mundo, a seis graus, isto é, seis pessoas nos separam de qualquer outra pessoa ou, de forma análoga, no mundo são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas. Essa tese ficou conhecida como a Teoria dos Seis Graus de Separação. Para chegar a esse número, Milgram enviou cartas a 160 moradores de Boston e Omaha (Nebraska-EUA), escolhidos de forma aleatória. Instruiu tais moradores para que reenviassem a carta recebida a uma pessoa alvo – um morador de Massachussets; como condição, as pessoas deveriam sempre passar as cartas em mãos por meio de contatos já existentes, amigos e conhecidos que pudessem ajudar na entrega da carta. Cada pessoa pela qual a carta passasse deveria escrever seu nome no envelope, assim foi possível monitorar seu percurso. Milgran identificou que o número médio de intermediários, do primeiro contato até a pessoa alvo, foi de seis pessoas e concluiu que a sociedade não é construída por conexões randômicas entre pessoas, mas que tende a ser fragmentada em classes. A principal contribuição de Milgram foi chamar a atenção para o quanto estamos conectados, e o fenômeno revelado pela pesquisa passou a ser conhecido pelo conceito de mundo pequeno (small-world) (COSTA et alii, 2003; MOLINA, 2004). Em 1971, Elizabeth Boot foi uma das primeiras antropólogas a utilizar o conceito de rede como uma ferramenta para a análise de relacionamentos entre pessoas e os seus elos pessoais em diversos contextos. Diferentemente de Barnes, que havia analisado a rede social de um ponto de vista geral, Bott reconstruiu a rede das relações sociais com base no comportamento das pessoas reais (BOOT, 1971). O interesse nesses estudos constituía em compreender a tipologia de contatos, as relações descontínuas, a importância dos papéis que os indivíduos definem para si nas relações, a sua intensidade, a durabilidade e a frequência. Mark Granovetter, sociólogo norte-americano da Universidade de Stanford, em 1973, publicou o artigo intitulado The Strenght of Weak Ties, divergindo da Sociologia tradicional ao propor a análise do padrão de conexão existente entre os indivíduos (grau de coesão das redes, fluxo de recursos entre os indivíduos como informação, afeto, dinheiro). Em tal artigo, Granovetter nos diz que apenas faz sentido aprofundar os critérios da Sociologia depois de 26 conhecido o grau de coesão social desses grupos e apresenta sua tese de que os indivíduos tomam decisões mais consistentes quanto mais fortes são os vínculos em suas redes (GRANOVETTER, 1973). Em 1983, Granovetter retoma a questão e publica o artigo The Strength of Weak Ties: A Network Theory Revisited, revendo alguns dos conceitos de 1973 e ressaltando que os denominados “Laços Fracos” são primordiais para disseminação da inovação, por serem redes formadas de indivíduos com experiências e formações diversas. O sociólogo assevera que, nas redes de “Laços Fortes”, há uma identidade comum, as dinâmicas geradas nessas interações não se estendem para outros grupos de pessoas, por isso mesmo, nas referidas redes, procuramos referências para a tomada de decisão; são relações com alto nível de credibilidadee influência. Aponta que os indivíduos que compartilham “Laços Fortes”, geralmente, participam de um mesmo círculo social, ao passo que os indivíduos com os quais temos relações de “Laços Fracos” são importantes porque nos conectam com vários outros grupos, rompendo a configuração de “ilhas isoladas” de pessoas e assumindo a configuração de rede social. Destaca que conceitos como tempo de dedicação, similaridade, hierarquização espontânea e transitividade explicam a força dos laços e a fragilidade deles (GRANOVETTER, 1983). Uma contribuição relevante para o estudo das redes sociais foi apresentada pelo sociólogo norte-americano Ronald Burt, que publicou Structural holes: the social structure of competiton, em 1992. Burt define “buracos estruturais” como falhas na estrutura da rede que podem ser estrategicamente preenchidas por ligações entre um ou mais elos, objetivando unir outros atores. O conceito de structural holes está atrelado à noção de capital social, visto que quem estabelece o elo entre duas pessoas que não estão ligadas pode controlar essa comunicação. Burt elucida que os “buracos estruturais” representam as relações que não são redundantes entre dois contatos e que formam um tipo de isolamento, propiciando benefícios relacionais aos atores. Segundo sua análise, o número de contatos aumenta os benefícios que circulam nas redes, a diversidade de relações contribui para a qualidade dos benefícios e os contatos não redundantes expõem os atores a diversas fontes de informação (SCHULTZ- JONES, 2009). Embasados nas pesquisas de Milgran (1967) e nas teorias de Granovetter (1973 e 1983), Ducan Watts e Steven Strogatz, em 1998, perceberam que as redes sociais apresentavam padrões altamente conectados, tendendo a formar pequenas quantidades de conexões entre cada um desses grupos (WATTS; STROGATZ, 1998). Os autores criaram um modelo similar ao de Erdós e Rényl: laços eram estabelecidos entre as pessoas mais próximas, 27 mas os laços estabelecidos aleatoriamente entre alguns nós transformariam a rede num mundo pequeno. Assim, a distância média entre duas pessoas no mundo não ultrapassaria um número pequeno de outras pessoas, bastando que alguns laços aleatórios fossem acrescidos entre os grupos. O modelo de Watts e Strogatz, proposto no seu artigo Nature Joint, 1998, é peculiarmente aplicado para as redes sociais e mostra uma rede mais próxima da realidade dessas redes: cada um de nós tem amigos e conhecidos em vários lugares do mundo que, por sua vez, têm outros amigos e conhecidos. Essa tendência ao agrupamento dos nós é quantificada pelo coeficiente de clusterificação ou agrupamento e foi utilizado pela primeira vez por esses autores nesse artigo em que relatam algumas das primeiras observações feitas em redes reais, indicando que elas tinham propriedades que iam além dos grafos aleatórios. (BUCHANAN, 2002). Albert-Lászió Barabási, em 2002, apresenta aspectos genéricos das redes reais que, apesar de estarem presentes nos modelos de Erdös e Rényl e Watts e Strogatz, não foram identificados por seus autores. Barabási demonstra que as redes não são formadas de modo aleatório. Aponta uma ordem na dinâmica de estruturação das redes quanto ao seu crescimento. Afirma que quanto mais conexões um nó possui, maiores chances de ele ter mais novas conexões. Denominou essa característica de preferential attachment ou conexão preferencial, significando que um novo nó tende a se conectar com um nó preexistente, mas mais conectado. Entende que essa asserção implica em outro aspecto relevante: as redes não seriam constituídas de nós igualitários, com a possibilidade de ter, aproximadamente, o mesmo número de conexões. Ao contrário, tais redes possuiriam nós que seriam altamente conectados e uma grande maioria de nós com poucas conexões. Com essas premissas, o autor introduziu o conceito de redes de escala livre e propôs o modelo Barabási-Albert para explicar seu surgimento generalizado em sistemas naturais, tecnológicos e sociais (BARABÁSI, 2009). A partir da última década, com a expansão da internet e a contribuição de autores de diversas áreas do saber, tem-se um progressivo crescimento dos estudos e do conhecimento sobre redes sociais. Características já identificadas como, laços fortes, laços fracos, mundos pequenos e redes de escala livre foram reestudados, validados e, entre outros elementos, subsidiaram o surgimento da Teoria das Redes Complexas, que busca a compreensão das relações complexas do mundo que nos rodeia. O panorama histórico e evolutivo acima discorrido evidencia que a abordagem de rede social nos revela uma multiplicidade de enquadramentos diferentes entre si que se distinguem 28 por vários aspectos: esquemas de referência teórico-conceitual, perspectivas e objeto de análises, métodos e técnicas empregadas. Dessa forma, apoiando-se nos escritos de Barnes (1972) e de Mitchell (1969), reflexionamos sobre a possibilidade de um agrupamento interpretativo, utilizando a noção de rede social e delineamos três abordagens plausíveis: uma abordagem metafórica, com foco na filosofia de rede, numa aproximação conceitual da interação entre os indivíduos (I); uma analítica, voltada para metodologia de análise de redes (II); e uma abordagem tecnológica em que a atenção está dirigida para as possibilidades que se colocam em relação às interações possíveis na sociedade por meio das redes eletrônicas de conexões (III). Buscando uma delimitação de estudo concernente ao problema de pesquisa proposto, trabalharemos com a noção de rede social na abordagem metafórica e na abordagem tecnológica. Na metafórica, observando a questão do estabelecimento de vínculos entre os indivíduos, elucidando os conceitos de sociedade e de sociabilidade. Na abordagem tecnológica, com enfoque nas redes sociais na internet, em que se caracteriza o aplicativo WhatsApp. Para Barnes (1972), a concepção básica de redes sociais para uso metafórico é a de indivíduos em sociedade, ligados por laços sociais, os quais podem ser reforçados ou entrarem em conflito entre si. Recuero (2009) afirma que redes sociais representam gente, interação, uma troca social. Um grupo de pessoas que faze parte de uma mesma estrutura. Para efeitos da presente pesquisa, pode-se inferir, em caráter sucinto, que rede social é um grupo de indivíduos que interagem de alguma forma e que, por meio de um fluxo de informações mútuas, estabelecem diversos tipos de relações. Quando abordamos redes sociais significando uma interação entre as pessoas, refletimos sobre a importância do ser humano em se comunicar. De acordo com Marcondes Filho (2002), basta estar vivo para se comunicar. Bordenave (1998) expressa o sentido da comunicação: Processo tão natural como respirar, beber água ou caminhar, a comunicação é a força que dinamiza a vida das pessoas e das sociedades: a comunicação excita, ensina, vende, distrai, entusiasma, dá status, constrói mitos, destrói reputações, orienta, desorienta, faz rir, faz chorar, inspira, narcotiza, reduz a solidão e – num paradoxo digno de sua infinita versatilidade – produz até incomunicação (BORDENAVE, 1998, p.11). Flusser entende a comunicação como um artifício utilizado para nos fazer esquecer a “[...] brutal falta de sentindo de uma vida condenada à morte” (FLUSSER, 2007, p 70). O 29 autor compreende que o homem é, antes de tudo, um animal político, não pelo fato de ser um animal social, mas porque não tem capacidade de viver na solidão (FLUSSER, 2007). Bodernave (2005) argumenta que o conceito de comunicação está aliado à ideia de “comum” e “comunhão”. Afirma que a comunicação é usada para as pessoas se relacionarem e transformarem a realidade que as rodeia. Mas, entende que, além de promover o processo de interação humana, talvez a função mais básica da comunicação seja a de ser o elementoformador da personalidade. E o autor nos diz que, sem ela, o ser humano não pode existir como tal. Sem a comunicação cada pessoa seria um mundo fechado em si mesmo. Pela comunicação as pessoas compartilham experiências, ideias e sentimentos. Ao se relacionarem como seres interdependentes, influenciam-se mutuamente e, juntas, modificam a realidade onde estão inseridas (BORDENAVE, 2005, p.36). Partindo desse raciocínio, vamos ao longo da vida fazendo parte de várias redes: família, escola, trabalho, grupo de amigos, associações e todas elas acabam por ficar interligadas por meio de um ou mais nós (indivíduos) até chegarmos a uma rede maior que podemos considerar a sociedade. Mas, então, são os indivíduos por meio das suas interações que formam a sociedade? Senão, qual o conceito de sociedade? 3.1.2 Sociedade Nobert Elias (1897-1990), um dos sociólogos de maior destaque no século XX, inicia sua obra “A Sociedade dos indivíduos”, publicada no final da década de 30, precisamente em 1939, questionando o conceito de sociedade: [...] todos sabem o que se pretende dizer quando se usa a palavra “sociedade”, ou pelo menos todos pensam saber. A palavra é passada de uma geração a outra como uma moeda cujo valor fosse conhecido e cujo conteúdo já não precisasse ser testado. Quando uma pessoa diz “sociedade” e outra a escuta, elas se entendem sem dificuldades. Mas será que realmente entendemos? (ELIAS, 1994, p. 13). Na revisão feita na literatura sobre o conceito de sociedade, percebemos interpretações clássicas e contemporâneas com diversas conotações. Então, pelo que nos parece, a afirmação e a posterior indagação de Elias ainda continuam pertinentes para os dias atuais. Uma das questões conflituosas observada na literatura refere-se à interpretação sobre a formação da sociedade e a formação do indivíduo. 30 Sousa (2011) ratifica nossa observação quando ressalta o clássico debate da teoria social: “[...] onde se põe a questão sobre quem forma quem, ou seja, a sociedade é quem forma o indivíduo ou é este quem forma a sociedade?” (SOUSA, 2011, p.182). Admitindo a problemática em relação à noção de sociedade tanto na teoria social quanto no debate informal, buscamos, analogamente ao conceito de redes sociais, uma referência nas suas concepções. Os sociólogos contemporâneos Anthony Elliot e Bryan Turner, pensadores da teoria social, em sua obra On Society, publicada em 2012, apontam-nos concepções relevantes sobre sociedade. Os autores alegam que a conceituação de sociedade dentro da Ciência Social vem sendo colocada sob suspeição, tanto pelos pensadores conservadores quanto pelos pós- modernistas, e por isso, os debates sobre o tema ficaram tão enfadonhos que perderam a sua significância (ELLIOT; TURNER, 2012). Elliot e Turner propõem então, (re)valorizar o conceito de sociedade. Para tal, argumentam que a sociedade, no aspecto teórico e na prática vivenciada pelos atores sociais, denota três conceituações imprescindíveis: sociedade como estrutura; sociedade como solidariedade e sociedade como processo criativo. Os autores afirmam que essas três concepções foram germinadas no final do século XIX, mas têm sofrido significativas modificações no decorrer do tempo. Certificam que a formação dessas concepções é oriunda tanto dos sociólogos clássicos quanto do pensamento social contemporâneo. Destacam que esses três sentidos não são estanques, ora se mesclam ora se conflitam (ELLIOT; TURNER, 2012). Segundo os autores, a concepção de sociedade como estrutura enaltece os valores morais e as regras de conduta nas relações sociais. No entanto, concomitantemente, realça comportamentos de conflito, rivalidade, concorrência e competição entre os atores sociais. Asseveram que a sociologia despontou com o anúncio do ordenamento social em que a estrutura social prevalece sobre os indivíduos ditando as normas sociais e a sua forma de proceder. Citam como referência a obra The sociological tradition, de Nisbet (1966), que teoriza o surgimento da Sociologia considerando que é o resultado de duas revoluções, a industrial e a francesa, tendo sido fortemente influenciada pelo pensamento conservador por meio dos conceitos impostos como sagrado, autoridade, hierarquia, conceitos que não dão a devida atenção à questão do ser individual. Destacam que o surgimento de várias formas de globalização, das novas tecnologias de informação, da constituição e o crescimento das comunidades multiculturais fortaleceram a concepção da sociedade como estrutura. Entendem que, nos dias atuais, o discurso da concepção da sociedade como estrutura vem sendo 31 intensamente utilizado como uma forma de se opor à diversidade cultural, um modo de refutar os movimentos sociais que questionam os princípios culturais, sociais e econômicos do capitalismo avançado, causando um desconforto emocional para os grupos sociais desfavorecidos dos benefícios da globalização (ELLIOT; TURNER, 2012). A concepção de sociedade como solidariedade, de acordo com Elliot e Turner, também tem sido construída e analisada desde o início dos estudos sociológicos. Os autores apontam que a intenção inicial de tal conceito ensejou contestar as ideias individualistas, a concepção de homo economicus, que desprezavam o valor dos laços sociais. Mencionam o sociólogo alemão Ferdinand Töennies como o precursor da noção de “comunidade”, na qual prevalecem a unidade social, a abstenção do individualismo e um sentimento forte de solidariedade entre as pessoas, similar às relações familiares. Recorrem às reflexões de Töennies e do filósofo britânico Alasdir MacIntyre acerca do enfraquecimento das ditas “comunidades” com caráter de solidariedade. MacIntyre assegurando que, no período da Revolução Industrial, os grupos sociais estavam coesos nas suas relações por determinados valores comuns, no entanto, com a realização contínua da urbanização, a convivência em comunidade fracionou-se e perdeu a sua propriedade. E Töennies, por sua vez, depreendendo que o aparecimento da sociedade capitalista desgastou os relacionamentos sociais de solidariedade até então existentes, estimulando o aspecto competitivo entre os indivíduos e sujeitando-os a uma condição de exploração e privações. Elliot e Turner creem que também o processo da globalização arrefeceu o conceito de sociedade como solidariedade, já que o conceito tem como essência a integração entre os indivíduos com mesmos valores, mesma linguagem e sentido de pertencimento. Buscam, então, em outras perspectivas, a possibilidade de nos dias atuais obtermos a concepção de sociedade como solidariedade. Remetem-se às reflexões de dois pensadores sociais, do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas e do sociólogo norte-americano Jeffrey Alexander que, com conjecturas analíticas distintas, apresentaram contribuições significativas do conceito de solidariedade. Habermas (2001) evidencia que, inicialmente, a solidariedade foi proposta para um contexto das sociedades nacionais, e que é preciso modificar esse enfoque para uma visão globalizada em que se estabelecem as interações de solidariedade por meio das entidades e movimentos transnacionais. Alexander (2006) percebe a existência de uma fragmentação da sociedade civil contemporânea; então, aventa a possibilidade da reconstrução do conceito de sociedade civil, criando-se uma esfera política própria na qual o multiculturalismo não exerça um papel destrutivo socialmente, mas oportunize o surgimento de um universo cultural 32 fundamentado em valores universalistas, estabelecendo, assim, laços de solidariedade (ELLIOT; TURNER, 2012). Elliot e Turner afirmam que o conceito de sociedade como processo criativo emerge distante da percepção de sociedade como estrutura, pois não ressalta o estabelecimento das forças sociais agindo sobre a conduta dos indivíduose também se afasta do conceito de sociedade como solidariedade, por não enfocar no multiculturalismo contexto que pressupõe a possibilidade do robustecimento de vínculos sociais num mundo globalizado. Segundo os autores, essa terceira formulação do conceito de sociedade busca relevar a necessidade de resolução pelos indivíduos de várias questões já existentes, de fundo político e do imaginário social, como por exemplo, a vontade de mudanças nas organizações de poder, a luta pela autenticidade pessoal e a pretensão pela liberdade. No entanto, enxergam a criatividade com uma hesitação entre duas ou mais possibilidades. Por um lado, com características da sensação de contentamento na participação da vida social, da inovação, da curiosidade, da tolerância nas relações entre os indivíduos; por outro, pelas diferentes formas de dominação social e cultural. Refletem, então, que sociedade como processo criativo pode produzir tanto efeitos sociais positivos quanto situações sociais opressivas. Exemplificam a positividade na prestação de ações solidárias como a organização da Anistia Internacional e a negatividade nas práticas genocidas, como Auschwitz. Por fim, os autores nos dizem que muitos pensadores da Teoria Social contemporânea têm convergido para a conceituação de sociedade como processo criativo incutidos no pensamento de que delineava a sociedade como um enredo complexo de relações entre os indivíduos, possibilitando, assim, a iniciativa, a criatividade e o erotismo nos processos interacionais (ELLIOT; TURNER, 2012). Diante dos conceitos de sociedade revistos, assumiremos, então, para teorização da presente pesquisa, a abordagem de sociedade como processo criativo, ancorando-nos no sociólogo Simmel, que nos diz que a sociedade deve ser entendida mais amplamente do que “[...] um conjunto complexo dos indivíduos e dos grupos unidos numa mesma comunidade política” (SIMMEL apud MORAES FILHO, 1983, p. 48). O sociólogo assegura que é preciso entendê-la como uma ação recíproca entre os indivíduos, ou seja, a sociedade formar-se-ia a partir da interação entre os indivíduos motivada por impulsos ou em função de certos propósitos. Segundo Simmel, o objeto da Sociologia deve ser a descrição das formas dessas interações, tendo como um de seus principais conceitos o de sociabilidade. 33 3.1.3 Sociabilidade Para discorremos conceitualmente sobre sociabilidade, é preciso de antemão reconhecer seus diversos significados, algumas controvérsias e sua complexidade. Quanto às raízes etimológicas, o termo é originário do latim, sociabilis (sociare) e itatem (itas), que designa a qualidade ou condição de associar-se de maneira próxima. De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, existem três definições para a palavra: 1. “a qualidade do que é sociável”; 2. “tendência para a vida em sociedade”; 3. “modos de quem vive em sociedade”. O termo relaciona-se ainda, conforme outros dicionários, com as ideias de: 1. Civilidade, no sentido de observação das conveniências, das boas maneiras em sociedade; 2. Urbanidade, como qualidade ou caráter de urbano; 3. Afabilidade, no sentido de cortesia, benevolência, benignidade, agrado. Em sentido corrente, é a qualidade de quem é sociável, ou seja, de quem tem o dom do relacionamento fácil e cordial com todos. Portanto, em referência ao seu significado, trata-se de um termo polissêmico, ou seja, é difícil indicar precisamente o que se quer dizer quando se usa o termo sociabilidade. Tal imprecisão do termo deriva das especificidades das relações envolvidas, pois mesmo circunscrita aos relacionamentos interpessoais, fica sem clareza de sentido “[...] utilizar um único termo para explicar relações tão diversas: relações entre vizinhos, amigos, desconhecidos, parentes” (HERAN, 1988, p. 18)5. A complexidade do termo se denota na grande dificuldade de medir, quantificar e analisar de forma sistematizada as relações de sociabilidade, visto que são interações não institucionalizadas, ao contrário das relações como casamento, parentesco, e hierarquia no trabalho, entre outras. A compreensão na formação dos contatos interpessoais também é dificultada pela sua dinamicidade, considerada como peculiar na sociabilidade. A dinamicidade deriva da frequente mobilidade entre os interagentes, configurando-se, assim, num objeto com certa fluidez a ser analisado pelos pesquisadores. Historicamente, o conceito de sociabilidade vem sendo disputado por diferentes correntes de pensamento presentes no debate das Ciências sociais. Em autores clássicos, encontramos importantes formulações que oferecem elementos para a compreensão do alcance teórico do conceito de sociabilidade. Para tanto, propõe-se um diálogo com Georg Simmel, autor que mais tem sido utilizado nos trabalhos acadêmicos sobre o tema nas últimas décadas. 5 A tradução desse excerto é de responsabilidade do autor. 34 3.1.4 A Sociabilidade em Simmel Entre os autores clássicos, o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918) ainda é acolhido de forma polemizada, particularmente no academicismo mais tradicional brasileiro, em que prevalecem Weber, Marx e Durkheim como os cardeais da Teoria Social clássica. Contudo, a sua relevância consiste em ser considerado um dos responsáveis pela consolidação da Sociologia na Alemanha, apesar de ter sofrido restrições, na época, decorrentes do antissemitismo (tinha ascendência judaica), da institucionalização das Ciências Sociais e da rígida estrutura acadêmica. Simmel atuou como um observador argucioso de seu contexto social, e foi com essa maneira de proceder que germinaram suas reflexões referentes às formas e expressões da modernidade histórica e social. Concorreu para um processo de aceitação de novas ideias na passagem do século XIX para o XX, repertoriando em sua produção um período da cultura europeia atribulada e dicotomizada, uma época da certeza, do saber moderno e científico, e ao mesmo tempo, uma época da incerteza e da alienação (WAIZBORT, 2000). Simmel tinha como maior desafio entender como a sociedade é possível. O seu interesse central pode ser resumido na problemática do indivíduo, do individualismo e da sociabilidade. Os seus escritos também enlaçaram temas como o dinheiro, a moda, as ruínas, as paisagens, a preguiça, o estilo, o coquetismo, a aventura, a moldura, o feminismo, as cidades, o conflito, o segredo, a fidelidade, o estrangeiro, a refeição, a filosofia da história, a epistemologia, a teoria da cultura, a arte e a religião. Buscava revelar em cada detalhe seu sentido global, um olhar direcionado à unidade e à inter-relação entre/das coisas. É um filósofo/sociólogo, um pensador do relacionismo, da ligação do individual imediato com as significações espirituais maiores (FREUND, 1986). Para Vandenbergue (2005), Simmel concebia que tudo está ligado a tudo. Essa sua visão de mundo possibilita enxergar fenômenos e ideias movendo-se, relacionando-se como redes, analogias e afinidades em busca dos seus sentidos mais profundos e simbólicos. Sua obra é “[...] marcada pela multiplicidade de direções, pluralidade de perspectivas, defesa do fragmento e oposição a toda pretensão do sistema” (FRÚGOLI JR, 2007, p.8). A metodologia do sociólogo ficou conhecida como Microssociologia, uma vez que analisou a sociedade por meio dos fenômenos do nível micro. Desenvolveu, também, uma tradição conhecida como Formalismo, que estabelece como prioridade o estudo das formas. 35 “A obra de Simmel é ainda capaz de nos mostrar como é possível interpretar o mundo renunciando aos mitos da integração, da totalidade e da legalidade científica” (FRISBY, 1992, p.41). Nesse universo intelectual de Simmel, destaca-se o livro “Questões Fundamentais da Sociologia”, denominado de “Pequena Sociologia”, uma síntese dos pontos
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