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www.abdpc.org.br A SISTEMÁTICA DA TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL E A GRADUAL INTRODUÇÃO DE PRINCÍPIOS DA COMMON LAW NO DIREITO BRASILEIRO Lucas Belloc Marins Pós-graduado em Direito Processual Civil pela ABDPC - Academia Brasileira de Direito Processual Civil Advogado. RESUMO O presente estudo propõe uma análise acerca do funcionamento da teoria do precedente judicial utilizada nos países da common law, a fim de traçar um paralelo com a natureza de algumas mudanças havidas do Direito brasileiro nos últimos anos, que sugerem a flexibilização de alguns dos princípios do nosso sistema, sabidamente legalista, e uma aproximação com alguns dos princípios da common law. Para tanto, discorre-se inicialmente acerca do funcionamento deste sistema de precedente judicial, de seus conceitos e de suas aplicações. Em seguida, tecem-se considerações relativamente aos demais aspectos a serem considerados para a clara compreensão deste sistema e às premissas que o servem de base. Por fim, analisa-se mais detidamente a possível influência da teoria do precedente judicial utilizada nos países da common law nas reformas operadas no Direito brasileiro nos últimos anos, propondo-se uma reflexão acerca do modelo de justiça adotado no Brasil. Palavras-Chave: Precedente Judicial; Common Law; Princípios; Civil Law; Decisão Judicial; Justiça; Legislação. www.abdpc.org.br INTRODUÇÃO Como é sabido, o Direito brasileiro é norteado pelos princípios da civil law, um sistema caracterizado como legalista, isto é, que tem como fonte primária do Direito a legislação. Entretanto, ao longo dos últimos anos tem-se notado, com algum destaque, certa relativização desta rigidez de princípios, que, sob certo aspecto, tornava o magistrado, grosso modo, um mero aplicador da lei, ou, como definiu Montesquieu, la bouche de la loi (a boca da lei). Nesta senda que, ao longo dos últimos anos, tem sido possível se notar que as decisões emanadas do Poder Judiciário vêm sendo valoradas também como fonte criativa do direito, o que sugere, de fato, uma mudança de perspectiva, que nos conduz a uma aproximação com alguns dos princípios do sistema da common law. Vale dizer que esta mudança se fez notar não apenas na cultura dos operadores do sistema, que notadamente têm outorgado à jurisprudência maior importância na construção de teses jurídicas, por exemplo, mas podemos destacar também outros elementos concretos a abalizar esta percepção. A regulamentação do sistema de súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal é, sem dúvida, um destes elementos. Por outro lado, a adoção, pelo legislador brasileiro, dos chamados conceitos vagos nos textos de lei é outro importante indicativo neste sentido, na medida em que este mecanismo abre ao magistrado maiores possibilidades de criação, verdadeiramente, de uma solução para o caso concreto, a partir de uma premissa, e tão somente uma premissa, estabelecida pela legislação. Estas mudanças, que evidenciam a valorização da decisão judicial como fonte criativa do Direito, já vem sendo estudadas pela doutrina e foram definidas como uma verdadeira “commonlawlização” do Direito brasileiro. Destarte, a fim de bem contextualizar o tema, se buscará analisar inicialmente, no âmbito do presente estudo, a maneira pela qual se dá o funcionamento do sistema de precedente judicial utilizado nos países da common law, bem como as premissas e valores que dão sustentação a este modelo de www.abdpc.org.br justiça, para posteriormente se identificar, propriamente, de que maneira se dá a influência dos princípios da common law, em especial da teoria do precedente judicial, no Direito brasileiro. 1. DA SISTEMÁTICA DE PRECEDENTE JUDICIAL UTILIZADA NOS PAÍSES DA COMMON LAW Para bem se tratar do tema relacionado ao sistema de precedente judicial, há que se fazer, inicialmente, uma breve consideração. É que, na realidade, o precedente judicial, por si só, está presente em todos os sistemas jurídicos reconhecidos, de modo que a questão de fundo a ser analisada, que se constitui na grande distinção do sistema de precedente judicial utilizado nos países da common law, é a importância atribuída ao precedente judicial, as hipóteses em que lhe é atribuído caráter vinculativo e as hipóteses em que o caso julgado constitui meramente um elemento de persuasão, que atue tão somente de maneira subjetiva no convencimento do magistrado. Deste modo, tendo em vista que o objetivo deste estudo é justamente suscitar uma reflexão acerca de uma possível influência dos princípios da common law, em especial do sistema de precedente judicial, no Direito brasileiro, é importante que enfrentemos, preliminarmente, algumas definições e conceituações deste sistema, para o bem de, posteriormente, identificarem-se suas aplicações no cenário jurídico nacional. Pois, nas precisas palavras dos juristas DIDIER JUNIOR, BRAGA e OLIVEIRA, “Precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” 1 Nesta mesma linha, TUCCI afirma que “O precedente então nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar- se a regra de uma série de casos análogos.” 2 1 Fredie Didier Junior; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Curso de Direito Processual Civil. 2009, v. 2. p. 381. 2 José Rogério Cruz e Tucci. Precedente judicial como fonte do direito. 2004, p. 11-12. www.abdpc.org.br Desta maneira, a par dos conceitos doutrinários colacionados, é preciso que se pontue com clareza que, em se tratando do sistema da common law, o componente fundamental do precedente judicial é a sua eficácia vinculante, especialmente daqueles emanados de Corte Superior. Está-se diante da chamada teoria do stare decisis, bem definida nas perspicazes palavras de PORTO: A proposta é, pois, de que nos países onde se segue a tradição anglo-saxônica da common law, a decisão jurisdicional assuma a função não apenas de dirimir determinada controvérsia posta à apreciação do juízo, mas, além disto, também desempenhe a tarefa de estabelecer um precedente com força vinculante, de modo a assegurar que no futuro, em caso análogo, venha a ser decidido da mesma forma. 3 Ainda sobre a teoria do stare decisis, TUCCI 4 afirma que a sua premissa básica é a imposição ao magistrado do caso posterior de que adote, no julgamento do caso sub judice, a mesma solução encontrada anteriormente para casos análogos. Sem dúvida, esta questão da força vinculante do precedente é o elemento que diferencia com mais clareza o papel da jurisprudência no sistema da common law, em comparação ao sistema da civil law. Enquanto neste último a solução do caso posto a julgamento passa pela aplicação da disposição legal incidente ao caso concreto, no sistema da common law a solução do caso em julgamento deverá ser encontrada, salvo exceções, no precedente judicial que julgou caso análogo em momento anterior. Exatamente neste sentido é a lição de PORTO, que, mais uma vez, porque absolutamente oportuna, traz-se à baila: Assim, nos países em que vige o sistema da common law, acima da legislação e acima de qualquer outra fonte do direito está o caso julgado pelas cortes e que, portanto, criam precedentes e, por decorrência, verdadeiramente, fazem nascer o direito com base na experiência. Nesse sentido, as decisões jurisdicionais, em tais países, como se vê, 3 Sérgio Gilberto Porto. Sobre a Common Law, Civil Law e o precedente judicial. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf>. 10/maio/2010. 4 José Rogério Cruz e Tucci. Op. Cit. p. 12. www.abdpc.org.brdesempenham um papel que transcende o caso posto ao crivo judicial.5 Vale destacar, entretanto, que a questão da aplicação de determinado precedente a um caso posto a julgamento, no âmbito da teoria do stare decisis, deve ser precedida de uma cuidadosa análise acerca da similitude entre os casos, o chamado distinguishing. Aliás, para que se possa retratar com clareza a maneira pela qual se procede a este exame, é importante que se trabalhe sobre o conceito da composição do precedente judicial, que, de acordo com as lições de TUCCI, é dividido em duas partes distintas, quais sejam: “a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório.” 6 Como se verá, de suma importância que se faça essa distinção, na medida em que, como nos ensina o ilustre jurista SOUZA,7 não obstante se proclame que a teoria do precedente judicial adotada na common law importe na força vinculativa de decisão anteriormente prolatada, na realidade o que vincula os juízes dos processos posteriores é a ratio decidendi desta decisão. O indigitado autor traz à baila, ainda, trecho de decisão proferida pela Court of Appeal da Inglaterra, em 1988, no caso de Ashville Investments Ltd x Elmer Contractors Ltd, onde o julgador assevera a questão da vinculação da ratio decidendi, cuja transcrição permite-se, porque absolutamente oportuna: Em minha opinião, a doutrina do precedente apenas envolve isso: quando um caso foi decidido numa corte, é somente o princípio legal ou os princípios legais com base nos quais aquela corte decidiu que vinculam as cortes concorrentes ou de jurisdição inferior e requer dessas cortes que os sigam e adotem quando são relevantes para a decisão de casos posteriores perante tais cortes. A ratio decidendi de um caso 5 Sérgio Gilberto Porto. Op. Cit. p. 7. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf>. 10/maio/2010. 6 José Rogério Cruz e Tucci. Op. Cit. p. 12. 7 Marcelo Alves Dias de Souza. Do precedente judicial à sumula vinculante. 2007, p. 125. www.abdpc.org.br prévio, o motivo pelo qual ele foi decidido como foi, é, na minha opinião, somente para ser entendido neste sentido um tanto limitado. 8 - 9 Em relação ao conceito, propriamente dito, da ratio decidendi, pode-se citar a definição dos juristas DIDIER JUNIOR, BRAGA e OLIVEIRA para quem a ratio decidendi consiste no “(...) conjunto de fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo julgador no caso concreto.” 10 Demais disso, é importante enfatizar que a ratio decidendi de uma decisão “(...) não é pontuada ou individuada pelo órgão julgador que profere a decisão. Cabe aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na como precedente, extrair a ‘norma legal’ (abstraindo-a do caso) que poderá ou não incidir na situação concreta.” 11 Os demais elementos componentes da decisão que deu origem ao precedente, tais quais os que não possuem influência direta no provimento decisório, que são apenas argumentos de passagem, ou, conforme definição de TUCCI, antes citada, que retratam apenas as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia, constituem o chamado obter dictum e não vinculam os casos posteriores. Feita esta breve conceituação, volta-se à questão da identificação da similitude entre os casos paradigma e paragonado, situação que deve ser enfrentada pelo magistrado para o fim de eleger o precedente que eventualmente solucione a controvérsia que lhe foi posta a julgamento. 8 Texto original: “In my opinion the doctrine of precedent only involves this: that when a case has been decided in a court it is only the legal principle or principles on which that court has so decided that bind courts of concurrent or lower jurisdictions and require them to follow and adopt them when they are relevant to the decision in later cases before those courts. The ratio decidendi of a prior case, the reason why it was decided as it was, is in my view only to be understood in this somewhat limited sense.” 9 Marcelo Alves Dias de Souza.op. cit. p. 125. 10 Fredie Didier Junior; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira.. Op. Cit. p. 381. 11 José Rogério Cruz e Tucci. Op. Cit. p. 175. www.abdpc.org.br Como já se disse anteriormente, esta análise se constitui em etapa de extrema importância na metodologia do stare decisis. Trata-se, ademais, de atividade complexa, ao contrário do que possa parecer. Neste sentido, traz-se à baila mais uma vez as lições de TUCCI: A complexa atividade lógica de interpretação do precedente judicial vale-se, outrossim, do método de confronto, denominado distinguishing, pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma. 12 Nesta mesma linha é a lição de PORTO, que destaca a intensa atividade exercida pelo magistrado até que se conclua, ao cabo, pela aplicação, ou não, de determinado precedente: Como se vê, pois, há uma intensa atividade de joeiramento desenvolvida pelo magistrado da common law americana, aos efeitos de assegurar que efetivamente existe identidade de casos e, por decorrência, salvo erro na origem, o posterior é merecedor de tratamento idêntico ao anterior. Assim, pode-se afirmar que dentre os requisitos para reconhecimento do precedente aparece com intensidade superlativa a atividade de identificação de demandas, pela via da análise do suporte fático e do direito. 13 É preciso que se esclareça, também, de modo a não pairarem inseguranças, que a aplicação do precedente somente estará avalizada, por assim dizer, pelo sistema, a partir do momento em que se constatar a identidade entre o objeto das demandas. Neste sentido, traz-se, mais uma vez, as lições de PORTO: O que importa, adotando-se linguagem própria do sistema romano-germânico, especialmente na senda brasileira de tal família jurídica, é a identidade de suporte fático e pretensão. Havendo, pois, identidade de causas, há vínculo a ser seguido e respeitado, como garantia de isonomia de tratamento jurisdicional. 14 12 José Rogério Cruz e Tucci. Op. Cit. p. 174. 13 Sérgio Gilberto Porto. Op. Cit. p. 16. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf>. 10/maio/2010. 14 Idem. Ibidem. p. 10. www.abdpc.org.br Reforçando a necessidade de que se caracterize uma clara identidade entre as demandas para que haja a aplicação do precedente, SOUZA considera: Em linhas gerais, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior em julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será seguido. 15 Por fim, é importante destacar que o fato de haver um precedente condicionando, a princípio, o julgamento de um caso posto à apreciação do Judiciário, não significa que o juiz se transforme em um mero instrumento de justiça, isto é, a quem simplesmente incumbiria dizer aplicável determinado precedente, encerrando o caso, se assim fosse, de forma singela. Neste sentido a doutrina de DIDIER JUNIOR, BRAGA e OLIVEIRA: Percebe-se, com isso, certa maleabilidade na aplicação dos precedentes judiciais, cuja ratio decidendi (tese jurídica) poderá, ou não, ser aplicada a um caso posterior, a depender de traços peculiares que o aproximem ou afastem dos casos anteriores. Isso é um dado muito relevante, sobretudo para desmistificar a idéia segundo a qual, diante deum determinado precedente, o juiz se torna um autômato, sem qualquer outra opção senão a de aplicar ao caso concreto a solução dada por um outro órgão jurisdicional. Não é bem assim. Assim como o juiz precisa interpretar a lei para verificar se os fatos concretos se conformam à sua hipótese normativa, cumpre-lhe também interpretar o precedente para verificar a adequação da situação concreta à sua ratio decidendi. 16 Retratada, assim, mesmo que de maneira breve, a maneira pela qual se dá o funcionamento da teoria do precedente judicial (stare decisis) no sistema da common law, passa-se a seguir a analisar os valores e as premissas deste sistema, que deram origem a um modelo de justiça que acabou consagrado em grandes nações, para, posteriormente, analisar-se de que forma estas idéias vêm sendo introduzidas no Direito brasileiro. 15 Marcelo Alves Dias de Souza. Op. cit. p. 142. 16 Fredie Didier Junior; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. Cit. p. 394. www.abdpc.org.br 2. DOS DEMAIS ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS PARA A COMPREENSÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTE JUDICIAL UTILIZADO NOS PAÍSES DA COMMON LAW A bem de se alcançar uma razoável compreensão acerca da maneira pela qual se dá o funcionamento do sistema da common law, especialmente em relação à questão do precedente judicial com força vinculativa, já explorada no item anterior, é importante que se aborde também as premissas que estão por trás desta engrenagem, os valores sociais, enfim, todos os aspectos que deram origem e que dão sustentação a este modelo de justiça. Aliás, o enfoque que se buscará adotar nesta breve análise será justamente o de examinar o modelo de justiça, por assim dizer, adotado nos países da common law, para, depois, como já dito, traçar-se um paralelo com a justiça brasileira, propondo uma espécie de reflexão. Partindo deste pressuposto, é importante destacar, desde já, que não parece adequado atribuir, pura e simplesmente, o bom funcionamento da justiça e o prestígio do sistema da common law nos países que o adotaram ao alto grau de desenvolvimento socioeconômico que os mesmos possuem. Na realidade, a questão aparenta ser um pouco mais complexa, em que pese não se possa negar que eventualmente haja relação entre o bom funcionamento do Poder Judiciário para com o alto índice de desenvolvimento social verificado nestes países. No entanto, também é certo que há fortíssimos elementos culturais vinculados à formatação do modelo de justiça adotado por estas nações, valores que são cultivados desde os primórdios e que foram moldando o perfil da população, que, por sua vez, assume a condição de jurisdicionado na sua relação com o Poder Judiciário. Enfim, o que se nota, na realidade, é a existência de uma relação indissociável entre tais elementos. Avançando um pouco na questão, e falando agora especificamente sobre as condições em que foi concebida a idéia da teoria do precedente judicial no sistema da common law e sobre as razões pelas quais este www.abdpc.org.br sistema acabou consagrado nos países em que foi adotado, traz-se à baila, mais uma vez, as brilhantes considerações de PORTO sobre esta temática: A doutrina norte-americana, de sua parte, elenca uma série de explicações para a utilização da idéia de precedente vinculante. Convém, pois, ressaltar os argumentos apresentados. (a) Primeiro, em decidindo as demandas, os juízos devem dirimir questões de direito. Na mesma jurisdição, o direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais. Para desenvolver o direito uniformemente e através do sistema judicial, as Cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores. Trata-se, pois, do prestígio ao valor ‘segurança jurídica’. (b) Em segundo lugar, justiça imparcial e previsível significa que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia. (c) Em terceiro lugar, se na prática fosse de outra forma, isto é, não fossem as decisões judiciais previsíveis, o planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção. (d) Em quarto lugar, stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, a qual incrementa a credibilidade do poder judicante junto a sociedade. (e) Em quinto lugar, além de servir para unificar o direito, serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face do padrão pré-fixado de comportamento judicial. Em resumo, a existência da doutrina da stare decisis acredita implementar - modo claro - qualidade e segurança na prestação do serviço justiça e, por decorrência, melhorar o convívio social. 17 Dentre as assertivas lançadas pelo ilustre jurista gaúcho, todas extremamente oportunas, cabe destacar a menção ao valor segurança jurídica, relacionada à questão da vinculação vertical de um precedente emanado de uma corte superior, que deve ser obedecido pelos juízos hierarquicamente inferiores. Por conseguinte, o indigitado autor aborda o princípio que reza a necessidade de se outorgarem provimentos jurisdicionais semelhantes a casos que tenham identidade de objeto, independente das partes que componham a relação processual, em clara alusão ao princípio da isonomia e consagrando o conceito de “justiça imparcial e previsível”. Por fim, e talvez a mais importante e palpitante questão, o autor aborda a suposta influência do comportamento do Poder Judiciário no agir da população. De acordo com o que se pode depreender das 17 Sérgio Gilberto Porto. Op. Cit. p. 9. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf>. 10/maio/2010. www.abdpc.org.br palavras do nobre jurista, a estabilidade ou a previsibilidade das decisões judiciais sem dúvida interferem no convívio social, na medida em que, em certos aspectos, condicionam o comportamento dos particulares. Um exemplo clássico, fazendo um breve parêntese e já traçando um paralelo com a justiça brasileira, está na questão do ato ilícito, seja um ilícito civil ou criminal. Neste particular, a questão da resposta do Poder Judiciário, a toda evidência, possui fundamental relevância no comportamento do particular, na medida em que pode sugerir, ou não, que se evite o cometimento do ilícito. Mesmo parecendo uma análise simplista, há lógica em se pensar que o agir de um transgressor se dará de forma muito mais reticente se sabedor, de antemão, do posicionamento da justiça em relação a esta conduta. De qualquer maneira, saindo deste exemplo específico, a questão da estabilidade das decisões judiciais parece, de fato, contribuir de forma relevante à pacificação dos conflitos no convívio social, outorgando, também, maior prestígio e credibilidade ao Poder Judiciário perante a população. Isto, sem dúvida, se reflete em um maior grau de obediência das decisões judiciais e acaba por cultivar de maneira permanente a crença na soberania da Justiça. 3. DA INFLUÊNCIA DE ALGUNS DOS PRINCÍPIOS DA COMMON LAW NAS MUDANÇAS HAVIDAS NO DIREITO BRASILEIRO Superada esta breve análise da sistemática de funcionamento do sistema de precedente judicial, bem como das premissas que dão suporte a este modelo de justiça adotado pelos países da common law, torna-se inevitável a reflexão acerca da figura do Poder Judiciário brasileiro atualmente e o que ela representa para os jurisdicionados. Desnecessários maiores esforços para que se perceba uma clara distinção entre o modelo de justiça cultivado nos países da common law, altamente prestigiado pela população, em comparação ao modelo utilizado pelo Brasil, que apresenta um sem número de problemas e insatisfações, seja por parte www.abdpc.org.br de seus operadoresou, e especialmente, por parte dos jurisdicionados. Não bastassem os inúmeros problemas que o país enfrenta nas searas socioeconômica e política, por exemplo, é inegável que a instabilidade do comportamento do Poder Judiciário é um dos elementos que vem a tumultuar o convívio social. Não se fala aqui apenas da questão da impunidade, que se tornou verdadeiro clichê, mas também da insegurança do jurisdicionado, que tem de conviver, por exemplo, com a incerteza do provimento jurisdicional, que ora dispõe em um sentido, ora em outro, diametralmente oposto. Além disso, são inúmeros os demais fatores que têm contribuído para um progressivo desmerecimento da figura da Justiça no Brasil. Contudo, é preciso que se destaque que este diagnóstico parece já ter sido feito, e há algum tempo, o que se pode notar a partir de algumas reformas que vêm sendo operadas nos últimos anos. Este movimento reformista, por assim dizer, tem se caracterizado pela observância, em seu agir, de alguns princípios básicos. Notadamente se está a buscar, em longo prazo, por meio destas reformas, justamente a estabilização das decisões judiciais, a partir da valorização da jurisprudência como fonte criativa do Direito e da proposta de vinculação de precedentes do Supremo Tribunal Federal aos juízos de hierarquia inferior e, inclusive, à administração pública, quando retratadas questões de Direito Público. Especificamente em relação ao tema da valorização da decisão judicial como fonte criativa do Direito, convém destacar que isto se faz notar especialmente por uma tendência que vem sendo seguida pelo legislador brasileiro nos últimos anos, qual a seja a de adotar os chamados conceitos vagos ou abertos nos textos normativos. Ao adotar esta sistemática, o legislador acaba atribuindo ao magistrado a tarefa de criar uma solução para o caso concreto posto a julgamento, na medida em que a letra da lei não lhe preestabelece um caminho rígido a ser www.abdpc.org.br seguido, isto é, não lhe condiciona a simplesmente aplicar uma solução prefixada em lei. 18 De outro lado, mais especificamente em relação à questão da força vinculativa dos precedentes judiciais, SOUZA assevera que “(...) nos últimos anos, em razão da crise pela qual passa o Judiciário brasileiro (e essa crise tem atingido certas verdades preestabelecidas), o tema do precedente judicial entrou na “pauta do dia”, mesmo sem muita profundidade acadêmica.” 19 Mas, enfim, o certo é que a natureza destas reformas sugerem, de fato, uma aproximação do Direito brasileiro com alguns dos tradicionais princípios da common law. Daí porque o ilustre jurista PORTO tem convencionado chamar este movimento reformista de a “commonlawlização” do Direito brasileiro: Da common law para civil law, há, digamos assim, uma crescente simpatia por algo que pode ser definido como uma verdadeira "commonlawlização" no comportamento dos operadores nacionais, modo especial, em face das já destacadas facilidades de comunicação e pesquisa postas, na atualidade, a disposição da comunidade jurídica. Realmente, a chamada "commonlawlização" do direito nacional é o que se pode perceber, com facilidade, a partir da constatação da importância que a jurisprudência, ou seja, as decisões jurisdicionais vêm adquirindo no sistema pátrio, particularmente através do crescente prestigiamento da corrente de pensamento que destaca a função criadora do juiz. (...) parece inegável a identificação de um movimento claro de reconhecimento da necessidade de atribuir-se, nesta quadra da história, ao menos a certas decisões judiciais, um prestígio superlativo e, nesta medida, passa a existir clara identificação com o propósito da doutrina do stare decisis, cujo seu assento principal está - exatamente - no necessário prestigiamento das decisões judiciais. Isto decorre de vários fatores e dentre esses, máxima vênia, inclui-se a facilidade de acessos a outras culturas, via globalização, ou seja, a facilidade de comunicação facilitou o diálogo entre famílias jurídicas distintas e, por decorrência, intensificou aquilo que denominamos 18 Fredie Didier Junior; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Op. cit. p. 386. Reiteram os autores que “A atividade criativa se mostra presente também nos casos em que o magistrado se depara com conceitos vagos (conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais), atualmente tão comuns nos textos legais.”. 19 Marcelo Alves Dias de Souza. Op. cit. p. 281. www.abdpc.org.br commonlawlização do direito nacional, pois conseqüência das experiências colhidas junto a common law. 20 E prossegue o eminente jurista: Quer, pois, o projeto, fazer com que as decisões sumuladas, vale dizer, questões de direito que tenham sido julgadas diversas vezes da mesma forma, sejam obedecidas pelas jurisdições inferiores, vinculando os magistrados aos precedentes jurisprudenciais superiores. Este movimento representa, ainda que de maneira criticável, uma verdadeira pitada de commonlawlização no direito nacional, pois institui algo similar ao propósito do stare decisis. 21 Destarte, ao que parece estas soluções que aos poucos vêm sendo implantadas no sistema brasileiro são, de fato, adequadas à resolução de alguns dos problemas que vêm sendo enfrentados ao longo dos últimos anos. Há que se alertar, no entanto, que não se deve mirar como modelo ideal de justiça a ser adotado rigorosamente aquele utilizado pelos países da common law, simplesmente em razão da boa aceitação do mesmo nestes países. Acredita-se que deva haver prudência nesta chamada interação entre os sistemas, respeitando-se as peculiaridades de cada país, a bem de evitar que acabem descartados, junto com os mecanismos tidos como defeituosos alguns aspectos positivos que certamente se podem destacar em nosso atual sistema. 22 CONCLUSÃO Parece ter restado evidenciado, a partir das considerações tecidas no bojo do presente estudo, que se está, de fato, diante de um movimento reformista no direito processual brasileiro, que tem como diretriz a interação entre o 20 Sérgio Gilberto Porto. Op. Cit. p. 21. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf>. 10/maio/2010. 21Idem. ibidem. 22 Marcelo Alves Dias de Souza. Op. Cit. p. 283. Destaca o autor “(...) propõe-se, no que é chamada de interseção de sistemas, a adoção de uma teoria do precedente que seja compatível com nossas tradições e, sobretudo, com nossa realidade.” www.abdpc.org.br sistema desde sempre utilizado no país, da civil law, para com importantes institutos do sistema da common law, em especial a teoria do precedente judicial. Por trás deste movimento reformista, que tem como fonte inspiradora, por assim dizer, alguns dos mecanismos utilizados no sistema da common law, é possível perceber de forma clara um anseio pela busca de soluções mais efetivas às dificuldades enfrentadas pelo Judiciário brasileiro, soluções pautadas por análises mais detidas e profundas, que visam a atingir o âmago do problema, em detrimento de soluções paliativas e imediatistas. Isto é, busca-se, mais que nada, uma mudança de ideologia, uma reforma ampla, e não apenas de procedimentos. Talvez, se tenha chegado a conclusão de que simples reformas procedimentais, tais como as que visam à aceleração da marcha processual ou à diminuição de recursos, jamais resolverão, por exemplo, o grave problema de acúmulo de demandas e todas as consequências danosas dele decorrentes. Na realidade, o diagnóstico acerca dos problemas enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro parece apontar para a necessidade de mudança, especialmente, do comportamento do jurisdicionado perante a Justiça, isto é, uma mudança ideológica, cultural, de valores. Entretanto,curiosamente, ao que tudo indica, para se alcançar este objetivo há que se intentar, primeiramente, uma mudança na forma de atuação do próprio Judiciário, que tenda, de certa forma, a condicionar a postura do jurisdicionado perante a Justiça, ou que ao menos sugira um padrão de comportamento diverso do que hoje se observa. Por isso, aliás que, muito provavelmente, se tenha buscado no sistema da common law a inspiração para uma mudança de paradigma do Judiciário brasileiro, haja vista que nos países que adotam este sistema se constata que a forma de atuação do Poder Judiciário se constitui em uma das formas de pacificação do convívio social, isto é, é a atuação do Judiciário revertendo em seu próprio benefício. Sem dúvida, um ideal a ser perseguido. www.abdpc.org.br BIBLIOGRAFIA DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4. ed., v. 2. Salvador: Ed. JusPodvim, 2009. SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à sumula vinculante. Curitiba: Ed. Juruá, 2007. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004. FONTES ON LINE PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre a Common Law, Civil Law e o precedente judicial. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto- formatado.pdf>. 10/maio/2010.
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