Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
m 12 Vanessa Passos, Nina Rizzi e Raymundo Netto Itinerários de Leitura: Um Passeio pela Literatura do Ceará l i t e r a t u r a CURSO c e a r e n s e Realização 178 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 1. ERA UMA VEZ... A vida do escritor da província é um drama pungente. Trancado no silêncio e na distância sem estímulo, sem recompensa, com jornais de circulação limitada, com edições precárias – os que se dão às letras têm o destino dos emparedados: vivem subterraneamente. O Brasil não é só o Rio de Janeiro. Mário Linhares, em História literária do Ceará, 1948. sse prometido passeio pela Literatu- ra Cearense já vem acontecendo, de forma breve, desde o nosso primeiro módulo. Você, que se abancou nesse curso, por sua “janela virtual” leu e ouviu, certamente, muita coisa que ainda não conhecia ou mesmo de que já havia ouvido falar, mas... E é por isso que esse curso existe! Porém, como não é possível sintetizar toda a literatura produzida no Ceará em ape- nas 12 módulos, neste derradeiro optamos por elencar alguns recortes (“itinerários”) que nunca antes foram sistematizados em ma- nuais e/ou roteiros de estudo de Literatura Cearense, entre os quais a literatura infanto- juvenil, os movimentos que nos chegam das periferias, em formatos nada acadêmicos ou tradicionais, além de um panorama do mer- cado editorial e da sua produção, seja por editoras independentes ou pelas formais. Para começar nosso trajeto, gostaría- mos de lembrar que já vimos aqui a afir- mação de que Canções da Escola (1871) de Juvenal Galeno é o primeiro registro no Ceará de uma obra destinada ao públi- co infantojuvenil. Na época, Juvenal tra- balhara como inspetor da Instrução Públi- ca e, contrário à palmatória, acreditava que para resolver todo tipo de mau com- portamento ou mesmo para disciplinar as crianças, elas teriam apenas que cantar: “E qual meio mais eficaz do que a canção, a harmonia, esse doce poder que a tudo vence na Terra?” (GALENO, 2010, p.70) Para isso, criou alguns poemas para o começo e término das aulas, para quando um colega maltratasse outro ou mentisse, para aulas em campo, para datas célebres, em casos de visitas de inspetores à sua escola, para os finais de semana etc. Acreditava ele que “além de desenfadar o menino, alegrando- -lhe o espírito e de predispô-lo para con- tinuar o trabalho, ensina-lhes úteis pre- ceitos, e serve-lhes de estímulo, prêmio e castigo, acabando por uma vez com a palmatória, esse brutal recurso da inépcia do magistério”. (GALENO, 2010, p.69) O certo é que a obra foi impressa na Ti- pografia do Comércio, de propriedade do poeta, e foi “adotada pelo Conselho de Ins- trução Pública do Ceará para uso nas aulas primárias”, ou seja, uma prima-pioneira dos nossos atuais paradidáticos. om a evolução, mesmo que lenta e restrita, do mercado editorial cearense, uma certeza se confirmava: a necessidade de publicações destinadas a esse público infantojuve- nil, na tentativa de conquistar a adoção em listas escolares e para a venda em compras es- peciais dos programas governamentais supostamente de todas as esferas. Daí, não acontece apenas no Ceará, muitos au- tores foram convidados e se arriscaram a enveredar pelo caminho dessa literatura tão peculiar. Alguns, certamente, saíram exitosos; outros se limitaram a emprestar seus pomposos (e comerciais) nomes às capas de obras que nem de longe refletem a sua competência em outros gêneros. Ao contrário, demonstram total inexperiência e inabilidade para com esse público. Em nosso estado, boa parte dos escrito- res e escritoras, iniciantes ou não, tiveram esta travessia” (ou ousadia) pelas poucas editoras do estado, inclusive pelas portas das Edições Demócrito Rocha (EDR), braço 2. O BERÇO DAS NARRATIVAS INFANTOJUVENIS SABATINA CURSO literatura cearense 179 editorial desta Fundação e uma das primei- ras editoras do estado – com 32 anos de exercício –, levando em consideração o mo- delo de negócio como conhecemos (antes tínhamos as tipografias e até então muitas gráficas-editoras que não acolhem as práti- cas editoriais básicas). Entre eles: Arievaldo Vianna, Kelson Oliveira, Almir Mota (que em- bora tenha publicado pelas EDR, hoje tem selo próprio pela Casa da Prosa), Patativa do Assaré, Raymundo Netto, Sânzio de Aze- vedo (a sua única obra no gênero, O curu- mim pintor e outras histórias, foi uma das contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático - Literatura em 2019), Dimas Carvalho, Aline Bussons, Marcelino Câmara, Audifax Rios, Kelsen Bravos, Mino (cartunis- ta e artista plástico, responsável pelo texto e ilustração de A luz de cada um), Arlene Ho- landa, Demitri Túlio, Natalício Barroso, Fa- biana Guimarães, Pedro Salgueiro, Fabiano dos Santos, Sáskia Brígido, Jean-Antoine, Guaraciara Barros Leal, Rouxinol do Rinaré, Ricardo Guilherme, Marcos Mairton, Tércia Montenegro, Stélio Torquato, Jorge Pieiro, Evaristo Geraldo, Ângela Escudeiro, Efigênia Alves, Simone Pessoa, Rosa Morena, Oswald Barroso, Flávio Paiva, Ana Márcia Diógenes, Tamara Bezerra, entre outros. Da mesma forma, como a literatura infantil não é feita apenas por quem escreve seus textos, mas compartilha a sua leitura com quem as ilustra, desfilam pelos catálogos editoriais: Susana Paz, Gua- biras, Carlus Campos, Karlson Gracie, Raisa Christina, Sérgio Melo, Rafael Limaverde, Ramon Cavalcante, Hemetério, Klévisson Viana, Glauco Sobreira, Luciene Lobo, Da- niel Dias, Mariza Viana, Ronaldo Almeida, Audifax Rios, Silas Rodrigues, Jabson Si- mões, Ingra Rabelo, Arlene Holanda, Mário Sanders, Descartes Gadelha e outros. Muitos dos autores cearenses, não apenas da literatura infantojuvenil, na ânsia de publi- car sua obra, e pela restrita atenção e capaci- dade de acolhimento pelas editoras formais, contam apenas com dois recursos: a auto- publicação diretamente com uma gráfica- -editora ou a busca de algumas das editoras denominadas independentes que surgem. Estas, geralmente, apresentam soluções em pequenas tiragens (100, 200, 300 exemplares). Entretanto, muitas delas não cumprem as funções editoriais ou as cumprem apenas parcialmente, funcionando um pouco mais do que produtoras gráficas, podendo até dizer tratar-se de autopublicação assistida. Com o consumo maior de plataformas e livros digitais – mesmo que ainda menor do que se professava –, alguns abrem mão da impressão gráfica e afirmam ter bons resulta- dos ou visibilidade na circulação de obras em formato e-book, por exemplo, pela Amazon. E como o governo estadual nem o municipal têm um plano definido de apoio e fomento às editoras, seja por meio de compras ou por incentivo à produção, o mercado é instável, pouco sustentável, dependendo quase que inteiramente das competitivas inserções nas listas escolares, pareando-se contra os gigantes editoriais nacionais que disputam na mesma mesa e com pesos distintos. Isso, certamente, impacta na cadeia criativa, redu- zindo os investimentos nessas publicações. O que é uma editora? É um sistema de relações, que se destina a produzir uma certa obra. Esta obra, no plano editorial, não é só o texto do autor [...]. Um livro é muito mais do que um autor, porque incorpora um trabalho tremendo de uma equipe.” (Jacob Guinsburg, professor da Escola de Comunicação e Arte (ECA-USP) e editor da Perspectiva) Por outro lado, o Governo do Estado do Ceará, por meio da Seduc, desenvolve com os municípios o Programa Aprendizagem na Idade Certa, que tem como objetivo a “elevação da qualidade da leitura e escrita de todos os alunos da rede municipal”. As- sim, há anos promove concursos públicos de seleção de obras da Coleção Paic Pro- sa e Poesia, acumulando hoje 216 títulos, tendo cada um a fantástica tiragem de 14 mil exemplares – o livro já nasce best-seller – distribuídos para toda a rede estadual de ensino e alcançando os pequenos leitores desde a Educação Infantil, passando pelo 1º ao 5º ano,até alcançar do 6º ao 9º ano nas escolas públicas cearenses. Na coleção, encontramos alguns nomes, entre escrito- res e ilustradores já da área, mas a grande maioria é composta por autores e auto- ras completamente desconhecidos, até então. Bom para esses autores, mas ruim para o mercado editorial que perde a opor- tunidade de contar com esse investimento e essa produção para seu catálogo. 180 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 3. LITERATURA PARA... CRIANÇAS? Vanessa Passos e alguma vez você já ouviu al- guém dizer que literatura infantil não tem valor literário, porque é algo feito para crianças e, portan- to, tem uma linguagem fácil e sem valor estético, ao acompanhar a trajetória literária desses(as) autores(as), vai perceber o quan- to essa afirmação é equivocada. Peter Hunt, escritor e professor emérito em literatura infantil da Cardiff University, de- fende que escrever literatura infantil é ain- da mais difícil, porque é preciso manter uma preocupação estética mesmo quando há a exigência de limitação em relação à extensão do texto e ao emprego de vocabulário para que a obra seja acessível para as crianças. Dá muito trabalho fazer parecer ser simples. Isso, sem falarmos da capacidade atrativa que o texto deve ter, pois a criança quando se depa- ra com um livro que não a atrai, simplesmen- te, o abandona. Vale ressaltar que, se existem restrições quando um autor escreve, ele preci- sará desenvolver muito mais sua criatividade. Sobre o gênero literatura infantil, concorda- mos com CAGNETI, para quem: “A literatura infantil é, antes de tudo, literatura, ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que repre- senta o Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/ impossível realização.” (CAGNETI, 1996, p.7) Assim, entendemos que ela nos é um caminho lúdico presente em nossas vidas como representação do mundo em que vive- mos e isto muito antes da leitura e da es- crita. Esta representação se estabelece seja por meio das cantigas de ninar, das brinca- deiras de roda ou das contações de histórias realizadas pelos familiares. Contudo, quan- do as crianças chegam à escola é que a lite- ratura passa a ter o poder de construir uma ligação artística entre o mundo da imagi- nação, dos símbolos subjetivos, e o mundo real da escrita, dos signos convencionais, da cultura sistematizada. É através da literatura infantil que praticamos o impossível e recon- duzimos nossa própria história. Escolhemos aqui, como mostra, alguns dos autores cearenses que têm mais obras destinadas às crianças e/ou jovens: Rachel de Queiroz (1910-2003), consi- derada uma das maiores autoras da litera- tura cearense e brasileira, não se prendeu a um único gênero, publicando contos, ro- mances, crônicas, dramaturgia, críticas lite- rárias e três livros infantis, todos publicados pela Editora José Olympio: O menino mági- co, Cafute & Pena-de-Prata e Andira. Sua estreia na literatura infantil foi em grande estilo, porque seu primeiro livro, O menino mágico, foi vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura Infantil em 1969. O livro conta a história de Daniel – nome de seu sobrinho-neto –, um menino diferen- te que, com imaginação fértil, tinha pode- res mágicos e conseguia viajar durante o sono para os mais incríveis lugares e fazer coisas que um menino normal nem so- nharia. Em Cafute & Pena-de-Prata – “ca- fute é o nome de uma pulga que se dá em galinhas” –, dois pintinhos, um pobre e nascido em granja (Cafute) e outro rico (Pena-de-Prata), nascido em chocadeira elétrica, se conhecem, tornam-se amigos e partem em busca de aventuras. Em An- dira, a história de uma andorinha aban- donada cedo e criada por uma família de morcegos. Andira nasceu quando uma amiga de Rachel disse que ouviu, durante uma noite, o som de morcegos, mas que parecia canto de andorinhas. Maria Luiza, irmã de Rachel, afirmou em entrevista que o que tocava de forma mais direta e mais funda o coração da au- tora era “o seu amor pelas crianças, pelos bichos e pelos passarinhos”. Horácio Dídimo (1935-2018) é também um dos nomes mais importantes da litera- tura infantil cearense, tanto que o Dia Esta- dual da Literatura Infantil, no Ceará, desde 2019 é comemorado em 23 de março, data de nascimento de Horácio. Mas a sua contribuição literária foi além da produção de seus livros, pois como professor do Departamento de Li- teratura e da Pós-Graduação em Letras da UFC, foi o responsável pela criação da disciplina de Literatura Infantil. Com quase vinte livros publicados no gênero, além dos seus livros de ensaios so- bre literatura para crianças, Horácio exalta a relevância da poesia para esse público lei- tor e afirma que “No labirinto da Literatura Infantil, a poesia, ainda que esquecida, nun- ca estará perdida. Mesmo quando se cala – amarga – da boca pra fora, na canção, ai de nós se não adoçar por dentro o coração”. Assim que tiver a oportunidade de se debruçar sobre a literatura de Horário Dídi- mo, o leitor descobrirá que ela é simples, e nunca simplória. Ele diz muito com o pouco e não subestima os pequenos leitores. A es- critora Marília Lovatel diz sobre o autor ce- arense que “ele consegue construir os tex- tos com a profundidade necessária e com uma linguagem que abraça as crianças”. Entre as obras destinadas a esse públi- co, encontramos: O passarinho carrancudo, As historinhas do mestre Jabuti, As reina- ções do Rei, Historinhas cascudas, A escola dos bichos, As flores e os passarinhos, Tem- po de sol, Exercícios de admiração, O me- nino impossível, O menino perguntador, Os compadres bichos, entre outros. Após a sua morte, a família, represen- tada principalmente por um dos filhos, o também poeta Luciano Dídimo, criou o Instituto Horácio Dídimo, hoje, um fo- mentador de publicações de autores cea- renses em gêneros distintos. Ana Miranda nasceu em 1951, em For- taleza, Ceará. Saiu do estado ainda menina e seu primeiro romance, Boca do Inferno (1989), teve sucesso imediato, sendo depois traduzido para diversos países, merecendo o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Ana, como Rachel de Queiroz, é mais re- conhecida por seus romances, embora tra- ga uma vasta seleção de obras de literatura infantil: Flor do cerrado: Brasília, Lig e o gato de rabo complicado, Tomie: cerejeiras da noi- te, Mig: o descobridor, Carta do tesouro, Me- nina Japinim, Como nasceu o Ceará? e Carta da vovó e do vovô. É relevante percebemos como Flor do cerrado: Brasília, a primeira obra infantil de Ana, já traz o tema basilar de toda sua produção ficcional: o exílio. Falando às crianças, a autora nos reconduz à sua me- ninice através de suas memórias, relatos de seus familiares, descrições de fotos antigas de sua família no Ceará, trechos de cantigas de rodas, entre outros elementos lúdicos utiliza- dos literariamente para recontar a história da construção da capital federal, desta vez, pelos olhos de uma criança. Essas lembranças de infância representam um dado inusitado em nossa Literatura Brasileira, uma vez que mui- tos autores nacionais escreveram suas remi- niscências infantis, ao contrário, voltadas para leitores adultos, a exemplo de Manuel Ban- deira, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, entre outros. Destaco ainda aqui o livro Como nasceu o Ceará?. Nele, poesia e teatro se unem para propor uma brincadeira poética e lúdica para as crianças. Nele, a autora conta a história do nascimento do Ceará com suas próprias ilus- trações. Aliás, muitas das obras infantis de Ana Miranda são totalmente ilustradas por ela. O livro é ótimo para propor brincadeiras em fa- mília ou atividades lúdicas escolares, como, saraus poéticos, jograis ou peças teatrais. Elvira Drummond nasceu em Fortaleza, Ceará. Além de escritora é também musicis- ta. Atua em várias cidades brasileiras, minis- trando cursos, oficinas, especializações, se- mináriose conferências. Seus livros infantis são marcados pela intrínseca relação en- tre literatura e música. Assim, é autora de dezenas de livros destinados não apenas à literatura infantil, mas à musicalização, edu- cação musical e prática coral e instrumental. As obras para crianças – muitas delas em forma de “narrativas cantadas”, como deno- mina a autora, histórias em versos, poemas cantados, parlendas, canções e cantigas tradicionais, adaptações do folclore, entre outros – associam a linguagem literária com a musical e são também distribuídas por ela em coleções, como: Contos encantados, Can- tigas quase sem fim, Tradição & diversão, Pa- lavra também é brinquedo, Passinhos firmes, Histórias para contar e tocar, Cantos e contos pra Tom e Bia. Entre suas obras publicadas, destacam-se: A lenda da carimbamba (um conto cantado, no qual uma voz insistente – “amanhã eu vou...” –, que vem da lagoa em noites de lua cheia, atrai as pessoas), Ciran- das entrameladas (cantigas de roda em con- texto de narrativa), De fio em fio a história se desfia (história do encontro de duas famosas tecelãs – a aranha e a rendeira. Uma leitura rica em efeitos sonoros) e O capim encantado. O capim encantado, por exemplo, é ba- seado em um conto europeu que Câmara Cascudo classifica como conto denuncian- te, pois através da ação de cantar, a menina enterrada denuncia a crueldade da madras- ta. Da mesma maneira, são muitos os seus li- vros baseados em contos folclóricos: A flauta do jabuti, Bonequinho de mel, O macaco e a viola, A velha Maricota e o macaco Juvenal, O velho, o menino e o burro etc. Marília Lovatel, fortalezense, nas- cida em 1971, traz suas obras, na maio- ria, dedicadas ao público infantil, mas também atua com o público juvenil. Duas vezes integrou o Catálogo Brasileiro da Feira de Bolonha, na Itália. Entre suas obras: Fábulas e contos em versos (competente adaptação das fábulas de Esopo em versos), O pequeno inventor de soluções (repleto de saborosos neologismos, a obra conta a história do menino Juliano e seus amigos em corações “espremoídos” de tan- ta tristeza...), Entre selos e sonhos (por meio de cartas, o garoto Ricardo descobre o uni- verso das palavras e dos selos, além de ines- quecíveis memórias), Menina dos sonhos de renda (narrativa em versos em torno da tradicional renda nordestina e dos valores, como a família, amizade, fé, perseverança e coragem, finalista do Prêmio Jabuti em 2017). Entre as suas obras destinadas ao público juvenil: A memória das coisas (a his- tória de objetos contada pelos próprios, em uma memória enredada) e Coração de mo- saico (uma novela infantojuvenil que conta uma história de amor permeada por refe- rências ao arquiteto modernista catalão An- toni Gaudi, e que, não por acaso, tem nela uma pequena fábrica de azulejos). 182 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Segundo Lovatel: “A escrita é o meu ele- mento. O ar que respiro, a terra que eu piso, o fogo que me acende, a água que me mata a sede de tudo. Cada pessoa precisa encontrar o seu elemento, para não vagar sem direção.” Klévisson Viana cartunista, ilustra- dor, poeta cordelista, quadrinista, editor e membro da Academia Brasileira de Litera- tura de Cordel, nasceu em Quixeramobim- -CE, em 1972. Importante destacar o reco- nhecimento de seu talento nas distintas facetas em que atua, seja pelos prêmios, como o Troféu Jabuti (literatura), HQMIX (quadrinhos) e Luiz Sá/Secult (quadri- nhos), pela adoção de suas obras pelas es- colas e nas compras de programas gover- namentais, seja pela qualidade e renome de seus parceiros (como Júlio Shimamoto e Flávio Colin, mestres dos quadrinhos, com ele e Wellington Srbek em Mirabi- lia), assim como pela adaptação de suas obras, como para a série “Brava Gente” da Rede Globo. Entre as suas obras infantis, aqui citamos: Dom Quixote: em versos de cordel (saborosa e fluente adaptação do clássico, escrita e ilustrada pelo autor), O tesouro da felicidade (o menino pobre que sonha com um baú de tesouro e decide sair de casa em sua busca), ABC da Natu- reza (educação ambiental para as crianças a partir das letras do alfabeto), Abecedário dos bichos (na mesma trilha do anterior, explora divertidamente o alfabeto por meio dos versos em cordel para falar da fauna brasileira), João e o Pé de Feijão (adaptação em cordel do famoso conto de fadas popularizado pelo inglês Joseph Jacobs) e A princesa encantada de Jerico- acoara (como em um universo paralelo, o reino encantado surge em meio da idílica praia cearense), entre outros, a maioria em cordel e com muito humor, agradando a crianças, jovens e adultos. Socorro Acioli nasceu em Fortaleza, em 1975, escreveu seu primeiro livro O pipoquei- ro João quando tinha oito anos de idade. A partir de 2004, começou a escrever e publicar livros infantojuvenis, sendo muito bem-suce- dida e bem recebida pelo público, chegando a receber o selo “Altamente Recomendável” pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e a ter obras compondo o Ca- tálogo Brasileiro da Feira de Bolonha e con- templados em programas governamentais. Bia que tanto lia: uma história do livro para crianças e É pra ler ou pra comer: a his- tória da padaria espiritual para as crianças são obras que trazem um conteúdo espe- cífico e didático adaptado para as crianças numa linguagem literária e lúdica. Ela tem olhos de céu é um texto poético no qual te- mos um imaginário fantasioso de uma ga- rota que faz chover no sertão sempre que chora – a obra ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil em 2013. O mistério da professora Julieta conta a história de uma singular professora que chega para resol- ver um mistério em uma escola e fazer com que seus alunos se apaixonem pela leitura. A quarta-feira de Jonas traz a tônica da pre- servação do meio-ambiente, por meio de histórias paralelas, no sentido do “e se...”, na qual o fato de Jonas jogar ou não jogar um saco plástico no meio da rua faz toda a diferença. Em O peixinho de pedra, um velho sertanejo que nunca viu o mar guarda com ele um fóssil, o tal peixinho, que vai levá-lo a realizar desejos. Uma oportunidade de dis- cutir paleontologia com a criançada. Socorro também atua na literatura juvenil, com A bailarina fantasma, In- ventário de segredos, Vende-se uma família e Diga Astragud (contos). Finalizo este tópico de nosso módulo, com a reflexão de Horário Dídimo sobre as sete finalidades da literatura infantil discutidas em sua obra ensaística As funções da Literatura In- fantil. São elas: divertir, emocionar, educar, conscientizar, instruir, integrar e libertar. Acreditamos que quando uma criança ou qualquer pessoa lê um livro, é um mun- do que se abre, pois não há nada mais li- vre do que um livro. De fato, a literatura infantil cearense é muito vasta e rica, provando o que nos afir- ma Peter Hunt: “Não há bons livros que se- jam apenas para crianças.” E quem quiser, que conte outra. BOLACHINHAS CURSO literatura cearense 183 4. PERIFERIA, PRESENTE! (O SARAU É SAL) Nina Rizzi gora que cumprimos a primeira parte desse iti- nerário, voltemo-nos às vozes poéticas das ruas, recordando: a história nos conta que quan- do a corte de d. João VI chegou ao Brasil em 1808, entre as inúmeras mudanças culturais es- tabelecidas pela família real, uma delas foi a instituição de saraus, com seus pianos de cauda, violinos, poetas eruditos, trajes de gala, champanhes e vinhos caros para uma elite privilegiada e sedenta por fazer do Brasil uma pequena Europa. Logo essas reuniões elegantes se estenderam pelo país afora, ganhando as graças de latifundiários, de prósperos comerciantes e pessoas in- fluentes que começaram a organizar salões e a bancar movimentos artísticos, como os da Semana de Arte Moderna, patrocinada por cafeicultores, especialmente, paulistas. Sabemos que a história sempre nos foi contada pela voz dos vencedores. Pouco se conta, por exemplo, quenesses saraus do início do século XIX, os músicos, em geral, eram negros e indígenas escravizados. A verdade é que tal como é intrínseco aos humanos fazer arte, nos é comum com- partilhá-la, desde as pinturas rupestres da Serra da Capivara, às danças circulares indí- genas e as rodas em volta do fogo de contar histórias que faziam as pessoas escraviza- das em senzalas ou quilombos. Ninguém poderá dizer que isso não seja um sarau, ou seja, uma reunião para compartilhar experiências e vivências culturais. Contudo, os saraus contemporâneos que acontecem nas periferias, tema deste tópico, diferente dos saraus que aconteciam no Império e dos que acontecem em áreas nobres e/ou ambientes tradicionais, não são apenas saraus de compartilhamen- to. Mais do que apenas um amontoado de gente divertindo-se e fruindo da arte, essas pessoas pensam e revelam seus problemas, confraternizando-se em suas conquistas. Es- ses espaços são de arte, educação e cultura e as palavras de ordem são luta e resistên- cia, na tentativa de fazer do mundo um lugar melhor, menos injusto e desigual. O sarau é uma reunião com o objetivo de compartilhar experiências culturais e o convívio social. É composto por um grupo de pessoas que se reúnem com o propósito de fazer atividades lúdicas e recreativas, como dançar, ouvir músicas, recitar poesias, conversar, ler livros e demais atividades culturais. A origem da palavra sarau deriva do latim seranus / serum, termos que fazem referência ao “entardecer” ou ao “pôr do sol”. Justamente pela etimologia, convencionou-se realizar os saraus durante o final da tarde ou à noite. BOLACHINHAS MALACA CHETAS 184 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 5. QUEM TÁ NA RUA É PARA OCUPAR! ntão, embora os saraus já aconte- cessem no “Siará” entre os povos indígenas (Anacê, Gavião, Jenipa- po-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tabaja- ra, Tapeba, Tapuba Kariri, Tremem- bé e Tubiba Tapuia), é no fim dos anos 2000 que surge em Fortaleza o movimento dos saraus, culmi- nando com a efervescência cultural que ve- mos hoje nas periferias. É difícil falar em uma origem para este mo- vimento, já que os jovens sempre se reuniram para fazer e compartilhar arte. Naquele mo- mento, eram várias as experiências isoladas em diversos pontos da cidade. No entanto, destaco algumas que tiveram maior solidez, por terem inspirado outros saraus, ou por continuarem e se mobilizarem ainda hoje. No ano de 2007, um grupo formado por Ana Lourdes, Carlos Amaro, Carlos Arruda, Emiliana Paiva, Gervana Gurgel, Ítalo Rovere, Luana Oliveira, Manoel César, Nilze Costa e Silva, Reginaldo Figueiredo, Rita Carvalho e Talles Azigon se reuniram e fundaram o Tem- plo da Poesia, que ficava em um galpão no centro da cidade, e onde duas vezes por mês acontecia o Palco Aberto, um formato similar aos dos saraus que acontecem hoje nas periferias da cidade: ninguém precisa ter posses nem prestígio, ser amigo de alguém ou mesmo se inscrever para mostrar sua arte, seja ela poesia, dança, performance, te- atro, bambulim, protesto ou o que quiser, é só chegar! Por volta de 2015, o grupo deixou de acontecer no centro de Fortaleza e fundou a Vila de Poetas, residência comunitária-ar- fazendo, e que o local não deveria ser fecha- do como aqueles que os rechaçavam, mas ali mesmo, na rua! E assim nasceu o Sarau da B1, que desde então acontece a cada primeiro sábado do mês na mesma praça dessa avenida, onde a cada edição uma pessoa (viva) da quebrada é homenageada, rompendo com a ideia de que para ser ho- menageado tem que ser rico ou prestigiado, branco, heterocisnormativo ou estar morto. Cada presença é importante ali. Com lança- mentos e sorteios de livros, apresentações e performances diversas, de pessoas não só do Jangurussu, o sarau agrega várias outras periferias e centros (!) de Fortaleza, inspi- rando outros a fazerem saraus em suas pró- prias quebradas. Entre outras realizações: lançou um livro com poemas de 32 poetas que participam do sarau, feito e publicado totalmente de forma independente; produ- ziu as zines Jangu Livre – o título faz referên- cia ao bairro Jangurussu e ao filme Django Livre; e o lançamento do documentário Sa- rau da B1: a poesia em Transe!, contando a história do sarau. A principal característica desse Sarau, como de vários outros saraus de periferias, é o microfone aberto, onde quem quiser, chega e bota o teu! tística em Maranguape, cidade vizinha, onde vigoram os versos de Ítalo Rovere: “O amor de todo mundo para mudar o mundo/ pra mudar o mundo o amor de todo mundo.” O Sarau da B1 surgiu do desejo de qua- tro amigos, Aglailson Di Almeida, Carllos Preto, Jair Xavier e Samuel Em Transe, de compartilhar poesia na sua própria que- brada (“território”), o bairro do Jangurussu, já que o movimento de poesia de que eles tinham conhecimento aconteciam no cen- tro da cidade e nem sempre podiam se des- locar, como no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, de onde haviam sido recha- çados por não estarem inscritos e insistirem em dizer seus poemas, e, portanto, não poderem se apresentar em determinado evento. Foi quando, em 2010, se juntaram à Associação de Moradores do Conjunto São Cristóvão e formaram Os Poetas de Lugar Nenhum, ironizando o fato de não partici- parem das “panelinhas” literárias do centro cultural da cidade. O sarau teve um hiato de cinco anos, quando em 2015, enquanto bebiam, conversavam e diziam poemas em uma das praças da avenida Bulevar 1 (daí, “B1”), no Conjunto São Cristóvão, onde eles moram, o desejo de fazer o sarau se reavi- vou. Perceberam, então, que já o estavam Também em 2007, surgiria no outro extremo da cidade, no Conjunto Palmeiras, a Cia Bate Palmas, formada pelo cantor e compositor Parahyba de Medeiros, pela produtora Bete Augusta e banda formada por Amanda Fideles, Ana Kássia, Cícero Peixoto, Danilo Duarte, Diones Mendes, Elane Fideles, José George e Rairton Lima. Embora a poesia esteja presente nos saraus da Cia Bate Palmas, a música tem protagonismo, com letras que contam as histórias do bairro e da cultura popular brasileira. Audre Lorde (LORDE, 2019, p.51, 53), diz que “o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada e incompreendida. [...] você jamais é realmente inteira se mantiver o silêncio, porque sempre há aquele pedacinho dentro de você que quer ser posto para fora, e quanto mais você o ignora, mais ele se irrita e enlouquece, e se você não desembuchar, um dia ele se revolta e dá um soco na sua cara, por dentro. [...] há muitos silêncios há serem quebrados” CURSO literatura cearense 185 editora independente cearense que se destaca, publica jovens autores, tradu- ções e uma revista, e iniciou a Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária, fazendo a diferença na vida de centenas de crianças e jovens de sua quebrada – o bairro Curió. Além disso, foi indicado pelo atual secretá- rio da Cultura do Ceará, em 2019, para ser um dos curadores da próxima Bienal Inter- nacional do Livro do Ceará. cada orgasmo teu é menos uma bomba no mundo/ tu corpo, tu carne/ anti-guerra// menos uma bala de fuzil/quando suspiras fundo/ menos um insulto diplomático/ quan- do tua boca está/ concentrada em outros assuntos// cada orgasmo teu/ menos um he- licóptero/ um torpedo submarino a menos/ toda vez que viaja por debaixo/ dos mares de lençóis as tuas mãos (Talles Azigon) Outro destaque dazárea é o multiartista Jardson Remido. Remido foi preso ainda adolescente por tráfico de drogas. Ele conta que no regime socioeducativo leu um livro de Malcolm X que mudou sua visão de mun- do, levando-o a buscar outras leituras. Já 6. FAZ TEU NOME! lguns dos poetas, es- critores, intelectuais e artistas visuais que co- meçaram sua história artística nos saraus das periferias, hoje têm li- vros publicados, fazem exposições em galerias, apresentam-se em even-tos importantes e des- pontam como grandes nomes das artes no Brasil. Talles Azigon, que começou no Palco Aberto, hoje é um dos poetas mais respeitados do país, tendo quatro livros publicados. Participou de diversas anto- logias, é um dos editores da Substânsia, em liberdade, conheceu o Sarau da B1, que é na mermazária que ele mora. Paralela- mente, fez amizade com Dali, poeta, rapper e então estudante de Ciências Sociais. Ver diversos colegas dizerem seus poemas no sarau e a amizade com Dali levaram Remido a se expressar por seus próprios poemas, performances e também no rap, primeira- mente no grupo DuFront Mc’s e, atualmente, no grupo A Quebra, e depois também nas artes visuais. É impossível não se impactar com as apresentações do artista. Cobrindo o rosto com uma camisa, como diz Rômulo Silva “performando a invisibilidade e o silen- ciamento histórico e social de suas próprias histórias de vida e as de seus semelhantes” (SILVA, 2019, p.125), como um zapatista ou como as pessoas pensam ser um bandido, olhos vidrados, pega uma refém portando um objeto na cintura, a respiração de todo mundo para... era só um livro! E então dis- para seus poemas cortantes que gritam a realidade das periferias. Remido já se apresentou na abertura da palestra de David Harvey no Cineteatro São Luiz em Fortaleza em 2018, no palco princi- pal da Bienal Internacional do Livro do Ce- ará em 2019 e no 2º Seminário Arte, Palavra e Leitura, em São Paulo, onde recebeu uma proposta para publicação de um livro por uma das maiores casas editoriais do país, a Companhia das Letras, e já deu entrevis- ta para o programa “Profissão Repórter” da Rede Globo. E assim como outras e outros poetas de periferia, se orgulha de fazer os corre com a poesia de busão. Avisa lá pro playboy que quem tomou a vaga dele na faculdade federal fomos nós/ Aprovei- ta também e avisa lá pro filhin de papai/Que se ele não aproveitar a faculdade/ A favela toma a vaga dele e valoriza bem mais. // Avisa lá pro Águia Dourada que nós tamos na faculdade federal e não no programa policial do Barra Pesada/ Avisa lá pro PM que me chamou de marginal, que qualquer dia eu esfrego na cara dele meu diploma da faculdade federal,/ pra ele aprender a respeitar as cara e saber que fa- velado é intelectual [...] (Jardson Remido) 186 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Outro artista que começou a fazer versos em saraus foi Renato Pessoa, por volta de 2005, quando ainda cursava a faculdade de Filosofia na Uece, ao lado dos amigos Die- go Silvero e Jam’s Willame. Em 2015, com iniciativa dos mesmos amigos mais a poeta Pamella Souto, surge no Conjunto Ceará o Corpo Sem Órgãos: Sarau Rizoma, que acontecia na Casa Arcadiana, e mais tarde no Polo de Lazer daquele bairro. A palavra intelectual muitas vezes vem carregada de ranço, isso porque fomos le- vados a acreditar que só às elites é dado pensar. Renato Pessoa é um intelectual, além de ativista cultural. Participou e par- ticipa de diversos eventos literários e aca- dêmicos no Ceará e até em Portugal, onde palestrou e lançou livros ao lado de outros poetas cearenses, como Dércio Braúna (poeta e ensaísta de Limoeiro do Norte), Bruno Paulino (poeta, cronista, contista e ensaísta de Quixeramobim) e Mailson Fur- tado (poeta de Varjota, ganhador do Prê- mio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano, ambos em 2018, sendo o primeiro au- tor independente, em 60 anos do Prêmio, a ganhar a categoria Livro do Ano) no Encontro Interdisciplinar de Estudos sobre Literatura: novos olhares entre o Ceará e o Alentejo, na Universidade de Évora. O poeta publicou cinco livros de poemas e tem um livro de ensaios sobre filosofia no prelo. Os poemas de Renato unem cotidiano e filoso- fia, materialismo e metafísica. E como todo poeta vindo dos saraus, Renato tem olhar crítico e voz poética afiada. Escrevo teu nome como visto uma orla,/ Em algum lugar uma estrela se apaga./ Moças carentes rezam simpatias./ Estou fa- minto. Tenho os pulsos leves,/Abertos para o alimento impreciso./ As coisas sem nome persistem./Fui batizado, sem soleiras, no- minal./Tenho mãe, pai, tenho raízes sono- ras./ Me sinto órfão. (Renato Pessoa) Quando se fala de movimento de sa- raus, um nome, em geral, vem à mente: Baticum! Poeta, arte-educador, ator, batu- queiro e ocupador, Baticum iniciou na rua do Amor, no bairro Antônio Bezerra, o Sa- rau Okupação, que também compreende a Biblioteca Comunitária Okupação, a doação de mudas de plantas e, a partir de 2018, o Slam da Okupa. O Sarau Okupação tem um caráter ex- tremamente anárquico, seus participantes não têm qualquer crença no poder público e encorajam a galera para autogestão, não só com a poesia, mas com suas atitudes ao fazer oficinas de percussão, poesia e teatro em escolas públicas, comunidades e biblio- tecas comunitárias. Atuante nas periferias da cidade e forta- lecendo outros saraus, Baticum idealizou a Bienal Itinerante de Poesia (BIP), que cir- culou pela Barra do Ceará, Conjunto Ceará, Conjunto São Cristóvão, Curió, Dragão do Mar, Granja Lisboa, José Walter, Paname- ricano, Praça do Ferreira e Serviluz em um percurso com duração de dois meses. Privilegiado no congresso discursa/lugar de pobre e favelado é no tráfico/e ter a vida curta/mas nós somos resistentes/ nosso close é de luta/então luta/luta luta luta/tá cheio de close errado/quer nos re- presentar/não tem choro nem mimimi/se não quer ajudar não atrapalha/[...] falar de democracia é fácil/quero ver sem poder ir com povo/burocratiza a participação/faz promessa, rouba de novo/e quem tá na rua é pra ocupar/quem tá na praça é pra ocupar [...] (Baticum) Uma poeta fundamental para a cena da sua quebrada é Argentina Castro que, desde 2016, junto com sua mãe e irmãs, toca a Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias lá no bairro Panamericano ao lado da favela do Papoco. Em entrevista para a Revista Berro (ERNESTO, 2019), Argentina conta que a ideia da Biblioteca surge como “uma história de amor à literatura e à comu- nidade onde cresceu [...] e uma tentativa de reparação perante a violência”. A Papoco de Ideias é visitada fundamen- talmente por crianças. Como suas famílias muitas vezes não podem estar presentes porque trabalham, o espaço é um bálsamo na vida da comunidade desassistida pelo Estado. Além de ser uma biblioteca comuni- tária, a Papoco desenvolve inúmeros outros projetos, como debates com escritores, exi- bições de filmes, leva as crianças para expo- sições, cinema, festivais, as inscreve em for- mações em equipamentos culturais, como na dança da Vila das Artes, configurando- -se assim em mais um espaço de educação. Argentina é cientista social, arte-colagista e poeta. Como uma mulher do seu tempo e da sua quebrada, seus poemas gritam liber- dade, empoderamento feminino, amor e luta. Quem dera o sangue fosse só da menstrua- ção e não da minha boca cortada/ e de mi- nh’alma partida/ quem dera não existisse noite e nem ruas vazias/ nem ônibus lota- dos./ Quem dera entrar e sair de qualquer lugar e não ser bulinada/ Coagida por olha- res e palavras cortantes./ Quem dera não temer que nossos corpos podem ser inva- didos/ Por qualquer um, a qualquer hora e em qualquer lugar./[...] Quantas vezes, de quantas mulheres mais ainda vamos ouvir que ser mulher é tão difícil?/ Somos as lou- cas quando deixamos de ser as gostosas/ [...] Quem quer mesmo amar com tanta dor no peito? (Argentina Castro) Foi em 2017 que aconteceu o primeiro Sarau da Papoco de Ideias, com a colabo- ração de diversos poetas de outros saraus da cidade, como o Sarau da B1, o Corpo Sem Órgãos: Sarau Rizoma e o Sarau Okupação. CURSO literatura cearense 187 7. MERMAZÁRIA articulação e a visitação entre os saraus se torna uma tônica no movimen- to: pessoas de todos os lugares e saraus passam a ocupar um a quebrada do outro, formando as- sim uma grande teia de poetas, afetos e gente disposta a transfor- mar a realidade.É justamente no ano de 2017 que acon- tece o I Encontro de Saraus do Ceará, no Centro Cultural Patativa do Assaré, Conjun- to Ceará. Autogerido, contou com a partici- pação de seis saraus de Fortaleza, mais o Slam da Quentura de Sobral. O movimento de saraus se fortaleceu e o Encontro de Saraus continuou acontecendo no mesmo modelo, com oficinas pela ma- nhã, rodas de conversa e cortejos pelo bairro à tarde e um grande sarau à noite. Teve ain- da outras edições: a segunda, no bairro do Curió, na Biblioteca Livro Livre Curió, Floresta do Curió e na sede da Arte de Amar, com mais de dez saraus presentes e a terceira, na 8. VOCÊS QUERENDO OU NÃO, ISTO É LITERATURA! s artistas que participam dos saraus e demais movi- mentos nas periferias es- crevem e performam sobre tudo: amor, erotismo, me- mórias de infância e tudo o que quiserem, porque são produtores culturais e, como tais, as possibilida- des são infinitas. É inegável, contudo, que a grande tônica no palco e no microfone seja a violência policial e esta- tal, o racismo, a homofobia, a misoginia, os traumas coloniais, ou seja, a denúncia. Em razão disso, uma pseudocrítica tende a querer apagar o caráter literário-artístico do movimento. Então, se no passado o apaga- mento das vozes periféricas se dava através do silenciamento e da sua ocultação, hoje usa-se da negação, por meio do dis- curso de que esta é uma literatura menor ou até mesmo de que não é literatura. Em uma live em seu Instagram, no dia 14 de abril de 2020, a escritora Conceição Eva- risto fez uma oposição entre o espelho de Narciso e o espelho de Oxum, a partir da filo- sofia Ubuntu, refletindo sobre a escrita de si e ao que chama de escrevivência. No espelho de Narciso (uma escrita ególatra), a escrita se esgota de si e em si mesma, já a escrevivên- cia se distancia do “eu” para traçar uma cami- nhada filosófica sobre o “nós”. Assim, segundo Conceição, a escrevivência acaba por ser uma escrita que representa o coletivo, e embo- ra o eu lírico seja um eu, tem uma ressonância em grupo, já que são vivências comuns dos corpos negros na sociedade, experiências co- muns à comunidade; um olhar-se no espelho de Oxum, um encontro com a própria beleza, dignidade e que acolhe o coletivo. Repetimos: a história sempre foi con- tada pelos vencedores. Numa narrativa que coloca os corpos periféricos como violentos e que só são filmados para passar em no- ticiários sensacionalistas, a contrarrevolta é ver esses corpos produzindo cultura: hortas, batuques, bibliotecas, filmes, dança, poesia e tudo o que quiserem. Dieguim, poeta da Serrinha, diz bem: “Quero ver filmar um sa- rau e botar em rede nacional.” Hoje, acreditamos não ser mais possí- vel parar o movimento dos saraus, que tem ocupado cada vez mais espaços e trans- formado a vida de muita gente, desde os moleques e as meninas que passam, vêm aos saraus e começam a participar e a ter um outro repertório em que se inspirar, aos próprios participantes que passam a narrar Granja Portugal, com apoio do Espaço Gera- ção Cidadã e do Grupo Nóis de Teatro, com representantes de saraus de outras cidades do estado, como Caucaia, Maracanaú, So- bral e Taíba. O próximo Encontro de Saraus acontecerá no Jangurussu, e espera-se pelo menos vinte saraus do estado. O movimento publicou Ruma: poemas de saraus, em 2019, uma realização dos co- letivos de saraus e da Biblioteca Livro Livre Curió, através de edital da Secult-CE. Com a organização de Talles Azigon, o livro conta com poemas e colagens de artistas de di- versos saraus do estado e foi publicado na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, em tiragem de mil exemplares. 188 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE e transformar sua própria história, até aque- les que passam a enxergar e ouvir o que pa- recia ser invisível ou não ter voz. Como uma rede que se afeta com as experiências de resistência e re-existência, cada vez mais saraus têm surgido, como a Pretarau: sarau das pretas, um coletivo de artistas mulheres negras da cidade, espe- cialmente as que vivem e resistem na perife- ria, e a coletiva BaRRósas, surgida nos bair- ros Barroso e Violeta, a partir de ações de pessoas que somam com a Biblioteca Viva Barroso, onde perceberam que, apesar de as mulheres serem a maioria entre os leito- res, tinham pouca participação nos saraus e slams do bairro. Em Sobral, uma outra ini- ciativa só de mulheres é o Slam das Cuma- dis, batalha de rima que surgiu no bairro Terrenos Novos. E o movimento de saraus está cada vez mais firmão. Nas universida- 9. E PARA ONDE VAI A LITERATURA CEARENSE? thon Costa, da Academia Carioca de Letras na Fe- deração das Academias de Letras do Brasil, nas “Notas Preliminares” de História literária do Ceará (1948), de Mário Linha- res, já pontuava: [...] somente se consagram [os escritores das províncias] de todo quando emigram para o Rio de Janeiro. As exceções são poucas e quase nulas, pela incontrastável influência que os grandes centros de cultura exercem [...] so- bre quantos mantenham [...] o seu contato. A literatura brasileira, de que geralmente se cogita nos trabalhos dessa natureza, nada mais tem sido que o estudo crítico ou sim- ples registro nominal desses escritores que os poucos centros de cultura do país con- sagram e põem em evidência. Mas quantos grandes espíritos permanecem esquecidos ou desconhecidos na costumeira estagna- ção social das mais longínquas regiões bra- des, artistas são convidados para falar em aulas, centros culturais e eventos. Cresce o número de monografias, dissertações e te- ses sobre o tema. E vem uma ruma de gente que nem é da periferia para curtir os saraus. Aliás, o que é periferia? SE INTERA! A nossa cultura é baseada na busca por sobreviver. Com a nossa arte a gente afirma, todos os dias, o nosso direito de existir, sendo não apenas “periferia”. Nós também somos o Centro. Cada periferia é um centro. (Baticum) sileiras? E tudo isso representa um enorme e precioso patrimônio perdido, sem em- bargo de se tratar, muitas vezes, de uma lite- ratura genuinamente nacional, como reflexo de nossos mais puros sentimentos nativos. O sentimento do autor dessas “Notas”, para aqueles que acompanham atenta- mente o curso, reforçam o que dissemos desde o primeiro módulo: que tudo aqui- lo que por nós é esquecido, abandonado, é tão importante quanto aquilo que é consagrado e reconhecido. A diferença é que esse “todo esquecido” para nós é um desafio, algo a ser redescoberto, pesquisa- do, lido, estudado e publicado. Já pensou que grande serviço nós prestaríamos às letras de nosso estado e país? Não restrito ao Ceará, mas àqueles estados distantes – não apenas geograficamente – de tais centros, que por uma questão hegemônica histórica detiveram o poder de consagrar, mas também o de invisibilizar muitos de nossos autores e obras. Para nós cearenses, por exemplo, não é compreensível que alguns autores, pela qualidade de suas obras, e até com certo reconhecimento em outros estados brasi- leiros, não tenham sido alvos de publicação no mercado editorial – nem cearense, nem nacional – mesmo após a sua morte, como José Alcides Pinto, Moreira Campos, Francis- co Carvalho, Audifax Rios, Nilto Maciel, Mário Gomes, Airton Monte, Milton Dias, Gerardo Mello Mourão, Gustavo Barroso, Eduardo Campos, Moacir C. Lopes, Jáder de Carvalho, Barros Pinho, Juarez Barroso, Caio Porfírio Carneiro, para citar apenas alguns. Além disso, perguntamo-nos o porquê de a Padaria Espiritual, que em seu tem- po teve algum destaque até nesses “gran- des centros”, mesmo pela sua originalida- de e atitude diante do cenário da época, não constar em nenhum desses compên- dios de Literatura Brasileira, mesmo sendo ela, inclusive, bem próxima do espírito mo- tivador da badalada e polêmica Semana da Arte Moderna de 22. CURSO literatura cearense 189 Da mesma forma, as universidades que, a nosso ver, são as responsáveispela produ- ção desse saber, também negligenciam esse conhecimento, com produções que não exploram a busca desses autores de outras épocas – uma tarefa que ainda tem muito pano para mangas –, e muito menos desta. Ora, se em nossos centros não há interesse por esse estudo da literatura produzida em nosso estado, de onde virá essa iniciativa? Felizmente, durante o curso e mesmo antes dele, tomamos o conhecimento de paulis- tas, cariocas, mineiros, alagoanos, pernam- bucanos, entre outros, que se determinaram a estudar essa produção cearense. Agora, esses estados também se voltam para reco- nhecer as suas próprias produções. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), nesse ponto, não nos foi favorável. Se por um lado democratizamos o acesso às universidades públicas, por outro, com seu advento, os vestibulares regionais, com te- mas da região, como a história e a literatura, foram abolidos, de maneira que caímos nas mãos do cânone literário nacional. Pelo me- nos no curso de História, a disciplina História do Ceará é obrigatória, enquanto no curso de Letras da Universidade criada pelo acadê- mico e membro do CLÃ Martins Filho, a dis- ciplina Literatura Cearense é optativa e parte dela não é ofertada há anos. Na Universidade Estadual do Ceará, em Fortaleza, ela também é optativa. Em Limoeiro do Norte, entretanto, a Fafidam traz em seu Plano Político-Peda- gógico (PPP) a disciplina Literatura Cearense como obrigatória, um exemplo, cremos, a ser seguido, sobretudo, por aqueles que de- fendem o PPP como algo estático e cristaliza- do dentro das instituições de ensino. Antes do Enem, a UFC, em seu Vestibular, acolhia a literatura produzida no estado e, por meio de sua Imprensa Universitária, lançava uma seleção de obras que era fartamente es- tudada pelos candidatos. Ali, entre os jovens, uma grande descoberta: era possível ler autores cearenses e gostar! Na lista, Ange- la Gutièrrez (O mundo de Flora), Antônio Gi- rão Barroso (Poesias incompletas), Pedro Sal- gueiro (Dos valores do inimigo), Airton Monte (Moça com a flor na boca), Eduardo Campos (Três peças escolhidas), Natércia Campos (A casa), Patativa do Assaré (Cordéis e outros poemas), Moreira Campos (Dizem que os cães veem as coisas), José de Alencar (O Guarani), Antônio Sales (Aves de arribação), Caio Porfí- rio Carneiro (Trapiá), Milton Dias (Entre a boca da noite e a madrugada), José Alcides Pinto (Os verdes abutres da colina), João Clímaco Bezerra (A vinha dos esquecidos) etc. Também as editoras universitárias não têm hoje mais fôlego financeiro nem equipe suficiente para publicar sistematicamente obras de relevância histórica e/ou literária. E, infelizmente, muitos editores também atestam que essas obras não encontram público, por isso o desinteresse editorial. A política de editais públicos estadual e municipais para autores e publicações, des- de 2004, independentemente de qualquer crítica, tem sido, se não uma porta, mais uma janela que permite o lançamento de novos talentos que hoje permanecem no circuito cultural. Da mesma forma, destacamos ou- tros prêmios literários, como o tradicional Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras e do Ideal Clube, e o surgimento constante de novos grupos e instituições que abrigam e estimulam a troca de ideias e a convivência entre esses autores, sejam as as- sociações, como a Associação Cearense de Escritores (ACE), as Academias de Letras mu- nicipais, os coletivos e os diversos clubes de leitura e projetos de bibliotecas comunitárias que polvilham e encantam novos leitores. que chamamos de socie- dade moderna ou socie- dade da informação, há décadas vem passando por grandes e rotineiras transformações, inclusi- ve de valores, exigindo de todos, cada vez mais, a capacidade de estar atentos e informados, ser flexíveis e ter uma boa dose de criati- vidade e superação – às vezes, um pouco também de sangue de barata. Em todo mundo, encontramos um vigoro- so processo de massificação, da propagação do consumo, que atinge a todas as popula- ções, incluindo, claro, os artistas e a sua pro- dução. Em parte, enquanto alguns se rendem a ela, vestindo-se do mais absoluto individua- lismo, outros se unem em sua contramão. As grandes editoras (falamos “editoras”, mas há uma grande cadeia que compõe essa “indústria”) por todos os meios identi- ficam e estudam esse público consumidor e investem pesado na busca e na “construção” de novos autores e obras, no afã de lançar 10. A CENA LITERÁRIA SABATINA 190 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE best-sellers, livros da moda, as “tendências”, como chama o mercado. Aliadas a essas edi- toras, de forma espontânea ou não, as revis- tas, os jornais, a TV, ditam ao público os livros mais vendidos, a “isca perfeita” para aqueles que buscam a inalcançável inclusão ou mes- mo outros que, sem muita crítica pessoal, necessitam dessa tutela da curadoria anôni- ma – reforçando o apelo do consumo, inde- pendentemente da qualidade literária. Isso, claro, quando não são influenciadas pelas séries de TV ou filmes de cinema que vêm junto ao “combo” promocional dos maiores investimentos, normalmente, externos ao país, mas que “copulam” com ele. Por outro lado, a democratização cada vez mais crescente da internet e das re- des sociais criou um novo paradigma que permite que autores completamente sem acesso às editoras possam, por meio de estratégias insistentes e criativas (leia-se “heroicas”), conseguir alcançar e formar um público leitor. Isso nos faz lembrar uma con- versa entre dois editores, quando um deles afirmou: “Antes, para ser conhecido, você tinha que ser autor; hoje, para ser autor, an- tes você tem que ser conhecido.” Razão esta pela qual muitas são a obras assinadas por celebridades, youtubers, colecionadores de “likes”, porém, escritas por ghostwriters. Para combater essa “marginalidade”, sur- gem as revistas literárias, que cientes dessa oficial invisibilização tentam divulgar esses autores e obras que não fazem parte do “câ- none comercial da indústria de arrastão”. Naturalmente, como sempre aconteceu – e vocês cursistas já sabem disso –, essas revis- tas têm vida curta, como a das moscas. Entre as revistas cearenses, a partir de 2000: CAOS Portátil: um almanaque de contos, Literatura: revista do escritor brasileiro, Corsário, Gazua, Mambembe, Literapia, V.o.l.a.n.t.e, Para Ma- míferos, Mutirão, Berro, Pindaíba e a caçuli- nha, com 90 anos, a Maracajá. Hoje, existe um mundo de revistas eletrônicas, muitas delas também de curta duração, apesar de não exigir maior investimento, como edito- ração gráfica e impressão. Deixando de lado os aspectos comerciais mais agressivos desse mercado e a promo- ção de ilusões que ele cria e envelopa para seus consumidores (às vezes leitores), falare- mos brevemente sobre os gêneros literários que grassam pelo solo e imaginação cearen- ses, compreendendo que entre todos os nos- sos autores contemporâneos, pouco mais dos dedos de uma mão, talvez, possam se dedicar inteira e somente ao ato de escrever. Como você deve ter percebido, no de- correr do curso, o conto sempre foi um gê- nero de preferência no Ceará. Especialmen- te nos dias de hoje, nos quais o tempo exige economia, as narrativas curtas caem bem, garantindo breves leituras àqueles que não querem se distanciar da literatura. Fator também favorável aos contistas, pois devi- do ao pouco espaço da agenda, podem bu- rilar aquele conto com o apreço necessário a uma boa peça literária, geralmente muito afeita a tratar das violências, desigualdades sociais, entre outros elementos cotidianos urbanos, seja pela secura da escrita ou utili- zando do erotismo, sarcasmo e humor. Sem nunca ter saído da raia, o fantástico e os demais gêneros fronteiriços, com o advento comercial da fantasia, especialmente entre os jovens, voltaram a integrar a produção de contos e esparsos romances no Ceará. Deixamos o registro aqui do surgimento,em 1997, do Almanaque de Contos Cearen- ses, organizado por Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro e Elisângela Matos, que mar- cou, reuniu e lançou uma geração de contis- tas na referida década. Em 2005, seria cria- da a revista CAOS Portátil: um almanaque de contos, idealizada por Pedro Salgueiro e Jorge Pieiro, com a colaboração de Geral- do Jesuíno e Raymundo Netto, que chegou a publicar 5 edições, e foi responsável por lançar uma série de novos contistas. As crônicas, gênero que permite muita liberdade, sempre foram muito populares e tiveram diversos adeptos no Ceará. Sua popu- laridade se deve, cremos, principalmente pela sua extensão curta, sua linguagem simples e por tratar de assuntos corriqueiros do dia a dia, muitas vezes de forma bem-humorada, memorialística, reflexiva e/ou lírica, além de ser encontrada facilmente em páginas de jornais. Mesmo com a redução desses periódicos e a consequente redução da leitura de seus im- pressos, com o advento dos portais de notícias virtuais, as crônicas continuam no gosto dos atuais leitores, exigindo, contudo, uma diversi- dade acrobática de temas pela pluralidade de motivos e de anseios das suas preferências. Entre os gêneros ficcionais em atividade no Ceará, os romances nos são os mais raros, justamente por exigir um maior tempo de de- dicação e de criação e, por vezes, investimen- tos. Claro, referimo-nos aos bons romances. Com poucas exceções, apenas os autores pro- fissionais – refiro-me àqueles que não têm ou- tra ocupação que não seja a literária – é quem tem mais extensa bibliografia. Encontramos outros autores cearenses de crônicas e ro- Em 2004, Túlio Monteiro organizaria Antologia de Contos Cearenses, na Coleção Terra da Luz, das Edições UFC, reunindo alguns contos de origem realista até contemporâneos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BESSA, Flávia; MELO, Igor de. Ao som das margens cearenses, o batuque provocativo de Baticum. Revista Vós in: http://www. somosvos.com.br/ao-som-das-margens- cearenses-o-batuque-provocativo-de- baticum/ [acesso em 19/04/2020] ERNESTO, João. Toda periferia é um centro: uma história do movimento de saraus na periferia de Fortaleza. Revista Berro, in: https://revistaberro.com/reportagem/ toda-periferia-e-um-centro-uma-historia- do-movimento-de-saraus-nas-periferias-de- fortaleza/[acesso em 19/04/2020] EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. FREIRE, Paulo. Ação cultural para liberdade. 5 ed. Vol. 10. Coleção O Mundo, Hoje, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. LINHARES, Mário. História Literária do Ceará, Jornal do Commercio, Rodrigues & Cia, Rio de Janeiro, 1948. LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. SEVERO, Luana. A ocupação Gregório Bezerra e as violações de direitos. Jornal O POVO in: https://www.opovo.com.br/ jornal/reportagem/2018/06/a-ocupacao- gregorio-bezerra-e-as-violacoes-de- direitos.html [acesso em 19/04/2020] SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. Rede de Afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza (CE). Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual do Ceará. 2019. 212 f. Disponível em: http://www.uece.br/ ppgsociologia/index.php/arquivos/doc_ view/847-?tmpl=component&format=raw [acesso em: 19/04/2020] CURSO literatura cearense 191 mances que não mais publicam ou que não residem no Ceará há muito tempo. Atualmen- te, a maioria dos romances que nos chegam são escritos por mulheres. Aliás, no Ceará, não apenas no romance, a literatura de autoria feminina é a mais celebrada, tendo represen- tações, engajamentos e ampla participação nos veículos e redes de comunicação. Na poesia, então, temos poetas para to- dos os gostos: dos mais clássicos aos experi- mentalistas; dos profusos aos minimalistas etc. Como os demais, estão nas ruas (como vimos neste módulo), nos muros, nas redes sociais, nos blogs, nas páginas impressas e/ ou digitais dos jornais e mesmo em publi- cações, geralmente independentes – as edi- toras formais cada vez menos investem em poesia. Reúnem-se em coletivos, em mesas de bar ou em restaurantes de clubes (ou em ambos), e publicam em conjunto, fazem uma zoada danada e acabam chegando aos ouvidos e aos olhos de seus leitores. Fica a dica: “Toda bibliografia deve re- fletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o de- sejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então, a intenção fundamental referida. A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas ga- vetas das escrivaninhas.” (FREIRE, 1981) Aqui, a nossa gratidão a todos aqueles que nos deixaram como legado a sua pes- quisa, que resultou nesse curso. Não fos- sem eles, diríamos hoje que nunca existiu produção literária no estado, assim como dizem que por aqui não havia negros, nem índios, nem chuvas... Sânzio de Azevedo, um desses mestres, ao fechar das luzes de sua Literatura Cearense (1976), nos conta que o escritor Valentim Ma- galhães, em 1895, no A Notícia (RJ), por tanto que recebia livros originários do Ceará, escre- veu: “O Ceará não para, o Ceará não cansa.” Cremos que 125 anos depois, o Ceará ainda não parou e jamais cansará, contribuindo a seu modo, a seu jeito, na composição des- se imenso mosaico polifônico denominado Literatura Brasileira. E nessa direção, luta aguerridamente, como dizia o jornalista e po- eta Demócrito Rocha: “resistindo e morren- do... morrendo e [sempre] resistindo.” 11. SAINDO DE CENA oderíamos agora encerrar o nosso estudo sobre a Lite- ratura Cearense, mas seria um absurdo: pois agora é que nós começaremos! O que vocês viram até aqui foi só um arrazoado provoca- tivo do muito que temos a aprofundar-nos, a conhecer e a compartilhar. O curso básico, este sim, se encerra agora, com a esperança de ter contaminado (numa “pandemia do bem”) o gosto pelo ainda muito ignorado univer- so literário cearense, por suas obras e por seus autores. Entendendo por Literatura Cearense essa forma particular como e por meio de quem a Literatura Brasileira se ma- nifestou e se manifesta no Ceará. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-25-1 (Fascículo 12) Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br Realização Apoio Patrocínio AUTOR Vanessa Passos É escritora, professora de escrita criativa, consultora literária, pesquisadora, produtora cultural e mediadora de leitura. Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Idealizadora do Clube de Leitura de Escrita Literária (Clel). Atualmente, dedica-se ao Pintura das Palavras, projeto literário on-line e presencial, no qual é fundadora e ministraoficinas de Escrita Criativa. Nina Rizzi É historiadora, pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), mestre em Literatura comparada (UFC), poeta, tradutora, pesquisadora, professora e editora. Promove o “Escreva como uma mulher”: laboratório de escrita criativa com mulheres. Integra a coletiva “Pretarau”: sarau das pretas e é uma das articuladoras do Sarau da B1. Raymundo Netto Jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Autor de obras literárias em diversos gêneros. É militante da literatura cearense e desde 2009 mantém o blog AlmanaCULTURA. ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Compartilhar