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Escola e Currículo Escola e Currículo Organizado pela Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2017 Karla Saraiva Lisiane Gazola Santos Iara Tatiana Bonin Daniela Ripoll Bianca Salazar Guizzo Juliana Ribeiro de Vargas Conselho Editorial EAD Ana Patricia Barbosa Andréa de Azevedo Eick Astomiro Romais Claudiane Furtado Italo Ogliari Juliane Maria Puhl Gomes Lourdes da Silva Gil Luiz Carlos Specht Filho Maria Cleidia Klein Oliveira Rafael da Silva Valada Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados técnicos do livro Diagramação: Jonatan Souza Revisão: Ane Sefrin Arduim A disciplina de Escola e Currículo visa ampliar a compreensão do con-ceito de currículo frente à realidade da escola contemporânea e das políticas públicas no contexto da Educação Básica. Segue uma breve des- crição das abordagens temáticas apresentadas nesse livro. O Capítulo 1 trata da emergência da escola moderna, ou seja, do lento surgimento e consolidação da escola mais ou menos nos moldes que se conhece hoje no período compreendido entre o século XVII e o século XIX. As discussões apresentadas mostram que essa emergência se sustenta em algumas condições históricas: as transformações no modo de pensar e utilizar o tempo e o espaço; o surgimento de um sentimento de infância; a necessidade de controlar as classes populares de modo a produzir sujeitos capazes de adaptarem-se às exigências do trabalho fabril e com noções de cidadania. Esse capítulo funciona como um pano de fundo histórico para as discussões que se seguem. No segundo capítulo, intitulado Teorias do Currículo, são abordadas algumas definições do termo Currículo, as Teorias Tradicionais, Críticas e Pós-Críticas do Currículo e a importância do estudo de tais definições e teorias para formação de professores comprometidos com práticas peda- gógicas que visam à constituição de sujeitos críticos, reflexivos que compre- endam as complexas relações sociais e culturais nas quais estão inseridos. O terceiro capítulo – Novos tópicos para o currículo – traz para a discussão o fato de que vivemos num mundo heterogêneo, a ideia de que “somos todos diferentes” e que não deve haver primazia de uma identidade sobre outra. Tais discussões colocam, para os currículos, novas questões a ser pensadas. Apresentação Apresentação v O Capítulo 4, sobre Gênero e Sexualidade, apresenta algumas discussões acerca do conceito de gênero e do conceito de sexualidade utilizando autoras e autores oriundos dos Estudos Culturais, dos Estudos Feministas e dos Estudos de Gênero e Sexualidade. O capítulo mostra, ainda, a importância da abordagem de tais questões na escola básica e no currículo, bem como apresenta alguns dos desdobramentos (e, em alguma medida, alguns dos retrocessos) atuais no que diz respeito à abordagem dessas temáticas. No Capítulo 5, Relações étnico-raciais e temática indígena, a au- tora problematiza a multiplicidade de culturas que “integram” e constituem as salas de aula e que nos impõem maneiras plurais de proceder, de or- ganizar o trabalho pedagógico e de avaliar, e discute sobre algumas das culturas que vêm sendo historicamente desconsideradas, subjugadas, ba- nalizadas nos currículos. No Capítulo 6, intitulado Diretrizes Curriculares Nacionais e Proje- to Político Pedagógico, são trabalhadas questões pertinentes a dois do- cumentos importantes para a organização educacional e escolar na atua- lidade. Um deles refere-se às Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (2013), que são normas obrigatórias, fixadas pelo Con- selho Nacional de Educação (CNE), que devem orientar o planejamento curricular das escolas e sistemas de ensino. O outro diz respeito ao Projeto Político Pedagógico que deve ser organizado a partir da especificidade de cada escola e que se constitui como uma obrigação legal que deve tradu- zir a visão, a missão, os objetivos, as metas e as ações que determinam o caminho a ser trilhado por uma determinada instituição com o intuito de formar sujeitos ativos, críticos e criativos. O Capítulo 7, Organização Curricular da Educação Infantil, apre- senta, inicialmente, a trajetória trilhada pela primeira etapa da Educação Básica no Brasil. Além disso, busca apresentar o modo como a organi- zação curricular na educação infantil tem sido pensada, tomando como base referenciais, diretrizes, relatórios elaborados e propostos especifica- mente para essa etapa da educação. Tais documentos fundamentam-se numa ideia de crianças enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais e de di- vi Apresentação reitos. Em razão disso, defendem a proposição de um currículo que articu- le as diferentes linguagens utilizadas pelos sujeitos infantis. No Capítulo 8, Organização Curricular – Ensino Fundamental, são contextualizadas as práticas de organização curricular no Ensino Fun- damental, através da retomada de aspectos históricos acerca da imple- mentação do Ensino Fundamental no Brasil; disposições legais sobre a organização curricular da referida etapa do ensino apresentadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96, pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e pelo Plano Nacional de Educação. No Capítulo 9, Organização Curricular – Ensino Médio as autoras buscam contextualizar organização curricular do Ensino Médio atual, no sistema educacional nacional, traçando diálogos com História da Educa- ção e, ainda, com o campo da Pedagogia. Por fim, são discutidos alguns dos desafios para a organização curricular do Ensino Médio, na atualida- de, tanto para pedagogos e pedagogas, como, também, para a organiza- ção de políticas educacionais. Por fim, são problematizados dois dos principais desafios que tangem a organização curricular do Ensino Fundamental na atualidade: a Educação Integral e as Tecnologias de Informação e Comunicação. O Capítulo 10 traz algumas discussões acerca da escola contemporâ- nea, desdobradas a partir daquilo que foi estudado ao longo do semestre. Em especial, o capítulo problematiza dois aspectos importantes que estão levando a que se repense as estratégias de escolarização. Primeiramente, o surgimento daquilo que se poderia chamar de novas infâncias e novas ju- ventudes, constituídas a partir de transformações culturais fortemente atra- vessadas pelas tecnologias digitais. A seguir, discutem-se as conexões das transformações propostas para as escolas e sua articulação com o que se diria ser um novo capitalismo, que já não se funda na produção industrial e no trabalho de organização disciplinar, mas, sim, na produção de bens ditos imateriais e em uma organização de trabalho muito mais flexível. 1 Emergência da Escola Moderna ............................................1 2 Teorias do Currículo ............................................................21 3 Novos Tópicos para o Currículo ..........................................41 4 Gênero e Sexualidade ........................................................64 5 Relações Étnico-raciais e Temática Indígena ........................86 6 Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e Projeto Político Pedagógico ..................................111 7 Organização Curricular na Educação Infantil .....................129 8 Organização Curricular – Ensino Fundamental ..................145 9 Organização Curricular – Ensino Médio ............................169 10 Escola na Contemporaneidade .........................................192Sumário Emergência da Escola Moderna1 1 Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação da ULBRA. Desenvolve pesquisas relacionadas ao campo do currículo, tendo publicado diversos artigos na área. Karla Saraiva1 Capítulo 1 2 Escola e Currículo Introdução Estamos tão habituados com a ideia de que a educação acon- tece na escola que, atualmente, muitas vezes essas duas no- ções se confundem. Parece-nos que o único modo de educar as crianças é por meio da escolarização. Entretanto, a escola, do modo como a concebemos hoje, tem uma história relativa- mente recente. Ela começa a se desenhar na Europa, no século XVI, e, lentamente, se configura como a instituição educacio- nal por excelência. nesse capítulo, pretendo mostrar, de forma sintética, algumas condições que permitiram a emergência1 e a consolidação da chamada escola moderna. Observe-se que a denominação escola moderna não está relacionada com o sentido corrente de moderno, a saber, algo novo, arrojado. O adjetivo moderno deve-se ao fato de que esse tipo de insti- tuição educacional surge na modernidade,2 sendo importante destacar que alguns elementos que marcam a transformação dos modos de vida medieval na direção de formas de orga- nização sociais modernas constituem-se, justamente, em con- 1 Utilizo o termo emergência no sentido daquilo que emerge. Emergir significa vir à tona ou, em seu sentido figurado, aparecer manifestar-se. No caso, o termo emer- gência está associado a algo que se constitui lentamente. Evito o termo surgimento justamente para evitar a ideia do aparecimento repentino de algo. A emergência da escola refere-se às condições que possibilitaram seu surgimento em um determina- do contexto histórico, em um movimento que atravessa alguns séculos. 2 A modernidade é um modo de compreender o mundo e de viver, relacionado a um período histórico que se inicia com o Renascimento, no século XVI. Desde o final do século XX, muitos pensadores consideram que estamos vivendo uma nova trans- formação, que estaria nos deslocando da modernidade para a contemporaneidade (também chamada, por alguns, de pós-modernidade). Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 3 dições que irão contribuir para o surgimento dessa instituição escolar. Na sequência, irei comentar algumas das principais trans- formações que deram sustentação à emergência e à consoli- dação da escola como instituição educacional de abrangência quase universal. Entretanto, peço a meus leitores duas precau- ções. Em primeiro lugar, não entendam essas transformações pela lógica da substituição, mas pela lógica de mudanças de ênfase. Ao se perceber novas formas de significar e utilizar espaço e tempo, por exemplo, deve-se entender que, mesmo antes disso, essas mudanças já estavam se constituindo e que os significados anteriores não desaparecem, mas passam a ter menor importância. Em segundo lugar, não tomem essas transformações como mudanças bruscas, universais e homo- gêneas, mas como processos de desenvolvimento lento, cuja lógica se firma de modo gradativo e heterogêneo entre dife- rentes classes e grupos sociais. 1 Condições de emergência da escola Retomando as discussões sobre a emergência da escola, con- forme já afirmei antes, a constituição da escola moderna inicia- -se no século XVII, mas sua consolidação é um processo que se desenvolverá ao longo de alguns séculos, sendo tributário um conjunto amplo e diversificado de condições sociocultu- rais. Abordarei aqui aquelas que seriam as mais significativas, tomando como base os escritos de alguns autores que vêm abordando essa temática. Inicio tratando das transformações 4 Escola e Currículo dos significados espaço-temporais que acontecem na passa- gem do medievo para a modernidade e que são fundamentais para a invenção da escola. O tempo e o espaço, ao passarem a ser entendidos como objetivos e mensuráveis, tornam possí- vel pensar na organização escolar assim como conhecemos. A seguir, discuto o surgimento da noção de infância como uma fase especial da vida que exige cuidados, cujo desdobra- mento é justamente a invenção de uma série de instituições para sua educação, com destaque para a escola. Prossigo mostrando que a escola moderna se organiza a partir daquilo que Foucault (1999) chamou de disciplina, organização que estará presente, também, na prisão, na fábrica, no quartel e no hospital, e que caracterizará a modernidade. Finalizo esse capítulo mostrando como a escola pública, que se constitui ao longo do XIX, funcionou como uma estratégia de domestica- ção das classes populares pautada por uma moral burguesa, produzindo sujeitos adaptados às rotinas das fábricas e que veem a si mesmo como cidadãos. 2 As transformações espaço-temporais O mundo medieval era um mundo misterioso, idealizado a partir de uma visão teocêntrica. Na concepção medieval, Deus era aquele que guiava o mundo e era responsável pelo destino de todos e de cada um. O espaço era percebido como frag- mentado em múltiplos mundos, sendo a principal divisão entre o mundo da alma e o mundo da carne. O mundo da alma era dividido em paraíso, purgatório e inferno. O mundo da Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 5 carne era constituído por lugares isolados, cercados por uma exterioridade misteriosa. (SARAIVA, 2006). À noção de um espaço fragmentado, associava-se uma fraca percepção de tempo. Um tempo difícil de ser apreendi- do, com um significado subjetivo fortemente ligado com os ci- clos da vida: as estações do ano, o dia e a noite, as colheitas, as gestações... Para os medievais, a própria ideia de um futuro capaz de ser administrado por meio de decisões presentes era algo muito obscuro. No medievo, as preocupações com o fu- turo se limitavam a questões muito imediatas e relativas à so- brevivência, como, por exemplo, guardar alimentos no verão que pudessem ser consumidos no inverno. De modo mais am- plo, o pensamento teocêntrico acreditava que o futuro estava nas mãos de Deus e que a humanidade pouco podia intervir nos desígnios divinos. A passagem do medievo para a modernidade tem com um dos eixos principais a transformação de uma concepção teo- cêntrica para outra antropocêntrica. Gradativamente, passa-se a admitir que o destino não esteja exclusivamente nas mãos de Deus e que a agência humana seria capaz de intervir no que viria a acontecer em um tempo futuro. O tempo perde seu caráter cíclico e místico, passando a ser compreendido como uma linha infinita que vai do passado para o futuro, represen- tado pela imagem hoje muito popular da seta do tempo. O espaço deixa de ser pensado como fragmentado, tornando-se único e infinito. Ambos, tempo e espaço, tornam-se objetivos, mensuráveis, administráveis e fracionáveis (SARAIVA, 2006). 6 Escola e Currículo A passagem do teocentrismo para o antropocentrismo faz com que se comece a pensar que o futuro possa ser modificado e aprimorado pela agência humana. essa transformação está relacionada, por exemplo, com a constituição de um pensa- mento científico, que visava desvendar os mistérios da nature- za. O conhecimento deixa o campo do divino e vai habitar o campo do humano, sendo entendido como condição para pro- duzir um mundo melhor. Cabe ressaltar que a passagem para o antropocentrismo não suprime a fé em Deus, mas apenas revê seu papel. Sujeitos como Descartes e Newton, considerados precursores do pensamento científico moderno, eram bastante religiosos, porém, acreditavam que Deus havia criado o mun- do com suas leis e já não intervinha no destino dos homens de modo tão direto. A ideia era que caberia à humanidade conhe- cer a obra divina para poder operar sobre ela. Essas transformações na concepção de tempo e de espaço se articulam não apenas com a emergênciado pensamen- to científico moderno, mas também com diversas outras que acontecem na passagem do medievo para a modernidade e constituem uma das principais condições para a emergência da escola. Uma delas, de fundamental importância, é a trans- formação do que significa ser criança. 3 A emergência da noção de infância Conforme Varela e Alvarez-Uría (1992, p.69), Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 7 assim como a escola, a criança, tal como a percebemos atualmente, não é eterna nem natural; é uma instituição social de aparição recente ligada a práticas familiares, modos de educação e, consequentemente, a classes so- ciais. Até a modernidade, havia uma concepção de que a vida seria uma continuidade, sem que houvesse uma diferenciação de suas etapas. Desse modo, à infância não era reservado um papel especial. As crianças participavam da vida adulta na medida de suas capacidades. As providências que havia em relação às crianças eram de ordem iminentemente prática: a necessidade de alimentá-las e cuidá-las quando muito peque- nas estava ligada a sua sobrevivência. A vida era cíclica, sem rupturas e divisões, como era cíclico e sem divisões o tempo, conforme mostrei na seção anterior. Uma vez que as crianças participavam plenamente da vida adulta, sua educação não acontecia em um espaço ou uma instituição especial. Para a quase totalidade delas, a educação acontecia nas práticas cotidianas: no lar, na oficina, no cam- po. Apenas algumas crianças de classes muito privilegiadas tinham preceptores e recebiam uma educação especializada. Havia algumas poucas escolas para a chamada infância de qualidade, ou seja, de classes abastadas, mas sem a organiza- ção atual. Eram apenas locais em que os mestres recebiam os alunos, com quem trabalhavam individualmente. Nessas es- colas, os horários eram flexíveis e não havia um currículo. Em geral, o ensino era ministrado de modo bastante confuso, sem uma organização que apontasse um percurso ou objetivos. 8 Escola e Currículo A modernidade transforma as noções espaço-temporais e torna possível pensar a vida como sendo uma sequência de etapas, de “idades da vida” (ARIÈS, 1981). Aos poucos, a infância passa ser entendida como uma época especial. A diferença entre adultos e crianças passa a ser entendida não apenas em termos de um grau de desenvolvimento, mas como uma fase com atributos peculiares. A partir do século XVII, criança vai deixar de ser um adulto em miniatura, passando a ser percebida como tendo uma natureza distinta. Nesse mo- mento, começa a se constituir um sentimento em relação à infância junto às classes mais privilegiadas (esse sentimento só irá começar a atingir as classes populares no século XIX), que será caracterizada pela maleabilidade (que permite mol- dar seu caráter por meio da educação), pela fragilidade, pela falta de razão/juízo, pela incivilidade. A inocência só irá se tornar uma qualidade das crianças mais tarde, sendo reserva- da à chamada infância de qualidade, ou seja, às crianças das classes mais abastadas. A chamada infância rude, pertencente às classes populares, não chegará a conquistar esse status de inocência e estará sempre rondada pela ideia de delinquência e de imoralidade (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992). Este novo sentimento de infância, que produz uma crian- ça que precisa de cuidados especiais, incentivará seu isola- mento em instituições específicas, longe do mundo adulto. A infância necessita de uma educação adequada para a boa formação de seu caráter, disso dependerá seu futuro. Come- nius (2002, p.76), em sua obra Didática magna, publicada em 1640, quando a noção de infância começava a se constituir, escreveu que “a todos aqueles que nasceram homens a edu- cação é necessária, para que sejam homens e não animais Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 9 ferozes”. A partir do século XVII surge uma série de especialis- tas que irão teorizar sobre a infância e sobre como educá-la. Apesar da grande variabilidade de instituições educacionais que surgem durante a modernidade na Europa, separando as crianças dos adultos, de modo geral, é possível distinguir dois grandes grupos. A infância de qualidade era enviada para os colégios, que se aliam à ação da família. Nesse momento em que se constitui o sentimento de infância, também se institui um determinado modelo familiar fortemente centrado na fi- gura da mãe, uma mulher amorosa, que abdica de ter uma vida pública, que é recatada e que se sacrifica pelo bem dos filhos. A mãe é a figura feminina que se opõe à bruxa, que mata as crianças, e à prostituta aborteira (VARELA; ALVAREZ- -URÍA, 1992). Parte da educação é realizada no lar, por essa mãe amorosa, e parte nos colégios, que serão orientados por rígidos regulamentos. Por outro lado, entre os séculos XVII e XVIII, a infância rude vai sendo percebida como oriunda de um meio incapaz de lhe dar uma educação moral adequada. Parte da infância rude também será recolhida em lugares que as segregam dos adul- tos, porém diferentes dos colégios. Órfãos e crianças aban- donadas serão encaminhadas para instituições cujo objetivo não será a transmissão de um saber, mas um enclausuramento moral repressivo. Nessas instituições, “a máxima repreensão e mínimo saber transmitido correspondem à menor nobreza, evidentemente a dos pobres” (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992, p.77). Embora com diferentes gradações, as instituições destina- das à educação das crianças, que passaremos a chamar com 10 Escola e Currículo a denominação geral de escolas, serão organizadas de acor- do com o que Foucault (1999) denominou de disciplina. 4 A escola moderna e a disciplina De acordo com o que foi tratado na seção anterior, conforme foi se constituindo a noção de infância, surgiram diversas ins- tituições para a educação das crianças que convergem para aquilo que hoje chamamos escola. As instituições voltadas para a infância de qualidade, ou seja, filhos3 de famílias bur- guesas e nobres, apresentavam regulamentos menos rígidos e proporcionavam uma melhor formação intelectual do que aquelas voltadas para a infância rude. Mas em todos os ca- sos, é possível afirmar que a organização estava orientada por uma ordem disciplinar. De acordo com Foucault (1999), a ordem disciplinar orien- tou a organização de uma série de instituições na modernida- de. As escolas, as prisões, os quartéis, os hospitais e a fábri- cas, apesar da heterogeneidade de seus objetivos, eram todos tributários dessa forma de organização. A disciplina só pode ser concebida a partir dos modos de significar tempo e espaço que emergem na modernidade. Entre suas principais caracte- rísticas, destacam-se um rígido controle do tempo e a fixação dos corpos no espaço. O funcionamento da escola discipli- nar (que, hoje, muitas vezes é chamada de escola tradicional) 3 As escolas eram destinadas, sobretudo, aos meninos. Havia algumas instituições voltadas para as meninas, porém, se atinham aos níveis mais básicos e provinham, também, conhecimentos voltados para o cuidado do lar. Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 11 baseia-se nos quadros de horários e nas rotinas coletivas que aí se instituem. Na escola, existe uma hora para iniciar a aula e outra para acabar. O trabalho se estrutura na divisão desse tempo da aula em períodos, nos quais estão distribuídas as diversas Atividades o ditado para estudo da língua materna, os exercícios de matemática, as atividades físicas, a leitura de textos de história,... A cada momento, todos os alunos estão realizando, muito provavelmente, a mesma atividade. O uso do tempo é coletivo. Além da necessidade dos quadros de horário para o fun- cionamento da escola, a concepção de um tempo linear e fracionável se faz presente na divisão em classes que abrigam crianças de diferentesidades. A estratificação etária traz como pressuposto que a cada tempo da vida os indivíduos estejam mais ou menos no mesmo patamar em relação a sua maturi- dade intelectual e capacidade de aprender. Portanto, sem uma concepção de tempo objetivo, linear, mensurável e fracionável tal como se constituiu na modernidade não seria possível a invenção da escola disciplinar. A organização da escola, tal como a concebemos, não seria possível na Idade Média. Por outro lado, a escola se constitui em um recorte do es- paço, bem delimitado e bem localizado. Essa porção do es- paço é subdividida, por meio de barreiras físicas, em diversas salas. As salas de aula, por sua vez, são divididas por uma grade imaginária que permite dispor os corpos dos alunos fi- xando cada um em seu lugar no espaço, o que contribui para manter a ordem. Essa divisão dos espaços também só se torna possível a partir das concepções modernas de um espaço con- tínuo, fracionável e fronterizável. 12 Escola e Currículo Essa escola baseada em horários coletivos e na fixação dos corpos tinha como pressupostos o cultivo da obediência aos regulamentos e o corte da comunicação entre os alunos. Utili- zava como instrumentos para seu funcionamento a vigilância, o exame e a sanção normalizadora (punições para aqueles que não apresentassem um comportamento normal, visando sua normalização). Porém, não é apenas o espaço físico que é fracionado. De acordo com Veiga-Neto (2010), também o espaço do saber vai ser fracionado pelas disciplinas. De uma miríade de sabe- res fragmentados do medievo, a modernidade produz um sa- ber científico recortado pelas disciplinas. Ao contrário do que alguns afirmam, as disciplinas não são uma patologia do sa- ber que seria curada pela interdisciplinaridade, mas um modo historicamente constituído de compreender o conhecimento. A disciplinarização dos saberes também foi uma condição para a emergência da escola na modernidade. Conforme já mencionei, a transformação dos modos de significar espaço e tempo na passagem do medievo para a modernidade também tornou possível a emergência de ou- tras instituições com organização disciplinar análoga à esco- lar, como a fábrica e a prisão (FOUCAULT, 1999). Além dis- so, nessa época surge a necessidade de reforçar os laços dos cidadãos com os Estados nacionais e com sua organização social, promovendo a aceitação de seu lugar no mundo e re- duzindo a chance de rebeliões. Estão postos os fundamentos para a instituição da escola pública. Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 13 5 A invenção da escola pública obrigatória e o controle das classes populares Em finais do século XVIII, inicia-se na Europa o que ficou co- nhecido como revolução industrial, impulsionada pela inven- ção de máquinas capazes de realizarem alguns trabalhos com maior eficiência e rapidez do que permitiam os métodos arte- sanais que havia até então. A revolução industrial foi o pon- to de partida para a organização do capitalismo industrial, que transformou profundamente as relações de trabalho e, de modo mais amplo, os modos de vida da população, impulsio- nando os processos de urbanização. O trabalho fabril era muito diferente do trabalho de campo- neses e, mesmo, de artesões. Esses profissionais tinham domí- nio de todo o processo produtivo e organizavam seu trabalho a partir de rotinas que eles próprios determinavam, ao contrário do que acontece nas indústrias. Os operários já não domina- vam o processo produtivo, executando tarefas pontuais. Conforme consta na seção anterior, a fábrica também se orienta por princípios disciplinares tal como a escola. Ela fra- ciona o espaço da produção e fixa os corpos dos operários, de modo semelhante ao que ocorre nas salas de aula. O tem- po é utilizado de maneira coletiva, com horários fixos para a realização das atividades, assim como nos processos de esco- larização. Com a disseminação das indústrias a partir do final do século XVIII, começa a se formar na Europa o que seria chamado de classe operária. 14 Escola e Currículo Entretanto, produzir um sujeito capaz de aceitar a rotina do trabalho industrial não foi tão fácil assim. A passagem de um sistema produtivo ao outro implica em uma mudança profun- da nos modos de vida, com a necessidade de abrir mão de parte de sua autonomia e de adaptar-se a rotinas impostas. Os operários, oriundos de classes populares fracamente disci- plinadas até então, encontravam dificuldades de adaptação. A obediência aos rígidos regulamentos elaborados pelos patrões e o cumprimento de horários pré-estabelecidos parecia não ter sentido. Muitos trabalhadores abandonavam o emprego ou agiam de forma considerada inadequada (não prezavam o cumprimento de horários, eram desobedientes, embriagavam- -se, não valorizavam o trabalho e não tinham bons hábitos), causando problemas para as indústrias. A noção de imorali- dade imputada às classes populares há alguns séculos conso- lidava-se. Tornava-se necessário mudar o comportamento e o modo de viver do operariado para o sucesso do capitalismo. Todos esses hábitos são difíceis de arraigar naqueles que viveram durante tempo na “promiscuidade”, no “desper- dício” e na “desordem” de todos os excessos, por isso o menino trabalhador constituirá um alvo privilegiado desta política de transformação dos sujeitos. (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992, p.90) A saída para produzir sujeitos capazes de se adaptarem ao trabalho fabril, cultivando os hábitos que a burguesia conside- rava adequados, foi investir na educação da infância oriunda das classes operárias. Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 15 A educação do menino trabalhador não tem, pois, como objetivo principal ensiná-lo a mandar, senão a obedecer, não pretende fazer dele um homem instruído e culto, se- não inculcar-lhe a virtude da obediência e a submissão à autoridade e à cultura legitima. (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992, p.90) Entenda-se como cultura legítima aquela oriunda da bur- guesia. Nesse sentido, a escola pública funcionou como uma po- tente estratégia para inculcar nas classes populares os valores morais burgueses, inclusive o amor pelo trabalho. Além disso, o sistema disciplinar das escolas preparava os sujeitos para que se sujeitassem às rotinas do trabalho industrial. É possível afirmar que o corpo do operário foi forjado nos bancos esco- lares. Porém, ao inculcar os valores burgueses, não apenas foi produzido o trabalhador adaptado a um sistema de trabalho fabril, como também o cidadão que se reconhece como vincu- lado ao Estado por meio de uma identidade nacional. O culto à pátria também era parte importante do funcionamento da escola disciplinar, permitindo a afirmação dos Estados-nação (Ó, 2009). Nesse sentido, pode-se compreender que a escola pública, surgida no século XIX, constituiu-se numa ação para docilizar a população, produzindo sujeitos com sentimentos de cida- dania e de vinculação a um projeto nacional e, ao mesmo tempo, acostumados a uma rotina que utiliza exaustivamente o tempo, impõe a fixação dos sujeitos no espaço, corta a co- municação e cultiva a obediência aos regulamentos como um valor (SARAIVA, 2014). 16 Escola e Currículo Desse modo, a partir do que foi aqui exposto, é possível afirmar que a escola moderna não enfatizava uma emancipa- ção das classes populares, mas sim a sua domesticação a uma moral e a uma cultura burguesa e europeia. Contudo, essa ação de dominação e colonização exercida pela escola não se deu apenas sobre as classes populares da Europa, mas espa- lhou sua lógica colonizadora pelo mundo, contribuindo para consolidar a ideia de que a cultura, a moral e os valores da burguesia europeia seriam superiores, devendo ser adotados por todos. O documentário Escolarizando o mundo4 mostra isso muito claramente. Pormeio da escola, disseminou-se (e disseminam-se) deter- minados valores, determinados modos de conceber o mundo, determinadas formas culturais, que passam a ser aceitas como se fossem neutras, naturais e não problemáticas. Cabe res- saltar que, desde meados do século XX, diversos autores vêm elaborando propostas que possam romper com essa escola voltada para a domesticação dos alunos, sendo Paulo Freire o mais conhecido desses pensadores no Brasil. Entretanto, os avanços que tivemos nos últimos anos acham-se hoje amea- çados por iniciativas como o movimento chamado Escola Sem Partido. Ao pregar uma educação neutra e desideologizada, esse movimento propõe, de fato, uma escola que irá consoli- dar os valores daqueles que conseguem se impor culturalmen- te nos meios de comunicação e na produção de significados que irão circular na sociedade de modo privilegiado, naturali- 4 Recomendo aos leitores que assistam este documentário, disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=6t_HN95-Urs. Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 17 zando desigualdades e submissões, revivendo os objetivos da escola pública do século XIX. Frente a isso, cabe questionar o que deveria ser a escola para que se tornasse uma possibilidade de abertura de novos espaços de liberdade, de criação e de acolhimento às dife- renças. Ao longo desse semestre, desenvolveremos discussões nesse sentido, problematizando a escolarização e o currículo no mundo contemporâneo, buscando pensar de outro modo essa instituição ainda tão central na nossa sociedade. Recapitulando Neste capítulo, vimos que a escola com uma organização se- melhante à atual, chamada de escola moderna, começa a se configurar no século XVII, desenvolvendo-se lentamente até sua consolidação no século XIX. Uma condição importante para sua emergência foram as transformações nos significa- dos de espaço e tempo. Um acontecimento intrinsecamente ligado às transformações espaço-temporais foi o surgimento da noção de infância como uma idade especial, que necessita ser educada para que forme seu caráter e para que possa se tornar um sujeito moral. Essas transformações, que passam a conceber espaço e tempo como objetivos, mensuráveis, admi- nistráveis e fracionáveis, também tornaram possível os rígidos controles do tempo e fixação dos corpos no espaço de manei- ra ordenada, pressupostos básicos da escola disciplinar. Avan- çando para o final do século XVIII, observa-se o surgimento de sistemas de educação pública e da escolarização obrigatória 18 Escola e Currículo na Europa. Essas escolas constituem-se em instrumentos de moralização das classes populares, forjando o operário para a fábrica e o cidadão para a nação. Referências ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. COMENIUS. Didática magna. São Paulo: Martins Fontes, 2002) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1999. Ó, Jorge Ramos do. A governamentalidade e a história da escola moderna: outras conexões investigativas. Educa- ção & Realidade, v. 3, n.2, p.97-117, maio/ago. 2009. Disponível em http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoere- alidade/article/view/8434/5542. Acesso em 10 jun. 2016. SARAIVA, Karla. A aliança biopolítica educação-trabalho. Pro-Posições, v. 25, n. 2, p. 139-156, maio/ago. 2014) Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pp/v25n2/08.pdf. Acesso em 10 jun. 2016. ______. Outros tempos, outros espaços: internet e Educa- ção. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, Faculda- de de Educação, 2006. Disponível em http://hdl.handle. net/10183/8597. Acesso em 10 jun. 2016. Capítulo 1 Emergência da Escola Moderna 19 VARELA, Julia, ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria es- colar. Teoria & Educação, n. 6, p.68-96, 1992. VEIGA-NETO, Alfredo. Tensões disciplinares e Ensino Mé- dio. Anais do I Seminário Nacional Currículo em Movimen- to. Belo Horizonte, 2010. Disponível em http://portal.mec. gov.br/docman/dezembro-2010-pdf/7178-4-3-tensoes- -disciplinares-ensinomedio-alfredo-veiga/file. Acesso em 10 jun. 2016. Atividades 1) De acordo com o que foi estudado neste capítulo, o que significa a emergência do sentimento de infância e qual a relação desse acontecimento com a emergência da escola moderna? 2) A escola moderna foi caracterizada como uma instituição disciplinar. Que relações são possíveis de estabelecer entre os modos de significar tempo e espaço que emergem na modernidade e a disciplina? 3) A invenção da infância está ligada com o aparecimento de uma série de instituições voltadas para a captura dos corpos infantis, organizadas de modo disciplinar. Porém, havia diferentes instituições para a chamada infância de qualidade e a chamada infância rude. Em que essas insti- tuições diferiam? 20 Escola e Currículo 4) Que relações é possível estabelecer entre o funcionamento das fábricas e das escolas no século XIX? 5) A escola pública obrigatória é uma invenção europeia do século XIX. Quais seriam os seus principais objetivos? ???????? Capítulo ? Teorias do Currículo1 1 Graduada em Pedagogia (UFRGS), Especialista em Educação Ambiental (La Sal- le), Mestre em Educação (UFRGS), Professora do Curso de Pedagogia ULBRA nas modalidades presencial e EaD. Lisiane Gazola Santos1 Capítulo 2 22 Escola e Currículo Introdução No presente capítulo, você conhecerá algumas das principais linhas teóricas sobre currículo e os autores dessas teorias. Ao longo das incursões sobre o tema, você compreenderá a im- portância dos estudos sobre currículo nos cursos de formação de professores. Para iniciar essa incursão, consideramos importante trazer as contribuições de Moreira e Garcia (2012) ao ratificarem a importância de manter, como tema central do campo do cur- rículo, o conhecimento escolar. Ou seja, os autores destacam a importância de manter a nossa atenção voltada constan- temente às novas discussões, às diferentes visões e às novas perspectivas sobre o que precisamos ensinar, como ensinar e para quem ensinar na escola. Os referidos autores ainda contextualizam que, nos últimos trinta anos, no Brasil, assim como em outros países, os teóricos que tratam, estudam e pesquisam sobre currículo têm recaído seguidamente em duas perspectivas denominadas “currículo stricto sensu” e “currículo lato sensu”. Como currículo stricto sensu, entende-se uma visão restrita, limitada apenas à escola, à sala de aula, aos conhecimentos abordados na escola. O currículo lato sensu, de acordo com os autores, é compreendido em uma concepção mais ampla, saindo da escola para o entorno da escola, para a sociedade e para a cultura na qual a escola está inserida. Um ponto de equilíbrio entre essas duas posições seria o ideal, pois o co- nhecimento escolar estaria em diálogo constante com o cur- Capítulo 2 Teorias do Currículo 23 rículo de diferentes espaços, como o currículo da televisão, o da mídia, entre outros. Diante do exposto, é possível compreender que o tema cur- rículo não se limita à escolha dos conteúdos, e, tampouco, dos conhecimentos a ser trabalhados em sala de aula. O tema currículo envolve questões muito mais abrangentes. Por isso, é necessário conhecer as teorias do currículo e seus principais autores. 1 Currículo: algumas definições Antes de abordarmos as teorias do currículo, é interessante observar a pluralidade de definições sobre o termo. Para Silva (2011, p.15), o currículo: [...] é sempre o resultado de uma seleção: de um univer- so mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conheci- mentos devem ser selecionados, buscam justificar por que “esses conhecimentos” e não “aqueles”devem ser selecionados. O autor ainda nos apresenta a etimologia da palavra cur- rículo: “vem do latim curriculum, pista de corrida, podemos dizer que no curso dessa corrida que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos” (SILVA, 2011, p.15). 24 Escola e Currículo No artigo intitulado: Currículo e História: uma conexão ra- dical, Veiga-Neto (2001) se propõe a desenvolver reflexões so- bre a História entendida enquanto área de conhecimento e o currículo ou Teoria do Currículo e também nos apresenta uma definição instigante: [...] currículo, enquanto artefato da educação escolari- zada inventado na passagem do século XVI para o sé- culo XVII. Assim estarei aqui usando a expressão Teorias do Currículo para designar um hoje amplo campo de conhecimento que se vale ora da sociologia, ora da história, ora da pedagogia, ora da economia, ora da epistemologia, ora da linguística – e todas elas nas suas mais variadas escolas, tendências ou perspectivas – para descrever, analisar – e, às vezes, intervir sobre aquilo que é tomado como conteúdo e prática de uma cultura e é trazido, explícita ou implicitamente, para ser ensinado na escola e que vem sendo designado, nos últimos quatro- centos anos, de “currículo”. (VEIGA-NETO, 2001, p. 94) Em seu artigo O campo do currículo no Brasil: os anos noventa, Moreira (2002) se propôs a realizar uma pesquisa, constituída basicamente por entrevistas realizadas com espe- cialistas, que atuam como professores e pesquisadores nas principais universidades do país. O autor tinha por objetivo verificar como os especialistas percebem os rumos contem- porâneos do campo que eles mesmos ajudaram a construir. As entrevistas abordavam as seguintes temáticas: a teorização em currículo, o ensino de currículo na universidade e a prática na escola. Das respostas às questões formuladas por Moreira (2002), algumas delineiam concepções sobre o currículo e so- Capítulo 2 Teorias do Currículo 25 bre o ensino de currículo na universidade, que acrescentam ao nosso presente estudo, são elas: [...] o currículo deve ser concebido como artefato cultu- ral, como um campo de produção de cultura, além de reprodução de cultura, como um campo de conflito em torno da definição de conhecimento. [...] discutir e, principalmente, os nossos esforços estão no sentido discutir associadamente teoria e prática de currículo. [...] eu penso que vamos também, nessa linha de novas temáticas para o estudo do currículo, chegando à questão do entendimento do currículo como alguma coisa extraescolar também. [...] se a formação do cida- dão está para além da escola e se à cidade cabe tam- bém a responsabilidade de educação do cidadão, que currículo é esse? É um currículo que tem que se ampliar e ser definido para além da escola (MOREIRA, 2002, p.67). O autor Posner (2005), apesar de nos alertar sobre a im- possibilidade de alcançar o “verdadeiro significado” do termo currículo, também traz contribuições importantes, afirman- do que sua concepção não pode ser entendida como algo fixo, estável ou definitivo: deve adaptar as práticas concretas às questões emergentes dos diferentes ambientes educativos. O autor ainda acrescenta que não teríamos apenas um, mas sim, cinco currículos que se relacionam entre si. São eles: o currículo oficial, o currículo operativo, o currículo oculto, o currículo nulo e o currículo adicional. O currículo oficial se- ria aquele descrito nos documentos formais; seu propósito é 26 Escola e Currículo possibilitar o planejamento do trabalho pedagógico, a avalia- ção dos estudantes e estabelecer parâmetros para a avaliação do trabalho pedagógico desenvolvido. O currículo operativo está relacionado com o que realmente o professor ensina, ou seja, a ênfase e o espaço que cada conhecimento recebe nas práticas e na avaliação da aprendizagem. O currículo oculto opera por meio de práticas e valores institucionais não clara- mente reconhecidos, mas com impacto significativo nos alu- nos; coloca em circulação “normas” sobre as mais diversas questões, como gênero, sexualidade, raça, etnia, classe social e o conhecimento escolar, entre outras temáticas. O currículo nulo se refere a temas ou conhecimentos não abordados ade- quadamente pelos professores; esse processo se dá pela falta de motivação, desinteresse ou pela falta de preparação. E por fim, o currículo adicional que representa aquelas atividades ou práticas planejadas e que complementam o currículo oficial, figuram como saídas de campo, feiras de ciência, campeona- tos esportivos. Você já deve ter percebido que definir o termo currículo não se configura uma tarefa simples. Se buscarmos no dicionário a definição, encontraremos referências a um documento com os dados pessoais, à formação acadêmica, à experiência profis- sional de quem pretende se candidatar a um emprego, ou ain- da, a um conjunto das disciplinas de um curso. Apresentamos aqui definições mais restritas e definições mais amplas que remetem à seleção de conhecimentos, ou ainda como aquilo que é considerado como conteúdo e prática dentro de uma cultura para ser traduzido em conhecimento escolar e para além dos muros da escola, ampliando o conceito de currículo Capítulo 2 Teorias do Currículo 27 percebendo os elementos da cultura (escolar e extraescolar) como constituidores das identidades dos alunos. 2 Teorias do Currículo O que ensinar? O que nossos alunos devem saber? Quais conhecimentos necessários para formar o tipo de pessoas que consideramos desejáveis? Todas essas questões nos remetem à complexidade do campo curricular e podem ser respondi- das pelas teorias do currículo. De acordo com Silva (2011), a questão “o quê?” é central e serve como pano de fundo para as diferentes teorias do currículo, que se diferenciam pela ên- fase dada às discussões sobre a natureza humana, a natureza da aprendizagem, a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade. Nas palavras do autor: Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pes- soas que vão “seguir” aquele currículo. [...] na medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo de conhe- cimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoas que elas consideram ideal. [...] No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de identidade (SILVA, 2011, p.15) No livro intitulado Documentos de Identidade: uma intro- dução às teorias do currículo, Tomaz Tadeu da Silva nos apre- senta uma preciosa contribuição aos estudos das teorias do currículo, destacando as distintas maneiras pelas quais o cur- 28 Escola e Currículo rículo é compreendido, constituído e narrado a partir de suas articulações com o poder. As teorias do currículo que se identificam com as teorias tradicionais pretendem ser neutras, científicas e objetivas e isentas de relações com o poder. As teorias que se identificam com as teorias críticas e pós-críticas enfatizam que nenhuma teoria é neutra, científica, mas implica sempre em relações de poder e demonstra a preocupação com as articulações entre o saber, identidade e poder. Para Silva (2011), as teorias de currículo se caracterizam pelos conceitos que enfatizam. A seguir, apresentaremos um resumo com as principais ideias e autores das teorias tradicio- nais, críticas e pós-críticas: 2.1 Teorias Tradicionais As teorias tradicionais enfatizam ensino, aprendizagem, ava- liação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos. As teorias tradicionais são entendidas como “neutras, científicas e desinteressadas”. Lopes e Macedo (2011) apresentam considerações sobre o currículo no con- texto dos movimentos do início da industrialização norte ame- ricana e no Brasil com o Movimento da Escola Nova (1920). Nesse contexto, o que ensinar passaa ter um papel de desta- que no currículo, que passa a ser concebido como um plano formal de atividades. Na década de 1910, o taylorismo se evidencia na sociedade estadunidense que passa pelo proces- so de industrialização, abrindo espaço para a valorização da Capítulo 2 Teorias do Currículo 29 “eficiência” da escola que juntamente com o currículo passam a ser instrumentos de controle social. Em 1918, Franklin John Bobbitt, no livro The Curriculum (escrito em um momento crucial da história da educação es- tadunidense, em que diferentes forças econômicas políticas e culturais procuravam moldar os objetivos e as formas da educação de massas de acordo com suas diferentes visões), propunha que a escola funcionasse como qualquer outra em- presa comercial, tal como uma indústria. Em suma, Bobbitt desejava que o sistema educacional fosse capaz de especificar precisamente os resultados. A educação deveria funcionar de acordo com os princípios da administração científica de Fre- derick Taylor. Esse modelo de currículo encontrou sua consolidação nas produções de Ralph Tyler, que primavam pela organização e desenvolvimento. O modelo elaborado por Tyler do currículo visava responder a quatro questões básicas, que correspondem a divisões tradicionais da atividade educacional: currículo, en- sino, instrução e avaliação. Para Tyler, os objetivos deveriam ser claramente definidos e estabelecidos. É apenas por meio dessa formulação precisa dos objetivos que se pode responder às outras perguntas que constituem o paradigma de Tyler. Na concepção da teorização tradicional, a relação entre o conhecimento e o currículo se vincula à manutenção de uma estrutura na qual a escola é compreendida como uma institui- ção que objetiva formar os sujeitos que terão as habilidades e os conhecimentos necessários para a produtividade econômi- ca e social. Assim, a organização curricular deve seguir a lógi- 30 Escola e Currículo ca da eficiência de Bobbitt e a vinculação do currículo com ob- jetivos bem definidos, conforme a proposta de Tyler. De acordo com Lopes e Macedo (2011), John Dewey não apoiava a ideia da “eficiência” e defendia a importância de aliar o interesse da criança ao que se ensinava na escola, valorizando o processo de aprendizagem em oposição à formação de habilidades e à normatização de comportamentos específicos. O pensamento de Dewey iria influenciar outros autores, inclusive no Brasil, na década de 1920. 2.2 Teorias Críticas Se nas teorias tradicionais do currículo a dita neutralidade científica era considerada, nas teorias críticas do currículo es- sas concepções são refutadas. As teorias críticas ponderam que não existem teorias neutras e desinteressadas: todas elas se articulam em relações de poder. Na década de 60, junta- mente com outras agitações e transformações, surgiram livros, ensaios e teorizações que discutiam o pensamento e a estrutu- ra educacional tradicional, que formaram as teorias críticas do currículo e efetuaram uma completa inversão nos fundamentos das teorias tradicionais. Silva (2011) descreve a concepção de currículo na teori- zação crítica a partir da apresentação de autores como Louis Althusser, que, em seus estudos, desenvolve a concepção de aparelhos ideológicos de Estado, na qual a escola transmite a ideologia, que é constituída pelas crenças que nos levam a aceitar as estruturas sociais como boas e desejáveis, sendo transmitida por meio do seu currículo. Capítulo 2 Teorias do Currículo 31 Bowles e Gintis enfatizam a aprendizagem por meio da vi- vência das relações sociais da escola, das atitudes necessárias para se qualificar como um bom trabalhador capitalista. Os teóricos chamam a atenção para a função reprodutora da es- cola e para a materialidade da ideologia. Para eles, a escola não contribui para esse processo propriamente por meio do conteúdo explícito de seu currículo, mas sim, por meio do seu funcionamento. Nessa concepção, nas escolas dirigidas aos trabalhadores subordinados, os estudantes aprendem a subor- dinação; nas escolas dirigidas para a elite, os estudantes têm a oportunidade de praticar atitudes de comando e autonomia. Para Bourdieu e Passeron, o currículo da escola está base- ado na cultura dominante, que é expresso na linguagem domi- nante e é transmitido por meio do código cultural dominante. Essa dinâmica coloca crianças da classe dominante e crianças da classe dominada em situação de desigualdade no que se refere ao acesso e à compreensão do conhecimento, das nor- mas, dos valores e das condutas. Em 1973, com a I Conferência sobre Currículo realizada em Nova York, o movimento de reconceptualização ganhou visibilidade com a liderança de William Pinar. O movimento de reconceptualização tinha uma nova compreensão de currículo pautada principalmente nas teorias sociais europeias como a fenomenologia e a hermenêutica. Defendia a construção de um currículo diferente do tradicional, com espaço para as ex- periências de vida de cada pessoa, ou seja, rompia com a concepção de currículo imposta de acordo com as necessida- des econômicas, políticas e social vigentes. A fenomenologia acredita que o currículo é um local onde educador e educan- 32 Escola e Currículo dos têm a possibilidade de examinar e interrogar os significa- dos cotidianos; o currículo é visto como experiência e como local de questionar essas experiências, rompe com a ideia de conhecimento científico e conceitual. Para Michael Apple, não é suficiente estabelecer um vín- culo entre educação e currículo e as estruturas econômicas e sociais mais amplas. O autor coloca o currículo no centro das teorias educacionais críticas, vendo o currículo em termos estruturais e relacionais; o currículo não é um corpo neutro, inocente e desinteressado de conhecimento. A seleção que constitui o currículo é o resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e grupos dominantes. A argumentação sobre o currículo como política cultural é desenvolvida por Henry Giroux. É na escola, e por meio do currículo, que o aluno deve desenvolver habilidades democrá- ticas, protagonizando discussões, participando ativamente do questionamento dos pressupostos do senso comum da vida social. Para Giroux, o currículo envolve a construção de signi- ficados e valores culturais. O currículo não está simplesmente envolvido com a transmissão de “fatos” e conhecimentos “ob- jetivos” (SILVA, 2011, p. 55). Em 1971, Michael Young publica o livro Knowledge and control e juntamente com os ensaios de outros autores lança as bases da crítica ao currículo na Inglaterra, conhecida como “Nova Sociologia da Educação” (NSE). Os autores buscavam questionar a seleção e organização do conhecimento esco- lar. Uma perspectiva curricular inspirada pelo programa da NSE buscaria construir um currículo que refletisse as tradições Capítulo 2 Teorias do Currículo 33 culturais e epistemológicas dos grupos subordinados e não apenas dos grupos dominantes. A NSE iria se dissolver numa variedade de perspectivas teóricas: feminismo; estudos sobre gênero, raça e etnia; estudos culturais; pós-modernismo; pós- -estruturalismo. A ideia inicial da NSE, representada na noção de “construção social”, permanece atual e importante. 2.3 Teorias Pós-Críticas Como foi possível observar a partir da teorização crítica, o co- nhecimento e o poder não se opõem: eles estão relacionados. As teorias pós-críticas percebem essa relação de uma maneira diferenciada, considerando ainda produtivo refletir e proble- matizar as conexões existentes entre significado, identidade e poder. O currículo, nessa concepção, está intimamente rela- cionado com os processos de formação dos sujeitos, ou seja, o currículo passa a ser entendido como questão de identidade e poder. As discussõesno campo dos estudos sobre currícu- lo passam a se ocupar com a cultura, entendida aqui como campo de luta em torno da significação social. A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes gru- pos sociais, situados em posições diferenciais do poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. É um campo onde se define a forma como as pessoas e os grupos devem ser. Situam-se nessa concepção o Multiculturalismo e os Estu- dos Culturais preocupados com questões na conexão entre cultura, significação, identidade e poder. De acordo com Silva (2011, p.85), o multiculturalismo “é um movimento legítimo de reinvindicação dos grupos culturais dominados [...] para 34 Escola e Currículo terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional”. O autor ainda acrescenta que, a partir dos Estudos Cultu- rais, podemos ver o conhecimento e o currículo como campos culturais, sujeitos à disputa de poder nos quais os diferentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia. Nas argumentações de Silva (2011) sobre as teorias pós-críticas, destacam-se ainda autores e estudiosos que con- sideram as manifestações da dita “pedagogia cultural”, ou seja, as instituições ou instâncias culturais que disseminam co- nhecimentos, normas e valores próprios. Diversos autores se dedicaram a analisar essa forma de currículo e inauguraram a “crítica cultural do currículo”. É o caso de Henry Giroux, que analisou os trabalhos da Dis- ney destacando que a aparente imagem inofensiva dos per- sonagens está carregada de pressupostos etnocêntricos que moldam as identidades infantis e juvenis de uma forma bem particular. Outra análise interessante é apresentada por Joe Kincheloe sobre os enfoques publicitários do McDonald’s, que nos traz a imagem conservadora de uma família americana. Sobre o universo infantil e a indústria cultural, Shirley Steinberg pontua o currículo contido na imagem da boneca Barbie e o chama de “kindercultura”. A teoria pós-crítica, de acordo com Silva (2011), traz ele- mentos e ferramentas para nos aproximarmos do entendimen- to do currículo, do conhecimento, das relações de poder e das identidades, além de nos inserir nas discussões presentes na cena social e cultural contemporânea. Essas discussões pro- Capítulo 2 Teorias do Currículo 35 blematizam, por exemplo, a aproximação de instituições, an- tigamente consideradas distintas e separadas e hoje cada vez mais próximas da escola. Também abordam como a internet torna cada vez mais difícil distinguir o conhecimento escolar, o conhecimento cotidiano e o conhecimento da cultura de mas- sa. Assim, nós, professores ou futuros professores, passamos então a perceber a real necessidade de nos apropriarmos das discussões sobre a crítica curricular ou crítica cultural. Para desenvolver nosso trabalho como educadores engajados e comprometidos, precisamos considerar que indústria cultural e currículo escolar sejam artefatos culturais, que produzem iden- tidades com base na relação de poder. As perspectivas críticas do currículo concentraram seu foco de análise nas desigualdades sociais, deixando de abordar outras dimensões, que a teorização pós-crítica passou a ques- tionar, tais como o papel da raça, do gênero e da sexualidade no processo de produção e reprodução dessa desigualdade. 3 Por que estudar sobre currículo na formação de professores Para concluir esse capítulo e na expectativa de que tenhamos despertado a curiosidade para a continuidade dos estudos sobre o currículo, é importante destacar que a maneira de apresentar as teorias do currículo aqui registrada não se con- figura a única possibilidade de organização e análise sobre o tema. Nesse espaço, também se fez necessário dar visibilidade 36 Escola e Currículo a alguns autores em detrimento de outros; enfim, realizar uma seleção e organização do conhecimento. Moreira e Garcia (2012) acrescentam as seguintes afirma- ções: Certamente o professor não precisa dominar apenas o conteúdo que ensina. Precisa de conhecimentos didá- ticos, de conhecimentos mais amplos sobre o processo educativo e o papel da escola no mundo de hoje, precisa entender as relações entre o processo educativo, a esco- la e cultura. Precisa pensar em como se deve responder à situação de desigualdade e à diversidade cultural que encontramos em nossa sociedade [...]. Precisa refletir so- bre as identidades sociais que a escola tem ajudado a construir e que outras identidades poderiam ser pensa- das (MOREIRA e GARCIA, 2012, p.13 e 14). A partir dessas concepções, temos a possibilidade de enca- rar de modo diferenciado as possíveis relações entre a escola e as culturas, não mais aceitando passivamente os significados construídos na modernidade, nos quais a escola é vista como espaço de propagação e transmissão de uma determinada e privilegiada cultura. Nas palavras de Veiga-Neto (2003), as mudanças na percepção das relações entre cultura e edu- cação, e, no próprio entendimento dessas, levou-nos a um embate no qual se reconfiguram a pedagogia e a escola em “arenas privilegiadas, onde se dão violentos choques teóricos e práticos em torno de infinitas questões culturais” (p. 5). Nes- ses contextos, determinados significados são reproduzidos e recolocados, reelaborando práticas culturais, além das formas Capítulo 2 Teorias do Currículo 37 pelas quais os sujeitos, continuamente, se identificam e consti- tuem as suas identidades. Recapitulando Durante o estudo do presente capítulo foi possível observar que as discussões sobre currículo vão além da definição dos conteúdos que devem ser estudados nas escolas, o currículo compreende um campo mais amplo de debate, segundo algu- mas concepções teóricas, o currículo compreende até mesmo a constituição de identidades. A partir das teorias críticas de currículo, o conhecimento e o poder não se opõem: eles es- tão relacionados. As teorias pós-críticas consideram a relação conhecimento/poder de uma maneira diferenciada, trazendo a reflexão sobre as conexões existentes entre significado, iden- tidade e poder. O currículo, nessa concepção, está intimamen- te relacionado com os processos de formação dos sujeitos e poder. As discussões no campo dos estudos sobre currículo passam a enfocar também a cultura, entendida aqui como campo de luta em torno dos significados sociais construídos e reconstruídos constantemente. Referências Dicio – Dicionário online de Português. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/curriculo/> Acesso em: 29 jul. 2016. 38 Escola e Currículo LOPES, Alice C.; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011. MOREIRA, Antônio Flavio. O campo do currículo no Brasil: os anos noventa. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Didática, Currículo e Saberes Escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. MOREIRA, Antônio Flavio; GARCIA, Regina Leite Começando uma conversa sobre currículo. In: ______. (Orgs.). Cur- rículo na Contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2012) POSNER, George. Análisis de Currículo. 3. ed. Trad. Miguel Ángel Martínez Sarmiento. Bogotá: MacGraw-Hill, 2005) SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte: Au- têntica, 2011. VEIGA-NETO, Alfredo. Currículo e História: uma conexão radi- cal. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). O currículo nos li- miares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. ______. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação. .23) Mai/jun/ago, 2003) p. 5-15. Atividades 1) Diferencie as teorias tradicionais do currículo e as teorias críticas e pós-críticas em relação ao poder: Capítulo 2 Teorias do Currículo 39 2) Sobre as teorias do currículo é possível afirmar: I. Asteorias do currículo que se identificam com as teo- rias críticas são neutras, científicas e objetivas. II. As teorias pós-críticas atribuem um papel preponde- rante nas relações de poder, pois consideram que es- tas se relacionam diretamente com os processos de formação dos sujeitos. III. As teorias tradicionais privilegiam a eficiência e os ob- jetivos bem definidos. As afirmações corretas são: a) Todas estão corretas. b) Todas estão incorretas. c) Apenas I e II d) Apenas II e III e) Apenas I e III 3) A partir da leitura do capítulo, elabore um texto com 10 linhas conceituando currículo: 4) Os autores Moreira e Garcia nos apresentam os conceitos de currículo stricto sensu e currículo lato sensu. Explique a diferença entre os dois conceitos: 5) Leia com atenção o seguinte excerto: Certamente o professor não precisa dominar apenas o conteúdo que ensina. Precisa de conhecimentos didáticos, de 40 Escola e Currículo conhecimentos mais amplos sobre o processo educativo e o papel da escola no mundo de hoje, precisa entender as re- lações entre o processo educativo, a escola e cultura. Precisa pensar em como se deve responder à situação de desigualdade e à diversidade cultural que encontramos em nossa sociedade [...]. Precisa refletir sobre as identidades sociais que a escola tem ajudado a construir e que outras identidades poderiam ser pensadas (MOREIRA e GARCIA, 2012, p.13 e 14). O estudo sobre as teorias do currículo na Formação de professores justifica-se pois, a) o professor necessita eleger sua listagem de conteúdos mínimos a ser transmitidos aos seus alunos. b) o professor precisa ter uma visão crítica sobre a escola e as culturas e sua prática deve contemplar a diversi- dade presente em nossa sociedade. c) o professor deve reproduzir o mesmos conteúdos que estão presentes nos livros didáticos. d) o professor na sua prática deve enfatizar exclusiva- mente ensino, aprendizagem e eficiência. e) o professor deve abordar na sua prática pedagógica os conteúdos clássicos garantindo acesso qualificado do conhecimento aos alunos. ???????? Capítulo ? Novos Tópicos para o Currículo12 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Profes- sora do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil; Pesquisadora Produtividade do CNPq (PQ2). 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Pro- fessora do curso de Biologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. Iara Tatiana Bonin1 Daniela Ripoll2 Capítulo 3 42 Escola e Currículo Introdução Temos acompanhado debates, com intensidade crescente, sobre o caráter monocultural, heretonormativo, falocêntrico, colonial que orienta os currículos escolares. O entendimen- to de que é necessário reconhecer e valorizar distintas etnias, culturas, crenças, identidades sexuais, etárias, de gênero, por exemplo, está amplamente respaldado em lutas de movimen- tos sociais, bem como em uma vasta produção acadêmica de pesquisadores que se dedicam à temática das diferenças. Ainda assim, é necessário reconhecer que são tímidos os pas- sos dados na direção de construir propostas curriculares que acolham as diferenças e apostem em sua produtividade. E, no plano das deliberações políticas e legislativas, vemos cres- cer uma tendência conservadora, fundamentalista e moralista que, entre outras iniciativas, propõe a fixação de um modelo único de família e sustenta que a discussão sobre gênero e sexualidade na escola seriam algum tipo de ideologia que co- locaria em risco a educação das crianças e jovens. Observa-se que os processos de globalização, intensi- ficados no último século, têm alterado significativamente os espaços, as rotinas, as experiências individuais e coletivas, e colaboram para colocar em relação distintas formas de co- nhecimento, variadas crenças, diferentes maneiras de conce- ber e dar sentido à vida. Conforme Stuart Hall (2000), nossas experiências cotidianas são marcadas por acontecimentos lo- cais, mas, ao mesmo tempo, por reordenamentos globais, a exemplo de novas ordens políticas e econômicas interconecta- das, do capital transnacional, do fluxo intenso de mensagens Capítulo 3 Novos Tópicos para o Currículo 43 e de imagens que constituem o nosso dia a dia, mediado por sempre novas e mais ágeis tecnologias de comunicação e in- formação, da instantaneidade e da velocidade com que se produz e se consome (o que torna mercadorias rapidamente obsoletas), das lutas de movimentos sociais, com expressões múltiplas, que ultrapassam fronteiras geográficas tradicionais, entre outros. Tal como argumenta Hall (1997, p. 5), o ritmo da mudança que ocorre atualmente é bastante diferente em diversas partes do globo, mas são raros os lugares que estão fora do alcance dessas forças culturais globais, que desorganizam e deslocam as identidades nacionais, as formas de exercício da cidadania, as expectativas e projetos das pessoas. Nossas experiências cotidianas, que se desenrolam num mundo interconectado e num amplo mosaico de identidades e de diferenças, confron- tam e abalam a ambição moderna de constituir estruturas só- lidas, inteiriças, unificadas, coesas. Nesse contexto de rápidas transformações, acontecimentos de ordem mundial, tais como as migrações, os conflitos étni- cos, a pobreza e a marginalidade nos grandes centros urbanos mostram que já não é possível ignorar as desigualdades, e que a escola é, também, maquinaria implicada na produção de exclusões. Não é por acaso que as estatísticas mostram uma imensa disparidade entre brancos e negros, homens e mulheres, pessoas oriundas de classe alta, média e popular no acesso e permanência no sistema escolar e no alcance dos níveis mais elevados de ensino (MOREIRA, 2007). 44 Escola e Currículo A consciência de que vivemos num mundo heterogêneo nunca esteve tão viva, e a ideia de que “somos todos diferen- tes” e que não deve haver primazia de uma identidade sobre outra vai sendo dinamizada por lutas políticas empreendidas por movimentos sociais – feministas, negros, indígenas, LGBT- TT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trans- gêneros). Tais lutas colocam, para os currículos, novas ques- tões: a primeira diz respeito a um entendimento de que é a pluralidade e não a unidade que nos constitui, como seres humanos, e, portanto, é preciso escapar de abordagens eu- rocêntricas, monoculturais, heteronormativas, por exemplo; a segunda diz respeito ao caráter de luta (por reconhecimento, mas também por recursos culturais, materiais, territoriais, pro- dutivos) implicado com o reconhecimento das diferenças – e isso mostra que há uma dimensão política em jogo e que não se trata apenas de uma retórica de tolerância. A terceira ques- tão refere-se às relações de poder a partir das quais se defi- nem quais identidades têm lugar na escola, o que nos remete ao caráter histórico, contextual, construído das identidades e diferenças, bem como aos seus significados que se disputam e se definem apenas provisoriamente. Junto ao reconhecimen- to de que somos diferentes e de que vivemos em sociedades plurais, parece relevante pensarmos sobre as representações que construímos dos outros, e o lugar que eles ocupam nas estruturas curriculares que construímos. As lutas de movimentos sociais e as políticas representa- cionais contemporâneas impulsionam também modificações nas bases normativas e nas políticas públicas de nosso país, constituindo, por um lado, a obrigatoriedade da abordagem de certos temas nos currículos escolares (história, arte, cultura Capítulo 3 Novos Tópicos para o Currículo 45 afro-brasileira e indígena, por exemplo) e, por outro lado, a suspeitaou a recusa da abordagem de outros temas (gênero e sexualidade, por exemplo), a partir de perspectivas conser- vadoras que advogam pela suposta “neutralidade” do saber escolar. É sobre a obrigatoriedade da abordagem de alguns temas, nos currículos da Educação Básica, que discorremos na continuidade desse capítulo. 1 A Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003 Esta lei, sancionada em 9 de janeiro de 2003, resultou de um intenso movimento de luta de diferentes segmentos sociais, em especial dos coletivos do movimento negro. O teor da Lei 10.639/2003 alterou o disposto nos artigos 26 e 79 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). A partir da Lei 10.639/2003, se estabelece que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. Conforme o texto le- gal, o conteúdo programático para as escolas de Educação Bá- sica incluirá, obrigatoriamente, “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasi- leira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (§ 1º). Quanto ao modo como tal inserção se dará, a lei determi- na: “os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasi- 46 Escola e Currículo leira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” (§ 2º). Por fim, acrescenta-se ao Artigo 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que versa sobre o apoio técnico e financeiro que deverá ser pres- tado pela União para assegurar uma educação intercultural às comunidades indígenas, a Lei 10.639/2003 estabelece a inclusão de um adendo – o artigo 79-B, com o seguinte teor: o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. A Lei 11.645/2008 também alterou o Artigo 26 da LDB, para incorporar a temática indígena, e a redação dada por essa lei foi a seguinte: Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere esse ar- tigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas so- cial, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro- -brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão minis- trados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial Capítulo 3 Novos Tópicos para o Currículo 47 nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. Vale destacar que, em 1988, a Constituição Federal esta- beleceu um importante princípio para as relações do Estado Brasileiro com os indígenas, pois as Constituições Federais an- teriores, quando mencionavam os indígenas, o faziam desde uma perspectiva integracionista que previa a dissolução das diferenças como forma de produção de uma nação unifica- da e homogênea. Já na atual, são reconhecidas aos indíge- nas suas identidades étnicas, suas práticas culturais, sociais, educacionais, religiosas e também é resguardado o usufruto exclusivo sobre as terras tradicionais que eles habitam. Além disso, a Constituição abre a possibilidade para se pensar a temática indígena como parte dos assuntos que interessam à escola, uma vez que reconhece, por um lado, a relevância histórica dessas culturas na produção da nacionalidade e, por outro lado, a presença atual e os projetos societários distintos que esses povos vão produzindo. Além das leis referidas até aqui, pode-se indicar um con- junto de outros documentos que ampliam ou detalham direitos dos indígenas e afro-brasileiros. Nesse sentido, em 2010 o Conselho Nacional de Educação editou a Resolução CNE/CEB n. 4/2010, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, indicando, por um lado, o in- cremento da inclusão escolar e, por outro lado, um adequado tratamento das diferenças sociais, culturais, raciais, sexuais e de gênero na abordagem curricular. E, para assegurar que os sistemas e instituições de ensino cumpram o estabelecido na Lei 11.645/2008, em 2011 o Ministério da Educação – atra- 48 Escola e Currículo vés da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Di- versidade e Inclusão – editou o Plano Nacional de Implemen- tação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação para as Relações Étnico-raciais. Nesse Plano, constam indicativos para que as escolas reformulem seu Projeto Político Pedagó- gico, adequando o currículo ao ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. Já para as instituições de ensino superior, o mesmo docu- mento afirma, entre outras coisas, que é necessário: a) incluir conteúdos e disciplinas curriculares relaciona- dos à Educação para as relações étnico-raciais nos cursos de graduação do Ensino Superior; b) desenvolver atividades acadêmicas, encontros e jorna- das destinados à discussão das relações étnico-raciais; c) dedicar especial atenção aos cursos de licenciatura e formação de professores, garantindo formação ade- quada sobre a história e a cultura afro-brasileira in- dígena, considerando os conteúdos propostos na Lei 11.645/2008; d) desenvolver nos discentes do ensino superior atitudes que lhes permitam contribuir para a educação das re- lações étnico-raciais com destaque para sua capacita- ção na produção e análise crítica de livros, materiais didáticos e paradidáticos que estejam em consonância com as Diretrizes Curriculares para Educação das Re- lações Étnico-Raciais e com a Lei 1.1645/2008 (BRA- SIL, 2008). Capítulo 3 Novos Tópicos para o Currículo 49 É importante registrar que o atendimento educacional das populações indígenas tem um conjunto específico de norma- tivas que resguardam a esses povos o direito a construir pro- postas curriculares específicas que contemplem suas distintas culturas, respeitando a determinação contida na Constituição Federal de 1988. Admitindo que a educação é um processo que ocorre de modos distintos e por meio de pedagogias e ins- tituições próprias em cada cultura, a Constituição reconhece aos índios, no Artigo 231, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” e, no Artigo 210, § 2º, “a utiliza- ção de suas línguas maternas e processos próprios de apren- dizagem”. Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional menciona-se o desenvolvimento de “programas integrados de ensino e pesquisa” visando: fortalecer as práticas sociocultu- rais e a língua materna de cada comunidade indígena; manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conte- údos culturais correspondentes às respectivas comunidades; elaborar e publicar sistematicamente material didático especí- fico e diferenciado (Art. 79, § 2). Ainda sobre a educação escolar destinada aos povos indí- genas, a edição do Decreto 6.861, de 27 de maio de 2009, altera o modelo de gestão para estas escolas, definindo sua organização em territórios etnoeducacionais. De acordo com esse documento, cada território etnoeducacional compreenderá, indepen- dentemente da divisão político-administrativa do País, as terras
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