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C A P Í T U L O 2 9 1057A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão Diversos rótulos foram aplicados ao período da história da África que vai de 1500 a 1800. Muitos livros de História apresentam -no como “a era do tráfico de escravos”, superestimando a importância do fenômeno na história do continente. Esquecem -se de que, na África Ocidental e Oriental, o tráfico de escravos perdurou até por volta de 1850 e que foi no século XIX que ele se desenvolveu na África do Leste, excetuando -se um período anterior em direção ao mundo muçulmano. Este rótulo não dá conta sequer do fato de que certas partes do continente, como, por exemplo, a África do Sul, praticamente o desconheceram. Outros historiadores, sobretudo os neomarxistas, fazem da integração progressiva da África na economia capitalista mundial dominada pela Europa a principal característica desse período. Atribuem eles, portanto, um lugar mais importante às relações exteriores da África do que à sua evo- lução interna e apresentam os povos africanos como as malfadadas vítimas de forças mundiais que eles não podem compreender nem dominar. A África se encontra marginalizada e ideias racistas sobre o continente e seus habitantes se propagam e intensificam. Outros historiadores ainda fazem dos movimentos populacionais e do povoamento definitivo do continente a maior característica do período. Na verdade, cumpre constatar que, salvo algumas exceções, não houve quase migrações em massa na África após 1500. Outros pesquisadores, por fim, estariam propensos a apresentar a história destes três séculos como A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão B. A. Ogot 1058 África do século xvi ao xviii uma série de catástrofes ecológicas e a considerar as secas e fomes como os fatores determinantes do período. Cada um desses rótulos tem sua parte de verdade, mas nenhum deles dá a devida conta da complexidade e do dinamismo destes três séculos de história africana. Neste último capítulo, esforçar -nos -emos para traçar as grandes linhas da evolução histórica das sociedades africanas deste período, apoiando -nos mormente nos vários capítulos deste volume. Talvez fosse indicado começar nossa exposição pela questão fundamental dos movimentos populacionais. Foram esses movimentos importantes para esse período da história africana, mas, e a reserva é de Vansina no capítulo 3, “eles não são especialmente característicos do período de 1500 a 18001”. A maior parte da África já tinha sido colonizada em 1500 e o que as tradições orais apresentam como migrações nestas zonas não era de fato senão expansão e deslocamentos populacionais. Somente o Nordeste da África (quer seja a Somá- lia atual, o Sul da Etiópia, o Sul do Sudão, o Norte do Quênia e o Norte da Uganda) conheceu movimentos maciços de população ao longo deste período entre os oromos, os somalis, os luo, os karimojong, os kalenjin, os turkana e os masaï. Para Vansina, “estes movimentos populacionais atém -se [...] à história da ocupação das terras marginais. [...] Na verdade, quase por toda parte, vastas regiões eram ocupadas por povos cuja economia era adaptada ao meio natural e à densidade populacional.2”. Há, no entanto, muita coisa mais significativa do que essas migrações que são motivo de tanta preocupação: o período 1500 -1800 foi crucial para as for- mações sociopolíticas do continente. É nesses três séculos que a maior parte dos habitantes das diferentes regiões da África se reagrupou para formar os conjuntos sociais, econômicos, religiosos, culturais e políticos que constituem os povos africanos de hoje. Enquanto as sociedades africanas davam origem a grupos étnicos distintos, às características linguísticas e culturais próprias, grande parte da África se trans- formava em consequência da evolução das relações exteriores do continente. Em 1500, a maior parte das sociedades africanas era relativamente independente do resto do mundo, suas relações exteriores estavam reduzidas ao mínimo. Mas, em 1800, uma grande parte da África estava integrada aos circuitos comerciais mundiais que a ligavam estreitamente à Europa, à América e à Ásia. Este pro- cesso de integração fora facilitado pelo aparecimento, no continente, de novas 1 Ver o capítulo 3. 2 Id. 1059A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão comunidades, como os colonos holandeses na África Austral, os portugueses em Angola e na costa leste, e os Otomanos no Egito e no Magreb. Numerosas sociedades africanas tiveram então que mudar progressivamente seu modo de vida, ou se deslocar, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Muito rapidamente, relações totalmente diferentes estabeleceram -se entre as sociedades e em seu seio. Estas novas relações se caracterizavam pela dominação e pela dependência, tanto no plano interno quanto no sistema mundial em que a Europa se tornara a potência preponderante. Pathé Diagne levantou as grandes estruturas econômicas que apareceram ao longo deste período, quais sejam, o sistema de castas no Sudão Ocidental, na região do Níger -Chade e no Saara, a economia de pilhagem nos países ribeiri- nhos do Mediterrâneo, do Nilo e do Oceano Índico, e a economia de entreposto ou de feitoria nas proximidades do Oceano Atlântico3. A economia de pilhagem, por exemplo, era consequência do expansionismo espanhol e português e dependia bem mais do produto de pirataria, de tributos e de direitos que do comércio e da indústria, como era o caso antes de 1500. Desmembrou totalmente os subsistemas do Mediterrâneo e do Oceano Índico e empobreceu os campos que, em seguida, o tráfico de escravos iria mergulhar em uma crise profunda. Entrou em cena uma oligarquia militar que vivia de pirataria e de incursões, para as quais utilizava os serviços de homens livres e de escravos. Este sistema de exploração e de opressão provocou várias revoltas camponesas, especialmente no Sudão Ocidental, nas regiões do Níger e do Chade, no Egito, no Saara, no Magreb, na Etiópia e no baixo Zambeze. Como a economia de pilhagem, a economia de feitoria quase não se preo- cupava em inovar. Palcos de violência e de saques, as novas feitorias marítimas eram mais fortalezas do que centros comerciais ou industriais. Nas costas da Guiné e da África Equatorial, no Congo, em Angola e na Senegâmbia, os por- tugueses saqueavam mais do que compravam. De 1650 a 1800, a economia de feitoria apoiava -se no tráfico internacional de escravos. As sociedades atingidas por esse tipo de economia transformaram -se pro- gressivamente nos séculos XVII e XVIII. Este complexo processo acarretou grandes reestruturações, das quais a principal, especialmente na África Centro- -ocidental, foi o predomínio das redes comerciais sobre os Estados. Na maior parte das cidades costeiras, houve uma explosão geral dos centros de autoridade e esfacelamento do poder político. Citemos M’Bokolo: 3 Ver o capítulo 2. 1060 África do século xvi ao xviii [...] a organização do comércio, do lado africano, não foi monopólio do Estado: a concorrência beneficiou alguns indivíduos, príncipes, plebeus, quiçá ex -escravos, formadores de uma nova aristocracia, ciumenta de seus privilégios e ávida por poder político [...] No Loango, homens novos – plebeus, comerciantes, caravaneiros e demais intermediários – obtiveram a maior fortuna, tendo os meios de comprar a terra junto ao rei e de trazer para sua assessoria numerosos subordinados livres ou servis: cita -se, no fim do século XVIII, o exemplo de plebeus possuindo a bagatela de 700 subordinados a guerrear ou cultivar a terra por conta própria4. Em outras palavras, o declínio dos Estados acarretou o das antigas elites dirigentes, que uma classe de negociantes veio substituir ou acrescentar. A pene- tração portuguesa no Sul da Zambézia, por exemplo, desferiu sério golpe no poder da classe dominante autóctone e facilitou a instalação de formas diretas de exploração dos camponeses pelos capitalistas portugueses. “A convergênciadas redes comerciais regionais com as do comércio longínquo gerou uma classe mercantil africana, os vashambadzi. [... Serviam eles] como intermediários entre os negociantes estrangeiros e os produtores agrícolas africanos 5.” Fatos da mesma espécie fizeram nascer os “Mestizos e os Crioulos” de Casa- mansa, da Guiné e da Serra Leoa. Os afro -portugueses e os anglo -africanos deste último país eram grupos de negociantes que serviam de intermediários entre os navios europeus e as sociedades africanas do interior. Eram sobretudo agentes a serviço do capitalismo mercantil europeu que se enriqueceram de modo considerável. Mesmo no caso dos Sultanatos funj e fūr, em que os sultões parecem ter dirigido e protegido o comércio exterior, ligando -os ao Egito e ao mar Vermelho, o essencial das trocas estava nas mãos dos djallāba (negociantes) sudaneses que serviam de intermediários e de financistas em matéria de comércio exterior. Relativamente isolados em 1500, os diversos povos da África gradualmente se integraram, portanto, à economia mundial. Na maior parte dos casos, esta integração se fez acompanhar de profundas transformações sociais e políticas. Apesar do desaparecimento de grandes Estados no Sudão Ocidental e na África do Nordeste no início do período que nos interessa, “os diferentes Estados da África – escreve Vansina – exerciam seu domínio sobre uma maior parte do continente no fim do século XVIII do que no início do século XVI6”. Mas não 4 Ver o capítulo 18. 5 Ver o capítulo 22. 6 Ver o capítulo 3. 1061A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão são somente os territórios dominados por Estados que se estenderam ao longo destes três séculos: o período está marcado também por numerosos exemplos de reagrupamentos políticos devidos à expansão e à centralização das instituições políticas. Assim, a formação de Estados e a centralização da autoridade política foram os dois processos marcantes deste período. Na África do Nordeste, por exemplo, enquanto os séculos XVI e XVII assis- tiram ao desmoronamento do império cristão da Etiópia, ao qual se seguiu uma anarquia que prosseguiu intermitentemente até 1855, ano em que Teodoro II inaugurou a era dos grandes imperadores, houve, em compensação, uma expansão deste império rumo ao Sul, o que estimulou o aparecimento de novos Estados, como os de Boša, de Kaffa, de Šekko, de Wolayta e de Dauro. No caso de Madagascar, constatamos um processo inverso de centralização. No início do século XVII, a ilha não possuía ainda senão pequenas chefias autô- nomas. Mas, no fim do século, o Império dos sakalava constituiu -se na parte ocidental e vários reinos surgiram junto aos povos dos altos planaltos, assim como em toda a parte sul da ilha. O Império dos sakalava alcançou seu apogeu no século XVIII e o litoral oriental ficou politicamente unido pela primeira vez no quadro da Confederação dos betsimisaraka. Em 1800, estes dois Estados estavam em declínio e o Imerina, até então fraco e desunido, ganhava poder. O mesmo processo de unificação e de centralização encontra -se na costa da Guiné inferior. De acordo com um mapa datado de 1629, havia então nessa região florestal e costeira 38 Estados e reinos que haviam sido fundados pelos ga e pelos akan. Entre 1670 e 1750, produziu -se nessa região uma grande revo- lução política. Os 38 Estados engendraram os três grandes impérios dos aowin, dos denkyira e dos akwamu que, em 1750, se fundiram para formar o Império dos ashanti. Buganda, Ruanda e Maravi são outros exemplos de Estados que se desenvol- veram e constituíram sistemas políticos centralizados ao longo deste período. Houve contudo um fenômeno político mais comum durante estes três séculos: aos Estados em declínio ou que ruíram sucederam diversos pequenos Estados ou sistemas econômicos. Assim, na África Central, Estados cada vez maiores se constituíram e originaram, no século XVI, os Reinos do Congo, de Tio, de Loango e do Ndongo (a futura Angola), tendo sido o Reino do Congo o mais importante e o mais centralizado. Mas, a partir de 1665, estes Estados começaram a declinar e os territórios foram reorganizados em escala maior, em função de imperativos econômicos ditados pelo tráfico de escravos. Na costa da Alta Guiné, os Estados que sucederam aos Impérios Songhay e do Mali apareceram nos séculos XVII e XVIII. O grande Império Foul se cons- 1062 África do século xvi ao xviii tituirá no século XVIII sobre as ruínas do Império Songhai, mas este cedeu lugar ao Império do Kaarta no decorrer da segunda metade do século XVIII. Ao longo do Atlântico, os Estados que se haviam constituído depois do desmembramento do Mali foram unificados pelo Gabu (Kaabu) nos séculos XVII e XVIII, depois pelo Futa Djalon nos séculos XVIII e XIX. No Centro, a recuperação teve lugar no início do século XVIII sob os auspícios dos bambara de Segou e, no Sul, os jula organizaram o Império de Kong no século XVIII. Assistiu -se a um processo semelhante no Sul do Zambeze. O declínio do Grande Zimbábue fez nascer, primeiramente, o Estado de Torwa e, em seguida, como fato mais notável, o Estado de Mutapa no início do século XVI. A frag- mentação e o consequente declínio do Estado Mutapa começaram em 1629. O Império soçobrou na decadência e na desordem ao longo do século XVIII, mas a entidade política mutapa só desapareceu completamente em 1917. A maior parte dos novos Estados dotaram -se de sistemas de governo e de administração originais. O Daomé, por exemplo, representava uma nova noção de Estado. Havia sido criado por migrantes vindos de Allada, que se tinham imposto a vários grupos, mais ou menos em 1625. Ao conceito tradicional de Estado, considerado como uma versão mais ampla da família, sucedia o de Estado forte e centralizado, com um monarca absoluto no seu comando a exigir lealdade sem reserva de todos os cidadãos. As novas concepções do Estado e dos sistemas de governo que se formaram nas mais diferentes regiões (sobretudo nos séculos XVII e XVIII) merecem ser estudadas de forma mais exaustiva. Na maior parte desses Estados, várias clas- ses sociais também surgiram: aristocratas, grupos militares, plebeus e escravos. Assim, a sociedade kanuri do Borno era extremamente estratificada. Estava, em linhas gerais, dividida em duas classes, os kontuowa (classe dominante ou nobreza) e os talia (plebeus), sendo estes subdivididos em vários grupos distintos por sua linguagem, vestimenta, mobília e arquitetura de sua casa. No país haussa, com o enriquecimento dos aristocratas e negociantes, esta distinção deu lugar a uma distinção econômica entre os attijirai (os ricos) e os talakawa (os pobres). A aristocracia (administrativa e militar) enriqueceu empregando vários meios de exploração. Adquiriu muito depressa uma ideologia da opressão. No Egito, por exemplo, o declínio do Império Otomano coincidiu com o começo dos conflitos internos entre as camadas sociais, cujo objetivo não era a independência política, mas o domínio da economia, do país e de suas instituições políticas. O estado crítico da economia era reflexo de uma política de opressão a que a maior parte da população estava submetida e graças à qual era explorada por uma pequena elite que compreendia os beis mamelucos e seu séquito. Tal 1063A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão situação de opressão provocou o aparecimento de uma literatura popular em língua árabe (especialmente poética e satírica), tendo por tema a exploração dos camponeses. Como já o tínhamos sublinhado ao mostrar os resultados da economia de pilhagem, tais regimes opressores provocaram numerosas revoltas camponesas em toda a África. As dos séculos XVII e XVIII deveriam ser objeto de um estudo mais aprofundado. Delas seria preciso estabelecer a tipologia. Ademais, em várias regiões, as classes inferiores não constituíam um grupo homogêneo: algumas delas não eram sequer constituídas de camponeses. Mas, em regra geral, pode -se dizerque, qualquer que fosse sua composição, as classes inferiores luta- ram contra a deterioração de sua situação para preservar ao menos o statu quo. O tráfico de escravos As questões que se levantam habitualmente a este respeito, tais como o recenseamento de escravos ou os efeitos do tráfico de escravos para a sociedade africana, foram estudadas no capítulo 4 e nas seções pertinentes da maior parte dos capítulos deste volume. Por isso, não é necessário voltar ao assunto aqui. Permitam -me antes insistir sobre alguns pontos fundamentais com relação ao tráfico de escravos que, a meu juízo, deveriam merecer a atenção dos historia- dores especialistas em África. Antes de mais nada, que lugar deve ocupar o tráfico de escravos na história da África? Em outras palavras, que interesse o tráfico de escravos representa para nós, historiadores da África? Todas as raças foram escravas outrora: o próprio termo vem da palavra eslavos, que designa os europeus do Leste. Mas todos os outros grupos populacionais encontraram um meio de eliminar esta noção de sua consciência histórica. Os judeus, por exemplo, foram outrora escravos, mas no presente eles interpretam a escravidão como uma condição especial e única que lhes tinha sido atribuída por Deus. Os africanos sobrestimam tanto a importância da escravidão em sua história que há uma assimilação ou quase entre os termos escravo e africano. Como o demonstrou claramente D. B. Davis em suas obras, Problem of slavery in western culture e Slavery and human progress, a escravidão é um fenômeno maior da ideologia do mundo ocidental moderno que deveríamos esforçarmo -nos por compreender7. É este fenômeno o principal responsável pela atitude negativa para com a África e os africanos. 7 D. B. Davis, 1966 -1975 e 1984. 1064 África do século xvi ao xviii No capítulo 4, Inikori se esforça por mensurar o papel do tráfico de escravos negros para o progresso econômico do mundo ocidental. Essa questão, também fundamental, deve ser examinada abertamente e de modo aprofundado. Marx e Engels sustentaram que, mesmo sendo e tendo sido sempre imoral, a escravidão não deixou de ser essencial para o progresso econômico e, consequentemente, para o progresso social. Sem a escravidão, asseveraram eles, não teria havido civilização grega nem civilização romana. Inikori traz a observação, por sua vez, de que a escravidão africana foi essencial para o desenvolvimento do sistema econômico e geopolítico atlântico e para a industrialização da Europa Ocidental. Além disso, em sua obra em três volumes, Civilização material, economia e capi- talismo nos séculos XV a XVIII, Fernand Braudel deu -nos outra imagem da con- quista do mundo pelo capitalismo europeu: passando pela tradicional economia de subsistência camponesa e pelo advento do mercado, explica ele, por fim, como um punhado de banqueiros e de negociantes conseguiram, monopolizando o comércio e tendo o máximo de lucro, criar uma série de “economias -mundo” ancoradas na Europa e, desse modo, estender o poderio crescente do capitalismo europeu. Atribui este crescimento a empresas multinacionais como a Casa dos Fugger de Augsburg no século XVI e a Companhia das Índias Orientais nos séculos XVII e XVIII8. O papel do tráfico de escravos africanos neste debate deve ser radicalmente reavaliado. No capítulo 5, Harris levanta outra importante questão ligada à escravidão. Todos os documentos disponíveis mostram claramente que a desumanização dos africanos se intensificou de 1500 a 1800 por causa da intensificação da escravidão a partir de 1619. É, no entanto, o tráfico intercontinental dos escravos que, mais que outro fator, esteve na origem da presença dos negros no mundo inteiro. Como conse- quência, houve uma diáspora africana muito expressiva, sobretudo no continente americano e no Caribe. De acordo com Harris, a natureza de tal tráfico e suas consequências, mais especificamente na América e nos Caribes, levaram os africanos a travarem lutas por sua liberdade. Estas lutas, com o passar do tempo, despertaram nas consciências a preocupação generalizada da redenção da África e da libertação dos negros do mundo inteiro. [...] Apesar da dominação colonial, tal processo seguiu seu curso, tratando -se provavelmente da mais importante consequência histórica da diáspora africana 9. 8 F. Braudel, 1984. Ver também I. Wallerstein, 1976. 9 Ver o capítulo 5. p. 136 na edição inglesa ; quando diagramado colocar a referência da página. 1065A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão É efetivamente este fenômeno que esteve na base do movimento pan- -africano dos séculos XIX e XX. A introdução de novas culturas de alimentos Para numerosos escritores, a introdução de novas culturas originárias das Américas é um aspecto positivo do comércio transatlântico. Alguns destacaram que estas culturas, que acarretaram automaticamente modificações no regime alimentar, melhoraram a resistência física dos africanos, contribuindo assim com o crescimento da população. Citemos a propósito um manual típico de história africana: As novas culturas originárias das Américas permitiram à África Tropical, e sobretudo às regiões de floresta, nutrir sua população muito mais numerosa que no passado. O milho, o amendoim e a mandioca – para citar apenas estes três exemplos – modificaram de modo permanente a relação dos africanos com seu ambiente10. Mas, como nos leva a observar M’Bokolo, os efeitos dessas transformações agrícolas nas populações africanas são difíceis de interpretar. “Teriam elas con- tribuído, como frequentemente se sublinha, para uma alimentação mais segura e mais diversificada, para uma maior resistência física da população e para um crescimento demográfico mais forte?” Nada oferece menos certeza. Pelo con- trário, destaca ele, a mandioca não tem senão um valor nutricional medíocre, além de se constatar sinais de desnutrição grave entre os que mais a utilizaram, como os tio e os mboshi11. Se as tendências demográficas ao longo dos séculos XVII e XVIII são difí- ceis de discernir, é porque esta época, que foi também a do apogeu do tráfico transatlântico, foi marcada pelo aparecimento de novas doenças, como a varíola, que deveriam em seguida tornar -se flagelos recorrentes. O que é certo, porém, é que as novas culturas originárias das Américas e da Ásia, que foram introduzidas pelos Europeus em diversas regiões da África entre 1500 e 1800, especialmente o milho, a mandioca, o amendoim, vários tipos de inhame, a batata doce, as frutas cítricas, os tomates, as cebolas e o tabaco, diversificaram a agricultura do continente. Numerosas culturas alimentares afri- canas como a banana, o sorgo, o milhete e o inhame foram progressivamente 10 P. D. Curtin, S. Feierman, L. Thompson e J. Vansina, 1978, p. 214. 11 Ver o capítulo 18. p. 531 na edição inglesa ; quando diagramado colocar a referência da página 1066 África do século xvi ao xviii substituídos ao longo deste período pela mandioca e pelo milho. É, portanto, a esta época que remonta o lugar tão importante que ocupam atualmente estes dois elementos da alimentação de base dos africanos. No nível social, para M’Bokolo, esta revolução agrícola contribuiu, junta- mente com o comércio, para criar uma nova divisão do trabalho: tarefas agríco- las, como as roçadas, as culturas e o condicionamento dos produtos, foram cada vez mais abandonadas pelos homens – que preferiam dedicar -se ao comércio, muito mais lucrativo – e confiadas às mulheres e aos escravos. A intensificação da escravidão doméstica e de outras formas de dependência foi então uma con- sequência direta destas mudanças agrícolas12. As catástrofes ecológicas Alguns tentaram demonstrar que aos diversos períodos da história da África correspondiam essencialmente condições climáticas e que havia uma correla- ção significativa entre os períodos de seca grave e os grandes acontecimentos históricos. A época que nos interessa de modo especial é considerada como umperíodo de seca13. Estas análises tendem a dar ao meio ambiente físico um caráter imutável que reduz os africanos ao papel de vítimas impotentes da natureza. Têm ainda o inconveniente de atribuir demasiada importância aos anos de seca em detri- mento dos anos de pluviometria normal e acima da média, o que levou certos historiadores a formular generalizações excessivas a respeito das fomes da África pré -colonial14. Estes historiadores nada dizem das medidas que os Africanos tomaram para contrapor -se aos efeitos da seca e calam -se, por exemplo, quanto ao papel que elas tiveram na transformação dos sistemas de produção e de dis- tribuição, na valorização das culturas de alimentos e na evolução dos métodos de conservação de alimentos. A questão das secas e das fomes inscreve -se também na questão mais vasta da eficácia da agricultura africana durante o período pré -colonial. O período de 1500 a 1800, por exemplo, foi marcado pelo aparecimento de técnicas intensi- vas de uso dos solos que, por sua vez, permitiram o crescimento da densidade populacional. Vansina nos dá a esse respeito alguns exemplos: 12 Id. 13 J. B. Webster, 1979 e 1980; S. E. Nicholson, 1978 e 1979; J. C. Miller, 1982; D. J. Schove, 1973; J. K. Thornton, 1981a. Ver também o capítulo 26. 14 Ver o capítulo 22. 1067A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão A Baixa Casamansa, o país Igbo, as pradarias de Camarões onde se cultivavam diversos vegetais, as montanhas da região dos Grandes Lagos, na borda do rift oci- dental onde se praticava a irrigação e a cultura intensiva de bananas, o platô kukuya onde se aplicavam novos métodos de fertilização, ou ainda o vale do alto Zambeze, cujas cheias serviam para a irrigação [...]. O que se praticava há milênios era uma cultura intensiva nos oásis da África do Norte e no Egito15. Enfim, embora a prática da agricultura intensiva não fosse tão antiga na maior parte das outras regiões da África como na África do Norte, havia cá e lá, sobretudo na África Ocidental e Central, pequenos bolsões de agricultura intensiva. Empregavam -se nessas regiões técnicas de cultivo avançadas como as culturas em terraços, a rotatividade de culturas, os adubos verdes, a agricultura mista e a exploração controlada dos pântanos. Essas questões merecem mais a atenção dos historiadores que as generalizações habituais sobre a fome e a seca na África. O Cristianismo e o Islamismo O período que vai de 1500 a 1800 foi marcado pelo declínio do cristianismo na África – sobretudo na Etiópia, na costa oriental e, em escala menor, no Congo – e pelo crescimento do islamismo na África do Oeste, no Sudão, na Etiópia e na costa leste. Na costa da Guiné inferior, por exemplo, o cristianismo havia sido introdu- zido pelos holandeses e pelos ingleses. Começaram por criar escolas elementares em seus castelos na Costa do Cabo, Elmina e Accra. Depois disso, em meados do século XVIII, missionários haviam sido enviados para a Costa do Cabo pela Sociedade para a propagação do Evangelho. Além do mais, alguns dos novos convertidos, especialmente os filhos de mulatos e de dirigentes locais, haviam sido enviados ao exterior para aperfeiçoar sua educação e uma grande parte deles voltara como professores e missionários. Os fundamentos da revolução cristã que deveria acontecer na África Ocidental no século XIX foram, portanto, assentados nesta época. No Congo, o cristianismo foi introduzido no reinado de Afonso I (1506- -1543). Sob a direção de seu filho Henrique, que fora consagrado bispo em Roma, ele fez do catolicismo a religião de Estado. Mas o fervor religioso declinou 15 Ver o capítulo 3. 1068 África do século xvi ao xviii no Congo até 1645, data em que grande número de missionários capuchinhos italianos chegou ao país. Cerca de 400 missionários foram ao Congo e, mais tarde, à Angola, ao longo do século XVI, para pregar o Evangelho, especialmente nas zonas rurais. Como disse Vansina, o cristianismo, inicialmente introduzido no Congo pelos portugueses, era, em grande parte, a religião da nobreza urbana, e a hierarquia eclesiástica continuava essencialmente portuguesa. Mas de 1645 a 1770, os missionários italianos empenharam -se em converter sistematicamente a população, sobretudo nas zonas rurais16. O cristianismo, assim como o islamismo, foi, ao longo desse período, essen- cialmente sincréticos. No Congo, por exemplo, o cristianismo coexistia com a religião tradicional. De fato, a interpenetração entre as duas religiões era tal que, segundo Vansina, “a partir do século XVI, pode -se falar de uma única religião em que elementos cristãos e antigos haviam se misturado, ao menos junto aos nobres, e tal religião difundiu -se sobretudo no século XVII. [...] Essa nova religião deu origem ao vodu haitiano 17”. Também nesta época, tentou -se organizar igrejas independentes. No Congo, as primeiras tentativas para criar uma igreja autóctone foram feitas a partir de 1630 e este esforço ganhou toda sua amplitude em 1704, quando Dona Beatriz Kimpa Vita começou a pregar um cristianismo reformado, denominado anto- nianismo, que rejeitava os missionários e os brancos. Doravante o catolicismo autóctone iria dominar no Congo. No que concerne ao islamismo, é evidente que a expansão islâmica na África constitui um dos temas importantes do período que vai de 1500 a 1800. Na costa da Guiné Inferior, por exemplo, são os comerciantes mande e haussa que intro- duziram o islamismo. Propagou -se, depois disso, seguindo as rotas comerciais do Norte e atingiu os ashanti e os baoulé por volta de 1750. Em 1800, havia em Kumasi um bairro muçulmano muito próspero e uma escola corânica. Na costa da Alta Guiné, são os fulbe e os malinke que foram os responsáveis pela expansão do islamismo. Formaram uma aliança religiosa fulbe -mande des- tinada não somente a converter a população da região mas também a submetê -la. A propagação do islamismo esteve, portanto, associada à dominação política em numerosas regiões da África, como bem o ilustra o caso da Senegâmbia, onde a oposição entre as teorias muçulmanas e os regimes dos ceddo (senhores da guerra) serve de pano de fundo à história da região. No Sudão, a islamização do Norte do país criou uma fronteira ideológica entre o Sudão do Norte e o 16 Ver o capítulo 19. 17 Id. 1069A história das sociedades africanas de 1500 a 1800: conclusão Sudão do Sul, que continua muito marcante. Assistiu este período à criação e à expansão de dois Estados muçulmanos da savana: os Sultanatos funj e fūr. Nos séculos XVII e XVIII, o islamismo continuou a se propagar nos Reinos Bambara, Mossi, de Kong e de Gwirika, por meio dos comerciantes e dos chefes religiosos, e mesmo pela violência. Constata -se o mesmo processo de islamiza- ção no país Haussa e no Borno. Além da simples expansão geográfica do islamismo na África nesta época, o fundamentalismo muçulmano foi um fator importante em numerosas regiões. Citemos como exemplo o movimento Nāşir al -Dīn, que nasceu na Mauri- tânia e, em seguida, se propagou rumo ao Sul. Justificava -se por razões em parte econômicas (controlar o comércio de cereais e de escravos) e em parte religiosas (purificar e reformar o islamismo, substituindo um regime arbitrário pela teocracia muçulmana). Constata -se a mesma tendência reformista entre os muçulmanos do país Haussa, sobretudo durante o século XVIII. Comunidades de eruditos muçulmanos, que tinham a mesma formação política, econômica e religiosa, multiplicaram -se em diversos centros e se puseram a criticar a ordem estabelecida e representada pela aristocracia. O mais eminente desses eruditos, Malam Djibrīl dan ‘Umaru, pregava reformas islâmicas. ‘Uthmān e ‘Adullāhī dan Fodio foram ambos discípulos seus. Quando a dominação dos aristocratas se tornou ainda mais opressiva, os eruditos atacaram abertamente a ordem estabelecida. São tais as origens da jihad do século XIX. Ao oprimir os camponeses africanos, especialmente no Sudão Ocidental, nasregiões do Níger e do Chade, no Egito, no Saara, no Magreb, na Etiópia e no Congo, as elites rurais e urbanas fizeram o jogo dos dirigentes muçulmanos e dos movimentos messiânicos cristãos, que não tiveram nenhuma dificuldade em angariar o apoio maciço dos camponeses. Os chefes religiosos prometiam a igualdade e o fim da injustiça, ao mesmo tempo em que estigmatizavam as aristocracias tradicionais e os europeus, elementos perturbadores e causas da injustiça social. Destaquemos, para concluir, que os africanos tinham uma concepção sin- crética do islamismo, assim como do cristianismo. Aceitavam o islamismo, mas continuavam fiéis à religião tradicional. Como Izard e Ki -Zerbo observam, estes sincretismos se desenvolveram mais tarde com o cristianismo na África e no culto afro -americano no Brasil, no Haiti e em Cuba. “O islã, assim concluem, apresentava -se aos bambara com instituições que não negavam necessariamente as suas, como, por exemplo, a poligamia, o divórcio, o repúdio, a escravidão 18.” 18 Ver o capítulo 12.
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