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1 Evolução Histórica do Direito Penal e Teoria do Crime Unidade I Prof. Dr. Fábio Bellote Gomes APRESENTAÇÃO DO PROFESSOR-AUTOR Fábio Bellote Gomes é professor-titular na Universidade Paulista (UNIP) há mais de dezoito anos nas disciplinas direito empresarial e direito administrativo. É bacharel (1998), mestre (2010) e doutor (2014) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), tendo realizado o mestrado e o doutorado na área de concentração em direito comercial, na mesma instituição. Durante a graduação na Faculdade de Direito da USP foi aluno-monitor na cadeira de direito romano e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em nível de iniciação científica, na área de direito público. É autor de duas obras didáticas, que atualmente constituem bibliografia fundamental de diversos cursos de direito: Manual de Direito Empresarial, pela editora Juspodivm, em 2018 e Elementos de Direito Administrativo, pela editora Saraiva, em 2012. É coordenador do curso de pós-graduação em direito empresarial corporativo da UNIP. Endereço curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/7100787923660549. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DO PROFESSOR-AUTOR ........................................................... 2 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4 1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA TEORIA CRIMINAL E DO DIREITO PENAL . 5 1.1 Período da vingança .............................................................................. 6 1.2 Período da religião ................................................................................ 8 1.3 Período humanista ................................................................................ 8 2. ESCOLAS DO DIREITO PENAL ................................................................... 10 2.1 Pré-clássicos........................................................................................ 10 2.2 Escola Clássica .................................................................................... 11 2.3 Escola Positiva .................................................................................... 12 2.4 Escola Humanista ................................................................................ 13 2.5 Escola Crítica ....................................................................................... 14 2.6 Escola Moderna Alemã ....................................................................... 14 2.7 Escola Técnico-Jurídica ...................................................................... 15 2.8 Nova Defesa Social .............................................................................. 15 3. ASPECTOS GERAIS DO DIREITO PENAL .................................................. 16 3.1 Fontes do Direito Penal e sua relação com os princípios penais ... 17 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 25 4 INTRODUÇÃO Por meio do curso de pós-graduação Evolução História do Direito Penal e Teoria do Crime, o graduando poderá adquirir ferramentas para reflexão do papel do direito penal no Brasil contemporâneo, passando necessariamente pelo enfrentamento dos principais institutos do direito penal, pela reação social e pela eficácia da pena. Na primeira unidade, será necessário passar pela compreensão das escolas de pensamento acerca do direito penal, na qual poderá ser visto o nascimento das principais noções discutidas no debate público sobre o crime e, principalmente, a efetividade e aplicação da sanção. Posteriormente, pela noção do direito penal em si, serão analisados os principais institutos para a integração das normas de direito frente a possíveis lacunas e imprecisões da lei penal. Nesse sentido, serão vistas algumas jurisprudências expondo a precípua função do poder judiciário para interpretar e aplicar a norma; como consequência, tem-se o resguardo dos direitos e garantias fundamentais, e o devido andamento e execução penais. 5 1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA TEORIA CRIMINAL E DO DIREITO PENAL O primeiro percurso no estudo da história do crime e do sistema penal precisa passar necessariamente pela análise de civilizações antigas e até do período de vida primitivo e tribal. Não basta compreender as noções de causa e efeito, acerca do delito e da punição, mas sim atentar para os incentivos acerca de determinadas condutas e condições psíquicas sobre se sentir inserido ou não ao grupo social. A atual neurociência, conjunto aplicado de ciências médicas e psicológica com uso de mapeamento cerebral, sugere que um homem mediano teria condições de conhecer ao menos 150 rostos e, com base nisso, constituir a noção de identidade de uma forma de sociedade. É sabido que o cérebro realiza sinapses de oxitocina, como estímulo à congregação social, e também possuímos neurônios-espelho, que realizam sinapses estimulando a imitação de comportamento e identificação, consistindo na maneira que os bebês se desenvolvem rapidamente (HEYES, 2010). As estruturas que corroboram isso são formadas pelas instituições oficiais do grupo (por exemplo, a escolar e a militar), pela família, pela organização religiosa e pelas práticas de ofício. Com a conquista de outras civilizações, o agrupamento social aumentou mantendo as estruturas de então, e, por vezes, tentando englobar a cultura e as instituições conquistadas. Daí surgiram suspeitas e medos acerca do convívio e da confiança sobre os novos membros da sociedade, gerando uma forma de preconceito que também persiste até os dias atuais, a xenofobia. Todos esses fenômenos são passíveis de análise para corroborar teorias do crime e, principalmente, conceber meios de criar políticas e leis capazes de minorar a ocorrência de delitos. O direito penal contemporâneo consegue constatar que os crimes não possuem todos a mesma natureza, podendo a sua coerção ser trabalhada de maneiras distintas. O crime de homicídio é habitualmente coibido com maior repressão por parte das autoridades. Crimes de natureza fiscal, como a sonegação, podem ser relativizados na discussão pública, pois uma maior ou menor fiscalização sobre o tráfego econômico incide sobre o comportamento dos agentes econômicos. Há países que não entendem a sonegação como um crime, mas sim mero exercício da liberdade econômica – os chamados paraísos fiscais, mas dificilmente algum país relativizará condições acerca do homicídio, não tratando hipóteses de exclusão de ilicitude. Porém, manter-se identificado com o grupo social não conseguiu isentar agentes delitivos. Pelo contrário, vê-se na imprensa que líderes religiosos e pessoas estáveis financeiramente também cometem crimes, não corroborando a ideia de que a desigualdade social per si coíbe a prática de crimes. Porém, a incidência maior de crimes designados como mais graves predominam em áreas afastadas da tutela do Estado. Ademais, no Brasil do século XXI começam a surgir pesquisas e publicações sobre o crime organizado estar custeando famílias de presidiários e até instituindo um tribunal privado para resolver 6 problemas de áreas afastadas dos grandes centros e sob o domínio do tráfico (NUNES DIAS, 2011). Para buscar compreender os caminhos sobre os fenômenos sociais atinentes ao crime, foi-se consolidando escolas de pensamento sociológico e do próprio direito penal. A doutrina tende a ponderar, ainda, acerca do direito penal por meio de fases distintas, que serão vistas nos tópicos seguintes. 1.1 Período da vingança Considerada uma fase inicial que culmina no direito penal propriamente, esse período refere-se ao período primitivo da história do homo sapiens. Não engloba, portanto, um sistema institucional básico sobre a aplicação de penalidadese coerção social, mas sim práticas congregadas nesses primeiros agrupamentos humanos. É conhecido também como período da vingança, seja ela considerada pública, privada e até mesmo divina. Trata-se de um direito exclusivamente repressivo. Destaca-se que a vingança de cunho divino remete à decisão proferida pelo líder ou a alta hierarquia do agrupamento, como representantes das divindades cultuadas pela tribo. A gênese de condutas delitivas remete ao desrespeito e ao descumprimento dos valores e lendas dos deuses cultuados. A partir dessa crença, com condutas reprováveis praticadas eram entendidas como responsáveis pelo desencadeamento de eventos drásticos e prejudiciais para a tribo em questão, como seca, tempestades e período de maior pobreza. Nesse sentido, vê-se que muito dessa cultura durou até o fim da Idade do Bronze do Oriente Médio, que foi narrado em algumas histórias da Bíblia, como as profecias de José no Egito sobre a época das vacas magras. Destacam-se dentre as principais normas os Cincos Livros do Egito; Livro das Penas, na China; e o Pentateuco Hebraico (FABRETTI, 2019). Salienta-se que os modelos vigentes no ocidente se desvencilharam mais rapidamente do vínculo religioso. Posteriormente, faz-se salutar que, conforme avança e cresce uma civilização, dominando culturas e religiões vizinhas, haja mudanças nos códigos de valores, conciliando forças políticas distintas e novas. Inclusive em virtude das mercancias e da diplomacia. Surgem, então, dois alicerces da vingança privada, baseados na perda da paz e na vingança de sangue. O primeiro consistia na ruptura do pacto social perpetrada pelo infrator, ocasionando seu banimento da sociedade. Quanto ao segundo, referia-se ao fim de trato de paz entre membros de grupos sociais distintos, legitimando a vingança belicosa entre os grupos. 7 Frente a essas formas individuais de resolução de conflitos, atribuem à Lei de Talião, no Código de Hamurabi, um marco civilizatório, consolidando uma série de condutas e as respectivas penas, tornando o aspecto penal de então mais impessoal. Nesse momento, estava erguida a civilização da Babilônia, na região da Mesopotâmia, por volta de 1780 a.C., grande marco civilizatório após o homem aderir ao sedentarismo. A chamada lex talionis tinha como norte a severa e recíproca aplicação de uma pena para o crime cometido. Para os padrões do século XXI, mostra-se absurda, porém, conforme as circunstâncias mudam, há tendências que voltam para um maior rigor penal. Com o passar do tempo, ainda sob a vigência da Lei de Talião, as pessoas das classes mais abonadas sujeitavam seus escravos para o cumprimento da pena em seu lugar. Posteriormente, surgiu o instituto da negociação penal, uma forma de composição, em que o criminoso poderia pagar em valores ou serviços à vítima ou a seus familiares. Com o avanço do modelo social civilizatório, os soberanos precisavam reforçar perante o grupo o respeito e a manutenção da ordem vigente, tornando, então, públicas as penalidades. Muitos doutrinadores entendem que a partir desse modelo é que se pode falar propriamente em direito penal e sanção penal, porquanto esta visar a paz pública, por meio da intimidação coletiva. Nesse momento, a pena de morte é a praxe. Traçadas as linhas gerais acerca desses períodos, cumpre analisar alguns aspectos das civilizações notáveis e que foram fonte de direito. A Roma Antiga passou pelos três estágios da vingança, passando pelo período da vingança, pela aplicação da lex talionis, pelos sucedâneos da composição e, por fim, culminando nas penalidades públicas. Também teve marco a distinção entre crimes de natureza pública e os de natureza privada. Os primeiros referiam-se a crimes praticados por funcionários públicos ou crimes que afetariam as instituições e à moral comum, como os delitos de cunho sexual. Quanto aos delitos privados, eram os atinentes ao patrimônio individual, e demandados em jurisdição própria para a devida reparação; nascendo, assim, na seara do direito civil romano, o ilícito civil. As penas de mortes eram aplicadas, tendo variantes como a decapitação, para os patrícios, e a crucificação para os demais. Muito tratada na cultura popular atual, havia também as execuções públicas em tons de espetáculo, condizente com a expressão pão e circo: enquanto a sociedade passava por crises e conflitos graves, bandidos e párias eram postos para morrer ou lutarem entre si nas arenas, causando uma catarse no ânimo dos populares. A metáfora dessa prática reflete-se também na opinião pública contemporânea sobre o sentimento de vingança contra o bandido ou quem aparente ser bandido, em virtude da impunidade – ou sensação de impunidade – e no descrédito do Estado e das autoridades em combater e coibir a criminalidade. Há registros, ainda, de penalidades excepcionais contra crimes específicos, como afundar criminosos no mar ou derrubá-lo de um pico elevado. O direito germânico, compreendendo seu desenvolvimento no recorte histórico do século X ao século XI, sofreu influências tardias do direito romano em razão das invasões bárbaras, tornando a instituição do Estado uma figura central na aplicação 8 de penalidades aos agentes delitivos. Contudo, manteve seu princípio nuclear, que era a manutenção da paz, e o crime sendo a quebra da paz. Originalmente, o direito germânico mantinha no aspecto da punição a vingança de sangue, denominada faida, principalmente para solucionar conflitos de ordem privada, não afeitos à toda comunidade. 1.2 Período da religião Embora classifiquemos como um período distinto do anterior e do período seguinte, convém observar que não se trata de um sistema hermético. Mesclou-se com sistemas de direito penal de vingança e construiu muitos avanços quando da consolidação do direito penal canônico, conforme a Igreja Católica crescia sua influência na Europa. No decorrer da Idade Média, o maior expoente de doutrina e estudos no direito penal foi capitaneado pela Igreja Católica, reintroduzindo ao cotidiano ocidental diversas normas e princípios do direito romano, e, por conseguinte, civilizando as práticas de origem germânicas, construídas principalmente na vingança. Em virtude dos valores da teologia cristã, o direito penal canônico trouxe regras processuais rígidas e claras, e admitindo a possibilidade de o criminoso se submeter à redenção religiosa. Com este sistema, os tribunais eclesiásticos puniam os delitos de matriz religiosa, pela ofensa ao direito canônico – delicta eclesiástica; a justiça pública era aplicada pelos soberanos e magistrados, consistindo na punição dos delitos seculares – delicta secularia. Também com base no direito canônico, deu-se início à ideia de ânimo – aspecto subjetivo – do crime pela primeira vez. No entanto, apesar de todo avanço humanístico, existem registros de que houvera a prática de torturas para alcançar a confissão do apenado a todo custo. Em todo esse período, especialmente no curso da Idade Média, sempre houve sujeição ao arbítrio da autoridade vigente, como perseguição a desafetos, excessos cometidos por autoridades tidas como incólumes, perpetuando processos sem garantias de publicidade, penas desmedidas e distintas para o mesmo delito, sendo aplicada a depender de quem fosse o infrator. Frente a todos esses aspectos, floresceu um novo movimento trazendo normas processuais mais claras e garantias em defesa da pessoa, consolidando valores e normas que limitem o Estado e suas instituições. 1.3 Período humanista Ademais, com a publicação da obra Dos Delitos e das Penas, do pensador Cesare Beccaria, em 1764, iniciou-se o marco para um novo período do direito penal, denominado Período Humanitário. Também foi o início do novo período da história 9 ocidental, a época das luzes frente ao período das trevas, e o fim dos regimes absolutistas pelas revoluções ocorrida no século XVIII. A obra trouxevalores basilares para o monopólio da violência do poder constituído, devendo este ser exercido com base no império da lei. A lei penal deveria ter sido redigitada e publicada por membros exclusivos do legislativo. Também abordara a necessidade de haver uma proporcionalidade da pena com a gravidade do dano decorrente do crime praticado, evitando as penalidades cruéis, exaustivas e exclusivamente vingativas. O autor fundamenta também a necessidade de haver uma prescrição legal dos delitos e das respectivas sanções, prestigiando o princípio da legalidade e da irretroatividade da lei penal. É também considerado o marco zero do direito penal liberal, estatuindo sobre as limitações do poder estatal contra a pessoa individualmente considerada, indo na contramão do arbítrio excessivo que imperava no antigo regime. Percebe-se que são princípios e bases processuais básicas que ainda são pressupostos no século XXI. Muitos pensadores criaram marcos que impactaram o sistema penal como um todo, tendo, além do Marquês de Beccaria, a obra Do contrato social, de Jean Jacques Rousseau; a filosofia de Immanuel Kant e Hegel, mostrando que os séculos XVIII e XIX foram ululantes na produção filosófica e na tentativa de elucidar os fenômenos da vida, característica sintomática de um período de intensas transformações nas sociedades europeias, e nas suas colônias, começando o brado pela independência e soberania. Pelo paradigma impactante do Iluminismo e da Revolução Francesa, na seara penal deu-se início às escolas do pensamento criminal, começando a partir dos estudos da obra de Beccaria. Dizer que há uma escola e depois surge uma nova, não significa alegar que uma é a progressão gradual da anterior necessariamente. Há de se assumir que na Idade Média também houvera autores e práticas condizentes com uma escola avançada, não significando que o direito penal do regime absolutista era vanguardista, nem que a ideologia criminal predominante possui qualidades defasadas. Não são escolas hermeticamente consideradas: muitas ideias e práticas acabam por se amoldar a determinados contextos sociais, tornando-se ideologicamente pertinentes com os valores da sociedade em análise. Inclusive porque ocorriam e fundamentavam-se no mesmo período cronológico, concomitantemente, elas se influenciavam, seja para o aperfeiçoamento de ideias, como para a crítica. 10 2 ESCOLAS DO DIREITO PENAL Há uma considerável distinção pela doutrina acerca das escolas clássica e positiva. Nesse sentido, devem ser considerados pensadores que anteciparam elementos fundamentais do direito penal, conforme nos esclarece Fabretti e Smanio (2019): (…) há autores anteriores aos clássicos que desenvolveram ideias muito importantes para o direito penal, mas não seguem uma mesma linha de pensamento padronizada a ponto de podermos qualificá-los como de uma ou outra escola, e tampouco há entre as ideias desses autores elementos que permitam que sejam agrupados em uma escola própria Os autores salientam também que embora sejam denominados pré-clássicos, os juristas comentados nesta categorização constituíram suas obras após a publicação de Cesare Beccaria ter se tornado paradigmática no direito penal. 2.1 Pré-clássicos Destacam entre os pensadores anteriores à Escola Clássica o italiano Giandomenico Romagnosi (1761-1835) e o alemão Paul Johann Anlsem Ritter von Feuerbach (1775-1833). Romagnosi era adepto do jusnaturalismo e ideologicamente contrário à ideia de contrato social. Para o autor, o direito penal deveria adequar-se ao utilitarismo, entendendo que a pena teria uma função primordial que era servir de exemplo intimidatório ao cometimento de novos delitos. Já Feuerbach, influenciado pela filosofia kantiana, tornou-se um dos maiores pensadores acerca do direito penal moderno, e, ao contrário de Romagnosi, conformava-se à ideia do contrato social. Na sua obra, alegava que era necessária a noção psíquica e comum da coerção do crime. As pessoas integradas ao contrato social de um Estado deveriam entender a priori a consequência de determinada conduta delitiva. Nesse sentido, adequou a noção de imperativo moral categórico, elaborada e desenvolvida por Immanuel Kant (1724-1804), para o campo penal. Doravante, a iminência da aplicação de uma sanção deveria ser o suficiente para que os cidadãos entendessem sobre a reprovabilidade de determinada conduta. Embora tenham sido previstos por Cesare Beccaria, é creditado a Feuerbach a criação do princípio da legalidade, consequentemente a tipicidade da conduta. 11 2.2 Escola Clássica Entre os pensadores considerados como o expoente dessa Escola, destacam- se principalmente Francesco Carrara (1805-1888), Giovanni Carmignani (1768-1847) e Pelegrino Rossi (1787-1848), e todos beberam da fonte dos movimentos iluministas e dos filósofos da época, especialmente Beccaria e Rousseau. Carrara é que abrangeu boa parte do conteúdo do pensamento clássico. Constituiu seus ensinamentos e pesquisas entendendo que o direito é inerente ao ser humano e atribuído por Deus. Dentro desse contexto, o crime possui teor jurídico, tendo como gatilho no mundo concreto a noção do agente daquilo que praticar acarretará uma lesão ou ameaça de lesão a terceiros ou à própria coletividade. Daí, este autor ser um dos primeiros a cogitar a imputabilidade do agente. Acerca da moral imputável do criminoso, ele bebeu da fonte cristã acerca do livre arbítrio, condição dada pelo Criador aos seres humanos. A noção de livre arbítrio abarca questões muito mais profundas, além do direito penal, reservando espaço na filosofia e na própria teologia. Muitas das vezes, é tida como a resposta para a teodiceia, porquanto ser pelo livre arbítrio que o homem caminha até Deus, decidindo por deixar o mal de lado. No contexto da obra, o delinquente escolhe caminhar em direção ao delito, abdicando de fatores externos, alheios à própria psique; para a teoria de Carrara, desta feita, o criminoso age independente de fatores sociais e biológicos. Sem perder o contexto com o lado teológico, para o ilustre autor, a pena não possui o caráter utilitarista que os demais da sua época tendiam a pensar, mas sim a retribuição pela conduta. Adotando uma perspectiva semelhante, Pelegrino Rossi entendia pela existência de uma obrigação moral comum a todos os homens, emanada na ordem social vigente, sendo o crime a ferida causada a esta última. Com este entender, a sanção penal era o reequilíbrio da ordem social lesada. A função retributiva e intimidatória era um aspecto secundário. Por oportuno, o pensamento de Rossi tende a trazer à noção teológica para uma espécie de secularismo, e carrega um pouco do imperativo moral categórico de Immanuel Kant. De pensamento distinto aos anteriores, Giovanni Carmignani apregoava que o propósito das punições aplicadas era alcançar a pacificação social. Assim, acaba por adotar uma postura utilitarista: a pena infligida tinha como meta coibir futuros crimes e não punir o que houvera sido cometido. Os três autores mencionados convergem as ideias preponderantes na Escola Clássica do direito penal, sendo elas a noção de que o crime constituísse uma natureza jurídica em si, correspondente à lesão ao direito; o homem possui livre arbítrio, possuindo ânimo próprio para cometer ou não a atividade delitiva; e quanto à penalidade ou sanção, deverá buscar o reequilíbrio ou a reparação da ordem social lesada. 12 2.3 Escola Positiva A Escola Positiva nasceu pelo crescimento do movimento filosófico denominado positivismo, de origem francesa e elaborado pelo filósofo Auguste Comte (1798-1857). O positivismo foi uma tentativa de renovar o ânimo social frente à inconstância gerada pela Revolução Francesa, pelo fim do parâmetro moral da Idade Média e pela modificação urbana oriunda da Revolução Industrial. Como novidade, buscava o amparo das ciências para alicerçarum novo modelo ético e moral. Há, inclusive, textos do pensador francês descrevendo a religião da humanidade, com uma ética estritamente racional e científica. A corrente positivista teve forte influência no Brasil, sendo dominante nas carreiras militares do século XIX, e inspiradora do lema plasmado na bandeira brasileira: ordem e progresso. Na religião positivista, o lema consistia em: “O Amor por princípio e a Ordem como base; o Progresso como fim”. No contexto europeu, especialmente francês, desenvolviam-se as demais ciências, como a sociologia, por Émile Durkheim (1858-1917), e Charles Darwin (1809-1882) ganhava popularidade pelos seus estudos acerca da evolução das espécies. Por conseguinte, o estudo do direito tornava-se mais amplo ao se alicerçar nas demais ciências. O principal paradigma de estudos para a Escola Positivista consistia em ter o ser humano sujeito às características biológicas, sociais e antropológicas, instrumentalizando, portanto, as demais ciências recém fundadas. Ademais, o crime passa a ser considerado como sintoma ou reação frente ao psiquismo ou à sociedade. Em relação ao paradigma clássico, o crime deixou de ser uma abstração própria e oriunda do ânimo volitivo humano, mas ser um fenômeno decorrente do desequilíbrio biológico e social. Outrossim, o fenômeno do determinismo ocupa um espaço considerável na ciência criminal pelo positivismo. Os principais pensadores criminalistas com viés positivista foram Cesare Lombroso (1835-1909), Enrico Ferri (1856-1929) e Rafael Garófalo (1851-1934). Como médico psiquiatra, Cesare Lombroso iniciou seus estudos observando o comportamento de presos em penitenciárias, inaugurando o ramo da antropologia conhecido como Antropologia Criminal, dedicando-se também ao estudo do perfil delinquente. Tornou-se prestigiado na sua época pelas suas pesquisas, embora atualmente sejam consideradas absurdas e discriminatórias. O núcleo da sua pesquisa consistia na ideia do criminoso nato: determinadas pessoas nasciam com preponderância genética – atavismo – para a prática de determinados delitos. Assim, pessoas com determinadas características físicas, como formato de orelhas, queixo largo e proeminente, o tamanho do nariz, poderiam carregar afinidade para determinado crime. Determinou a loucura moral, para aquelas pessoas física e mentalmente saudáveis, porém deficientes de qualquer senso moral. 13 A ciência de então estava em estágio nascente e maturando seus métodos de verificação e controle, então seus dados estavam sujeitos a diversos vieses cognitivos, como o viés de confirmação e a validação positiva, mas não pode ser completamente excluída do contexto dos estudos criminais, porquanto trouxe para o centro da análise o ser humano. Um de seus alunos era Enrico Ferri, responsável pelo desenvolvimento da sociologia criminal, trazendo em sua tese a ruptura com o pensamento da Escola Clássica, contra-argumentando absolutamente o livre arbítrio do ser humano e centralizando os fatores acerca do fenômeno criminológico em torno da antropologia e da sociologia. O principal legado de suas pesquisas é o atributo da pena de ressocialização do criminoso, além da punição. Por entender que cada delinquente corresponderia a um perfil distinto, defendia a multiplicidade de métodos sancionatórios e reparatórios. No aspecto humanista, alegara que a pena deveria ser colmatada ao delinquente, visando à ressocialização. Dentre os legados ensinados por Lombroso, Enrico Ferri trazia consigo ainda o conceito do criminoso nato e do criminoso louco, além de conceitos consolidados como criminoso habitual, ocasional e passional. Distintamente, Garófalo bebeu da fonte das pesquisas de Charles Darwin, desenvolvendo a noção de crime natural, cujo cerne era uma conduta punível em todas as sociedades humanas. Distanciando do pensamento majoritário na corrente positivista, entendia que a penalidade tinha que extirpar o criminoso da sociedade. Por fim, a Escola Positivista expõe em si a caracterização da tendência da época sobre as ciências. Entre suas principais características como forma de pensamento acerca do estudo penal, consolidaram-se o afastamento do livre arbítrio como fator preponderante da conduta criminosa, focando-se nos aspectos psíquicos, biológicos e sociais do agente; o papel individual e ressocializador da sanção culminada; e o enquadramento do delinquente como disfuncional psíquica e socialmente. Contribuiu pela abertura da discussão sobre a ressocialização do criminoso e sobre a mente e o comportamento humano. 2.4 Escola Humanista Consiste em uma escola eclética, conciliando distintas correntes filosóficas, inaugurada por Vicente Laza, em 1905. Para este pensador, o homem é a figura central da moralidade, sendo inconcebíveis noções abstratas sobre ética; e, assim, os homens tornam-se controlados por emoções e não construções ideológicas. Traz para a sanção, o aspecto educativo conforme construída pelas famílias, pondo as instituições do Estado como alicerces da moral. 14 Nesse sentido, condutas eventualmente tipificadas pela lei, que poderiam não ser consideradas violadoras da moral e dos sentimentos deveriam ser abolidas. Estas, são antes de tudo, crimes artificiais. A Escola Humanista tinha como fim o axioma de que o homem saudável física e mentalmente seria presumivelmente passivo de correção moral. 2.5 Escola Crítica É considerada como a primeira escola eclética, dita desta maneira por não propor uma forma distinta e autêntica de pensar como foi da Escola Clássica para a Escola Positiva, mas sim por mesclar distintas pesquisas e vias filosóficas. Surge em 1891 pelos estudos de Manuel Carnevale, propondo uma corrente mista entre as duas escolas mencionadas. A Escola Crítica, também chamada de Terceira Escola Italiana, nega a noção de livre arbítrio do agente, tal qual a Escola Positivista, mas advoga pela responsabilidade individual e moral dos agentes, tal qual o pensamento clássico. Ademais, propunha o estudo científico do criminoso e do delito, embora contrarie a sociologia criminal no todo. No todo, uma das inovações trazidas pelo pensamento eclético fora a distinção clara entre imputáveis e inimputáveis e os efeitos da culpabilidade sobre ambos. Quanto ao caráter da punição, amolda-se ao pensamento positivista. 2.6 Escola Moderna Alemã Nasceu como posicionamento contrário ao Modelo Positivo, recebendo ainda as denominações de Escola Moderna, Escola Sociológica e Escola da Política Criminal. Iniciou-se com as proposituras de Franz von Liszt, em 1881. Liszt foi aluno de Rudolf von Ihering, jurista alemão famoso, dentre muitas obras, pelo livro A Luta pelo Direito, de 1872. Para Liszt, o crime tem sua gênese no comportamento individual do agente e nas condições alheias ao indivíduo, como os fatores sociais. Vê-se aqui o ecletismo entre os pensamentos da Escola Clássica e da Positiva. Propunha, ao fim, a construção da ciência criminal, estipulando a composição dos estudos acerca do crime, da pena e das pesquisas históricas, com o fim de elaborar uma política criminal, calcada no empirismo do que fora coligido com as ciências. Das contribuições alcançadas por essa corrente, destacam-se a discriminação da sanção direcionada aos menores infratores, necessitando de enclausuramento distinto das dos adultos; o livramento condicional e medidas de alternância da pena, como a suspensão condicional processual. 15 2.7 Escola Técnico-Jurídica Escola iniciada com os estudos do alemão Karl Binding e do italiano Arturo Rocco, no começo do século XX. Rocco alegava que a Escola Positiva prestigiou as ciências como a sociologia e antropologia, em detrimento das ciências penais. Propunha, assim, o retorno ao estudo do direito penal isoladamente considerado, abrindo mão do suporte das demais ciências. O sistema penal deve ser construído como dogmas a partirdo estudo das normas jurídicas, possibilitando entender todo o fenômeno consonante ao delito, ao criminoso e à punição. 2.8 Nova Defesa Social A ideologia da nova defesa social é consequência da fase técnico-jurídica, sendo maturada após a 2ª Guerra Mundial, baseando-se no aspecto humanista pelo que foi constatado do aprisionamento causado pelos regimes encadeados na Itália e Alemanha. Destacou-se nesse período o jurista Filippo Gramatica, sendo o defensor da ala mais radical da defesa social, envolvendo até a possibilidade de abolição do direito penal. É perceptível, assim, como foi o estigma do poder repressivo das autoridades estatais após os horrores desencadeados no curso da 2ª Grande Guerra. Porém, a corrente da defesa social que prosperou foi uma mais moderada, tendo como protagonista Marc Ancel, que alegava reestruturar o sistema processual penal e manter o Estado Democrático de Direito. Entendia, sobretudo, que a contenção da criminalidade deveria ser ampla política e juridicamente, sendo o direito penal uma das alternativas. 16 3 ASPECTOS GERAIS DO DIREITO PENAL O direito penal é costumeiramente entendido como o conjunto das normas de um ordenamento jurídico que visam a resguardar bens jurídicos tutelados em virtude de práticas previstas como delitivas. Em si, o direito é indivisível, sendo um sistema atuante em diversos aspectos da sociedade e das relações jurídicas intrínsecas a esta; uma das relações jurídicas se dá em virtude do dano e da ilicitude resultantes do fenômeno criminoso. Para lidar com isso, faz-se salutar normas que protejam a vítima ou busquem repará-la da violência, que tutele a proteção do criminoso, resguarde seu enclausuramento da sociedade, como medida repressiva e educativa, e para buscar equilíbrio e justiça na aplicação das sanções, uma vez que é entendido que o criminoso não abdicou da cidadania e do pacto social. Segundo Ricardo Andreucci (2018) […] cumpre ao direito penal selecionar as condutas humanas consideradas lesivas à coletividade, transformando-as em modelos de comportamento proibido, denominados crimes, e estabelecendo punições para quem os infringir, chamadas sanções penais. Ademais, Cleber Masson (2019) estatui que há uma singela distinção entre direito penal e direito criminal. O primeiro deveria ser um ramo do direito atrelado aos efeitos jurídicos em torno da pena; enquanto o direito criminal, de aspecto mais amplo, fundamentar-se-ia em torno do delito tipificado. Há, no entanto, uma estreita relação jurídica entre o fenômeno do crime e a consequência penal, tornado oportuno o uso de direito penal, escolha adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, tanto pela nomenclatura do código penal, quanto pela competência legislativa plasmada na Constituição Federal de 1988. Os ramos mais modernos e humanistas entendem que o direito penal deveria ser a ultima ratio contra a criminalidade, e pressupondo um país desenvolvido, haveria outros métodos e políticas capazes de frear o avanço dos delitos. Conforme já visto, há uma forte tendência do direito positivado em ser uma medida de pacificação social, uma função repressiva contra o crime, diferenciando-se dos demais ramos do direito, que tendem à resolução de conflitos por medidas pecuniárias e negociações. É, nesse contexto, um ramo do direito público, uma vez que demanda atuação premente das instituições e autoridades criminais, substituindo o polo privado da vítima, na maioria dos casos, mas não exclusivamente. Seu proceder não exclui a participação de outras normas de direito privado, já que o dano decorrente da conduta criminosa não exclui a possibilidade de a vítima de requerer o ressarcimento de dano material e patrimonial decorrente do crime, e comunica-se também com ramos de outras atividades públicas, como o direito tributário e sanções disciplinares sobre funcionários públicos civis e militares. As normas penais são dividias em duas categorizações. A primeira consiste no conjunto de normas que descreve as condutas delitivas (direito penal substantivo) e as normas procedimentais (direito penal adjetivo), atinentes ao processo e à execução 17 da pena, inclusive institutos jurídicos correlatos e periféricos no tocante ao crime, à pena, à gestão do confinamento do criminoso, e às medidas reeducadoras. No que diz respeito às ciências aplicáveis ao direito penal, no Brasil contemporâneo, a sociedade tem mais contato com a parte prática e acessória à condução do inquérito policial e do processo penal. Nesse sentido, a população tem mais noção sobre a atuação do médico legista e dos peritos redigindo laudos e relatórios para instrução dos tramites penais; pouco se tem contato ou noção com a pesquisa realizada pelos acadêmicos no sentido de aprimorar as políticas penais e criminais do país, na compreensão da contenção e repressão ao crime. Esse peculiar aspecto é motivo de discussão inclusive pelos cortes de verbas educacionais de pesquisa no ensino superior, iniciadas em 2015, e aprofundadas em 2019 de maneira mais clara, desencadeando greve por iniciativa dos pesquisadores do ensino superior de instituições públicas ou financiadas pelo erário. Ademais, institutos de criminalísticas fazem parte predominantemente do poder público estadual, significando que cada Estado do país pode direcionar medidas de gestão em sentido distintos ou com qualidades distintas. Para compreender esses serviços atinentes à política criminal e penal do país, há de se considerar uma medicina forense estadual e não a medicina forense do Brasil. Frente a essa ponderação, são ciências atreladas ao direito penal a medicina forense; a psiquiatria forense; criminalística; a criminologia e a sociologia, com as ferramentas de pesquisas e estudos da área, como a estatística. Tornam-se, por fim, instrumentos para a elaboração da doutrina penal por parte dos juristas. Dando ensejo às normativas dispostas na Carta Magna, as normas infraconstitucionais necessitam solidificar o alicerce de conteúdos programáticos e valores de estatura constitucional. Um processo penal adequado e justo deve cumprir os princípios e garantias fundamentais plasmados na Carta Constitucional, por meio da Lei Penal, da Novel Processual Penal e da Lei de Execução Penal. Uma vez respeitados, não são apenas as garantias dos cidadãos que foram defendidas, mas sim a saúde institucional dos entes públicos. Para alcançar tais finalidades, torna-se necessário compreender as fontes e alguns princípios essenciais ao direito penal. 3.1 Fontes do direito penal e sua relação com os princípios penais A conceituação de fontes no direito costuma ser dividida em fontes materiais e fontes formais. O orçamento das universidades e institutos federais desde 2000. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2019/05/08/O-or%C3%A7amento-das-universidades-e- institutos-federais-desde-2000. Acesso em: 27 set. 2019. 18 São compreendidas como fontes materiais as que dizem respeito à criação de normas do direito penal; acerca das fontes formais, são as que constroem e mantêm o direito penal, aplicadas na cognição e execução processuais. Fonte material consiste na figura do Estado, que possui a competência legislativa, por intermédio da ação do Poder Legislativo, para criar normas penais. No ordenamento jurídico brasileiro, a Carta Republicana incumbe a União como o ente competente para legislar sobre direito penal (Art. 22, I). De maneira excepcional, o parágrafo único do Art. 22, prescreve a possibilidade de Estados disciplinarem matéria atinente ao direito penal, quando autorizados nos termos de uma lei complementar. Cumpre mencionar, ainda, que a Carta Magna proíbe a edição de medidas provisórias acerca de matérias penais, processuais penais e processuais civis, já que no tocante à garantia e liberdade do povo, opoder constituído adequado para disciplinar a matéria deve ser o Legislativo, composto por representantes eleitos pelo povo; a norma constitucional do Art. 62, §1º, I, “b”, é uma medida de controle contra eventuais excessos cometidos pelo Chefe do Executivo, que hipoteticamente poderia criar tipos penais aleatórios a seu bel prazer, possibilitando colocar em crise as instituições e cometer violações aos direitos dos cidadãos. As fontes formais são perscrutadas como imediata e mediata. A fonte formal imediata é a própria lei penal, consistindo em lei penal incriminadora aquela que tipifica condutas e prevê a sanção respectiva; e em lei penal não incriminadora, ou em sentido amplo, as demais normas que repercutem na esfera penal. As normas que discriminam as condutas criminosas podem ser gerais ou especiais. O código penal, decreto-lei n.º 2.848/1940, é uma norma geral penal, não excluindo a possibilidade de outras leis elencarem outros crimes. Assim, a lei n.º 8.666/1993, que disciplina o processo licitatório para a aquisição de bens e serviços para o poder público, elenca uma série de crimes que podem ser cometidos na constância do certame licitatório. Trata-se, assim, de uma lei penal especial. Dentro das normas não incriminadoras, podem ser consideradas como permissivas as que trabalharem com política acerca de atipicidade e exclusão de ilicitude, e como explicativas normas alheias ao direito penal, mas explicativas acerca de um elemento informativo necessário para a interpretação e aplicação do tipo penal. Assim, se comercializar substância química não autorizada configurar crime, faz-se necessária alguma norma emitida por órgão público de saúde mencionando quais são as substâncias que se adequam às demais normas de saúde e segurança, ou quais são aquelas que não podem ser comercializadas. A norma penal em branco pode fazer referência até mesmo a outro dispositivo do mesmo diploma legal: PENAL. CRIME LICITATÓRIO. DEPUTADO FEDERAL. ARTIGO 89 DA LEI 8.666/93, SEGUNDA PARTE. FORMALIDADES. DESCUMPRIMENTO. TIPICIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. DENÚNCIA NÃO RECEBIDA. 19 1. O artigo 89, segunda parte, da Lei 8.666/1993, é norma penal em branco, a qual, quanto às formalidades a que alude, é complementada pelo art. 26 da mesma Lei. 2. O delito em questão tutela bem jurídico voltado aos princípios da administração pública (CF, artigo 37). O descumprimento das formalidades só tem pertinência à repressão penal quando involucrado com a violação substantiva àqueles princípios. 3. No caso, as justificativas do preço, da escolha do fornecedor e a ratificação do procedimento atenderam às formalidades legais, no que diz com perspectiva do denunciado. Conduta do gestor lastreada em Pareceres Técnicos e Jurídicos razoavelmente justificados, e não identificados conluio ou concertamento fraudulento entre o acusado os pareceristas, nem intenção de fraudar o erário ou de enriquecimento ilícito. 4. Ausência constatável ictu oculi de indícios mínimos de tipicidade objetiva e subjetiva, a inviabilizar um prognóstico fiável de confirmação da hipótese acusatória. Denúncia não recebida. (STF – Inquérito n.º 3962 – DF. 1ª Turma. Min. Relatora: Rosa Weber. Data de julgamento: 20/02/2018. Publicação em: 12/09/2018). A imprecisão na capitulação do delito na composição da denúncia criminal acarreta inépcia: AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ART. 1.º, I, DA LEI N. 8.176/1991. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. LEI PENAL EM BRANCO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. RECONHECIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Em casos análogos, essa Corte Superior de Justiça entendeu que o “texto do inciso I do artigo 1º da Lei n.º 8.176/1991 revela uma norma penal em branco, que exige complementação por meio de ato regulador, devendo a inicial acusatória expressamente mencionar o ato regulatório extrapenal destinado à concreta tipificação do ato praticado, sob pena de inépcia formal da denúncia.” (HC 350.973/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 19/08/2016). 2. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no HC n.º 249472 – MG. 5ª Turma. Min. Relator: Joel Ilan Paciornik. Data de julgamento: 21/11/2017. Publicação em: 30/11/2017). Até como medida de defesa do cidadão, sujeito à presunção de inocência, faz- se salutar que seja acusado com base em uma tipificação detalhada e balizada, sendo cediço no Superior Tribunal de Justiça o conhecimento da inépcia de denúncia pela falta de indicação da norma complementar ou regulamentar do tipo penal (STJ – RHC n.º 58.688 – ES. 6ª Turma. Min. Relator: Nefi Cordeiro. Data do julgamento: 07/06/2016. Publicação em: 17/06/2016). Considerada as distinções entre normas penais, há de ser analisada a possibilidade de haver uma lacuna do direito em virtude da falta de norma. Para coibir tal deficiência jurídica, o ordenamento jurídico brasileiro prescreveu os instrumentos de integração da lei, que são elencadas pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), o decreto-lei n.º 4.657/1942, como: analogia, costumes e princípios 20 gerais de direito. Convém que sejam aplicadas exatamente na ordem mostrada, em consonância com o Art. 4º referida norma. Não obstante, os costumes e princípios gerais de direito constituem as fontes formais mediatas do direito penal. Servem de alicerce na construção da cognição penal mais ampla. Os costumes são práticas realizadas pelas pessoas, entendendo aquelas como necessárias e válidas no cotidiano, sem necessitar de previsão normativa. Nesse sentido se organizam as filas de banco, e também são toleradas festas tradicionais religiosas e procissões em cidades pequenas. Podem, no entanto, ser em harmonia com a lei (secundum legem), em contrariedade (contra legem), ou ainda além da norma (praeter legem). São em absoluto o termômetro social acerca dos crimes que merecem mais repressão ou que podem deixar de ser crimes. Dá-se, por exemplo, na tolerância que a sociedade mantém acerca de uma conduta considerada típica; demandando, nesse sentido, que haja a abolição do tipo penal tolerado. Foi o fenômeno que ocorreu ao excluir o adultério do código penal, revogado pela lei n.º 11.106/2005. Entendeu-se que o adultério deve ser resolvido na seara privada do direito. Vê-se que há tendências de mudança de mentalidade acerca de determinado hábito ou conduta. Ainda acerca da questão do adultério, está em curso no Supremo Tribunal Federal a possibilidade de amante, que manteve vínculo afetivo por um longo período, poder ser beneficiário de pensão decorrente de vínculo estatutário de agente público ou de beneficiário previdenciário geral, conforme os REs n.º 1045273 – SE e o n.º 883.168 – SC (SILVA, 2019). Porém, no tempo em que o tipo penal adultério permaneceu no código penal, significara que consistia em crime. Desta feita, cumpre lembrar que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manifestou-se sobre o costume não poder revogar lei, ao tratar da pirataria de mídias físicas, prática bastante tolerada pela sociedade por causa do baixo preço da oferta (TJ-SP Apelação n.º 0006863-53.2013.8.26.0248. 3ª Câmara de Direito Criminal. Des. Relator: Cesar Augusto Andrade de Castro. Data do julgamento: 10/09/2018. Publicação em: 18/09/2018). Ademais, os costumes são constitutivos das práticas mercantis habituais, havendo o entendimento de que a exigência de atos contraditórios aos costumes negociais constituirá prática abusiva ao consumidor (TJ-RJ Apelação n.º 0011376- 07.2012.8.19.0212. 23ª Câmara Cível. Des. Relator: Alcides da Fonseca Neto. Data do julgamento: 16/01/2014. Publicação em: 16/01/2014). No que tange à prática penal, os costumes e os princípios éticos estão envolvidos com polêmicas à medida que a sociedade tende a lidar com determinados conflitos, nesse sentido são as constantes movimentações acerca da descriminalização do aborto ou do consumo pessoal de entorpecentes,com acirramento do ânimo político por todo país. Acerca do consumo de substâncias ilícitas, é defendido que houve o aumento de presos de maneira exponencial nas últimas décadas, e muitas das vezes se tornou o norte da atuação das autoridades policiais, deixando em segundo plano delitos de 21 maior gravidade, como o homicídio e o roubo. Por fim, alegam que há excesso de aprisionamento de consumidores enquanto traficantes ficam em segundo plano. Ademais, é entendido que no direito penal não se pune a autolesão, que é o caso do consumo de substâncias nocivas. Mais delicado é discutir o aborto, não resvalando somente nos costumes, mas atrelado a questões filosóficas, sobre a origem da vida em forma de vida complexa como a humana, ou religiosas, sobre haver uma possibilidade de realização de eugenia e a banalização de homicídios, referendada pelas instituições. Positiva e negativamente, as normas de integração do direito são meios de lapidar o direito penal, com todos os tropeços e acertos. Por fim, os princípios gerais do direito são os entendidos de maneira mais ampla, as bases e pressupostos éticos de uma sociedade em determinado período histórico, correlatos ao penal, que possam ser emprestados de outras esferas do direito, ou até mesmo do direito constitucional, que não se constrói unicamente de princípios penais. Nesse contexto, o clamor popular mobiliza o endurecimento de penas e a inserção de novas condutas típicas às leis penais. Acerca do princípio no sistema jurídico, a razoável duração do processo é aplicável aos processos judiciais e administrativos, e pode ser trazido ao direito processual penal, na garantia de manutenção da presunção de inocência; pois, uma vez que estando o réu preso e o processo dura um razoável tempo, ele já esteve cumprindo a pena sem nem ainda ter sido condenado em sentença judicial proferida pela autoridade competente. Deve ser, no entanto, ponderado acerca da complexidade do decurso dos expedientes judiciais: Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO PELO CONCURSO DE AGENTES, EMPREGO DE ARMA E RESTRIÇÃO DA LIBERDADE DA VÍTIMA (ART. 157, § 2º, INCISOS I, II, E V, DO CÓDIGO PENAL). PRISÃO PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é no sentido de que a razoável duração do processo deve ser aferida à luz da complexidade da causa, da atuação das partes e do Estado-Juiz. Ação penal que tem tramitado de maneira regular, se consideradas as peculiaridades da causa, em especial a pluralidade de réus e a necessidade de expedição de precatórias, circunstâncias que tornam razoável a dilação do prazo para o término da persecução criminal. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF – HC n.º 158.501 AgR – SP. 1ª Turma. Min. Relator: Alexandre de Moraes. Data de julgamento: 31/08/2018. Publicação em: 17/09/2018). STF - ADPF nº 54 – DF. Tribunal Pleno. Min. Relator: Marco Aurélio. Data de julgamento: 12 abr. 2012. Publicação em: 30 abr. 2013. 22 Presume-se, portanto, que os princípios não ficam estáticos como regras a serem repetidas pelas normas hierarquicamente inferiores, mas sim comandos a serem aplicados e garantidos na interpretação da norma. Resta, no entanto, entender por que a analogia não é considerada fonte formal mediata do direito penal. Ocorre que a analogia é aplicar uma norma a uma situação similar em características ou requisitos, e na seara do direito penal haveria um frontal desrespeito aos postulados da legalidade e do devido processo legal, além da possibilidade de se inferir como inválido o princípio da individuação da pena. A título de exemplo, vê-se a elasticidade do poder da autoridade judicial de aplicar majoração da pena ou qualificação do delito conforme for conveniente: PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DANO PRATICADO CONTRA O PATRIMÔNIO DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. QUALIFICADORA. NÃO INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL EXPRESSA. ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. IMPOSSIBILIDADE. 1. Conferir interpretação extensiva ao art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, de modo a considerar qualificado o crime de dano praticado contra empresa pública, ante a falta de menção expressa do texto da norma vigente à época dos fatos (antes da vigência da Lei n.º 13.531/2017), configura analogia prejudicial ao réu, não admitida no âmbito do direito penal. Precedente. 2. Na hipótese, a conduta deve ser desclassificada para o crime de dano simples e, consequentemente, restabelecida a sentença que rejeitou a denúncia e extinguiu a punibilidade. 3. Recurso especial provido. (STJ – REsp nº 1.683.732 – SP. 6ª Turma. Min. Relator: Antonio Saldanha Palheiro. Data de julgamento: 25/09/2018. Publicação em: 03/12/2018). A analogia abarcada ao direito penal acarretaria mais danos do que resguardo de direitos e garantias fundamentais – analogia in malam partem. Nesse sentido, a ausência de previsão expressa de litigância de má-fé no Código de Processo Penal, torna descabida a imposição de multa (STJ – HC n.º 452.713 – PR. 6ª Turma. Min. Relatora: Laurita Vaz. Data de julgamento: 25/09/2018. Publicação em: 11/10/2018). Em contrapartida, a analogia in bonam partem é amplamente referendada pelas cortes de justiça e, a depender do contexto, contribuir para políticas criminais como a reeducação do apenado: EXECUÇÃO PENAL. APROVAÇÃO NO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. VALORAÇÃO DOS ESTUDOS REALIZADOS POR CONTA PRÓPRIA. CABIMENTO. 1. O c. Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de admitir a possibilidade de abreviação da reprimenda em razão de atividades que não estejam expressas no art. 126 da LEP, como resultado de uma interpretação analógica in bonam partem da norma inserta na Recomendação n.º 44/2013 do CNJ - que indica aos Tribunais a possibilidade de remição por aprovação nos exames nacionais que 23 certificam a conclusão do ensino fundamental Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou médio Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). 2. Outrossim, ao se interpretar a remição pela leitura e/ou estudo sob a égide constitucional, vemos que tanto o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os objetivos fundamentais da Constituição Federal que é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização (art. 3º I e III) alicerçam a compreensão no sentido da possibilidade de aplicação analógica in bonam partem do artigo 1º, IV, da recomendação 44/2013 do CNJ para as situações nas quais o reeducando por conta própria realiza estudos, durante o cumprimento da pena, notadamente se esse reeducado se submete a exame nacional e logra êxito. 3. Ademais, é sabido que o ENEM tem como fator primordial não a conclusão do ensino médio, mas sim a viabilização do ingresso do aprovado em universidades públicas ou particulares através de concessão de bolsa de estudos total ou parcial. Assim, o fato de o reeducando já ter concluído o ensino médio antes do início do cumprimento da pena se mostra irrelevante para fins de aproveitamento dos estudos realizados durante o encarceramento. 4. Agravo conhecido e provido. (TJDFT - Acórdão 0007392-92.2018.8.07.0000. 1ª Turma Criminal. Des. Relator: J. J. Costa Carvalho. Data de julgamento: 24/01/2019. Publicação em: 12/02/2019) (destaque). Pela decisão supra, vê-se que por meio da analogia beneficiária, foi referendado a possibilidade de reinserção social do preso e prestigiada a dignidade da pessoa humana. Em entendimento similar, o TJ-SP acolheu pedido para conceder prisão domiciliar a gestante submetida ao regime semiaberto (TJ-SP – HC n.º 2139553- 04.2018.8.26.000 – 15ª Câmara de Direito Criminal. Des. Relator: Cláudio Marques. Data do julgamento: 12/09/2018. Publicaçãoem: 13/09/2018). A Lei de Execuções Penais admitia a prisão domiciliar da gestante que estivesse cumprimento a pena no regime aberto, em seu Art. 117, caput. Diferentemente, os costumes e os princípios gerais de direito podem atuar antecipadamente à lei, possibilitando a amplitude ou limitação de institutos penais, a severidade ou atenuação de sanções, a rigor a partir de uma lei em vigor. Concomitantemente, ao serem aplicados para sanar uma deficiência da norma, são menos passíveis de acarretar prejuízos ao processo e seus princípios fundamentais, e ao réu. Excepcionalmente, a analogia poderá ser admitida em benefício do réu (STJ – RHC n.º 57544 – SP. 5ª Turma. Min. Relator: Leopoldo de Arruda Raposo. Data do julgamento: 06/08/2015. Publicação em: 18/08/2015). Permite-nos inferir que o réu não pode ser prejudicado pela atecnia legislativa: se nem o legislador foi capaz de descrever uma conduta com precisão, fornecendo requisitos claros para majoração de pena, o réu não poderá estar sujeito a ser severamente punido em razão dessa imprecisão. Antes de ser admitir a analogia, é resguardar o réu, ainda protegido pela presunção de inocência. 24 Todavia, no curso da atividade judicial, faz-se necessário cuidado para não haver atuação ilegítima frente à competência de outro poder, não podendo o Judiciário pautar a atividade administrativa (STJ – AgRg na SLS n.º 1427 – CE. Corte Especial. Min. Relator: Ari Pargendler. Data do julgamento: 05/12/2011. Publicação em: 29/02/2012). 25 REFERÊNCIAS ANDREUCCI, R. A. Manual de Direito Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. FABRETTI, H. B.; SMANIO, G. P. Direito penal: parte geral. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2019. HEYES, C. Where do mirror neurons come from? Neuroscience & Biobehavioral Reviews. vol. 34, n. 4, p. 575-583, 2010. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0149763409001730?via%3Dihub. Acesso em: 27 set. 2019. MASSON, C. Direito penal: parte geral. vol. 1, 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019. NUNES DIAS, C. Estado e PCC em meio as tramas do poder arbitrário nas prisões. Tempo Social, vol. 23, n. 2, p. 213-233, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v23n2/v23n2a09.pdf. Acesso em: 6 jun. 2012. SILVA, R. B. T. da. Previdência para amantes em pauta no STF [internet]. Migalhas, 24 jun. 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI304848, 11049-Previdencia+para+amantes+em+pauta+no+STF. Acesso em: 27 set. 2019.
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