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Autoras: Prof. Cielo G. Festino Profa. Marilia Fatima de Oliveira Literaturas de Língua Inglesa: Prosa Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Professoras conteudistas: Cielo G. Festino / Marilia Fatima de Oliveira Cielo G. Festino Possui pós‑doutorado na área de ensino de literaturas estrangeiras pela Universidade de São Paulo/Fapesp (2007‑2009) e pós‑doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010‑2012) na área de narrativas pós‑coloniais. Possui doutorado em Língua e Literatura em Inglês pela Universidade de São Paulo (2005), mestrado em Língua e Literatura Inglesa pela Universidade de São Paulo (2000) e graduação em inglês pelo Instituto Nacional Del Professorado Joaquín V. Gonzalez (1983). Atualmente é professora titular da Universidade Paulista. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas de Língua Inglesa, atuando principalmente nos seguintes temas: literaturas de língua inglesa, com ênfase na literatura pós‑colonial e ensino de literaturas estrangeiras. Marilia Fatima de Oliveira Professora de Literatura Inglesa na Universidade Federal do Tocantins. É doutora (2013) e mestre (2008) em Literatura Inglesa pela Universidade de São Paulo. Graduada com dupla Habilitação (Português e Inglês) pela Universidade de São Paulo (2003). Licenciada em Inglês (2005) e Português (2004) pela Universidade de São Paulo. Coordenadora Adjunta do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) para o estado do Tocantins (2014 e 2015 – Formação de Professores). Pesquisa: Literaturas (pós) coloniais, Africanas de Língua Inglesa, das diásporas, do exílio. Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F418l Festino, Cielo Griselda. Literaturas de Língua Inglesa: prosa. / Cielo Griselda Festino, Marilia Fátima de Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 160 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2‑097/16, ISSN 1517‑9230. 1. Literatura. 2. Língua Inglesa. 3. Prosa. I. Oliveira, Marilia Fátima de. II. Título. CDU 802.0 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Rose Castilho Giovanna Oliveira Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Sumário Literaturas de Língua Inglesa: Prosa APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 O ROMANCE E O CONTO NA TRADIÇÃO INGLESA ............................................................................. 15 1.1 A ascensão do gênero romance ..................................................................................................... 15 1.2 O romance vitoriano ........................................................................................................................... 17 2 O ROMANCE DO MODERNISMO NA TRADIÇÃO INGLESA .............................................................. 24 2.1 A entre guerra: tornar novo ............................................................................................................. 24 2.2 Os romancistas do Modernismo na Grã‑Bretanha ................................................................. 26 3 A FICÇÃO NORTE‑AMERICANA .................................................................................................................. 31 3.1 Da paisagem europeia à paisagem norte‑americana............................................................ 33 3.2 O “romance” norte‑americano: a primeira metade do século XIX ................................... 33 3.3 O realismo norte‑americano: segunda metade do século XIX .......................................... 37 3.4 O romance de crítica e resistência ................................................................................................ 38 3.5 Os romancistas cosmopolitas .......................................................................................................... 40 3.6 O naturalismo norte‑americano: uma crítica social .............................................................. 41 3.7 Narrativas femininas: outras vozes, outras regiões ................................................................ 42 3.8 O romance do Modernismo norte‑americano ......................................................................... 43 3.9 As narrativas de crítica social: o romance engajado ............................................................. 48 3.10 Os prosistas da década de 1940................................................................................................... 50 3.11 Os prosistas da década de 1950 ................................................................................................... 51 3.12 Escritores judeu‑americanos ......................................................................................................... 51 3.13 As narrativas das décadas de 1960 e 1970 ............................................................................. 52 4 A LITERATURA AFRO‑AMERICANA ........................................................................................................... 52 4.1 Escritores afro‑americanos da década de 1950 ...................................................................... 53 4.2 O Modernismo na literatura afro‑americana ........................................................................... 54 Unidade II 5 A PROSA NO CANADÁ ................................................................................................................................... 59 5.1 A formação de uma tradição ........................................................................................................... 59 5.2 As primeiras narrativas em prosa .................................................................................................. 61 5.3 As primeiras narrativas ficcionais .................................................................................................. 64 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 5.4 A ficção canadense do Moderismo ............................................................................................... 68 5.5 Os grandes nomes da ficção canadense .....................................................................................68 5.6 Escritores da diáspora ou “canadenses” por opção ................................................................ 74 6 A PROSA NA ÍNDIA ......................................................................................................................................... 84 6.1 A indigenização do gênero romance na Índia .......................................................................... 84 6.2 O hibridismo como tropo narrativo .............................................................................................. 88 6.3 A nação indiana através da metáfora .......................................................................................... 92 6.4 O passado histórico como metáfora ............................................................................................ 93 6.5 Entre o vilarejo e a violência comunalista ................................................................................. 94 7 A PROSA NA ÁFRICA ....................................................................................................................................103 7.1 Mercantilização e colonização da África ..................................................................................103 7.2 Ficção africana ....................................................................................................................................105 7.3 As primeiras narrativas ....................................................................................................................111 7.4 Nigéria ....................................................................................................................................................123 8 A PROSA NO CARIBE....................................................................................................................................129 7 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 APRESENTAÇÃO Caros alunos, esta disciplina tem foco nas diferentes manifestações poéticas em língua inglesa das diferentes culturas onde a língua inglesa é falada. Seu objetivo principal é levar o aluno a refletir criticamente sobre os aspectos literários e linguísticos relevantes das culturas de língua inglesa, por meio de suas obras literárias de maior relevância, considerando a maneira como se relacionam com os diferentes períodos históricos e, principalmente, o que como elas significam no contexto brasileiro. Logo, seus objetivos específicos são possibilitar a construção de relações sincrônicas e diacrônicas entre os diferentes aspectos da formação literária em língua inglesa, capacitando o aluno para uma prática docente crítica da língua e literatura inglesa melhor orientada em suas inter‑relações com a cultura de origem. Finalmente, visa propiciar‑lhe os instrumentos teóricos e práticos necessários, tanto de Crítica e Teoria Literária como de aspectos da tradição inglesa em particular, para desenvolver estratégias de interpretação literárias e culturais, levando em conta a relação entre discurso, texto e contexto nas literaturas de língua inglesa com a cultura brasileira. INTRODUÇÃO A Literatura Inglesa Hall (1998) aponta que todas as nações são formadas por culturas separadas, que são unificadas por um longo processo de conquista violenta, ou seja, pela supressão da diferença cultural, como é o caso da Grã‑Bretanha, como a historiografia do nome da nação indica. Talvez você já esteja familiarizado com o fato de que Bretanha foi o nome dado pelos romanos ao que consideravam uma província de seu império, incluindo Inglaterra, Gales e Escócia. Logo, a nação passou a se chamar Inglaterra e o termo “Bretanha” foi recuperado em 1601, quando o rei Jaime VI da Escócia se tornou Jaime I de Inglaterra e começou a ser chamado de rei da Grã‑Bretanha. Em 1801 foi formado o Reino Unido da Grã‑Bretanha e Irlanda (que incluía o que hoje é Irlanda do Norte e República da Irlanda, uma de suas mais antigas colônias). Hoje, o termo é aplicado à Inglaterra e à Irlanda do Norte, após a separação da República de Irlanda, em 1922. Ainda durante o reinado da Rainha Vitória, a Grã‑Bretanha passou a ser um império, quando lhe foi anexado o subcontinente indiano, como a sua maior colônia, até 1947, ano de sua independência. Essas mudanças de denominação revelam de que maneira a cultura inglesa, do sul da Inglaterra, através do processo de conquista e aculturação do Outro diferente, se impôs, primeiramente, às outras culturas (romana, céltica, viking e normanda) dentro do território nacional e logo se impôs às culturas das nações colonizadas na Ásia, na África e no Caribe, no seu desejo de unificação e formação de uma identidade e cultura nacional, conforme será discutido posteriormente. Por sua vez, conforme estudaremos, esse processo se reflete nas narrativas literárias dos diferentes períodos e também na maneira como elas têm sido lidas, pelos contemporâneos, pelas gerações 8 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 posteriores e em outras culturas, tal o nosso caso hoje: a maneira como nós, leitores brasileiros, nos relacionamos com essas diferentes tradições literárias. No século XIX, a disciplina se chamou “English Studies”. O primeiro lugar onde foi ensinada foi a Índia, como ferramenta de dominação. Era uma maneira de mostrar aos indianos a superioridade da cultura inglesa e, assim, justificar a sua presença no subcontinente. Logo, na Inglaterra era ensinada às pessoas das classes mais baixas, com o propósito de repassar‑lhes a ideologia das classes dominantes. Isso revela, como podemos perceber, que o discurso da Literatura tem a ver não só com uma prática estética, mas também pedagógica: seu estabelecimento como disciplina de ensino esteve ligado a projetos políticos e sociais com o objetivo de impor uma determinada visão de mundo. Por sua vez, esses textos literários, que formam uma disciplina e, por extensão, uma tradição literária, não geram uma narrativa ininterrupta, mas descontínua, sempre sujeita a mudanças antagônicas, dependendo dos novos valores que diferentes grupos, muitas vezes silenciados ou marginalizados dentro da sociedade, vão tentar impor ao resistir o discurso dominante. Esse processo revela que, mais do que deduzir significados das narrativas literárias, os leitores de uma determinada comunidade saturam os textos de significados, segundo suas agendas políticas (FESTINO, 2008). Já a partir da década de 1960, a disciplina passou a ser problematizada e sofrer resistência por parte daqueles que tinham sido o alvo desse processo de “civilização” através da literatura, tanto dentro como fora das fronteiras nacionais – mulheres, trabalhadores, ex‑colonizados –, criando novas situações de fricção nessa perpétua reescrita da tradição. Essas novas vozes resistiam à tradição literária inglesa como sendo representativa do homem branco e europeu, produzindo uma mudança na consideração da “Literatura Inglesa” de um conceito de literatura nacional única, monolítica, homogênea e universalista a um conceito de literatura multicultural: social, situada e múltipla. Isso se deu por meio da criação de novas literaturas nacionais em inglês, que foram chamadas de “pós‑coloniais”: indiana, africana, caribenha, neozelandesa, canadense, norte‑americana. Por sua vez, esse processo levou a uma reconsideração dos conceitos de literatura, currículo e, por conseguinte, das práticas pedagógicas. O que é a “Literatura Inglesa”, então? São aquelas literaturas escritas em língua inglesa, não somente na Inglaterra, mas em todos aqueles lugares onde a língua tem sido apropriada e que têm dado origem a novas formas da língua inglesa: “english” em vez de “English”, como falam Ashcroft, Griffiths e Tiffin (2001). Por queestudar literaturas estrangeiras de língua inglesa? Em um mundo globalizado como o nosso, o estudo de outras tradições narrativas nos ajuda no processo de familiarização com outras tradições culturais. Dessa maneira, problematizamos estereótipos, encurtamos distâncias e, muito importante, aprendemos a olhar a nossa cultura nacional de uma perspectiva crítica. 9 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 A tradição norte-americana Embora hoje pareça incrível, a primeira literatura pós‑colonial foi a norte‑americana. A nação foi a primeira a desenvolver narrativas alternativas que, por um lado, refletissem suas próprias experiências e, pelo outro, marcassem sua diferença com o Velho Mundo, tanto no que diz respeito à qualidade de suas narrativas quanto à cadência da língua inglesa nesse contexto geográfico e cultural. Como acabamos de ver, não há cultura que não narre as estórias e histórias de sua própria experiência e comunidade. De maneira diferente, através da palavra oral, escrita, pintura, música, dança, representações, objetos etc., todas as comunidades narram suas estórias, no seu desejo de que elas façam sentido para eles mesmos e também para os Outros. Por isso, as narrativas têm valor epistemológico, porque articulam as crenças e valores de uma comunidade, e de comunicação, porque são um dos meios através dos quais a comunidade transmite os seus valores, assim como as suas mudanças, para os membros da própria e das outras comunidades. Essa propensão à narrativa deve‑se ao fato de que, ao impor uma certa ordem ao caos da existência, ela ajuda o ser humano a fazer sentido das suas circunstâncias, encurtando as distancias entre o “ser” e o “conhecer”. É no âmbito das narrativas que o ser humano pode considerar, com certa distância, os problemas que o afligem no seu dia a dia e criar novas narrativas que o ajudem a resolvê‑los. Essa ressignificação se realiza através da imaginação, que, a partir de uma leitura interpretativa dos acontecimentos de uma comunidade (a que se manifesta nos eventos que incluímos ou excluímos da nossa narrativa), relaciona eventos desconectados e fragmentados em um enredo, saturando‑o de significados, e cria crenças, costumes e comportamentos, revelando que todos os valores de uma comunidade não são “dados”, mas construtos. Essas narrativas e crenças, por sua vez, são compartilhadas pelos membros da comunidade, dão origem à identidade individual e coletiva e conferem unidade à comunidade porque, como diz Kearney (2001), nas estórias as pessoas recriam o seu contexto social, histórico e cultural na sua imagem e semelhança. Campbell e Kean (2006) definem essas narrativas como mitos: aquelas estórias que são narradas em uma cultura e servem para explicar complexidades e banir contradições e fazem do mundo um lugar bem mais simples e confortável de ser habitado. Eles explicam, como exemplo, que um dos mitos associados com os Estados Unidos era o de que o território norte‑americano era uma “terra virgem” não habitada. Assim, ela seria livre para ser civilizada e ocupada pelos pioneiros sem levar em conta a população nativa. Muitos desses mitos são centrais na formação da cultura e história de uma nação e são conhecidos como “mitos fundacionais” (HALL, 1998, p. 54‑5): “[...] estórias que localizam a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo ‘real’, mas de um tempo ‘mítico’”. Essas narrativas não são inocentes, mas profundamente ideológicas, no sentido de que afirmam uma determinada visão da nação e do mundo. 10 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 A Declaração da Independência dos Estados Unidos, assinada no dia 4 de Julho de 1776, é uma dessas narrativas fundacionais que mostram como as treze colônias americanas, fundadas pelos emigrantes europeus que vieram para América, se imaginaram como uma nação justa e soberana: “We hold these truths to be self‑evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness” (THE DECLARATION…, [s.d.]). Essas verdades, expressadas na Declaração da Independência, têm a ver com os valores do Iluminismo: o direito à vida, à liberdade e, em particular, a busca pela felicidade. Por um lado, esse documento justificava a separação das colônias norte‑americanas da Grã‑Bretanha. Por outro, como a expressão “a busca pela felicidade” revela, expressava um sonho. Muitos desses colonos tinham deixado a Europa devido a persecuções políticas, sociais e religiosas e a América se apresentava como um lugar ideal, associado com as grandes narrativas europeias. Sir Thomas More (1516) tinha chamado a América de Utopia, em contraponto com a Europa de Henry VII, onde havia persecuções religiosas, fome e desemprego. Utopia era um lugar onde havia liberdade religiosa, a riqueza não era privada, não havia desemprego, nem bebedeiras nas tavernas; o dia de trabalho era de seis horas e as pessoas, homens e mulheres, passavam seu tempo de lazer em palestras sobre cultura grega. Os Puritanos, por outro lado, tinham associado a América com a Terra Prometida, onde poderiam louvar seu Deus em paz e liberdade. Esse sonho sobre a nação americana imaginada foi reafirmado na Constituição dos Estados Unidos de América (1787), cujo Preâmbulo reza: We, the People of the United States, in order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defense, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America (THE DECLARATION..., [s.d.]). Mais uma vez, o texto reafirma os valores do Romantismo europeu, que tinham inspirado a Revolução Americana (1776) e que logo inspirariam a Revolução Francesa (1789). América, o Jardim do Éden, apresentava‑se como o lugar perfeito para fazê‑lo realidade. No entanto, os sonhos, como diz Allen (1972), expressam desejos que talvez nunca possam ser realizados. A frase que abre a Constituição – “We, the People” – mostra como os americanos imaginavam sua sociedade justa e igual para todos. Ela incluía todos os estados da União e estava inspirada nos ideias dos Românticos de igualdade, liberdade e fraternidade. Esse desejo de igualdade se afirmou, em um primeiro momento, através da metáfora do “cadinho de raças”, que implicava que, da heterogeneidade cultural americana, ou seja, da mistura de nativos e imigrantes de todas as nacionalidades, se formaria uma nova raça, a raça americana. Da mesma maneira, essa ideia de igualdade e fraternidade foi reforçada através das comunidades que se estabeleceram na fronteira, a que constantemente se deslocava da costa leste para a costa oeste, 11 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 junto com os colonos que iam estabelecendo novos assentamentos no interior do território. Criou‑se, assim, um novo mito nacional. Na fronteira, longe do mundo conhecido, como aponta Allen (1972), onde o espírito democrático se afirmou desde que as comunidades passaram a existir, antes dos governos, e os homens precisavam se tratar como iguais: eles precisavam se unir para prover suas famílias de tudo o que era essencial para a vida em sociedade: escolas, estradas, água etc. No entanto, toda narrativa tem sua contranarrativa. Tanto a Declaração da Independência dos Estados Unidos como a sua Constituição podem ser interpretadas como “narrativas mestres”, aquelas que se tornam centrais e sagradas dentro de uma comunidadee se impõem sobre outras narrativas da mesma comunidade. Nesse caso, essas narrativas têm esse status porque queriam definir a identidade americana, de maneira que se diferenciasse da europeia: homens e mulheres que, inspirando‑se no espírito da democracia, consideravam‑se cidadãos livres com o direito de procurar seu próprio bem‑estar e não súditos de nenhum rei. Assim, esses documentos focavam esse caráter excepcional que distinguia os Americanos, habitantes do Novo Mundo, de todas as outras nações europeias. Implicitamente, respondiam à pergunta “o que é um americano?” ressaltando, como apontam Campbell e Kean (2006), esse caráter único da experiência americana que lhe conferia um senso coerente de identidade. Essa narrativa nacional tem “essencializado” e “isolado” a identidade, o que se revela no fato de eles se definirem como um “povo escolhido por Deus”, que tem a missão de levar o “modo de vida americano” a todos os cantos do mundo. Logo, essa narrativa mítica dos Estados Unidos adquiriu nova força durante a Guerra Fria, após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, na Guerra do Golfo e na Invasão ao Iraque (CAMPBELL; KEAN, 2006). Por sua vez, essa definição da identidade americana, que ressalta o seu caráter singular, tem sido problematizada no sentido de que, nesse processo de unificação e homogeneização, tem excluído muito do que se consideram experiências centrais da cultura americana. Campbell e Kean (2006) apontam que, ao reduzir a identidade nacional a algumas características singulares, tem sido dado demasiada relevância a alguns grupos e tem se marginalizado alguns outros. Os críticos acrescentam que os Estados Unidos têm se apresentado com uma sociedade sem divisão de classes sociais, na qual há mais consenso do que dissenso, porque os historiadores e críticos culturais têm enfatizado esses aspectos nas suas narrativas, a ponto de torná‑los em novos mitos sobre a cultura americana. Contudo, os Estados Unidos, como qualquer outra nação, também têm divisões de classe, etnia, raça e gênero. Porém, contradições e significados em contraponto têm construído o que hoje é conhecido como “Estados Unidos”. O problema é que, muitas vezes, essa diferença tem sido silenciada através do exercício do poder. A frase inicial do preâmbulo da Constituição Americana, “We, the People”, era não somente de inclusão, mas de exclusão. Ela excluía todos os membros da população negra que, pelo fato de serem escravos, não eram considerados como cidadãos da União. Esse conflito vai levar à Guerra de Secessão (1861‑1865), após a qual vai ser declarada a Abolição da Escravatura, mas não o fim da discriminação racial. 12 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Recentemente, no século XX, com a chegada de novas ondas de imigrantes, após a Primeira (1914‑1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939‑1945), a ideia de América como um “cadinho de raças” foi substituída pela da saladeira: as diferentes comunidades étnicas moram nas mesmas cidades, mas separadas. Um exemplo seriam os bairros da cidade de Nova Iorque: Harlem, habitado por cidadãos negros e, mais recentemente, hispânicos; Chinatown, chineses; Little Italy, italianos, e assim por diante. Por sua vez, esses processos históricos e culturais têm dado lugar a uma tradição literária que, no primeiro momento, pelo fato de ser escrita em inglês, era associada com a literatura inglesa. Logo, quando a língua inglesa foi tomando a cadência do novo continente e as estórias narradas eram marcadas pela sua diferença cultural, surgiu uma nova tradição que deu origem ao cânone americano. No entanto, como é sabido, qualquer cânone literário nacional implica uma política de inclusão e exclusão. Campbell e Kean (2006, p. 4) explicam que qualquer tradição literária nacional favorece alguns textos em detrimento de outros. O cânone literário norte‑americano, como muitos outros, tem sido associado com escritores “brancos e mortos”, porque se pensa que a “essência” do ser americano pode ser “destilada” deles. Assim, têm sido excluídos do cânone escritores e escritoras de diferentes identidades sexual, racial e étnica. Da mesma maneira, alguns gêneros têm sido preferidos a outros: cinema, narrativas policiais etc. Campbell e Kean (2006, p. 4) explicam que uma leitura crítica dessas narrativas precisa se perguntar: “Que Estados Unidos é construído através desses textos?”. Alguns textos têm mais valor do que outros porque são mais complexos ou contêm determinadas peculiaridades ou qualidades de inspiração. No entanto, como apontamos anteriormente, os textos centrais de uma comunidade são aqueles que as pessoas narram umas para as outras para fazer sentido de suas vidas. Dessa ótica, embora algumas narrativas sejam mais convincentes ou profundas do que outras, qualquer texto, canônico ou não, pode ser sujeito à interpretação ou análise. Como apontam Campbell e Kean (2006), novos textos, por sua vez, são criados a partir da interconexão de todas essas narrativas. São justamente os grupos considerados marginais – mulheres, minorias étnicas, comunidade gay – que têm interrogado os sistemas de representação canônica e têm dado voz a grupos com diferentes sistemas de crença. Porém, essa pluralidade cultural não implica colocar no centro grupos marginalizados e excluir grupos que eram antes centrais, mas considerar a maneira como eles se influenciam uns aos outros. Nesse sentido, estudar as diferentes narrativas literárias deveria colaborar para que esses grupos possam se comunicar através da relação e não da oposição. Uma das maneiras de fazê‑lo é considerar e interrogar a relação hierárquica de poder que se estabelece entre todos eles. As literaturas pós-coloniais É preciso fazermos a distinção entre os dois tipos de colônias: as de assentamento e as de conquista. As colônias de assentamento foram aquelas em que os colonos lá foram para se estabelecerem definitivamente, formarem uma nova nação. Os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia foram colônias de assentamento. As colônias de conquista, como África do Sul, Nigéria, Caribe e Índia, entre outras, serviram como locais de extração de riquezas naturais, portos e mão de obra barata para os colonizadores, não havendo intenção de lá se estabelecerem. 13 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 A caraterística distintiva das chamadas “novas literaturas”, ou seja, das literaturas produzidas pelos habitantes das “ex‑colônias de assentamento”, é o desejo de se distinguirem da literatura da metrópole. Apesar de escritas em língua inglesa, elas têm um vasto corpus de histórias literárias, estudos temáticos e estudos críticos que as distinguem da Literatura Inglesa. Conforme acabamos de ver, no caso da literatura norte‑americana, embora ela hoje seja reconhecida como uma literatura canônica, foi, paradoxalmente, como já apontamos, a primeira literatura pós‑colonial. Como observam Ashcroft, Griffiths e Tiffin (2001), a compilação dessas tradições literárias têm ajudado na formação da cultura e da identidade nacionais. Assim, obras como History of Australian Literature (1961) ou A Literary History of Canada: Canadian Literature in English (1988) e as coletâneas, com seu processo de seleção, ajudam a estabelecer uma crítica e um estilo literário identificados com cada uma dessas culturas. No caso das ex‑colônias de conquista, a língua inglesa e suas narrativas foram usadas como armas de conquista. Através da criação de uma elite local que falava a língua inglesa, os britânicos tiveram acesso à cultura das diferentes colônias para melhor as controlar. Uma das maneiras de justificar a presença britânica nesses territórios era propagar a ideia de uma superioridade cultural,repassada aos colonizados através da imposição de sua literatura nacional. Ler Shakespeare implicava, por um lado, apreender a língua inglesa e, pelo outro, ter acesso aos valores de uma cultura que se impunha como superior. Assim, língua e literatura foram cúmplices nesse processo a que os ingleses chamavam de civilizatório, enquanto os colonos o denunciavam como um processo de dominação. Uma das formas de denúncia foi o processo de apropriação da língua inglesa e dos gêneros levados às colônias pelos ingleses, como o romance, a poesia e outras narrativas, muitas vezes subvertendo‑os, formando novas tradições literárias em língua inglesa, cujas temáticas e formas criaram uma literatura conhecida como de resistência. Embora cada uma dessas literaturas tenha suas peculiaridades, há alguns aspectos que são centrais a todas essas tradições literárias pós‑coloniais, desenvolvidas em colônias de conquista e de assentamento. O primeiro é o fato de que os estudos literários dessas tradições têm se desenvolvido, como veremos mais à frente, ao redor de eixos temáticos que revelam o interesse dessas comunidades pelas diferentes conjunturas históricas cujas problemáticas são destacadas na tentativa de imprimir um determinado caráter a essa tradição literária. O segundo aspecto é a relação cultural e literária entre o velho e novo mundo; o terceiro é a relação entre as populações nativas e os colonos brancos. O quarto é a relação entre a linguagem, nesse caso o inglês, e o novo espaço e cultural (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2001, p. 135). Poder‑se‑ia dizer, então, que uma das características mais marcantes das literaturas pós‑coloniais é que elas sempre estão em contraponto com outras formações literárias e culturais, especialmente as europeias, em uma relação de inferioridade cultural, na qual o centro europeu se impõe sobre as narrativas tidas como marginais. Uma outra relação se dá entre nativos, na qual um grupo mantém uma suposta superioridade, por se considerar o representante da cultura europeia nas colônias. Por isso, pode‑se dizer que seu “tropo” principal é o da diferença, através da qual essas tradições literárias 14 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 e culturais tentam marcar seu caráter “genuíno”. Nesse contexto, a colisão se produz, como apontam Ashcroft, Griffiths e Tiffin (2001), entre o olhar nostálgico, que assinala a impotência do exílio, e o olhar dirigido ao futuro, tentando marcar seu caráter vernáculo e indígena. O desejo de diferenciar‑se gera um conflito cujo teor pode ser percebido no uso da língua inglesa. Apesar de, muitas vezes, suas produções literárias serem vistas como acréscimos do cânone inglês, essa é uma língua inglesa com cadência e muitos vocábulos próprios, marcando a experiência local, ou seja, como falam Ashcroft, Griffiths e Tiffin (2001), reafirmando a distância entre a língua importada e a cultura local. Por sua vez, essa distância se encurta não somente através do uso de uma forma diferenciada da língua inglesa, mas também de estratégias narrativas e temas que são característicos de cada uma dessas tradições. Assim, a diferença é afirmada através de estilo e temas próprios. O escritor canadense Robert Kroetsch (1974 apud ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2001, p. 141) explica esse fenômeno nos seguintes termos: “O conflito do escritor canadense é que ele trabalha com uma língua, dentro de uma literatura que, aparentemente, lhe pertence [...]. Mas [...] há na palavra canadense uma outra experiência escondida, às vezes britânica, às vezes norte‑americana. Será a partir dessa relação de contraponto que focalizaremos agora as tradições literárias de língua inglesa cujos conteúdos trataremos neste livro‑texto. A nossa primeira parada nessa viagem através do tempo e das culturas por meio das narrativas literárias é a Literatura Inglesa, desenvolvida nas Ilhas Britânicas, o exato local onde tudo começou. 15 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA Unidade I 1 O ROMANCE E O CONTO NA TRADIÇÃO INGLESA 1.1 A ascensão do gênero romance Daniel Defoe (1660‑1731), Samuel Richardson (1689‑1761) e Henry Fielding (1707‑1754) são considerados os precursores do gênero romance no século XVIII. Até hoje os críticos discutem se o gênero começou na Inglaterra, com Robinson Crusoe, ou na Espanha, com Don Quijote de la Mancha, de Don Miguel de Cervantes Saavedra. Como aponta Watt (1983, p. 14), esses escritores têm em comum narrativas que relatam uma nova realidade social: a ascensão da classe média como resultado das transformações do contexto social da Inglaterra no século XVIII. Essa mudança na sociedade vai acarretar uma mudança na maneira de narrar. Segundo Watt (1983, p. 14), o romance começa a se diferenciar do “romanesco” para dar voz “à experiência individual”. Assim, os enredos são construídos a partir do dia a dia do homem comum e não da mitologia: um relato minucioso do mundo que nos rodeia feito pelo homem e por Deus. Esse tipo de narrativa produz sua própria técnica narrativa, chamada “Realismo”. Ou seja, como diz Watt (1983, p. 11), é importante não só o que se narra, mas como se narra. Ambos aspectos vão juntos e não podem ser separados. No romance, então, o enredo, as personagens e o seu tema se entrelaçam para produzir o efeito de verdade que, na literatura, chama‑se “verossimilhança”. Por sua vez, esses enredos são apresentados por meio das ações de personagens claramente individualizadas em um determinado momento e lugar, de tal maneira que a narrativa produz um “efeito” de verdade: aquilo que está sendo criado, através da narrativa, se parece com a vida “real” ou é verossímil. Assim Robinson Crusoe é considerado pelos ingleses o primeiro romance escrito, porque relata o dia a dia de um indivíduo que naufraga e mora por algum tempo em uma ilha deserta. Em relação à obra de Samuel Richardson, ele escreveu dois romances: Pamela, um romance epistolar, com base nas cartas escritas aos pais pela protagonista, e Clarissa Harlowe. Neles, o autor retrata a vida de sua época sem se referir a eventos sobrenaturais (como no caso do romanesco). Seus enredos estão baseados no tema do casamento e na relação entre o amor e a família. O que distinguia essas narrativas das anteriores era a sua contemporaneidade, fator que as tornava atraentes aos leitores, pois estes se sentiam representados, identificando‑se com as personagens e os eventos retratados. No caso de Henry Fielding, as suas narrativas eram organizadas em episódios, como na picaresca, em um tom de comédia, nas quais o protagonista deve superar várias dificuldades até chegar à resolução feliz de seu problema. Seu romance mais conhecido é Tom Jones, uma paródia de Pamela, de Samuel Richardson, caracterizada pela análise psicológica que o autor faz de seu herói. 16 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I Um outro romancista merecedor de destaque é Sir Walter Scott (1771‑1832). Ele começou sua carreira como autor de romances históricos, escrevendo versos narrativos glorificando a história da Escócia. Esses trabalhos lhe abriram caminho para seus grandes romances, tais como Waverly, The Heart of the Midlothian, e The Bride of Lammermoor, entre outros. Os temas que o interessavam eram os grandes conflitos políticos e religiosos do passado, como as lutas entre puritanos e jacobinos (os seguidores do Rei Charles II), sempre articulados através de histórias de amor, ódio, vingança e a dura vida dos camponeses. No entanto, a grande romancista do princípio do século XIX é Jane Austen (1775‑1817). Ela desenvolveu as estratégias narrativasde Richardson e Fielding, aperfeiçoando o gênero: foi ela quem alcançou o perfeito equilíbrio entre enredo, personagens e tema. Assim, por exemplo, em Pride and Prejudice (1813), um dos seus romances mais famosos, a autora combina o tema do casamento (aprendido de Richardson), através da estória de suas personagens principais, Elizabeth Bennet e Mr. Darcy, cujos encontros e desencontros são articulados por meio de diálogos rápidos e inteligentes, com verdadeiras batalhas verbais de engenho e ironia aprendidos de Fielding e com lembranças de William Shakespeare. É só lembrar o brilhante começo do romance: “It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune, must be in want of a wife” (AUSTEN, 1993, p. 3). A ironia da citação está, na verdade, exposta por Austen: quem está interessada em fazer um bom casamento visando a uma posição social estável é a mulher, pois vivia uma época em que quase não havia possibilidades de uma mulher obter renda através do trabalho. O casamento tinha para ela o mesmo valor que hoje tem uma profissão, era um meio de vida. Como no caso dos romances de Richardson, as personagens principais pertencem a diferentes classes sociais. Porém, as personagens femininas de Austen se igualam aos homens em valores morais e em inteligência, representando o novo tipo de relação conjugal que já se perfilava no século XVIII, colocando o homem e a mulher no mesmo patamar. Nesse tipo de relação, o casamento deveria acontecer por amor e não por conveniência econômica. Ao mesmo tempo, o casamento deveria se basear em um julgamento racional da situação econômica do casal, permitindo‑lhes criar uma família com dignidade. Como se pode observar, para Austen, a razão e o romantismo não eram incompatíveis. Em Pride and Prejudice, a importância desse tipo de casamento é ressaltada através da relação de contraponto estabelecida entre o casal Elizabeth e Darcy e os casamentos das outras personagens, que acontecem nos subenredos, representando aquelas uniões criticadas por Austen, motivadas por dinheiro; por amor, mas sem dinheiro; por atração sexual; arranjo etc. Todos os seus romances tratam sobre a vida das famílias pertencentes à nobreza provinciana (landed gentry). Essa classe de pessoas representava o centro da sociedade rural e, por isso, eles personificavam os valores mais refinados da sociedade inglesa. Uma crítica que se faz comumente às narrativas de Austen é que elas ignoram os grandes eventos políticos da sua época. Porém, como assinala Williams (1999), é difícil encontrar um tema mais central na história inglesa do que a história social da nobreza provinciana: a família era a sociedade. O problema dessa sociedade, na visão de Austen, era, como diz Eagleton (2005, p. 115), que sua moral estava fracassando, justamente pelo fechamento das terras (enclosure) e as grandes quantidades de dinheiro ganho por seus donos. 17 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA Austen não era contra as classes dominantes, a mobilidade social ou a maneira como a classe média urbana podia afetar a aristocracia provinciana. Ela criticava o fato de se esquecerem que, como classe abastada, eram os guardiões da moral da sociedade inglesa e, como tal, deviam ser um exemplo para as classes menos favorecidas. Ela criticava aqueles casos em que a autoridade da família era desrespeitada, havia um interesse desmedido pela moda ou o lucro era o único motivo. É por isso que nas suas narrativas o social, mais do que o político, está no centro da cena. Essa problemática social, através da temática do casamento, é discutida por Austen em todos os seus romances: Sense and Sensibility (1811), Pride and Prejudice (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815), Northanger Abbey (1818), Persuasion (1818). 1.2 O romance vitoriano Durante o período vitoriano, a burguesia torna‑se uma classe social influente e poderosa. Sendo o romance o seu gênero por excelência, ele vai se colocar no centro da cena. O gênero romance é um discurso articulador das diferentes texturas dos conflitos sociais e das relações estabelecidas entre os muitos grupos que a conformam. Em seus enredos, coloca o foco no espaço privado, mostrando de que maneira este é condicionado e condiciona o âmbito do público: o doméstico e o político estão intimamente ligados. No caso do romance vitoriano, essa inter‑relação se manifesta na discussão de seus rígidos valores morais e sua hierarquia social e econômica. Podemos separar os romancistas da longa época vitoriana em três grupos: os escritores do princípio da era vitoriana (Early Vitorians), os escritores do final da era vitoriana (Late Vitorians) e os escritores cujos temas e estilos já anunciam o Modernismo do século XX. Entre os pertencentes à primeira etapa do reinado de Vitória, podemos mencionar: Charles Dickens (1812‑1870), Emily Brontë (1818‑1848), Charlotte Brontë (1816‑1855) e George Eliot (1819‑1880), cujo verdadeiro nome era Mary Ann Evans. Ela é uma das primeiras romancistas inglesas a criticar o didatismo do romance no século XIX, enfatizando o valor artístico da narrativa. Como o escritor francês Gustave Flaubert, Eliot se interessa pelo valor estético do romance, na descrição dos temas do dia a dia. Suas obras mais famosas são Adam Bede, The Mill on the Floss, Silas Marner, Middlemarch. Da última etapa do reinado de Vitória podemos mencionar Rudyard Kipling (1865‑1936), defensor do império e dos valores vitorianos e imperialistas durante sua prolongada estada na Índia. Outros dois escritores de grande importância são Thomas Hardy (1840‑1928) e Oscar Wilde (1854‑1900). Esses dois últimos escritores, a partir de diferentes perspectivas sociais e culturais, fizeram uma leitura crítica dos valores do reinado de Vitória. Hardy criticou o seu materialismo, a atitude imperialista e a rigidez moral, cujo resultado era a hipocrisia. Hardy fez também o caminho “do campo à cidade”. Ele era natural de Dorsetshire e alguns de seus romances como Tess of the D’Ubervilles acontecem nas áreas rurais. Porém, diferentemente dos escritores românticos, na sua literatura, a natureza tem uma presença negativa. Dois romances destacados da sua obra são The Return of the Native e Jude the Obscure. Oscar Wilde é um dos nomes mais conhecidos da literatura inglesa. Ele era um irlandês radicado em Londres. Escreveu poemas, peças de teatro, contos e um romance – The Picture of Dorian Gray – no qual, 18 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I através da relação entre as três personagens principais, discute sua teoria da “arte pela arte” e a relação entre a obra, o crítico e o artista. Dorian, como Fausto, vende sua alma ao diabo para conservar a sua beleza. A teoria da arte de Wilde (o esteticismo) foi, por um lado, um culto ao individualismo e, pelo outro, uma crítica ao didatismo da arte vitoriana. Wilde era conhecido por sua agudeza no uso da palavra, encantando os salões vitorianos, onde era atração principal. Nas suas obras de teatro, destacam‑se A Woman of no Importance, The Importance of Being Earnest e An Ideal Husband, comédias de costumes que encantaram o público de sua época. Por ser homossexual, Wilde foi condenado à prisão, de onde escreveu seu depoimento em forma de ensaio, o De Profundis. Finalmente, há dois outros grandes escritores, o polonês naturalizado inglês, Joseph Conrad (1857‑1924) e o norte‑americano Henry James (1843‑1916), que adotou a nacionalidade inglesa. Ambos podem ser considerados os elos com o século XX, uma vez que sua literatura é uma ponte entre o Realismo do século XIX e o Modernismo do século XX. Em sua juventude, Conrad foi marinheiro, trabalhando, primeiramente,em um navio comercial francês e, depois, em um navio inglês, no qual viajou ao Oriente e à África. Em 1886, naturalizou‑se inglês. Somente anos mais tarde dedicou‑se à literatura. Embora não fosse falante nativo da língua inglesa (aprendeu o inglês aos 23 anos), a literatura de Conrad destaca‑se pela textura alusiva de sua linguagem. Sua primeira publicação foi Almayer’s Folly (1895). Seus romances mais destacados são Heart of Darkness (1902), Lord Jim, The Secret Agent e Under Western Eyes. As viagens por mar a locais longínquos e diferentes foram, para Conrad, uma grande e variada fonte de narrativas. No entanto, sua temática principal, marca distintiva de sua literatura, são suas expedições à alma humana, quando, em situações extremas de isolamento social, a personagem se confronta com ela mesma. Em Heart of Darkness, Conrad narra a crueldade da colonização europeia da África. Kurtz, personagem do romance, quando enfrentado com o Outro africano no coração do continente, descobre não a barbárie da África, mas a crueldade da sua própria cultura. Saiba mais Heart of Darkness foi levado ao cinema no filme: APOCALYPSE Now. Dir. Francis Ford Coppola. EUA: Zoetrope Studios, 1979. 93 minutos. Ambientado na Guerra de Vietnã, o filme apresenta uma outra instância histórica do domínio cultural, na qual se revela a barbárie da cultura ocidental. A maior figura entre os romancistas da virada do século é Henry James. James foi um escritor muito prolífico, cuja obra foi se aprofundando e sofisticando com o passar dos anos. James foi também um teórico da ficção. Nos prefácios que antecedem seus romances, discute aspectos formais do romance, como a coerência interna e o uso de ponto de vista para dar verossimilhança à narrativa. 19 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA James é considerado a ponte entre os séculos XIX e XX porque preparou o caminho para os escritores do Modernismo (conforme veremos posteriormente). A partir do desenvolvimento incipiente das teorias da psicologia e de suas leituras dos grandes romances psicológicos de romancistas russos, como Ivan Turguenev, Henry James desenvolve sua teoria da “inteligência central” ao mudar o narrador onisciente na terceira pessoa e reformulá‑lo como narrador, também em terceira pessoa, mas limitado à consciência de uma personagem. Essa técnica permitiu‑lhe explorar o inconsciente da personagem, tornando sua narrativa, em suas próprias palavras, mais “verossímil” e menos artificial. Em seus romances e novelas (novelle) destaca‑se o tema internacional, o confronto cultural entre americanos e europeus na Europa, devido à sofisticação, hierarquia e corrupção da cultura europeia e à inocência e espírito democráticos dos americanos. Entre sua prolífica obra, podemos mencionar os romances Roderick Hudson (1875), The American (1877), Washington Square (1880), The Portrait of a Lady (1881), The Bostonians (1886), The Princess Casamassima (1886), What Maisie Knew (1897), The Wings of the Dove (1902), The Ambassadors (1903), The Golden Bowl (1904). Entre suas novellas e contos, Daisy Miller (1878), The Aspern Papers (1888), The Real Thing (1892), The Figure in the Carpet (1896), The Turn of the Screw (1898), The Best in the Jungle (1903). Observação “Novella” é uma palavra italiana que se refere a uma narrativa mais longa que um conto, porém mais curta que um romance. Nos passos do crítico inglês Raymond Williams, vamos nos deter em dois grandes escritores vitorianos da primeira época – Charles Dickens (1812‑1870) e Emily Brontë (1818‑1848) – para explorar, justamente, o mundo vitoriano no âmbito da vida urbana e no âmbito do campo. Ambos os escritores têm em comum o fato de estarem cientes das tensões e contradições da sua época, da revolta produzida pela industrialização e da pobreza massiva. No entanto, ao mesmo tempo, os signos de crescimento perceptíveis na sociedade fizeram com que aceitassem o discurso do progresso. Em foco: Charles Dickens A literatura de Dickens é um exemplo de que as narrativas nem sempre entram no cânone literário nacional por algum valor intrínseco, como a qualidade permanente de sua metáfora, mas pela ação daqueles que decidem o gosto literário (os críticos consagrados). O crítico inglês F. R. Leavis (apud ALLEN, 1991) deixou a obra de Dickens fora do cânone inglês por considerá‑lo um entertainer e não um grande autor. Essa visão de Dickens como um entertainer se deve ao fato de ele não ter tido uma educação formal e sua literatura ter sido considerada “popular”. Ele escrevia para o grande público surgido após a Revolução Industrial, que seguia os seus romances, publicados em forma de seriado, mensais, nas revistas como Chamber’s e Penny Magazine. A relação de Dickens com seu público era tal que a estória mudava segundo o interesse dos leitores. 20 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I Muito se tem falado sobre as limitações do estilo de suas narrativas: suas personagens parecem caricaturas; não são reveladas aos poucos, mas apresentadas diretamente; seus enredos dependem de coincidências arbitrárias etc. (WILLIAMS, 1999). Esse estilo devia‑se ao fato de Dickens tentar ajustar seus romances ao seu grande público. Por outro lado, ele tinha uma grande habilidade em captar hábitos, gestos e frases, criando personagens ainda hoje inesquecíveis. Williams (1984) aprecia essa característica das narrativas de Dickens no sentido que ele dá voz e fala para aqueles que tinham sido silenciados e excluídos pela rígida cultura das elites. Dessa maneira, ele expressa, em sua literatura, a opinião de seus leitores sobre os diferentes problemas sociais, em uma linguagem acessível para todos. Charles Dickens escreveu um novo tipo de romance, retratando um novo tipo de cultura e identidade cultural: a paisagem da cultura urbana, em um momento em que as pessoas iam do campo para a cidade buscando trabalho. Sua narrativa mostra a experiência de morar em uma cidade como Londres, em uma nação que estava passando por um processo de transformação devido à expansão industrial, comercial e imperial da Inglaterra, os avanços científicos e a ascensão da burguesia. Em seus primeiros escritos, que mostram sua experiência como jornalista, como Sketches by Boz (1836), Dickens mostra a vida das ruas das grandes cidades onde as pessoas se cruzam, trocam rápidos olhares ou frases fixas, sem realmente se comunicarem: Middle‑aged men, whose salaries have by no means increased in the same proportion as their families, plod steadily along, apparently with no object in view but the counting‑house; knowing by sight almost everybody they meet or overtake, for they have seen them every morning (Sunday excepted) during the last twenty years, but speaking to no one. If they do happen to overtake a personal acquaintance, they just exchange a hurried salutation, and keep walking on, either by his side or in front of him, as his rate of walking may chance to be. As to stopping to shake hands, or to take a friend’s arm, they seem to think that as it is not included in their salary, they have no right to it (DICKENS, 1996, p. 36). Dickens representa a vida nas ruas da cidade como um monstro indiferente ao homem, que acaba se habituando e acomodando nessa nova ordem social. Porém, como aponta Williams (1984), ele não descreve uma desordem, mas uma nova classe de ordem. Nessa nova paisagem da cidade, marcada pela indiferença, falta de generosidade e solidariedade (expressada nos seus romances pela escuridão e bruma constantes), Dickens tenta redescobrir o ser humano e, assim, dramatiza as virtudes e vícios pessoais através de magníficas caracterizações, orabem‑humoradas, ora sentimentais e lúgubres. No entanto, se escritores anteriores a Dickens enxergavam essas virtudes e vícios como resultado do agir do indivíduo, Dickens os enxerga como resultado da interação do indivíduo com as instituições sociais. A consideração pelo outro e a inocência podem ser, segundo ele, o caminho para a humanização das relações entre os homens. Dickens tinha a capacidade de fazer seu leitor rir e chorar. Em narrativas como The Pickwick’s Papers (1836‑7), em que as personagens ruins são absurdas, mais do que cruéis, as misérias do mundo são 21 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA neutralizadas através do humor. Nicholas Nickleby (1838) e Martin Chuzzlewit (1843) são dois de seus romances episódicos, no estilo da picaresca. Por outro lado, em melodramas, como Oliver Twist (1837), Dombey and Son (1844‑6) e David Copperfield (1849), escritos na tradição do romance realista, o autor dramatiza a luta do bem contra o mal. Em todos eles a personagem central é uma criança e as experiências narradas remetem à sombria infância de Dickens, quando, aos doze anos, precisou trabalhar em uma fábrica junto com os pobres de Londres, porque seu pai encontrava‑se, junto com toda a sua família, em uma prisão para devedores. Essa experiência deixou marcas profundas em Dickens, tornando‑o profundamente consciente da hierarquia social: todos os seus romances fazem uma crítica aguda da sociedade inglesa, em toda sua complexidade de classes. Seus últimos romances: Bleak House (1853), Hard Times (1854) e Great Expectations (1860) são ainda mais radicais e a comédia é ainda mais selvagem. O tema que os relaciona é a obsessão pelo dinheiro, o poder e a posição social. Em foco: Emily Brontë Com a exceção de Charles Dickens, as irmãs Brontë – Anne (1820‑1849), Emily (1818‑1848) e Charlotte (1816‑1855) – foram as escritoras mais lidas e populares da época. Filhas de um pastor anglicano, moravam na reitoria de Haworth, Yorkshire, no norte da Inglaterra, nos morros, perto de uma área industrial. A vida isolada e trágica das irmãs, que morreram ainda novas, já é parte da lenda que as rodeia. Sua solidão não foi só geográfica, mas também social. Como explica Eagleton (2005), o fato de serem mulheres educadas separava as irmãs das pessoas comuns que as rodeavam. Ao mesmo tempo, eram romancistas provincianas que escreviam para o público cultivado da metrópole. No século XIX, a condição de “autor” era associada aos homens e não às mulheres; por isso, quando as irmãs publicaram pela primeira vez, o fizeram com pseudônimos, que poderiam tanto ser nomes masculinos quanto femininos: Elis, Acton e Currer Bell (Emily, Anne e Charlotte, respectivamente). Aliás, os temas turbulentos de seus romances, em particular Jane Eyre, de Charlotte, e Wuthering Heights, de Emily, faziam necessária essa estratégia. Anne escreveu um só romance, Agnes Grey. Como aponta Eagleton (2005), para os vitorianos já era chocante ler sobre bigamia, ascensão social, violência física e casamento entre grupos raciais diferentes, sem o aditamento de pensar que a mente frágil de uma mulher estava por trás dessas narrativas! Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes, em português) foi publicado em 1847. É considerado um dos romances mais notáveis da tradição inglesa, ao ponto que desafia qualquer tipo de classificação: distingue‑se de qualquer romance publicado antes ou depois. Narra a história de duas famílias, no final do século XVIII e princípio do século XIX, os Earnshaws e os Lintons, associados com duas casas, icônicas de sua classe e posição social: Wuthering Heights e Thrushcross Grange. Wuthering Heights pertence a uma família tradicional de pequenos agricultores (yeomen), classe social que entrou em extinção após o fechamento das terras (enclosure). Está localizada entre os morros e o adjetivo “wuthering”, como é explicado no romance, é uma palavra provinciana que descreve “the atmospheric tumult to which its station is exposed in stormy weather” (BRONTË, 22 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I 1990, p. 14). Por outro lado, Thrushcross Grange pertence a uma família da aristocracia rural e encontra‑se localizada em um frondoso vale. Essas casas representam a polaridade cultura e natureza: Wuthering Heights representa a força da natureza; Thrushcross Grange representa o refinamento da cultura. Assim, os membros de uma família não podem sobreviver na outra casa porque se encontram fora de seu elemento. Cada uma dessas famílias responde à hierarquia patriarcal. Ambas as casas poderiam ter continuado a existir independentemente se Heathcliff, um estranho, não tivesse sido levado a Wuthering Heights por Mr. Earnshaw, o velho patriarca. Heathcliff encanta a filha do patrão, toma o lugar do filho legítimo no afeto do pai e provoca uma profunda crise na próxima geração da família. Heathcliff é encontrado faminto nas ruas de Liverpool: tem a pele escura e é comparado com um cigano. Como explica Eagleton (2005), na época em que o romance foi escrito, tinham chegado ao porto de Liverpool imigrantes irlandeses, famintos e vestidos em farrapos, que escapavam da fome da batata. Heathcliff é apresentado como “a dirty, ragged, black‑haired child” (BRONTË, 1990, p. 12), que fala uma língua que não se compreende: “gibberish”. Logo, será caracterizado como selvagem, violento e subversivo: a imagem que os ingleses tinham dos irlandeses no século XIX. Não é possível saber se Emily Brontë deu forma à sua personagem pensando nesse estereótipo, mas é tentador pensar que foi assim. Através da interação dos membros das duas casas e Heathcliff, Brontë, implicitamente, critica os valores da sociedade vitoriana, embora o tempo ficcional do romance (finais do século XVIII, princípios do século XIX) seja anterior. Williams (1984) explica que, em Wuthering Heights, há elementos do Romantismo e também do Realismo. Por um lado, há a paixão entre Catherine Earnshaw e o forasteiro Heathcliff, um “bom selvagem”, mais à vontade na natureza do que na sociedade refinada. Somado a isso, seu físico atlético, suas facções atraentes e sua lealdade e seu amor por Cathy fazem dele um perfeito herói romântico. Figura 1 23 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA Porém, os elementos do Romantismo entram em contraponto com o Realismo quando Catherine casa com Edgar Linton, herdeiro de Thrushcross Grange, porque está interessada na ascensão social: casar com Heathcliff implicava ser excluída socialmente. Então, embora Catherine não possa funcionar segundo o código de respeitabilidade (que na sociedade vitoriana podia‑se entender como um desejo consciente de melhora econômica e moral ou um simples código de conduta), ela se casa com Linton e muda para Thrushcross Grange, onde se sente sufocada pelo refinamento e bons modos. Da mesma maneira, Heathcliff se transforma em um capitalista quando percebe que sendo um herói romântico não conseguirá o amor de Catherine. Embora nunca se saiba como fez a sua fortuna, e o mistério o envolva em um halo de romantismo, seu comportamento é o do entrepreneur capitalista. A partir desse momento, o Romantismo abre passo às características do Realismo Vitoriano e só voltara à cena quando Heathcliff e Catherine reunirem‑se após a morte. A façanha de Brontë em Wuthering Heights é refazer o gênero: embora no romance haja aparições, fantasmas, caminhadas noturnas no cemitério e amores que continuam após a morte, ela critica o rígido sistema social da época vitoriana, assim como a hipocrisia daqueles querevestiam sua cobiça de moralidade. Observação Durante o período vitoriano, o termo “respeitabilidade” era aplicado às pessoas de boa condição social, ou seja, à burguesia, que pela sua posição social e educação, deveriam ter os valores morais apropriados. Logo, o termo foi aplicado a qualquer pessoa honesta, decente, limpa e sem dívidas, sem levar em conta a classe social. Por um lado, o conceito de respeitabilidade tinha como objetivo corrigir os vícios provocados pela Revolução Industrial: a exploração de mulheres e crianças; as más condições habitacionais; a bebida excessiva etc. Então, esperava‑se que os efeitos dessa economia tirana fossem corrigidos através de valores morais. Por outro lado, a respeitabilidade era um código vazio de conduta detrás do qual se escondiam vícios e defeitos não aceitos na sociedade. Brontë resolveu a maneira de narrar a estória de Cathy e Heathcliff de forma brilhante, através de um ciclo de dois narradores: um exterior, o Senhor Lockwood, que vem da cidade e tem alugado Thrushcross Grange, e um interior, Ellen Dean (também chamada Nelly ou a Senhora Dean), personagem que conviveu com os Earnshaws e Lintons desde a sua infância. Assim, quando o Senhor Lockwood chega a Wuthering Heights, em 1801, ele “entra” em uma estória que está quase chegando ao seu fim. Ele representa o ideal romântico do cidadão londrinense que viaja para o Yorkshire, com o desejo de estar em contato com a natureza. Porém, aos poucos, percebe que há algum mistério rodeando a família e nós, leitores, compartilhamos de sua curiosidade. Será Nelly quem, através de flashbacks, trará à tona a infância dos Earnshaw dos Lintons, e a vida de Heathcliff, narrando a estória para Lockwood (e para nós), enquanto tricota sentada ao lado da lareira. 24 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I Observação Um flashback é uma cena em uma narrativa que mostra eventos que aconteceram em um tempo anterior e ajuda a entender e clarificar as ações do presente ficcional da narrativa. No final do romance a ordem terá sido reestabelecida em Wuthering Heights e Thrushcross Grange. Mortos Heathcliff e Cathy, o desejo e a paixão somem e emerge o amor gentil: a nova Catherine – refinada e respeitável –, filha da primeira Cathy e Edgar Linton, casa‑se com o primo Hareton Earnshaw, o novo e legal patriarca, ambos verdadeiros herdeiros das duas famílias e propriedades. Através dessa união, há uma reconciliação entre a cultura e a natureza. Em outro nível, esse final mostra que, por toda a sua ousadia na história de Cathy e Heathcliff na primeira parte do romance, na segunda, os valores vitorianos são reestabelecidos e o romance acaba segundo as expectativas dos leitores da época. Lembrete No século XIX, a condição de “autor” era associada aos homens e não às mulheres; por isso, quando as irmãs publicaram pela primeira vez, fizeram‑no com pseudônimos, que poderiam tanto ser nomes masculinos quanto femininos: Elis, Acton e Currer Bell (Emily, Anne e Charlotte, respectivamente). Os temas turbulentos de seus romances faziam necessária essa estratégia. Como aponta Eagleton (2005), para os vitorianos, já era chocante ler sobre bigamia, ascensão social, violência física e casamento entre grupos raciais diferentes, sem o aditamento de pensar que a mente frágil de uma mulher estava por trás dessas narrativas! 2 O ROMANCE DO MODERNISMO NA TRADIÇÃO INGLESA 2.1 A entre guerra: tornar novo Culturalmente, como explica Bradbury (1989), a entreguerras foi a época do “tornar novo”, ideia desenvolvida pelo poeta norte‑americano Ezra Pound, que implicava a necessidade de seguir em frente, buscando um novo caminho na experiência da modernidade. Na arte e, em particular, na literatura, significava mudar a forma para torná‑la representativa do espírito da época. Disseminou‑se a ideia de que a arte moderna tinha o dever de estar à frente dos tempos e contribuir para sua evolução. 25 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA Observação “Ezra Pound (1885‑1972) foi um escritor norte‑americano, radicado na Europa. Suas obras mais importantes são Hugh Selwyn Mauberly, poema autobiográfico no qual expõe sua crítica ao materialismo e seu desejo de construir uma cultura baseada no passado; e seus Cantos, cuja narrativa conta a história da civilização através de poemas nos quais tempo e lugar não são relevantes e todas as épocas podem ser lidas como uma só. Durante a Segunda Guerra Mundial, Pound foi a favor do governo de Mussolini na Itália, motivo pelo qual teve um julgamento por traição nos Estados Unidos” (BURGESS, 1996, p. 217‑18). Esse desejo de mudança deve‑se, como acrescenta Bradbury (1989), à sensação de perda e desapontamento trazido pela Grande Guerra. As pessoas acreditavam que a guerra as livraria do passado e purificaria o mundo. Em vez disso, o mundo se tornou um lugar vazio e destruído, onde as pessoas já não mais acreditavam nas instituições ou seus valores. Ao gerar uma nova cultura, o artista se rebelava contra a corrupção do estado, os valores da sociedade mercantilista, o imperialismo e sua arte medíocre. A civilização estava “exausta” e a crise no mundo significava a crise da palavra. A relação entre forma e conteúdo, o artista e o público, o artista e a sociedade deveriam mudar para representar os novos tempos. As sementes do Modernismo já estavam presentes antes da Grande Guerra. Como vimos, na segunda parte do século dezenove houve avanços científicos e tecnológicos; a idealização da natureza mudou com o crescimento das grandes cidades e da população; as crenças cristãs foram problematizadas com a aparição de novas teorias, como as de Darwin; em 1848, Marx e Engels publicaram o Manifesto Comunista, que anunciava o surgimento do proletariado e desafiava a burguesia. Essas mudanças no mundo exterior implicavam uma mudança no mundo interior. Havia novas teorias sobre a consciência. Como explica Bradbury (1989), se os conflitos dos romances do século XIX giravam ao redor de crises religiosas, a arte do século XX dirige a atenção para o mundo oculto por trás da mente consciente, o “inconsciente”: um mundo governado por sensações e percepções. Em 1890, William James (irmão de Henry James) publicou seu livro Princípios de Psicologia, no qual explicava que a realidade não era um fato “objetivo”, mas algo percebido subjetivamente através da consciência. Em 1900, Sigmund Freud publicou seu influente livro A Interpretação dos Sonhos. Na França, acrescenta Bradbury (1989), o filosofo Henri Bérgson destacava o papel da intuição sobre a razão. O Realismo já não recriava de maneira satisfatória essa realidade nova e complexa. Então, surgem novas formas narrativas. O movimento Modernista teve diferentes manifestações em diversas partes da Europa e da América. Uma das formas que se destaca é o Cubismo, arte abstrata, cujo máximo representante foi o pintor Pablo 26 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I Picasso com seu quadro Las Señoritas de Avignon (1907). Na Rússia e na Alemanha, o movimento se chamou “Futurismo”. Houve outros movimentos: construtivismo, acmeísmo, vorticismo etc. Em todas essas manifestações, se impunha a forma fragmentada para representar a falta de unidade e integridade do homem e a sociedade moderna. Bradbury (1989, p. 22) cita Nietzche, para quem “[...] o homem moderno era o filho de uma época fragmentada, pluralista, doente e estranha”. Na Inglaterra, Virginia Woolf (1957, p. 189, tradução nossa) escreveu, em seu ensaio “Modern Fiction”: “Todas as relações humanas mudaram– entre patrões e criados, maridos e mulheres, pais e filhos. E, quando mudam as relações humanas, mudam ao mesmo tempo a religião, o comportamento, a política e a literatura”. Como narrar estórias nessa situação? Que tipo de literatura podia refletir essa nova ordem? Então, Woolf reflete que “[...] para os modernos o interesse está nos escuros recintos da psicologia, uma nova forma de narrar se faz necessária, difícil de achar, incompreensível para os nossos antepassados” (WOOLF, 1957, p. 192, tradução nossa). Com o propósito de revelar a psicologia das personagens, esses romances retratam as experiências espirituais e mentais: memórias, sensações etc. Essa nova forma de narrar na literatura leva o nome do “fluxo da consciência” e se refere à maneira como a mente flui de um momento para outro, de um pensamento através da associação. Esse novo tipo de ficção se diferencia do anterior em que o foco está no nível do pensamento, anterior à fala, diferentemente do Realismo, que apresenta o homem em sociedade se comunicando através do diálogo. Como consequência, esses romances não têm uma sequência linear e cronológica, mas se organizam em círculos concêntricos, segundo o pensamento da personagem. Nas narrativas em terceira pessoa (monólogo interior indireto), o narrador é ainda uma presença que leva o leitor às profundezas do subconsciente da personagem. Nas narrativas em primeira pessoa (monólogo interior direto), o narrador já não é mais o intermediário entre personagem e leitor, o que torna a leitura, às vezes, mais complexa e pede um leitor mais ativo e participativo. 2.2 Os romancistas do Modernismo na Grã‑Bretanha O Modernismo não foi um só, nem foi expresso da mesma maneira pelos escritores associados com essa corrente artística e literária. Como vimos, escritores como Henry James, Joseph Conrad e William Butler Yeats prepararam o caminho para os novos escritores que revolucionariam a literatura pela sua experimentação com a forma ou pela sua concepção de mundo. Nesse período, por romperem com as estruturas de sua época e com a literatura do período vitoriano através de sua temática, merecem ser mencionados E. M. Forster (1879‑1970), D. H. Lawrence (1885‑1930), Aldous Huxley (1894‑1963) e George Orwell (1903‑1950). Forster faz uma leitura crítica da sociedade inglesa em romances como Howard’s End e A Room with a View, em que ataca os costumes e morais da classe média inglesa, mostrando‑se a favor da espontaneidade dos sentimentos e evidenciando a importância do sexo. Em A Passage to India, questiona o império e critica soldados e oficiais residentes no subcontinente indiano. 27 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: PROSA Por sua vez, D. H. Lawrence oferece a paixão e o sexo como uma saída para os males produzidos pela sociedade industrial nos seus romances Lady Chatterley’s Lover e Women in Love. Huxley e Orwell são escritores do entreguerras. Em seus respectivos romances, Brave New World e 1984, apresentam um futuro sombrio. No primeiro caso, devido ao progresso científico e, no segundo, aos regimes totalitários que privam os homens até de seus pensamentos. No que diz respeito ao romance, os dois nomes centrais do Modernismo na Grã‑Bretanha são Virginia Woolf (1882‑1941) e James Joyce (1882‑1941). Woolf foi um membro proeminente do “Círculo de Bloomsbury”, que associava artistas de vanguarda, criticados na época pelo seu elitismo. Um de seus membros foi o escritor Leonard Woolf, com quem Virginia se casou em 1912. Os romances de Virginia Woolf se caracterizam pelo seu desafio ao realismo, através do uso das técnicas do fluxo da consciência para registrar o pensamento e emoções das personagens. Em consequência, a ação dessas narrativas ocorre na mente da personagem, não são lineares e articulam diferentes vozes em contraponto. A natureza experimental das narrativas da autora (e a tendência a enfatizar o aspecto formal dessa experimentação) tem feito com que a sua literatura pareça mais interessada no aspecto artístico do que no conteúdo. Porém, como temos visto, a literatura do modernismo utilizava esses recursos formais para fins tanto estéticos como políticos. Os romances mais destacados de Woolf são: The Voyage Out (1915); Night and Day (1919); Jacob´s Room (1922); Mrs Dalloway (1925); To The Lighthouse (1927); Orlando (1928); The Waves (1931); The Years (1937); Between the Acts (1941). James Joyce: o grande experimentador irlandês do Modernismo James Joyce era irlandês, oriundo de Dublin, filho de pai e mãe católicos. As suas narrativas se destacam por serem marcadamente experimentais. De alguma maneira, atualmente, todos nós lemos Joyce indiretamente através das técnicas utilizadas não só na literatura, mas também na TV, no cinema e nos vídeos, que se caracterizam pelo seu caráter fragmentado, o pastiche, a paródia, as alusões a outros períodos históricos, os múltiplos pontos de vista, os finais abertos, as técnicas do fluxo da consciência e seu uso criativo da linguagem. Em suas obras mais experimentais, Joyce inventa termos, cria neologismos. Ao ressignificar o modo de narrar do Realismo e quebrar as formas convencionais, Joyce abriu novos caminhos para a arte em geral, e a literatura em particular, e foi de grande influência para outros escritores, como é o caso de Virginia Woolf. Suas obras mais famosas são: Dubliners (1914), A Portrait of the Artist as a Young Man (1916), Ulysses (1922) e Finnegan’s Wake (1941). Essa experimentação estilística de Joyce revela o conhecimento como um “construto”, não um “dado”, que é subjetivo e pode render diferentes interpretações, dependendo do contexto cultural. Assim, ele contestava a visão dogmática e totalizadora, no âmbito do religioso, político e filosófico, das gerações anteriores. A crítica de Joyce tem foco, particularmente, na Irlanda, contra a visão romântica do movimento nacional irlandês e sua relação com a igreja católica. 28 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 3 1/ 05 /1 6 Unidade I No entanto, isso não significa que Joyce não partilhava do espírito revolucionário e do desejo de se libertar da tirania da Inglaterra. Ele tinha uma visão crítica do império inglês e sua presença na Irlanda, como discute no seu ensaio “Ireland, Island of Saints and Sages” (1907). O que ele criticava era a visão nacionalista idílica e romântica, que pregava a pureza racial e cultural da Irlanda e uma volta ao passado, livre da influência inglesa. “The Dead”, o último conto de seu livro Dubliners (1914), marca o momento em que o experimentalismo estilístico de James começa a tomar forma, quando o autor problematiza a situação da Irlanda dividida entre os valores vitorianos, da pequena burguesia irlandesa, e o nacionalismo romântico, ambas posições dramatizadas por Joyce, através da festa de Natal que reúne a sociedade dublinense: pessoas sem brilho e desencantadas. Já o título da narrativa, “The Dead”, é uma alusão à maneira como esses valores essencialistas e totalizadores têm sufocado e estagnado a sociedade irlandesa. Como aponta Eagleton (2005), em “The Dead” o trabalho é monótono; a política, uma farsa; a religião, um ritual vazio; a vida doméstica, uma prisão. Esse senso de alienação e paralisação se acentua pelo fato de, estranhamente nessa noite, estar nevando em Dublin. Esse contraponto de ideologias torna‑se explícito em “The Dead” no trecho que narra a discussão entre a personagem central, Gabriel Conroy (quem, como Joyce, encontra‑se dividido entre sua lealdade à Irlanda e seu gosto pela língua e a literatura inglesa), e a nacionalista Miss Ivors (que é a favor do renascimento da cultura, literatura e língua irlandesas): I have a crow to pluck with
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