Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Doutorado Informal u m a j o r n a d a p e l a E D U C A Ç Ã O F O R A D A C A I X A 2 PROJETO GRÁFICO ADRIANA PESSOA E FERNANDA FONTES ILUSTRAÇÕES MATHEUS FONTES DIAGRAMAÇÃO FERNANDA FONTES REVISÃO DANIELE SOUZA Licença Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional Você tem a liberdade de: Compartilhar: copiar, distribuir e transmitir a obra. Remixar: criar obras derivadas. Sob as seguintes condições: Atribuição: você deve creditar a obra da forma especificada pelo autor ou licenciante (mas não de maneira que sugira que este concede qualquer aval a você ou ao seu uso da obra). Uso não comercial: você não pode usar esta obra para fins comerciais. Compartilhamento pela mesma licença: se você alterar, transformar ou criar em cima desta obra, você poderá distribuir a obra resultante apenas sob a mesma licença, ou sob uma licença similar à presente. Renúncia: qualquer das condições acima pode ser renunciada se você obtiver permissão do titular dos direitos autorais. ] 3 4 .Sumário PREFÁCIO O INÍCIO CASOS INSPIRADORES AIESEC Cinese Gap Year (UnCollege Brasil) Caminho do Sertão CIEJA Campo Limpo Casas colaborativas CARTAS André Gravatá A resposta do André Luísa Módena A resposta da Luísa Paul Feyerabend Juanita Brown José Pacheco Vera Poder 6 12 22 24 37 48 63 83 101 132 135 144 147 157 163 174 187 202 5 O QUE TUDO ISSO ESTÁ QUERENDO NOS MOSTRAR? Sínteses dos casos Sínteses das cartas As 12 essências da jornada REFLEXÕES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL Manifesto do doutorado informal O doutorado informal como metáfora O doutorado informal como movimento e os cinco princípios Perguntas e respostas O QUE VEM DEPOIS OUTRAS VOZES SOBRE A JORNADA AGRADECIMENTOS 212 214 220 227 242 245 260 275 321 336 340 347 6 . Prefácio 7 Caminhante, são suas pegadas o caminho e nada mais; Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar. Ao andar se faz o caminho, e ao voltar a vista atrás se vê a senda que nunca se há de voltar a pisar. Caminhante não há caminho senão esteiras no mar. (Antonio Machado) “Doutorado informal? Que viagem...” Confesso: foi o que pensei quando ouvi meu xará, o André Gravatá, explicar seu projeto nascente. A gente batia um papo na padaria da esquina do apê onde eu morava, logo depois de um encontro organizado pelo Cinese. O encontro era um debate sobre o filme “Escolarizando o mundo”. Tendo sobrevivido a um mestrado acadêmico formalzão uma década antes, me senti secretamente insultado pela ideia de um doutorado informal. Aquilo era banalizar algo que tinha dado um trabalho dos infernos para eu concluir. Talvez você veja aí uma contradição – um cara que apoia a desescolarização condenando a jornada de aprendizagem livre do outro. Pior que foi isso mesmo: uma puta contradição. Mas, veja, não era eu: eram os demônios do orgulho, da vaidade e do medo gritando baixinho dentro de mim. É assim que, com frequência – e sem se dar conta – a gente desempenha o papel de guardiões do status quo. A gente prende a respiração para impedir a entrada de ar fresco. DOUTORADO INFORMAL 8 O papo com o André aconteceu por volta de 2012. Acho que, hoje, já consigo entender e aceitar a proposta um pouco mais. O livro sobre doutorado informal do Alex Bretas, que você agora tem em mãos – ou no monitor à sua frente – também é uma viagem. Uma jornada, na verdade. Você vai ver que os elementos do caminho arquetípico do herói, que é possível localizar em todas as boas histórias que a gente gosta de ouvir, estão presentes. Deixa eu te mostrar: Para o garoto inquieto do interior de Minas, sedento de aventura, o emprego de servidor público constituía uma Zona de Conforto intolerável. O deserto da alma. Então, Alex sentiu borbulhando nas entranhas um Chamado, como ecos indis- tintos de terras longínquas, portando promessas de desafios e tentações. Hesitou – o que deixou muita gente infeliz. Ao arrumar um trampo de consultor, logrou realizar a Travessia de Limiar, do mundo conhecido de Minas para São Paulo. 9 O próximo passo correspondeu à situação arquetípica de Testes, Aliados e Inimigos. Foi ao lançamento do livro Volta ao mundo em 13 escolas, onde ele conheceu o menino-poeta André Gravatá –, que, paradoxalmente, além de aliado, é uma das pessoas que manifestam, na história do Alex, o arquétipo do Velho Sábio. A etapa relativa aos Testes Aliados e Inimigos, que você também pode recon- hecer na cena clássica da Cantina, do filme Star Wars, é a primeira parada na Terra Estrangeira. E representa, para o caminhante, a oportunidade de recon- hecer o novo terreno e a si mesmo na nova condição de descobridor. Também atende à necessidade do herói de revigorar-se, alimentando-se da ener- gia do propósito que o conduzira para além das fronteiras do conhecido. Olha só o que ele, o Alex, fala sobre esse episódio do lançamento do livro: “Se a crença na educação democrática já brilhava dentro de mim, agora o mun- do me desafiava a fazer algo com isso. Ter estado naquele lugar me acendeu a luz da vontade”. Estava tomando o fôlego necessário para encarar a estrada adiante. Ao optar por um caminho com um coração, trilhou a senda da educação democrática, da desescolarização, da pedagogia libertária e da aprendizagem livre. Enquanto caminhava, substituía a curiosidade inocente por um comprom- isso firme com a própria verdade. E isso tudo, sabia ele, era apenas “O Início”. Na Provação Suprema, morreu para os planos que trazia do Mundo Conhe- cido – uma pós-graduação careta – e renasceu como praticante do doutorado informal. Afinal, não bastava estudar as aprendizagens livres, “queria vivê-las sentindo na pele o frescor das próprias descobertas”. Escolhera o caminho do fogo – a jornada de transformação. Estava grávido de uma nova identidade: não mais o gestor público, mas o “Alex PREFÁCIO DOUTORADO INFORMAL 10 Bretas, do doutorado informal e da Educação Fora da Caixa”. O êxito na campanha de crowdfunding equivale à Captura da Espada, que o herói conquista após vencer o dragão das inseguranças e do medo. A Espada é uma metáfora para a potência renovada que permitirá superar obstáculos cada vez mais desafiadores. A campanha também celebrou o nascimento público da nova identidade. Ele se comprometia, com sua tribo de apoiadores, a regressar da jornada com o Elixir que cura a Terra Devastada – o deserto da alma que é desperdiçar a própria vida. Comprometeu-se a revelar, caso sobrevivesse à aventura, como é que se podem educar adultos libertos das trilhas do conformismo, de um jeito que faça sentido e que produza transformação autêntica em si e no mundo. O caminho da atitude apreciativa, das perguntas poderosas e das conversas significativas. Eu fui um dos vários aliados que o Alex colecionou ao longo da jornada. Tam- bém fui testemunha do ímpeto incansável, do talento, da generosidade e do cuidado amoroso com que construiu o seu caminho. Como no sertão, o menino-inquieto se revelou um desbravador capaz de encar- ar com coragem os aspectos sombrios da caminhada e seguir em frente, mesmo com medo – e bolhas nos pés. O resultado é este livro, inspirado e inspirador. Ele condensa o Elixir do con- hecimento do Mundo Extraordinário que é o atual paradigma emergente na educação, da perspectiva de alguém que, na linguagem de Guimarães Rosa, “ao eleger a busca e empreender a travessia”, se torna portador da sabedoria da jornada. Ou, por outro ângulo, alguém cujo texto, sacando de “uma caixa de parafernálias, encaixando e montando, a fim de entregar relevâncias que alar- guem os limites do possível”, em vez de nos chamar a concordar, discordar ou 11 repeti-lo, nos convida a viver as próprias aventuras. O livro do Alex pode se tornar, para você, um guia de acesso precioso a pais- agens humanas repletas de tesouros escondidos. Deve ser útil para quem, assim como ele e eu (e tantos outros), busca se aventuraralém das fronteiras do uni- verso seguro, mas extremamente árido, da escolarização tradicional. André Camargo é escritor, articulador de comunidades de aprendizagem e consul- tor em inovação educacional PREFÁCIO 12 . O início 13 “O início” é o nome de um arquivo que até hoje está no disco rígido do meu computador. Ele começou a ser editado em dezembro de 2013, somente dois meses após a minha chegada em São Paulo. Mineiro que sempre fui, cheguei a terras paulistanas pelo amor e pela dor. Depois de quatro anos namorando a distância, já estava na hora de juntar as escovas de dente e experimentar uma vida a dois. Além disso, São Paulo também foi minha rota de fuga: não queria mais viver no cárcere organizacional. Até então eu trabalhava para o governo de Minas Gerais como gestor público, mas na verdade minha infelicidade estaria intacta mesmo em outros lugares – desde que tivesse que bater ponto e fingir estar trabalhando. Depois de sair de uma cidade do interior e ter estudado na cidade grande, trabalhar como concursado no imponente Edifício Gerais da Cidade Adminis- trativa do governo do estado parecia ser uma premiação a altura. No entanto, ser servidor público me garantiu uma rotina de frustrações quase diárias – mescla- das com alguns poucos momentos luminosos. De algum modo eu sentia que precisava sair dali. Tentei uma vez, sem sucesso: acabei voltando atrás na decisão e gerei uma crise de confiança na equipe. Foi a pior sensação que já tive em toda minha vida profissional, que não é assim tão longa. Na segunda tentativa aprendi que precisava planejar a transição, e assim o fiz. Acenei para o Universo e ele me sorriu de volta: foram poucos e-mails para que eu conseguisse uma vaga em um projeto de consultoria em São Paulo. Naquele momento, era tudo que eu queria. Comecei como consultor no mesmo dia em que cheguei à capital paulista. Pouco tempo depois, fui ao evento de lançamento do livro Volta ao mundo em 13 escolas, do Coletivo Educ-ação. Não era um lançamento convencional: havia um clima de inspiração no ar e espaço genuíno para o diálogo. E era perto de casa, então fui a pé. Subitamente, novos mundos se abriram. Eu já conhecia algumas coisas que falaram por lá, mas o impacto era menos na cognição e mais no coração. Eduardo Shimahara, um dos autores do livro, disse que havia son- hado com o projeto, e a partir do sonho é que convidara o grupo de amigos os quais se juntaram a ele na empreitada. Mas calma: ele sonhou o projeto? É isso mesmo, produção? Se a crença na educação democrática já brilhava dentro de mim, agora o mundo DOUTORADO INFORMAL 14 me desafiava a fazer algo com isso. Ter estado naquele lugar me acendeu a luz da vontade. Eu nunca entendi por que a educação a que fui submetido funcionava do jeito que funcionava. Simplesmente aceitei, por não conhecer outras opções. Ao mes- mo tempo, durante minha infância e adolescência eu ocupava todas as brechas que podia com o que depois descobri ser autoeducação, quer fosse por meio de conversas, leituras e, principalmente, através da internet. Hoje percebo que as características e habilidades que neste momento da minha vida consigo desenvolver – inclusive por meio da escrita deste livro – já estavam presentes em mim desde pequeno. Tempo desperdiçado “aprendendo” orações coordenadas assindéticas e datas históricas? Talvez. Nada contra gramática e história, mas quer saber? Ter sido forçado a aprender não me fez alguém melhor. Ao dizer isso não quero renegar tudo o que passei na escola: reconheço que se estou aqui hoje, isso se deve ao conjunto de experiências que vivi. Mas, ao tomar contato com outras formas de se conceber a educação, caiu a ficha de que a compulsoriedade, as punições, as ameaças, os gritos de professores, a violência, o encarceramento, a angustiante monotonia da escola, tudo isso poderia ser transformado. Comecei a me interessar por caminhos alternativos conhecendo o que se fazia na Escola da Ponte, em Portugal, enquanto ainda estava na faculdade. A partir de então, tudo o que dizia respeito a educação democrática, desescolarização, pedagogia libertária e aprendizagem livre me interessava. Minha ida para São Paulo foi importante porque acelerou o processo: de repente percebi que não era apenas um mundo novo que já estava pulsando, mas vários. A mudança de cidade também contribuiu para fornecer a coragem e a inspiração necessárias para me lançar em um percurso movido, até então, apenas pela inocente curio- sidade. Chegar a um lugar novo significa alterar não apenas o território, mas também as pessoas e as possibilidades. Foi assim que criei um novo documento de texto no computador e fui preenchendo-o com ideias e perguntas que me banhavam como correnteza. Ao se ver no limite, o bloco de notas cedeu a vez para o Word, e “O Início” começou a ser escrito. Meus planos na época eram iguais aos de 15 quase todo mundo que deseja se aprofundar em uma nova área: ingressar em um espaço educativo formal, no caso, a universidade1. Um chamado difícil de ignorar Mas tinha alguma coisa sussurrando no meu ouvido. Era o “doutorado infor- mal”. Quem criou o termo foi o André Gravatá, um dos membros do Coletivo Educ-ação e cofundador do Movimento Entusiasmo. Decidir por empreender meu caminho de aprendizagem na forma de um doutorado informal foi algo to- talmente intuitivo. Minha vida seria mais fácil se eu tivesse entrado na pós-grad- uação tradicional. Contudo, ainda criança eu gostava de resolver os problemas matemáticos das maneiras mais difíceis: minha mãe, professora de matemática, sempre me dizia isso. Eu não queria somente estudar formas mais libertadoras de se aprender, eu queria vivê-las. Na verdade, tudo o que eu queria realmente era vivê-las sentindo na pele o frescor das minhas próprias descobertas. Já estava decidido. Como começar? Eu já tinha um projeto – que fiz quando ainda alimentava a ideia de ingressar na universidade –, e também já sabia de que forma vários pro- jetos que eu admirava conseguiram ser viabilizados: por meio do financiamento coletivo. Fui então aprender sobre crowdfunding (de forma tão natural quanto uma criança que aprende sobre astronomia quando sonha em ser astronauta), e dentro de poucos meses havia estruturado uma campanha. Eu precisava de um nome para o projeto, e talvez por sempre ter gostado das metáforas, escolhi “Educação Fora da Caixa”. Era exatamente como me sentia, dando os primeiros passos para fora do meu quadrado. Em julho de 2014 a campanha começou, e até o final de agosto pude ter uma noção da força da rede. Não economizei es- forços e tantos compartilhamentos e e-mails valeram a pena: o projeto arrecadou 179% da meta inicialmente prevista. Cheguei a enviar uma mensagem a dezenas de amigos e familiares no dia do meu aniversário, semanas antes da campanha, pedindo para que eles economizassem nos presentes a fim de poderem con- tribuir para o projeto. A entrega principal da campanha era um livro com os achados da pesquisa que 1Conto essa história com mais detalhes na carta que escrevi para o André Gravatá. O INÍCIO DOUTORADO INFORMAL 16 eu me comprometia a fazer – e que agora finalmente vê a luz do dia. De lá para cá muita coisa mudou, mas a essência permaneceu a mesma: investigar novas formas de aprendizagem de adultos. Novas no sentido de mais interessantes, mais libertadoras, mais prazerosas. “Nós criamos o que queremos que exista”, como diz a Camila Haddad, uma das fundadoras do Cinese. O principal inter- essado nas descobertas da minha investigação era eu. Minha inquietação não se conteve e foi em busca de outras, até que encontrou mais 161 espíritos curiosos que apoiaram o projeto e confiaram a mim a missão de empreender esta jorna- da. Não há outra palavra para isso que não “emocionante”. O próximo passo depois da campanha foi criar um blog. Como na época eu ainda trabalhava em projetos de consultoria, não sobrava muito tempo para pesquisar. Por isso, comecei escrevendoensaios, uma espécie de preparação para o que estava por vir. Alguns textos desse período foram aproveitados aqui, outros serviram apenas para esquentar os motores e treinar a escrita. De 15 em 15 dias um ensaio novo era publicado, e essa periodicidade me ajudou a criar uma rotina. Mergulhando de cabeça Ter conseguido financiar o projeto coletivamente me revestiu de responsabili- dade, afinal, o dinheiro de muita gente estava em jogo. Mais do que viabilizar a jornada, o crowdfunding me forneceu o comprometimento público que eu precisava para agir. Em fevereiro de 2015 deixei de trabalhar como consultor de forma fixa e finalmente pude mergulhar na pesquisa. Nesse período comecei a alimentar mais frequentemente o blog, que passou a ter em média 3.500 visitas e 1.400 leituras de posts por mês, graças principalmente ao texto “O que é um doutorado, segundo quem?”, que circulou por vários sites diferentes. No total, foram mais de 43.800 visitas e mais de 17.300 leituras (até janeiro de 2016). Os números são apenas uma das formas de dimensionar o alcance do que produzi – ou talvez sejam um resquício das minhas manias de burocrata. Alguns dos textos mais lidos abordavam diretamente o doutorado informal. Desde a campanha de financiamento coletivo, eu já havia percebido o interesse das pessoas nessa estranha junção de palavras. O fato é que eu também estava fascinado pelas possibilidades que uma pesquisa autônoma e independente desencadeava. Na verdade, esse caminho sempre existiu e muitos pesquisadores 17 reconhecidos já o trilharam antes – ainda que com nomes diferentes –, mas é curioso como às vezes a forma com que algo se apresenta pode mudar tudo. “Doutorado informal” soa instigante, tem alma questionadora. Para quem se dispõe a conhecê-lo, ele se torna um convite. Ao conseguir mais tempo para me dedicar ao projeto, iniciei uma série de diálo- gos presenciais e virtuais sobre o doutorado informal em parceria com o amigo André Camargo, que também nutre bastante interesse pelo tema. Também comecei, com a facilitadora Paula Manzotti, a realizar Círculos de Doutorandos Informais2 (CDIs) em diferentes cidades com os objetivos de disseminar a ideia do doutorado informal e fomentar mais percursos autênticos de aprendizagem. Ao longo de 2015 foram vários encontros e dezenas de conversas relacionadas ao doutorado informal realizadas. Isso deu força para nos articularmos como um movimento, e durante esse percurso várias pessoas começaram seus proces- sos de investigação autônomos. Nossa preocupação confluiu para a criação de uma comunidade, e para isso precisávamos de uma unidade comum. Com esse propósito, produzimos o Manifesto do doutorado informal, reproduzido neste livro e disponível também em formato de livro digital3. O Manifesto contém as crenças centrais do movimento e apresenta os cinco princípios do doutorado in- formal: Curiosidade, Autonomia, Percurso, Entrega e Sabedoria. Nossa intenção foi posicionar a nova abordagem para que ela deixasse de ser “qualquer coisa” e se tornasse algo comunicável e inteligível, sem perder seu caráter libertador e disruptivo. Em paralelo às articulações do doutorado informal, abri uma nova “aba” de pesquisa em torno do que chamei de ferramentas de aprendizagem. Eu colecio- nava as metodologias e os formatos educativos mais interessantes que encontra- va e queria entender melhor cada um deles. Criei então o “Kit Educação Fora da Caixa”, que começou como uma série de textos no blog do projeto a respeito das ferramentas pesquisadas. Para viabilizar o Kit iniciei uma segunda campanha 2Os Círculos são eventos de um dia de duração que buscam levar a ideia do doutorado informal para mais pessoas de forma vivencial. Para ler relatos dos CDIs que já ocorreram, acesse o blog do projeto: https://medium.com/@educforadacaixa 3Para fazer o download do Manifesto em versão digital, acesse: http://www.alexbretas.com.br/doutorado-informal O INÍCIO https://medium.com/%40educforadacaixa%0D http://www.alexbretas.com.br/doutorado-informal DOUTORADO INFORMAL 18 de financiamento coletivo, só que desta vez os apoios eram mensais. Ao longo dos meses de maio a agosto de 2015, escrevi sobre 50 ferramentas, que acabaram compondo um livro próprio4. A ideia do Kit apareceu de surpresa: no início não havia nenhuma pretensão em se investigar especificamente metodologias. Mais uma vez resolvi seguir a voz da vontade e não me arrependi. No entanto, ainda havia muito a se fazer. Casos, cartas e reflexões Precisei conciliar a rotina de publicações do Kit com a continuação da pesquisa inicial. Comecei investigando casos inspiradores, algo semelhante aos estudos de caso acadêmicos, mas com uma narrativa mais pessoal e menos neutra. Ao todo são seis histórias de iniciativas que proporcionam oportunidades de aprendiza- gem considerando premissas como a autonomia, a escuta e a vivência de novas experiências. Busquei ter um olhar apreciativo para as organizações, projetos e espaços com os quais interagi, de modo a tentar captar o que de mais lumi- noso cada um deles tem a oferecer. Não me prendi a análises racionalizantes: deixei os casos me revelarem, por meio do que me fizeram sentir, seus segre- dos e histórias. Ao longo do processo, o Universo me reservou algumas gratas surpresas como o Caminho do Sertão, que não estava previsto no planejamento inicial da pesquisa, mas que por pura intuição acabou também sendo incluído no roteiro. Além de aprender sobre iniciativas, também queria dialogar com pessoas. Com isso em mente, comecei a escrever cartas para algumas pessoas que me insti- garam a aprofundar minhas reflexões sobre educação. Não fazia sentido focar apenas em pensadores consagrados: o principal critério de decisão quanto aos destinatários foi o grau de influência que cada um exerceu sobre a minha tra- jetória. Assim, pude ficar à vontade e me sentir como se conversasse com amigos na sala de casa. As seis cartas também servem para apresentar a você pessoas que se tornaram muito especiais para mim, e cujas crenças e práticas educativas valem a pena ser desvendadas. 4O livro pode ser baixado gratuitamente pelo link: http://www.alexbretas.com.br/kit http://www.alexbretas.com.br/kit 19 De forma até mesmo mais intensa do que ocorrera nos casos, acabei enviando cartas para correspondentes que não estavam previstos no trajeto planejado – é o caso, por exemplo, de Paul Feyerabend, que me hipnotizou com sua crítica ácida sobre as pretensões dogmáticas da ciência. Na verdade, mudei quase todos os destinatários em relação ao que previ no começo do projeto, mas o propósito dos diálogos se manteve: expandir olhares em relação às alternativas para uma aprendizagem fascinante e verdadeiramente autônoma. Não vejo problemas nis- so porque acredito que a serendipidade tem um papel fundamental nas desco- bertas de quem confia na sua curiosidade. Serendipidade é reconhecer o fio que nos leva de uma descoberta a outra e confiar intuitivamente em sua trajetória. Você pode imaginar que, tanto nos casos quanto nas cartas, fazer pesquisa desse jeito causa na gente uma série de reações, algumas inesperadas. Por isso, de vez em quando precisei trazer à tona algumas lembranças pessoais e redemoin- hos internos para me ajudar a dar sentido ao que vivi. A ideia de valorizar as conexões entre o que pulsa no mundo subjetivo do pesquisador com o próprio percurso de investigação encontra receptividade em diversos métodos de pesquisa, dentre eles a investigação heurística. Embora apenas tenha me depa- rado com essa metodologia ao final da escrita deste livro, posso dizer que a tive como inspiração desde o começo. Sua principal premissa é que a questão de pesquisa precisa ter um forte apelo autobiográfico, ou seja, o pesquisador deve estar intensa e pessoalmente envolvido. Definitivamente, a jornada em busca de alternativas e pensamentos educacionais libertadores é um caminho que me sensibiliza profundo. A terceira parte do livro édedicada às reflexões sobre o doutorado informal. Tendo como ponto de partida o Manifesto, a ideia é intensificar entendimentos sobre diferentes perspectivas da abordagem e contar a história do movimento. Os cinco princípios também são aprofundados, e, em seguida, por meio de um conjunto de perguntas e respostas, compartilho minhas crenças diante de algumas das questões mais frequentes sobre essa nova forma de se construir conhecimento. Todas as seções respeitam a cronologia da jornada, isto é, escolhi ordenar as histórias considerando o período em que foram escritas. A AIESEC, por ex- emplo, foi o primeiro caso que estudei, e, por isso, também é o primeiro caso a O INÍCIO DOUTORADO INFORMAL 20 aparecer no livro. Acredito que essa lógica é interessante porque pode te ajudar a refazer por meio da leitura o mesmo trajeto que fiz por meio da pesquisa e da escrita. Fui me modificando durante o percurso, e é possível perceber isso ao longo do livro – um dos sinais dessas transformações é que, dentro de cada seção, os capítulos tendem a ficar cada vez maiores. É como se progressivamente eu encontrasse mais o que dizer e soubesse melhor como dizê-lo. Reunindo a tripulação O que você vai encontrar aqui é mais parecido com um diário de bordo do que com uma tese de doutorado convencional. Assim como Juanita Brown, minha mentora no início do processo e destinatária de uma das cartas, o que quero é contar boas histórias e me fazer entender a partir delas. Histórias que transpar- eçam uma visão de aprendizagem diferente daquela que estamos acostumados. Imagine, por exemplo, fazer cursinho para passar em um concurso público ou no vestibular. Horas e horas de determinação, suor, conteúdos intermináveis, a pressão dos simulados, professores despejando fórmulas e “macetes” e um sentimento de culpa por não ter sido tão produtivo quanto deveria. A todo momento ouvimos aquela voz que nos diz “tenho que estudar” e nunca achamos que somos bons o bastante perante nossos concorrentes. Não estou interessado nisso. Qualquer tipo de “aprendizagem” que envolva obrigação, coerção, pressões externas e aquela sensação pesada de “tenho que” não me interessa nesta jornada. Na verdade, na maior parte das vezes, isso não é aprender, é ser ensinado. E, como diz Augusto de Franco5, ser ensinado é o jeito mais eficaz de reproduzir algo, ao passo que aprender é mudar e criar. Para quem quer (ou acredita que precisa) ser ensinado, existem formas muito mel- hores de fazê-lo do que as que eu seria capaz de compartilhar aqui. O que me atrai é quando o aprender se reveste de liberdade, prazer e motivação própria, ou mesmo quando se dá a partir de uma intensa necessidade identificada au- tonomamente. Acredito que as pessoas aprendem melhor assim. Tudo que pesquisei tem a ver com isso: aprendizagem livre. Não se trata de se 5O autor corrobora com essa visão em vários textos, dentre eles, “Multiversidade”, disponível no seguinte endereço: http://net-hcw.ning.com/page/multiversidade http://net-hcw.ning.com/page/multiversidade 21 tornar um autodidata isolado, mas sim de saber como aprender reconhecendo os próprios interesses e colaborando com outras pessoas, em prol de um objeti- vo claro e decidido livremente. Nós não aprendemos a não ser que tenhamos um bom motivo – nosso cérebro é esperto. No limite, os seres humanos querem agir no mundo, e para isso precisamos aprender. É tão natural quanto parece – nós é que criamos barreiras movidos pela crença de que é preciso ensinar os outros. O doutorado informal é um convite para resgatarmos nossa capacidade huma- na de aprender instigados pelo que mais nos cativa e pelo que genuinamente queremos fazer. O percurso registrado neste livro, ao mesmo tempo em que retrata as experiências que vivi dentro do território que me soa mais fascinante no momento, é também uma tentativa de fornecer algumas pistas para quem também quer lançar na aventura da aprendizagem autônoma. A fim de compreender melhor as nuances do conhecimento que se constrói de maneira livre, resolvi eu mesmo virar cobaia. Foi assim que iniciei meu doutora- do informal. Convido você a embarcar nessa jornada. Desde já, seja muito bem-vindo a bordo! O INÍCIO 22 . Casos inspiradores 23 Um começo Certa vez conheci um educador que falava dos “cajueiros floridos antes dos de- mais”, em referência às inovações que pareciam antecipar o futuro. Os primeiros itens do meu roteiro de pesquisa são como cajueiros precoces: de algum modo eles conseguem traduzir no presente sinais poderosos do florescimento que nos espera. Ao investigar casos inspiradores de iniciativas educacionais – ainda que algu- mas delas não lidem diretamente com educação no sentido mais convencional –, minha estratégia foi “me jogar” dentro delas para ver o que saía. Uma das vantagens em não fazer um trabalho totalmente acadêmico é que você pode ser você mesmo. Obtive inspiração no jornalismo gonzo, em que o narrador renuncia à suposta objetividade para se fundir organicamente à história narrada. Outro lampejo veio da investigação apreciativa, em que se acredita que o melhor do que já existe é a base para a construção do que virá. Ambas as referências contribuíram para que os seis casos apresentados a seguir fossem pesquisados a partir da minha própria percepção a respeito de seus núcleos positivos mais vibrantes. E, quando digo percepção, estou me referindo não apenas à leitura cognitiva dos fatos, como também à minha leitura emocional uma vez imerso nas histórias. Investiguei organizações, comunidades e projetos bastante diversos entre si. Iniciativas voltadas para jovens adultos como a AIESEC e o Gap Year do UnCol- lege Brasil convivem com outras que se inserem em contextos sociais e culturais tipicamente marginalizados, como é o caso do Caminho do Sertão e do CIEJA Campo Limpo. Completam o roteiro as casas colaborativas – representadas pela Casa Liberdade, a Laboriosa 89 e a Catete 92 – e o Cinese, todos frutos da crença em uma visão de mundo emergente, o paradigma da abundância. Comecemos por alguns jovens que desde o final da Segunda Guerra têm sonha- do em mudar o mundo. DOUTORADO INFORMAL 24 AIESEC A AIESEC é a maior organização sem fins lucrativos gerida por jovens no mundo. Seu propósito é promover oportunidades de desenvolvimento de liderança por meio de intercâmbios, conferências, parcerias e outras atividades. 6Conforme se vê no verbete sobre a AIESEC na Wikipédia, disponível no link AIESEC. Wikipédia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/AIESEC Na casa que abriga o escritório da diretoria nacional da AIESEC no Brasil, não há qualquer espaço vazio nas mesas de trabalho. Cadernos, gatinhos de dec- oração, garrafas de água, notebooks, post-its, canetas, vozes. Em uma das pare- des, diversos murais com mensagens, cronogramas, desenhos e lembranças. Vozes e lembranças são componentes importantes da AIESEC desde sua origem na Europa, em 1948. A organização, que hoje conta com mais de 100 mil mem- bros em 125 países, foi criada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, num período em que memórias duras fizeram com que jovens de diferentes países do continente começassem a se inquietar e a reescrever suas histórias. A primeira missão vislumbrada pela AIESEC, ainda antes de sua fundação oficial, era “ex- http://en.wikipedia.org/wiki/AIESEC 25 pandir o entendimento de uma nação por meio da expansão do entendimento de seus indivíduos, mudando o mundo uma pessoa de cada vez”6. Essa ampliação de olhares sobre o mundo ocorria de forma central por meio de intercâmbios. Os países escandinavos, neutros na Segunda Guerra, possibil- itaram que seus estudantes continuassem a viajar pela Europa mesmo durante o conflito mundial, e isso ajuda a explicar porque o primeiro congresso inter- nacional da AIESEC aconteceu em Estocolmo, na Suécia. Estudantes de sete países–Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Holanda, Noruega e Suécia – co- criaram, lá, o documento de constituiçãoda AIESEC, cujo propósito firmava-se como “estabelecer e promover relações amigáveis entre seus membros”7. Ao longo da segunda metade do século passado, a AIESEC expandiu-se rapida- mente para outros continentes. Se a missão anterior à sua fundação era expandir entendimentos e o propósito inicial, promover amizades, o que sustenta a organização atualmente é a criação de oportunidades de liderança. Hoje, a visão da AIESEC tem a ver com a promoção da “paz e a realização das potenciali- dades humanas”8, e sua gestão é levada a cabo quase somente por universitários e recém-graduados. Esta “metalinguagem”, isto é, o fato de uma plataforma voltada para fomentar a liderança em jovens ser totalmente liderada por eles, parece impulsionar a organização e ajudar seus membros a enxergar sentido no que fazem. Conversei com duas pessoas que faziam parte, em março de 2015, da diretoria nacional da AIESEC no Brasil. Elas me disseram que as competências que a organização mais consegue desenvolver em sua membresia são a comunicação efetiva, a orientação para a ação, a responsabilidade pelo mundo e o autoconhe- cimento. Esses quatro pontos, ainda que revestidos de outros nomes, são a base 7 Idem anterior. 8 Extraído da mesma página da Wikipédia citada na nota anterior. 9 Basta ver o que projetos como o Mycelium (informações no link http://mycelium.is), o YIP (The In- ternational Youth Initiative Program, disponível no site http://yip.se) e organizações como o UnCollege estão fazendo. CASOS INSPIRADORES http://mycelium.is http://yip.se DOUTORADO INFORMAL 26 de diversos programas de aprendizagem contemporâneos9, e a AIESEC já os promove desde sua fundação. Os intercâmbios e a comunidade global, o aprendizado prático focado na lider- ança e o propósito humanista da AIESEC são os chamarizes que encantam os novos membros da organização, geralmente universitários inquietos. Mais tarde, ao vivenciar as oportunidades oferecidas, seja trabalhando em outro país, seja liderando um comitê local, esses jovens então compreendem a importância das competências que estão desenvolvendo. Ao tomarem essa consciência, a relação que nutrem com a organização se modifica. Uma das integrantes da diretoria nacional me disse: “quando você entra na AIESEC é paixão, mas depois, quando você vai crescendo e se desenvolvendo aqui, vira amor”. Um caminho de investigação que pode nos ajudar a compreender a AIESEC como um potente espaço de aprendizagem é questionar-se por que essa comuni- dade encanta os jovens, ao passo que na experiência da graduação universitária isso nem sempre ocorre. Meu palpite é que, pelo fato de a AIESEC ser uma plataforma de oportunidades de liderança que aposta na responsabilidade de cada indivíduo na busca das experiências de que necessita para se desenvolver, as pessoas precisam exercer sua autonomia. Encontrar (ou desenferrujar) seu protagonismo. Numa estrutura bastante capilarizada e conectada, com diversos comitês locais, conferências, diretorias e pontes com comitês de outros países, os jovens parecem sentir a importância – e a necessidade – de agir por conta própria, em parceria com gente que se move parecido com eles. A lógica do “Faça Você Mesmo” não só é reconhecida, como também valorizada. O time “Às vezes é mais importante ter um perfil específico dentro do time do que um conhecimento técnico. O todo é mais importante que as partes.” O cuidado com a montagem dos times que tocam o dia a dia da AIESEC é muito destacado, conforme se vê na afirmação acima, de uma diretora nacional. Trata-se de uma preocupação menos voltada para os conhecimentos e mais para as habilidades 10 O texto de Amabile pode ser lido no livro The Innovator’s Cookbook: Essentials for Inventing What is Next, organizado por Steven Johnson. Todas as outras citações da autora foram extraídas da mesma fonte. 27 e atitudes. Nesse sentido, é comum que alguém postule uma oportunidade de liderança para uma área específica e seja eleita para outra. Na hora de decidir em relação à escolha do time, um pensamento comum é “ele(a) vai conseguir se desenvolver mais nesta função do que naquela”, o que se encaixa com a necessi- dade percebida pelos membros da AIESEC de se desafiarem continuamente na organização. Reiterando a importância que os membros conferem à montagem de times, Teresa Amabile, em seu ensaio “How to Kill Creativity”10, vai direto ao ponto: De todas as coisas que gestores podem fazer para estimular a criativi- dade, talvez a mais eficaz seja a ilusoriamente simples tarefa de alocar pessoas para os trabalhos certos. Os líderes podem designar pessoas para trabalhos que joguem com sua expertise e suas habilidades de pensamen- to criativo, e assim acender a motivação intrínseca. Alocações perfeitas expandem as habilidades das pessoas. Alocar pessoas em funções desafiadoras com o intuito de expandir suas habili- dades é algo bastante importante dentro da AIESEC. O sentimento de desafio Participei da equipe responsável pela facilitação de duas conferências da AIESEC voltadas para o desenvolvimento de líderes, em 2014 e 2015, chamadas de “Train the Trainers” (“Treinando os Treinadores” numa tradução livre). Na segunda vez que me envolvi, lembro-me de ter identificado dois padrões que ressoavam em várias falas dos membros ao longo do evento: a dificuldade de se desapegar do planejamento excessivo e o sentimento de desafio compartilhado por eles no trabalho dentro da organização. Sobre este último, tanto as experiên- cias de intercâmbio quanto as oportunidades de liderança local, regional, nacio- nal e global proporcionadas pela AIESEC contribuem para despertá-lo. No caso das experiências internacionais, muitas vezes é a primeira ocasião em que os jovens que se tornam membros da AIESEC podem, de fato, experimentar a sensação de tomar suas próprias decisões de forma autônoma. No entanto, isso não quer dizer que eles vão conseguir tudo o que querem. Uma das dire- toras nacionais com quem conversei queria viajar para o Leste Europeu, mas acabou sendo escolhida para fazer um intercâmbio na República Dominicana. Lá, ela trabalhou em um projeto da UNICEF que se ocupava de ensinar edu- CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 28 cação política para crianças simulando o ambiente de uma miniprefeitura. O desafio de aceitar uma oportunidade que não condizia com o seu desejo inicial certamente a fez aprender algo. No entanto, o que uma viagem para a Europa e outra para a América Central têm em comum, neste caso, é que ambas criam condições para que jovens, morando em outro país, liderem a si mesmos. Am- bas favorecem o distanciamento das realidades que o intercambista já conhece para que ele conheça a si próprio por meio do fortalecimento de sua autonomia. Por outro lado, ao pensar em como as experiências de liderança organizacio- nal na AIESEC favorecem o sentimento de desafio, volto ao primeiro padrão que identifiquei no Train the Trainers: a dificuldade de se desapegar. Explico. A convivência ensejada pelo dia a dia de trabalho nos diversos contextos da organização é, também, uma das primeiras oportunidades que os membros da AIESEC têm de trabalhar de forma colaborativa em prol de um propósito no qual eles realmente acreditam. O ambiente é muito diferente se comparado a um trabalho em grupo na sala de aula de um curso universitário, tanto na forma como as tarefas são realizadas quanto na crença de que aquelas ações terão impacto positivo na vida de outras pessoas. Outra diferença é que os comitês e demais espaços de trabalho da AIESEC operam com pessoas de diferentes áreas: é interdisciplinar por definição. Necessidade de colaborar, identificação com o propósito e diversidade de expertises aceleram a aprendizagem, mas também podem, colateralmente, dificultar a convivência e cristalizar apegos. Outro aspecto que parece favorecer o senso de desafio na AIESEC é atuação dos membros. As pessoas são estimuladas frequentemente a ingressarem em novas áreas, mesmoque às vezes saibam bem pouco a respeito de seu funcionamento. “Você não sabe tanto daquilo quanto você imaginava quando entra em uma nova área na AIESEC”, ouvi de uma das diretoras nacionais com quem conver- sei. Isso parece fomentar uma habilidade que o diretor de gestão de pessoas do Google, Laszlo Bock, chamou de “humildade intelectual”. “Sem humildade, você é incapaz de aprender. Pessoas brilhantes e de sucesso raramente experimentam o erro, e então elas não aprendem a aprender a partir daquele erro.”11 11Conforme se vê na entrevista de Laszlo Bock disponível no site Quartz por meio do seguinte link: http://qz.com/180247/why-google-doesnt-care-about-hiring-top-college-graduates http://qz.com/180247/why-google-doesnt-care-about-hiring-top-college-graduates 29 Ao perceber como as experiências de intercâmbio e de liderança organizacional da AIESEC afloram o sentimento de desafio, é possível perceber que essa reali- dade abre espaço para que os jovens trabalhem suas vulnerabilidades e comecem a desconstruir suas certezas. A convivência com o outro e com o mundo é vis- ceral. Os membros aprendem a pedir ajuda, a se perceber no todo e a identificar quais podem ser suas contribuições para o time. Aprendem a jogar junto. Diversidade nacional e internacional Os intercâmbios estão no centro da atuação da AIESEC desde quando a orga- nização foi criada, e não é segredo pensar que esse tipo de experiência amplia olhares e favorece o contato vivencial com outras culturas. Conversando com um amigo que foi ex-diretor nacional de finanças da AIESEC, fui presenta- do com uma história que ocorrera quando ele viajou para a Mongólia. Lá, ele teve uma conversa inspiradora com um russo que não falava nenhum idioma comum aos dele: “Eu precisava estar 100% presente, observando tudo o que ele fazia. Foi uma das conversas mais incríveis que eu já tive. Às vezes falar a língua até atrapalha, porque como nós conseguimos entender facilmente, também nos dispersamos facilmente”. Para mim este é o espírito da conversa: versar junto, tecer entendimentos, sejam eles vocabulares ou não. Somos capazes de dialogar de diversas formas. Subita- mente, a diversidade radical faz descobrir uma humanidade comum, um desejo de ser escutado. No entanto, ao adentrar um pouco mais a AIESEC brasileira, confesso que o que mais me chamou atenção em termos de diversidade tem a ver com experimentar diferentes sotaques dentro do mesmo território. A diretoria nacional da AIESEC no Brasil funciona numa casa em São Paulo compartilhada por toda a equipe diretiva, cada membro vindo de uma região do país. Eles não só se mudam para a capital paulista durante o ano de sua gestão e trabalham juntos no mesmo espaço, como também moram juntos em outra casa bem perto do seu local de trabalho. Uma das diretoras nacionais com quem conversei disse: “Você respira AIESEC. Não consegue dissociar o que é pessoal e o que é profissional. É como um experimento social”. Se nos intercâmbios a diversidade é marcante, no dia a dia da gestão e nas conferências ela se transforma em uma rotina muito positiva. CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 30 Membros de diferentes comitês locais quando se encontram ficam aflitos para poderem conversar, conhecer uns aos outros. À diversidade nacional somam-se uma linguagem própria e um propósito compartilhado, e isso faz com que os jovens fiquem ainda mais próximos. A percepção de valor no erro, isto é, no aprendizado Uma das diretoras nacionais que entrevistei me contou a história de quando se candidatou para ser presidente de seu comitê local. Toda vez que uma pessoa é eleita para um cargo na AIESEC, há um ritual em que seu antecessor lhe joga um balde cheio d’água ou a empurra na piscina. É uma espécie de batismo. Não me lembro das palavras exatas que ela utilizou, mas vou tentar imaginar nova- mente a cena: “Todos que se aplicaram eram muito competentes e tinham muita vontade de ocuparem o cargo. Estávamos em pé, abraçados e ansiosos para saber o resulta- do… O suspense era grande e não fazíamos a menor ideia de quem iria se mol- har. De repente, o balde veio, mas não em minha direção! Mesmo assim, acabei ficando bastante molhada também. Todos nós chorávamos muito e continuáva- mos abraçados”. Em várias conversas que tive com membros da AIESEC ficou nítido o valor que eles enxergam ao receber um “não”. Não ser escolhido para o país que desejava viajar de intercâmbio, não ser eleito para um cargo, não ser alocado na equipe formada para organizar uma conferência, e assim a lista continua. Como existe uma cultura de estímulo ao desafio, uma negativa dentro da organização passa a ser interpretada como uma oportunidade de “dar ainda mais a cara a tapa” (nas palavras de um membro), e também como um convite à reflexão. É claro, tudo isso convive com o sentimento de frustração que uma situação dessas acaba ocasionando. Ressignificar um “não” é sintoma de uma característica mais ampla da AIESEC: parece haver, de fato, uma percepção comum entre os membros de que a orga- 12Maturana construiu esse entendimento ao longo de seus estudos sobre a cognição. Um dos livros em que ele o explicita é a obra “A Ontologia da Realidade”. 31 nização é um espaço de aprendizagem. “Aqui você pode errar”, como me disse uma diretora nacional. Não se trata de venerar o erro, mas de se sentir em um ambiente seguro para, por um lado, ousar e criar, e, por outro, refletir e aprender quando algum erro acontece. Na verdade, a própria percepção do erro já pode ser entendida como um passo em direção ao aprendizado. O biólogo chileno Humberto Maturana afirma que nosso sistema nervoso vive tudo como verdade a cada instante, só fazendo a distinção entre realidade e ilusão (ou erro) na comparação posterior entre experiências, ou seja, por meio da reflexão12. O caminho para aprender, então, passa a ter uma forte relação com o feedback, que, aliás, é outro elemento muito valorizado na cultura da AIESEC. Em todo processo de candidatura a um cargo, por exemplo, há feedbacks para aqueles que se postulam, seja para os que são aprovados, seja para os que não são. Isso se estende a várias outras situações, desde pequenas entregas de um comitê local até a avaliação de uma conferência nacional. Feedback não se aprende em aula. Aprende-se na prática, estando aberto ao outro e à reflexão, e é isso que o ambiente da AIESEC parece proporcionar. Como há um clima de “estamos todos aprendendo”, receber críticas e feedbacks negativos torna-se mais fácil – ou pelo menos um pouco menos doído. O espaço para que o “não”, o erro e o feedback aconteçam é uma das principais razões que parecem tornar a AIESEC um espaço de aprendizagem significativo. “A AIESEC foi o espaço de criatividade, liberdade e autopercepção que eu pre- cisava para me desenvolver como ser humano.” Essa afirmação, de um ex-mem- bro que entrevistei, atesta isso. É possível perceber várias dinâmicas de aprendizagem informal convivendo no ambiente da AIESEC: o autodidatismo, as mentorias e as jornadas de aprendiza- gem são alguns exemplos. Quanto ao primeiro, trata-se de um traço típico de espaços configurados com base na autonomia. É a “correria por conta própria para se descobrir coisas”, conforme colhi em outra entrevista. As mentorias são comuns e parecem ser percebidas como uma fonte valiosa de aprendizados. Membros tornam-se mentores uns dos outros e passam a nutrir uma admiração por aqueles que lhes apoiam. CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 32 Finalmente, alguns exemplos de jornadas de aprendizagem13 que identifiquei são os próprios intercâmbios e as conferências. Às vezes, a equipe responsável por entregar uma conferência é composta por membros de vários locais que passam a morar juntos durante o período de um mês para preparar o evento. Além dis- so, o próprio ato de viajar para participar de uma conferência de três ou quatro dias também pode ser considerado uma jornada. A motivação intrínseca Teresa Amabile,em seus estudos sobre criatividade, apresenta-nos três elemen- tos para se entender a inovação nas organizações: expertise (conteúdos e conhec- imentos); habilidades de pensamento criativo (como as pessoas abordam as questões); e motivação (dividida por ela em duas categorias, motivação extrínse- ca e intrínseca). Vou contar uma história que ouvi de um amigo que foi membro da AIESEC e, em seguida, retornarei ao raciocínio de Teresa. Certa vez, a AIESEC no Brasil decidiu criar uma nova área na organização, chamada de Information Management (Gestão da Informação). Na época, meu amigo integrava um comitê local e foi o responsável por implementá-la em seu escritório. Por conta própria, ele resolveu desenvolver um manual de como uti- lizar a ferramenta que estava sendo criada, fazendo um exercício para tornar a linguagem do material agradável. Por isso, foi convidado a dar uma palestra em uma conferência nacional da AIESEC sobre o documento que havia desenvolvi- do, tendo sido o primeiro membro de sua cidade a receber um convite desta magnitude. Dos três elementos que Teresa Amabile menciona, a motivação é a chave. Segundo ela, expertise e habilidades de pensamento criativo não devem ser desconsideradas, mas a motivação talvez seja o componente mais desafiador dos três – e o que de fato determina o que as pessoas irão ou não fazer. No relato que acabei de descrever, foi o engajamento autêntico o fator decisivo para que a inovação ocorresse. A motivação extrínseca, com suas cenouras e chicotes, tem um limite claro, ao passo que a motivação intrínseca pode mover montanhas. 13Jornada de aprendizagem neste caso é um conceito específico que se refere a viagens e “excursões” capazes de promover aprendizados. 33 Amabile aposta tanto nisso que chegou a elaborar o “princípio da criatividade a partir da motivação intrínseca”, a respeito do qual afirma: “as pessoas maximi- zarão sua criatividade quando elas se sentirem motivadas primariamente pelo interesse, satisfação e desafio que o trabalho que estão fazendo proporciona a elas”. Segundo Teresa, a principal forma de estimular a motivação genuína das pessoas no ambiente organizacional é justamente o que a AIESEC oferece: autonomia nos processos conjugada a um objetivo claro. Ao me contar sua trajetória na organização, a mesma pessoa cuja história narrei acima destacou a liberdade acrescida de um propósito bem definido como as bases que sustentaram sua aprendizagem na AIESEC. Ao perceberem que o objetivo de se estar na or- ganização está intimamente relacionado ao seu próprio desenvolvimento, os membros sentem-se desafiados a exercer sua liderança. No caminho, encontram um ambiente que, ao mesmo tempo em que apresenta alguma estrutura, não engessa. Nas palavras de Amabile: Autonomia em torno do processo fomenta a criatividade porque conferir liberdade a como as pessoas fazem seu trabalho intensifica sua motivação intrínseca e seu senso de dono. Liberdade nos processos também permite às pessoas abordar problemas de formas que utilizam o máximo de sua expertise e de suas habilidades de pensamento criativo. Cercar-se de gente verdadeiramente interessada pelo que faz é outro fator importante para expandir a criatividade, segundo Teresa. Nesse ponto, uma estratégia que os membros da AIESEC parecem adotar é o reconhecimento constante do trabalho de seus pares. Compartilho outra história que traduz bem o que quero dizer. Os membros da AIESEC gostam de surpresas. Em uma das conferências que participei como facilitador, acabei me envolvendo em uma homenagem de uma equipe à sua líder: um agradecimento pelas experiências que haviam vivido sob sua direção. Ao final do evento, estavam todos em círculo, de pé, e pedimos para que as pessoas fechassem os olhos. Conduzimos a diretora – que também estava sem enxergar – para o centro da roda e todos começaram rapidamente a colar post-its com mensagens de gratidão em seu corpo. Ao perceber do que se trata- va, ela abriu os olhos e começou a chorar, agradecendo o carinho que recebera. CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 34 Além de trazer à tona a prática do reconhecimento, relatos como esse apontam para o elevado senso de comunidade da AIESEC. Rituais, símbolos e crenças são compartilhados por membros de diferentes comitês ao redor do globo. Viver a experiência de ser um AIESECo significa uma oportunidade de libertação e pertencimento tão significativa que para muitos membros chega a ser difícil de ser explicada em palavras. Por isso são utilizadas metáforas, como a do trampo- lim: quanto mais forte for o impulso, mais alto se chegará. O desenvolvimento de cada um é responsabilidade de cada um. A AIESEC, entendida como uma plataforma de oportunidades de liderança, tem sido o berço de construção da autonomia de milhares de jovens brasileiros e de outros países. No escritório da diretoria nacional, vozes ocupam todo o espaço e são reflexos de protagonismo e motivação genuína. Lembranças são guardadas em diversas fotos na parede e representam uma trajetória que se iniciou após uma guerra, mas que agora dá outros frutos, muito além dos intercâmbios. 35 O que me ajudou (e pode ajudar você) AIESEC. Wikipédia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/ AIESEC Humberto Maturana. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, 2ª edição. Steven Johnson. The Innovator’s Cookbook: Essentials for Inventing What is Next. Nova York: Riverhead, 2011. Print. “Why Google doesn’t care about hiring top college graduates”. Quartz. Disponível em: http://qz.com/180247/why-google-doesnt- care-about-hiring-top-college-graduates CASOS INSPIRADORES http://en.wikipedia.org/wiki/AIESEC%0D http://en.wikipedia.org/wiki/AIESEC%0D http://qz.com/180247/why-google-doesnt-care-about-hiring-top-college-graduates http://qz.com/180247/why-google-doesnt-care-about-hiring-top-college-graduates DOUTORADO INFORMAL 36 Work hard, play hard Os membros da AIESEC levam muito a sério um jargão que diz: “work hard, play hard” (trabalhe muito e se divirta muito; tradução livre). As festas e os encontros são marcas registradas da comu- nidade global. Por trás disso está o reconhecimento de que os vínculos afetivos são fundamentais não apenas para obter sucesso no que se faz, como também para a vida valer a pena. Criar espaços de interação livres e significativos potencializa a aprendizagem. Se é no coffee break que as melhores conversas ocorrem, como seria uma plataforma capaz de promover encon- tros que se iniciam a partir dos nossos interesses mais autênticos? 36 37 Cinese O Cinese é uma comunidade virtual que conecta pessoas que querem aprender juntas de forma presencial. Encontros sobre qualquer tema podem ser criados no site, quer sejam gratuitos ou pagos. O ponteiro do relógio teimava em não chegar às 19 horas. O dia havia chegado: quinta-feira! O sol já havia terminado de sumir, e isso lhe fazia ter a certeza de que o momento tão esperado distava, agora, poucos instantes. Foi-se alimentan- do uma expectativa a respeito de quem, de fato, viria: amigos de amigos que só se interessaram pela moqueca? Conhecidos que viram o encontro no site e realmente estavam a fim de cozinhar junto? Pessoas de todas as idades que se animaram em conhecer mais sobre música baiana? Ou, simplesmente, gente que há tempos procurava uma oportunidade de dançar? Quando os pensamentos finalmente pararam de vir é que os minutos se ani- CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 38 maram de passar mais rápido: 19 horas! Depois de destilar todo o seu cuidado na decoração da casa, luzes estrategicamente posicionadas, tratou de ajustar os últimos detalhes – a música então começa a tocar e os ingredientes já são separados na mesa da cozinha. Mais algum tempo se passa até que o primeiro descobridor bate à porta. As conversas começam tímidas. Logo depois, chegam mais quatro pessoas. Cinco. Seis. Nove! Sobrevoando a apertada sala e a simpática cozinha em que se concentrava todaaquela gente, era possível ver pessoas que até poucas horas atrás não se conhe- ciam aprendendo a cozinhar juntos, comendo moqueca, bebendo caipirinha e dançando baianamente. As conversas vez em quando ficavam distribuídas em pequenos grupos, quando em vez abarcavam a todos. O receio de ninguém aparecer havia sido substituído por uma sensação prazerosa de novidade, de encantamento. O que por algumas semanas fora apenas um evento criado em um site transformou-se em um espaço de interações muito reais. Não sei se foi assim que aconteceu, mas pelo menos foi o que minha imaginação encenou quando a Camila Haddad, uma das empreendedoras do Cinese, me disse sobre a história de um dos primeiros encontros da plataforma on-line. O Cinese é um site e uma comunidade que nasceu “para promover encontros entre pessoas cheias de vontade de dividir seus conhecimentos, habilidades e experiências”14. A premissa é que a internet pode ser um mecanismo potente para convidar outras pessoas a interagirem e aprenderem juntas, em espaços presenciais. Contatos e conexões ocorrem virtualmente, e trocas de experiências e aprendizados são olho no olho, em qualquer lugar onde haja uma intenção genuína. A mesma premissa que anima o Cinese também está presente em plataformas como a brasileira Nos.vc e em sites como o Meetup, de articulação de comu- nidades em torno de interesses específicos. O início da concepção do Cinese não coincidentemente ocorreu em um encontro sobre desescolarização em São Paulo, onde as irmãs Anna e Camila Haddad conheceram Giovana Camargo, formando o time que hoje empreende a plataforma. Desde o seu nascimento até 14 Conforme se vê na página “Sobre” do Cinese, disponível em http://www.cinese.me/sobre http://www.cinese.me/sobre 39 CASOS INSPIRADORES os dias atuais, o Cinese continua carregando em seu DNA a filosofia da desesco- larização. “Como fazer a ponte entre pessoas que não se conhecem, mas que poderiam aprender coisas juntas?” Essa foi a inquietação inicial que moveu o trio, ainda que cada uma tenha tido a sua motivação pessoal para se vincular ao novo em- preendimento. Camila havia concluído um mestrado sobre iniciativas colabo- rativas no exterior e viu no Cinese uma forma de materializar, na sua própria realidade, o que apaixonadamente estudara; Anna vinha de uma transição de vida e carreira, e fundar a plataforma significou aprofundar seu movimento de desconstruir crenças para dar espaço a novas estruturas de pensamento; e Giovana estava concluindo sua graduação em gestão ambiental com uma série de questionamentos sobre educação, e o trabalho no Cinese lhe ofereceu uma maneira concreta de fazer algo com isso. Elas criaram o que queriam que existisse e, de alguma forma, renasceram junto com o nascimento da plataforma. Sobre esse momento inicial é a Anna quem diz15: A plataforma nasceu da nossa insatisfação com a forma tradicional de aprender e ensinar. Todos nós, durante a nossa vida acadêmica, nas escolas, nas universidades – e mesmo depois – nos cursos, MBAs, pós, mestrados e extensões (e ainda que dentro de ambientes mais descolados como as escolas criativas), aprendemos em um sistema one-to-many, alu- no-professor, sem muita abertura ou interação. Uma pessoa (o professor) é a detentora oficial do conhecimento e impede o fluxo de trocas bem ri- cas entre todas as outras. As pessoas não se conectam, não se identificam, não trocam o quanto poderiam. Se fazem, é fora da sala, nos intervalos e corredores. Por fim, se dá pouca importância para o processo, para a caminhada e os aspectos sutis da aprendizagem. O importante é o resul- tado. E daí as provas, testes, teses, notas e tudo o mais. Para lançar a nova iniciativa, as três organizaram a Semana Cinética, um festival de grandes encontros para reunir pessoas que poderiam se interessar pela ideia da plataforma. O primeiro deles, não poderia deixar de ser, foi sobre educação. Logo depois da Semana, o Cinese entrou no ar. Desde o início não havia pre- tensão de controlar ou fazer nenhuma curadoria sobre os temas dos encontros. 15 Extraído do texto “O que fazemos no Cinese?”, disponível no blog da plataforma. Link: http://blog.cinese.me/post/94002114452/o-que-fazemos-no-cinese http://blog.cinese.me/post/94002114452/o-que-fazemos-no-cinese DOUTORADO INFORMAL 40 Como ouvi na conversa que tive com elas, “não queríamos fazer essa função de escola”. Até porque, na visão de mundo que originou a plataforma, aprender é possível com qualquer pessoa e em qualquer lugar. O Cinese é uma ferramenta para que a cidade se torne um espaço de aprendizagem. Educação não é só conteúdo, e isso a plataforma parece entender bem. Na verdade, o componente principal dos aprendizados que o Cinese proporciona a interação. Como na história do encontro de moqueca e música baiana, o tema do encontro é quase uma desculpa para que aquele processo aconteça. Uma faísca. Revivendo o que o Cinese já provocou nas pessoas, a Camila me disse: “A plataforma parece ser uma coisa muito simples, mas o movimento que ela gerou, os encontros, os estalos, os insights… Pessoas se conheceram, projetos aconte- ceram. Pessoas que se sentiam sozinhas em São Paulo iam aos encontros só para conhecer gente”. Nesse sentido, o Cinese encarna muito bem a ideia de viver-aprender: um é indissociável do outro. Qualquer pessoa pode “revelar” um encontro e todos podem participar dos encontros dos outros, tornando-se “descobridores”. As re- uniões tornam-se espaços de expressão, permitindo que descobridores revelem sua voz, e reveladores descubram-se protagonistas. É possível criar encontros gratuitos ou pagos, de modo que quando é cobra- do qualquer valor a única taxa incidente é a do sistema de pagamento on-line utilizado pela plataforma. Não foi sempre assim. No início do Cinese, o site ficava com 12% de todo o recurso movimentado a partir dos eventos pagos, um modelo de negócio comum a plataformas desse tipo. A decisão da equipe em zerar a taxa de uso, deixando apenas os custos de manutenção e pagamento, vem na esteira de um movimento profundo de questionamento às formas usuais de financiamento de empreendimentos. Mais do que isso, trata-se de uma nova visão de mundo – cuja influência é possível sentir não apenas nos negócios, mas também nas relações pessoais, políticas, na educação e na espiritualidade. Uma visão de mundo abundante Tirar o “pedágio” da plataforma e não buscar outro modelo de financiamento que possa imediatamente cobrir os custos parece loucura. Mas não é: trata-se de uma decisão muito coerente com o princípio da abundância, que tem sido base 41 CASOS INSPIRADORES de diversas iniciativas colaborativas ao redor do mundo. Imagine, literalmente, um pedágio em uma rodovia: cobra-se um valor preestabelecido para que seja permitido a um veículo trafegar pela estrada. Isso gera escassez, porque somente algumas pessoas poderão pagar aquele valor, ao passo que várias outras não – a mobilidade, para muitos, torna-se escassa. Agora, se em outra rodovia não há qualquer tipo de pedágio, alguém continua precisando arcar com o investimento e os custos de manutenção da via (no caso, o Estado), e nesse caso uma decisão também foi tomada, a priori, no sentido de não permitir que nenhum usuário contribua para que a via continue existindo. Em uma de minhas aulas de economia na faculdade, o professor sempre trazia esse exemplo para ilustrar as diferenças entre os modelos público e privado de financiamento de bens de interesse público. Hoje consigo perceber que essas duas formas conservam o mesmo paradigma da escassez: não é conferido poder de decisão ao usuário. E se as pessoas que utilizassem a via, sabendo de antemão quais os custos, pudessem optar por doar um valor escolhido por eles para a ma- nutenção da estrada? Seria possível customizar o preço com base em juízos de valor distintos das pessoas. Isso parte de outra visão de mundo, mais distribuída, livre e baseada na confiança, ou seja, abundante.Foi por meio desse espírito que o Cinese aboliu sua política de fixar o preço de utilização da plataforma. Os custos foram abertos de modo transparente, um mecanismo de financiamento por livre decisão do usuário foi criado – com opções de contrapartidas pontuais ou mensais –, e o código do site foi adaptado para operar sem a taxa de uso. “O Cinese tem que continuar vivo se as pessoas quiserem, se for útil”16 . A ideia é o projeto ser remunerado pelo valor que efetivamente entrega a quem dele se beneficia. Ao anunciar essa decisão em um post no blog da plataforma, a equipe do Cinese também manifestou ao mundo as crenças que animam o princípio da abundância: “As pessoas sustentando coletivamente os projetos nos quais acreditam, libertando-os de patrocinadores, propaganda e modelos de negócio baseados na escassez. Por outro lado, se reapropriando dos processos (no caso do Cinese, o processo de educação) de um jeito mais autônomo e livre”17. 16 Extraído do texto “Chegou a hora: tiramos o pedágio do Cinese”, disponível no blog da plataforma. 17 Idem acima. DOUTORADO INFORMAL 42 Essa nova proposta tem o poder de reforçar nosso senso de comunidade. Charles Eisenstein, autor do livro Economia sagrada, afirma que18 (…) comunidades se tecem a partir de presentes, doações. Presentes cri- am laços de diversas formas porque geram gratidão: o desejo de dar algo de volta ou passar algo à frente. Uma transação monetária, em contraste, termina sempre que o produto e o dinheiro trocam de mãos. As duas partes seguem seus caminhos, separadas. Assim, ainda que o financiamento do Cinese continue a operar pela via mon- etária, a escolha por não fixar preços da plataforma pode ser interpretada como um presente direcionado à comunidade. Ao mesmo tempo, por não impor uma taxa a priori, mais usuários poderão utilizar o site, e o cuidado que cada um terá com a sustentação do serviço é que dirá se ele continuará existindo e evoluindo. O que o ato de não tornar obrigatório um pagamento nem forçar a gratuidade faz é abalar nosso sistema de crenças baseado na hierarquia: não há ninguém impondo nada. A opção por não fazer nenhuma seleção prévia dos encontros que são criados na plataforma também é um reflexo de uma visão de mundo baseada no princípio da abundância. Da mesma forma que não se decide de antemão o preço, tam- bém não se julga quais encontros são relevantes ou não. Não é que essa avaliação não exista: ela é feita o tempo todo pela rede de forma autorregulada, isto é, pelas próprias pessoas que se deparam com os diferentes encontros oferecidos no site. Só faz sentido criar estruturas que legitimam certos conhecimentos em detrimento de outros se operamos em um paradigma hierárquico. É o que a ciência e inúmeras escolas e universidades insistem em fazer. Minha impressão é que, cada vez mais, a equipe do Cinese cuida para que a lógica de funcionamento da plataforma espelhe os valores do paradigma da abundância. Não é tarefa fácil, visto que, como Eisenstein afirma, “a cultura da escassez nos envolve de tal sorte que a confundimos com a realidade”19. Como representante de um movimento novo sem rota preestabelecida, muitos desco- brimentos vão se revelando ao Cinese. 18 Conforme se vê no texto “Um mundo de abundância”, de Charles Eisenstein, traduzido por Camila Haddad e também disponível no blog. 19 Idem nota anterior. 43 CASOS INSPIRADORES Quando sua mãe diz que é gorda Ao longo da existência do site, as empreendedoras da plataforma foram de- scobrindo que, além de ser um espaço para os encontros dos outros, o Cinese também poderia servir às questões que elas mesmas traziam. Percebiam, ainda, que as propostas que partiam de suas próprias inquietações frequentemente ressoavam muito na comunidade. Dentre esses pulsos autorais o caso de maior repercussão é o texto “Quando sua mãe diz que é gorda”, de Kasey Edwards, traduzido pela equipe e publicado no blog da plataforma. Kasey escreveu uma carta à sua mãe e, nela, denunciou de forma pessoal e visceral o quanto o desprezo em relação ao próprio corpo amaldiçoa as mul- heres. Ao tomar contato com o texto, Anna Haddad enviou uma mensagem à autora pedindo permissão para traduzi-lo e publicá-lo. Obteve não apenas uma resposta afirmativa, como também mais dois textos adicionais. A carta traduzida viralizou na internet e teve mais de 50 mil visualizações, além de vários outros desdobramentos nos meses seguintes à publicação. A equipe, então, começou a organizar encontros relacionados ao tema por meio do Cinese. “Prisões Estéti- cas”, “Cosméticos do Bem” e “Saúde Integral da Mulher” foram os títulos de algumas dessas conversas. Nas reuniões, mulheres que inicialmente não conhe- ciam umas às outras tomavam coragem para compartilhar intimidades, expor seus medos, rever atitudes. A onda iniciada pela tradução do texto de Edwards foi capaz de influenciar, inclusive, uma das matérias de capa da revista Vida Simples, a qual, perceben- do a intensidade do movimento, deu o nome “Chega de Dieta” à sua edição de dezembro de 2013. Como colhi na conversa que tive com a equipe, “saber que uma história que incomodava nós três saiu para o mundo e tanta gente se sentiu à vontade para falar é incrível”. E é mesmo. Quando agimos partindo de algo que nos inquieta verdadeiramente, criamos ecos nas pessoas que, de forma consciente ou não, partilham da mesma questão. Uma inquietação muito forte de alguém, quando compartilhada, é capaz de se refletir no todo. A interdependência, então, começa a desempenhar seu papel: percebemos que expor nossas vulnerabilidades pode fortalecer a nós e a quem se aproxima. Tudo no calor da relação. A partir de algo aparentemente tão pequeno DOUTORADO INFORMAL 44 quanto a tradução de um texto, espaços seguros foram sendo criados para que mulheres revisitassem suas crenças. A sensibilização gerada pela carta de Kasey abriu caminho para uma onda de conscientização por meio da troca. E esse pro- cesso só foi possível por conta da disposição da equipe por trás do Cinese em se apropriar de algumas de suas questões mais essenciais e apresentá-las corajosa- mente ao mundo. Crowdlearning A plataforma, em fevereiro de 2016, contava com aproximadamente 15 mil usuários cadastrados e mais de 1.600 encontros realizados. Quanto aos temas, já se falou sobre saúde, feminismo, educação alternativa, economia colaborativa, religião, empreendedorismo, programação, marketing, políticas públicas, edição de vídeo, xadrez, culinária, pedaladas, poesia, storytelling, fotografia, com- posição musical, entre vários outros assuntos. A diversidade desponta porque se trata de uma aprendizagem via multidões: o crowdlearning. “A palavra é esquisita. Mas você faz o tempo todo. Com os amigos num bar. Quando puxa papo com o taxista sobre o que deu ontem no jornal. Quando troca milhares de links de vídeos no Youtube com a nova paquera. Quando toma um café com a vó e ouve histórias da guerra. Quando conhece gente nova.”20 É o que se lê em um texto sobre o conceito no blog do Cinese. Para além de tentar definir exatamente o que crowdlearning significa, o post vai no sentido de desen- caixotar o que entendemos por aprender. O crowdlearning elimina o peso insti- tucional, devolvendo às pessoas a capacidade de se educarem a partir de com- binações autorreguladas entre o que cada um oferece e o que cada um busca. É possível perceber a plataforma, então, inserida em um contexto em que aprender “tem a ver com gente. Com encontro, troca e conexão. Aquela fagulha que faz coisa boa e nova vir à tona. Que desperta aquela vontade grande de descobrir mais de algo. Conhecer mais e mais gente diferente. Buscar novas referências. Frequentar novos cafés. Começar um outro livro. Escrever um poema”21. A internet tem ajudado a despertar o poder da aprendizagem via multidões 20 Extraído do texto “Crowdlearning: aprender é compartilhar”, publicado no blog do Cinese. 21 Idem acima. 45 CASOS INSPIRADORES porque possibilitaa cada um o poder de se conectar com o outro a partir de seus anseios e inquietações. Imagine um monte de gente no mesmo espaço, mas que não se vê, não se fala e não se escuta: o poder desse grupo seria muito reduzi- do porque as pessoas não seriam capazes de perceber sua potência. A internet permite que a aglomeração se veja, e mecanismos como o Cinese habilitam a voz e os ouvidos das pessoas. Reveladores e descobridores apropriam-se, enfim, do seu poder. Como Margaret Wheatley diz, “a inteligência emerge na medida em que o sistema se conecta com ele mesmo de formas diversas e criativas”22. Estamos todos no mesmo sistema humano, e quanto maior a diversidade dos nossos encontros, maior é nossa inteligência coletiva. Plataformas que funcionam com base na ideia de crowdlearning apostam na colaboração, no protagonismo e na abundância como valores fundamentais para fomentar a aprendizagem informal. A multiplicidade de oportunidades que o crowdlearning nos apresenta é um espelho da complexidade do mundo e condiz com o que se percebe no Cinese: “a gente quer ser uma ponte que ajude as pessoas a se encontrarem – para o que quer que seja. Para formar novas redes de apoio, para dividir ideias, para elaborar projetos, para testar, para trocar”23. Apostando na variedade de formas, propus à equipe do Cinese finalizar nossa conversa com a elaboração de um haicai que simbolizasse a essência do que havíamos falado. Elas prontamente aceitaram o convite e, após alguns minutos, cada uma escreveu uma frase. Tomei a liberdade de organizá-las neste micropo- ema: O acontecido aconteceu: aprendi Que a gente só é gente porque não é só É preciso protagonizar a vida para revolucionar o mundo. 22 Citação retirada do texto “The World Café: living knowlegde through conversations that matter”, de Juanita Brown, David Isaacs e a comunidade do World Café. 23 Retirado do texto “O fantástico mundo do encontro: conexão e presença”, disponível no blog do Cinese. DOUTORADO INFORMAL 46 O que me ajudou (e pode ajudar você) Blog do Cinese. Disponível em: blog.cinese.me Cinese. Disponível em: http://www.cinese.me Meetup. Disponível em: http://www.meetup.com/pt Nos.vc. Disponível em: http://www.nos.vc/pt The World Café: living knowlegde through conversations that matter. Juanita Brown, David Isaacs e a comunidade do World Café. Disponível em: http://www.theworldcafe.com/wp-content/ uploads/2015/07/STCoverStory.pdf blog.cinese.me http://www.cinese.me%0D http://www.meetup.com/pt%0D http://www.nos.vc/pt http://www.theworldcafe.com/wp-content/uploads/2015/07/STCoverStory.pdf http://www.theworldcafe.com/wp-content/uploads/2015/07/STCoverStory.pdf 47 Aprendendo com desconhecidos Talvez uma das principais premissas do crowdlearning seja a de que podemos aprender com desconhecidos. As possibilidades que a internet inaugura são como pontes entre pessoas que podem nunca ter se visto antes, mas que subitamente descobrem interess- es e questões comuns. É curioso notar como muitos de nós nos sentimos mais confiantes ao abordar um desconhecido pela internet do que pessoalmente. O Cinese se aproveita disso, facilitando o contato inicial por meio da rede mundial de computadores e depois proporcionando inter- ações presenciais. Em alguns momentos, no entanto, precisamos encarar nossas inseguranças. No meu caso, falar com desconheci- dos cara a cara nunca foi fácil. 47 DOUTORADO INFORMAL 48 Gap Year (UnCollege Brasil) O UnCollege é um movimento em favor da aprendizagem autodirigida surgido nos Estados Unidos que oferece programas para quem quer “hackear” sua educação. Em 2014 o Gap Year, programa de um ano do UnCollege, chegou ao Brasil. “Respeitável público! O que vocês estão prestes a ver agora é algo nunca antes presenciado na face da Terra! Estão preparados? Os incríveis, únicos, excepcio- nais malabares do Senhor Emanuel Maia!” Isso poderia facilmente ter saído da boca de um animador de circo, mas não. Fui eu mesmo quem disse. Numa ilha. Imagine só: oito pessoas jogando Caça ao Tesouro em uma paisagem paradisía- ca, com direito a praia, vila, natureza, pessoas simpáticas e até um navio de cruzeiro. Tendo que cumprir tarefas como cantar com desconhecidos, conseguir comida de graça, amarrar o cadarço de alguém na rua, convencer estranhos a brincar de estátua e até mesmo ganhar dinheiro com algum talento. Parece divertido? 49 Quando cheguei à casa do UnCollege Brasil em Ilhabela (SP), era isso que me aguardava. A Caça ao Tesouro foi a primeira de uma série de atividades sobre networking do dia, e eu não queria ficar só olhando. Como uma amiga diz, é preciso “pesquisar com a pele”, e assim acabei participando ativamente de alguns momentos com a turma. Sendo um dos mentores do UnCollege, eu já conhecia um pouco a respeito do Gap Year, um programa de um ano que se propõe a desenvolver as competências necessárias a quem deseja “hackear” sua educação. O UnCollege estava iniciando a segunda turma do programa no Brasil. Viven- ciar a experiência – ainda que apenas por um curto período de tempo – foi uma oportunidade única. Minha introdução de arena ao show de malabares do Emanuel foi puro improvi- so. Estávamos caminhando à beira mar e correndo contra o tempo para cumprir uma lista de 15 itens bastante inusitados, que se propunham a trazer à tona nossos sentimentos mais profundos relacionados a networking. Precisávamos fazer todas aquelas coisas e ainda fotografá-las ou filmá-las. Não me considero a pessoa mais espontânea do mundo, embora tenha conseguido me abrir mais nos últimos tempos. Por isso, fiquei impressionado com minha reação: eu era realmente capaz de divertir estranhos! Ou, pelo menos, tive a coragem de tentar. Fomos divididos em dois grupos, e o nosso foi logo se abastecendo da empol- gação e alegria do Emanuel. Quando ele teve a ideia de fazer malabares com as laranjas que havíamos ganhado em um restaurante poucos metros antes, não me lembro de ter pensado em nada. Logo o chamei para testarmos o número com as primeiras pessoas que avistamos, e fui construindo o discurso à medida que as palavras iam saindo da minha boca. Ao terminarmos, ganhamos alguns sorrisos, mas infelizmente nenhum dinheiro. Ao retornarmos à casa do UnCollege – uma imponente construção de madeira e vidro fincada no pé de uma mata exuberante –, começamos a refletir sobre a experiência. De minha parte, a expectativa inicial de sentir medo e vergonha foi sendo substituída pela alegria de estar em grupo. Anotei no meu caderno: “é preciso (se) testar antes de condenar”. Fomos tecendo juntos os aprendizados com base na experiência que tivemos: desde as melhores formas de abordar as CASOS INSPIRADORES DOUTORADO INFORMAL 50 pessoas até o reconhecimento das possibilidades imprevisíveis que diferentes interações nos proporcionam. Somente ao final da manhã é que algo um pouco parecido com uma aula ocorreu. Discutimos sobre quatro fatores capazes de conectar as pessoas: a simpatia, a ajuda, a empatia e o feedback. Depois de tudo que passamos, fez todo sentido. Um ano para aprender a aprender Passar por volta de três meses “estudando” networking e outras competências, tendo tempo para desenvolver projetos pessoais e refletindo sobre seu caminho de autoeducação é a primeira fase do Gap Year. Nessa etapa, chamada fase de lançamento, os jovens inscritos no programa moram juntos e participam de atividades com o objetivo de identificar seus interesses e aprimorar suas habili- dades de meta-aprendizagem (aprender a aprender). Habilidades profissionais, efetividade pessoal e capital social também estão no rol dos temas tratados. Depois da fase de lançamento, os participantes ficam livres para escolherem entre três itinerários distintos durante os outros nove meses do programa ou, ainda, criarem seu próprio caminho. Uma das possibilidades é fazer um inter- câmbio em um país desconhecido. A ideia é que aprendam a “se virar” em um contexto muito diferente do que estão acostumados.
Compartilhar