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ESPIRITO SANTO TEORIA DO CRIME CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – FAVENI 1 SUMÁRIO 1 HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO .......................................... 3 1.1 Período Colonial ................................................................................... 3 1.2 Código Criminal no Império .................................................................. 5 1.3 O Período Republicano ........................................................................ 6 2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS ......................................................... 7 2.1 O Sistema Processual Penal Acusatório .............................................. 8 2.2 O Sistema Processual Penal Inquisitivo ............................................. 10 2.3 O Sistema Processual Penal Misto .................................................... 12 2.4 Sistema Processual Penal Brasileiro. ................................................. 13 3 DIREITO PENAL DO INIMIGO ................................................................. 14 3.1 Características ................................................................................... 16 4 TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA ...................................................... 19 4.1 Iter criminis ......................................................................................... 25 4.2 Histórico ............................................................................................. 25 4.3 Fases do iter criminis.......................................................................... 26 4.4 Punibilidade Do Iter Criminis .............................................................. 27 4.5 Relevância Penal Do Iter Criminis ...................................................... 27 4.6 Cogitação ........................................................................................... 29 4.7 Impunidade da cogitação ................................................................... 30 4.8 . Relevância penal da cogitação ......................................................... 31 4.9 Decisão .............................................................................................. 32 4.10 Impunidade da decisão ................................................................... 33 4.11 Relevância penal da decisão .......................................................... 33 4.12 Preparação ...................................................................................... 34 4.13 Impunidade da preparação ............................................................. 35 2 4.14 Relevância penal da preparação ..................................................... 36 4.15 Execução ........................................................................................ 36 4.16 Punibilidade da execução ............................................................... 38 4.17 Relevância penal da execução ....................................................... 40 4.18 Consumação ................................................................................... 41 5 Punibilidade Da Consumação ................................................................... 42 5.1 Relevância penal da consumação ...................................................... 42 5.2 Exaurimento ....................................................................................... 43 5.3 Impunidade Do Exaurimento .............................................................. 44 5.4 Relevância penal do exaurimento ...................................................... 45 6 AS EXCLUDENTES DE ILICITUDE ......................................................... 45 7 ERRO JURÍDICO – PENAL ...................................................................... 47 7.1 Erro sobre elementos do tipo ............................................................. 48 7.2 Erro determinado por terceiro ............................................................. 48 7.3 Erro sobre a pessoa ........................................................................... 48 7.4 Erro sobre a ilicitude do fato ............................................................... 48 8 CULPABILIDADE ...................................................................................... 48 8.1 Do Concurso De Pessoas .................................................................. 49 8.2 Da Aplicação Da Pena ....................................................................... 50 8.3 Da Suspensão Condicional Da Pena ................................................. 55 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 58 3 1 HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO Fonte: www.cepad.ufes.br O estudo da evolução histórica do Direito Penal é de extrema importância para um julgamento correto da mentalidade e dos princípios que nortearam o sistema punitivo contemporâneo. A origem do Sistema Penal Brasileiro veio aos arquétipos do Direito Português, sendo a expressão Sistema Normativo delimitado a ser um conjunto de normas que foram utilizadas no Brasil desde o seu descobrimento. (D’OLIVEIRA, 2014) O Direito Português desempenhou em sua magnitude uma admirável influência na formação aplicada à legislação penal brasileira. Somente em meados de 1830 veio a surgir o primeiro conjunto de normas penais sistematizadas e reduzidas em um único código, agregado a esta norma o princípio da reserva legal, o da anterioridade da lei penal, o da irretroatividade da lei, o da cominação das penas, o da individualização da pena, o da culpabilidade, o da fixação da qualidade e quantidade de penas. 1.1 Período Colonial Em período anterior ao Brasil as regras de convivência social, eram transmitidas verbalmente e sempre impregnadas de misticismo. 4 Antes do domínio Português, imperava a represália privada, sendo que as formas de reação contra condutas ofensivas não possuíam qualquer gradação. Quanto às punições, predominavam as penas corporais, não existindo tortura. As leis advindas de Portugal se impuseram totalmente, e as práticas das tribos indígenas que aqui habitavam, em nada influíram sobre a nossa legislação penal. Quando do descobrimento do Brasil, vigoravam em Portugal as Ordenações Afonsinas, que eram tidas como o primeiro código europeu completo. Em 1521, foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas, que vigoraram até o aparecimento da Compilação de Duarte Nunes de Leão. Ressalte-se que os ordenamentos citados não chegaram a ser eficazes, em face da situação peculiar reinante na colônia. As primeiras manifestações jurídicas, desde 1500 e por cerca de 30 anos, foram as bulas pontifícias, alvarás e cartas-régias, que, embora, não tivessem por destino precípuo reger a vida destas terras, a estas se referem, constituindo, assim os atos iniciais de uma legislação que necessitava de organização e desenvolvimento. A legislação canônica era a emanada do Concílio de Trento e ampliava a jurisdição clerical, tornando ampla a interferência da Igreja em assuntos civis. Na realidade, a lei penal aplicada ao Brasil-colônia era a contida nos 143 títulos do Livro V das Ordenações Filipinas e orientavam-se no sentido de uma ampla e generalizada criminalização, com severas punições. Entre as penas aplicadas, predominava a pena de morte, sendo que também existiam as penas vis (açoite, corte de membros, galés), degredo; multa e a pena-crime arbitrária (que ficava ao arbítrio do julgador, já que inexistia o princípio da legalidade). Essa legislação, extremamente rigorosa, acabou por reger a vida brasileira por mais de dois séculos. (Felix, 2011) Duras críticas surgiram à esta legislação. No âmbito penal referiam ao fato de que a matéria criminal estaria disposta de forma assistemática e irracional: os comportamentos incriminados(em número excessivo) referem tipos difusos, obscuros, por vezes conflitantes; as penas são desproporcionais e sempre cruéis; multas pesadas. Por derradeiro devemos salientar que as leis portuguesas foram interrompidas na região Nordeste do país pela dominação holandesa, mas referida dominação, por uma reação de cunho nacionalista dos brasileiros, em nada contribuiu para a formação do nosso Direito Penal. 5 1.2 Código Criminal no Império Proclamada a Independência, a necessidade de suprir-se as velhas e antigas Ordenações, por outras de caráter atual e inovador, fez com a Constituição de 1824, no seu art.179 parag. 18 determinasse expressamente a concepção de uma nova legislação no âmbito punitivo. Bernardo Pereira de Vasconcelos, em 04 de maio de 1827, foi o primeiro dos dois jurista com a incumbência de elaboração do novo Código a apresentar seu projeto do Código Penal brasileiro. No dia 15 do mesmo mês de maio de 1827, José Clemente remete sua obra à apreciação da Comissão da Câmara encarregada da análise dos trabalhos. O projeto do Código foi aprovado em 23 de outubro de 1830, numa espécie de junção político-jurídica, tendo a participação na elaboração final do Código: Bernardo de Vasconcelos (jurista autor da obra aceita pela Comissão organizadora), Comissão mista composta por integrantes do Senado e da Câmara e por fim, auxiliou no ajuste final a própria Comissão Organizadora designada em colocar em prática o ordenamento penal brasileiro. (Felix, 2011) O Código Penal brasileiro, com características baseadas no pensamento liberal e no princípio da utilidade pública, teve como influência as ideias de Bentham, Beccaria e Mello Freire, bem como dos Códigos franceses de 1810 e 1819 (também conhecido de Napoleônico), do Código da Baviera e do Código da Lousiana. A despeito de ter algumas ideias de compilações anteriores, o Código Penal brasileiro mostrou em muitos aspectos concepções novas e de grande teor no mundo do direito penal. No seu longo período de vigência, o Código Penal de 1830 sofreu muitas alterações provindas no sentido de aperfeiçoá-lo e atualizá-lo de acordo com as modificações sociais transcorridas do próprio tempo. Um exemplo de tentativa de manter a antiga legislação em vigor fora no assunto que tange a respeito dos delitos culposos, este, em 1871 ganhou legislação específica para tratativa de tal assunto. O Código de 1830, como já dito, sustentou muitas alterações sociais, no entanto teve seu dias contados a partir da entrada em vigor da lei da Abolição da Escravatura, de 13 de maio de 1888. Mesmo assim, ainda que em vão, Joaquim Nabuco e João Vieira apresentaram projetos de reforma para atualização do Código, todavia, a Comissão nomeada para estudá-los, na pessoa de seu relator, Batista Pereira, decidiu 6 afinal, que melhor seria a reforma geral do Código. Abriu com isso as portas para o surgimento do até então NOVO CÓDIGO PENAL DE 1890. (Felix, 2011) 1.3 O Período Republicano Batista Pereira, o mesmo encarregado de analisar os projetos de reformas após a Lei Áurea, foi nomeado pelo então Ministro – Campos Sales – para encarregar-se de elaborar o novo Código Penal. Convertido em lei em 11 de outubro de 1890, o novo Código Penal não teve tanto êxito como o seu antecessor, pelo contrário, foi alvo de severas críticas. José Frederico Marques proferiu as seguintes palavras – “O Código de 1830 é um trabalho que depõe a favor da capacidade legislativa nacional mais do que o de 1890, ora em vigência. Superior a este pela precisão e justeza da linguagem, constitui para época em que foi promulgado, um título de orgulho, ao passo que o de 1890, posto em face da cultura jurídica da era em que foi redigido, coloca o legislador republicano em condições vexatórias, tal qual a soma exorbitante de erros absurdos que encerra, entremeados de disposições adiantadas, cujo alcance não pôde ou não soube medir”. Diante de muitas críticas advindas de várias partes de facções penais brasileiras, o governo com a ajuda do ilustre desembargador Vicente Piragibe, em 1932, sistematizou dispositivos esparsos no Código, dando surgimento às Consolidações das Leis Penais. (Felix, 2011) Há três anos do início de sua vigência, já surgia com João Vieira de Araújo, o primeiro projeto de troca do Código Penal. Vetado seu primeiro projeto, João Vieira de Araújo não desistiu e em 1899 enviou um novo projeto, este se perdendo no Senado após aprovação na Câmara. Um novo projeto foi apresentado em 1913, desta vez pelo então penalista Galdino Siqueira. Seu projeto, não veio nem a ser objeto de deliberação no Poder Legislativo. O último projeto frustrado foi de autoria do desembargador Sá Pereira. Seu projeto em pauta numa fase de transição política, pois deu início no final da Política Café com Leite, atravessou a primeira fase do Governo de Getúlio (1930-34) e por fim, quando quase obtinha seu êxito sucumbiu com o Golpe de Estado de 10/11/1937. 7 Finalmente em maio de 1938, apoiado pelos criminalistas participantes da Conferência de 1936, o Prof. Alcântara Machado, entregava ao Governo o anteprojeto da Parte Geral do Código Criminal brasileiro e em agosto do mesmo ano o projeto completo, que iria ser o ponto de partida para Código Penal vigente. A redação apresentada ainda não seria, porém, a definitiva. O projeto ainda sofreu apreciação de uma Comissão formada por Nelson Hungria, Roberto Lira, Narcélio de Queiroz , Vieira Braga e Costa e Silva, sendo sancionado por decreto em 07 de dezembro de 1940. Devidos aos pensamentos controversos e a necessidade constante de reformas, o Código de 1940 começou a receber assim como os anteriores, num determinado, tempo propostas de substituição. Pelo decreto n.º 1.490, de 8 de novembro de 1962, de Nelson Hungria, foi publicado o anteprojeto de Código Penal. Submetido à apreciação de uma Comissão Revisora, transformou-se em Código Penal, pelo decreto-lei n.º 1.004, de 21 de outubro de 1969, retificado pela Lei 6016, de 31 de dezembro de 1973. O Código Penal de 1969, como ficou conhecido, teve sua vigência sucessivamente postergada até que finalmente foi revogado pela Lei 6.578, de 10 de outubro de 1978. (Felix, 2011) 2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS Fonte: www.iped.com.br 8 O processo penal se apresenta, através da história, sob três formas diferentes conhecidas pelos nomes: Acusatória; Inquisitória e Mista. Os sistemas processuais variam de país para país e normalmente, não necessariamente, são reflexo da conjuntura político-social de cada um deles. No Brasil, tendo em vista as incongruências persistentes entre o Código de Processo Penal e a Constituição Federal de 1988, muito se discute, ainda, acerca do sistema processual penal vigente. (Rodrigues, 2013) Resumidamente, nota-se que o sistema processual penal possui as seguintes características: a concentração da persecução penal nas mãos do monarca absolutista, exercido subordinadamente, pelo juiz; ausência de separação de funções (investigar, acusar e julgar) ; a impossibilidade do contraditório e ampla defesa, ou seja, o acusado serve apenas como objeto a ser investigado; todo o curso processual é secreto e escrito nos livros de atas dos inquisidores; há uma enorme discricionariedade do magistrado, através de um sistema de provas que valoriza a verdade real, pelo fato de entenderem que a maior prova a ser coletada é o interrogatório do acusado, sendo obstacularizada a possibilidade de uma testemunha dispor em sentido contrário, o que consolida o princípio testis unus. (Do Lago,2006) 2.1 O Sistema Processual Penal Acusatório O sistema processual penal acusatório tem origem no segundo período evolutivo do processo penal romano, quando a expansão do Império, no final do período republicano, fez necessária a criação de mecanismos mais eficientes de investigação de determinadoscrimes. O aumento do número de causas e a dificuldade de processá-las nas grandes assembleias acarretaram a necessidade de se delegar as funções jurisdicionais do Senado ou do povo para tribunais ou juízes em comissão, órgãos jurisdicionais inicialmente temporários, que levavam o nome de quaestiones, constituídos por cidadãos representantes do povo romano (iudices iurati) e presidido pelo pretor (quaesitor). (Rodrigues, 2013) A importância histórica das quaestiones “se deve ao fato de que elas substituíram as assembleias populares no julgamento dos casos penais, por 9 conseguinte evitando influências políticas e dando à jurisdição um caráter mais técnico e autônomo”. O sistema processual penal acusatório ganhou seus contornos clássicos no Direito Inglês, no reinado de Henrique II, quando foi instituído, em 1166, o chamado trial by jury, no qual o julgamento popular se dividia em duas etapas: a da admissão da acusação e a da aplicação do direito material ao caso. O representante do rei, equivalente ao juiz-presidente, “não intervinha, a não ser para manter a ordem e, assim, o julgamento se transformava num grande debate, numa grande disputa entre acusador e acusado, acusação e defesa.” (Rodrigues, 2013) O Estado, então, para garantir a necessária separação de funções, cria um órgão próprio: o Ministério Público, com origem nos delegados do rei da França do final do século XIV. Assim o órgão ministerial, seria o responsável pela propositura da ação penal quando pública. Mantendo-se a iniciativa da ação penal privada, ou a dependente de representação, nas mãos do particular. Cria-se, assim, o ato de três personagens: o juiz, órgão imparcial de aplicação da lei a ser provocado; o autor, responsável pela acusação; e o réu, que não é visto como um mero objeto do processo, exercendo seus direitos e garantias. Dessa forma, no sistema acusatório, o magistrado deixa de reunir em suas mãos as três funções, manifestando-se, apenas, quando devidamente provocado, garantindo-se, desse modo, a imparcialidade do julgador, última razão do processo acusatório. (Rodrigues, 2013) Pode-se dizer, resumidamente, que o sistema processual penal acusatório apresenta como características as funções de acusar, julgar e defender em mãos distintas; a publicidade dos atos processuais como regra; a presença do contraditório e da ampla defesa durante todo o processo; o réu como sujeito de direitos; a iniciativa probatória nas mãos das partes; a possibilidade de impugnar decisões com o duplo grau de jurisdição; e o sistema de provas de livre convencimento motivado. A principal crítica a este sistema sempre foi, e segue sendo, em relação à inércia do juiz, que, ao deixar exclusivamente nas mãos dos litigantes a produção probatória, terá que se conformar com “as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado.” https://jus.com.br/tudo/separacao 10 O poder inquisitório do juiz é amplo ainda quando às partes é dado requerer a instauração do procedimento, definitivo ou preliminar. Permanece quando lhes é possível instruir o juízo por meio de alegações e produção de meios de prova. Restringe-se, quando o juiz é obrigado a atender a tais pedidos de produção de provas por outro motivo que não seja a demonstração da existência do crime e da autoria; ou quando o juiz é obrigado a instaurar procedimento sempre que requerido pelo autor. Diminui, ainda mais, quando o juiz não pode ter a iniciativa para proceder; e anula-se, definitivamente, se o juiz não pode senão julgar segundo o alegado e provado pelas partes. Este é o tipo processual acusatório puro. No sistema acusatório, o processo continua sendo um instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a gestão da prova está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso. (Rodrigues, 2013) Independentemente de sua característica fundante, fato é que, diante da atual estrutura democrática estatal, diferentemente do que ocorre na maioria dos ordenamentos que adotam o sistema misto, “o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal” e deve ser aplicado de forma efetiva e não como meras promessas. 2.2 O Sistema Processual Penal Inquisitivo O termo “inquisitivo”, nos dicionários, refere-se à inquisição, que designava, no início, o processo adotado desde o século XII pelos tribunais eclesiásticos para investigação criminal, tendo sido o papa Gregório IX quem, no século XIII, instituiu a Inquisição como justiça e tribunal eclesiásticos da Idade Média que julgava os delitos contra a fé, em sua forma definitiva e persecutória, com o objetivo de exterminar aqueles considerados hereges. (Rodrigues, 2013) O sistema processual penal inquisitivo, surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações europeias dos séculos XVI, XVII e XVIII. Surgiu com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal no acusatório privado anterior. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si 11 do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares. Não se admitindo mais a delegação do poder de repressão por ser considerado que discricionariedade nas mãos de um particular acabava por tornar a realização da justiça muito onerosa, quando não acarretava na, tão indesejada, impunidade do autor do delito. A concentração das funções de acusar e julgar nas mãos do Estado-juiz foi, então, a solução encontrada e a característica principal do sistema inquisitivo, o que, claramente, comprometia a imparcialidade do julgador, que passou a tomar a iniciativa da própria acusação a ser julgada por ele mesmo. (Rodrigues, 2013) O sistema inquisitório muda a expressão do processo de forma radical. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. Mais uma vez, a não pacificação doutrinária quanto à característica fundante dos sistemas se reflete, também, no modelo inquisitivo. Com efeito, pode-se dizer que o sistema inquisitório, conduzido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a derradeira concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor. Nos moldes do sistema inquisitivo, portanto, o juiz acaba não formando seu convencimento diante das provas dos autos que, anteriormente, teriam sido trazidas pelas partes, “mas visa convencer as partes de sua íntima convicção, pois já emitiu, previamente, um juízo de valor ao iniciar a ação”. Pode-se apontar como características do sistema processual penal inquisitivo: concentração das três funções (acusar, defender e julgar) nas mãos de uma só pessoa; início da acusação pelo juiz ex ofício; processo sigiloso e sempre escrito; a ausência do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o acusado é visto como mero objeto do processo, e não como sujeito de direitos, sem lhe conferir qualquer garantia; e o sistema da prova tarifada, sendo a confissão a “rainha das provas”. (Rodrigues, 2013) 12 2.3 O Sistema Processual Penal Misto Fonte: teorjuridico.com Com a Revolução Francesa, os movimentos filosóficos da época acabaram por repercutir, também, na esfera do processo penal, retirando, aos poucos, características do modelo inquisitivo, em prol da valorização que passou aser dada ao homem. Esse momento coincidiu com a adoção dos Júris Populares, dando início à passagem para o sistema processual penal misto, predominante até hoje. (Rodrigues, 2013) Com fortes influências do sistema acusatório privado de Roma e do posterior sistema inquisitivo, desenvolvido a partir do Direito canônico e da formação dos Estados nacionais sob o regime da monarquia absolutista, no sistema processual penal misto, a persecução penal seguiu nas mãos do Estado-juiz em fase preliminar, passando o início da persecução penal para as mãos do Ministério Público, responsável pela acusação. O sistema misto, assim, é dividido em duas fases: a primeira, consistente na instrução preliminar, tocada pelo juiz e nitidamente inquisitiva; e a segunda, judicial, sendo a acusação feita por órgão distinto do que irá realizar o julgamento. Percebe- se que, nesse sistema, a imparcialidade do magistrado permaneceu afetada, mantendo-se o juiz na colheita das provas antes mesmo da acusação, quando deveria este ser retirado da fase persecutória, “entregando-se a mesma ao Ministério Público, que é quem deve controlar as diligências investigatórias realizadas pela polícia de https://jus.com.br/tudo/adocao 13 atividade judiciária, ou, se necessário for, realizá-las pessoalmente, formando sua opinião e iniciando a ação penal. (Rodrigues, 2013) O sistema processual penal misto tem como característica básica, portanto, ser bifásico, com “uma fase inicial inquisitiva, na qual se procede a uma investigação preliminar e a uma instrução preparatória, e uma fase final, em que se procede ao julgamento com todas as garantias do processo acusatório”. Sendo o procedimento preliminar secreto, escrito, sem contraditório e ampla defesa; e a fase judicial, oral, pública, com todos os atos praticados em audiência, garantidos ao acusado os direitos de contraditório e ampla defesa. Como não pode haver um princípio misto, consequentemente, também não poderia ser o sistema assim classificado. O sistema seria informado por um princípio unificador, de modo que, em sua essência, seria sempre puramente inquisitivo ou acusatório; misto, apenas em relação a elementos secundários emprestados de um para outro sistema. (Rodrigues, 2013) 2.4 Sistema Processual Penal Brasileiro. Certamente, a tarefa de demonstrar qual o sistema processual penal brasileiro não é fácil81, ainda mais diante da realidade jurídica brasileira, onde o complexo de normas que incidem sobre o processo penal aponta para direções diametralmente opostas. Isso significa dizer que há uma dificuldade em conciliar o Código de Processo de 1941, a Constituição de 1988 e outras tantas normas esparsas que compõe o sistema punitivo. Entretanto, sobre iniciativa da ação penal, imperioso destacar o inquérito policial, precedente e necessário para propositura da ação penal, com intuito de dar justa causa para ação penal, método de investigação preliminar para evitar ações penais desarrazoadas, sem o menor sentido. O inquérito tem a finalidade de reunir indícios suficientes da autoria e atestar a materialidade delitiva, a fim de possibilitar ou não, após o relatório da autoridade policial, o início da ação penal a cargo do órgão de acusação (em regra, o Ministério Público). No entanto, entende-se que o sistema processual penal brasileiro é acusatório, devido à eleição constitucional para tanto, embora se reconheça que há uma dificuldade do legislador, do promotor e do 14 magistrado em lidar com um Código de Processo Penal que está em descompasso com a Constituição (Do Lago,2006) 3 DIREITO PENAL DO INIMIGO Fonte: www.descomplicandoodireito.com.br O direito penal do inimigo ganhou relevo mundial em outubro de 1999, quando Jakobs, na capital da Alemanha, Berlim, trouxe à tona a possibilidade de aplicação de um direito penal diferenciado nos Estados democráticos (CONDE, 2010, p. 94). A consequência prática dessa teoria seria a aplicação de uma política criminal diferenciada, a depender da “espécie” do criminoso e do delito cometido. Na esteira filosófica, Jakobs aproveita as ideias da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, para demonstrar a necessidade da utilização do direito penal como instrumento político de contenção social e para legitimar o uso do direito penal do inimigo. Essa implementação teria espaço em uma sociedade de risco, que será analisada neste capítulo, na qual as diversas transformações tecnológicas, aliadas a uma demanda da produção de elementos que agreguem progresso e bem-estar à sociedade, seriam as responsáveis pela criação de riscos tendentes a desmantelar a paz social. O resultado dessa crescente onda de perigos está estritamente ligado ao crescimento da criminalidade, que atingiu a órbita do direito penal, transfigurando as 15 noções primárias de crime e de pena, apontando para um direito penal preventivo por excelência. (Cazon, 2016) Atualmente o Direito Penal não é mais aquele idealizado pelos iluministas, voltado à proteção do cidadão contra as tiranias do Estado, cuja característica principal era a aplicação de penas restritivas de liberdade e a existência de garantias individuais. O Direito Penal foi se expandido, e novos delitos foram surgindo. Com o passar do tempo as penas também se tornaram mais brandas, aparecendo alternativas que não a restrição da liberdade, como é o caso das penas restritivas de direito e pecuniárias. (Lemes, 2014) O Direito Penal Simbólico se manifesta através da edição de leis elaboradas no clamor da opinião pública, com a intenção de transmitir à sociedade um sentimento de segurança jurídica. Todavia, muitas vezes a norma só é promulgada, mas não efetivamente aplicada. Já o punitivismo jurídico caracteriza-se pelo endurecimento das penas, pela aplicação de um Direito Penal mais rígido. Portanto, o Direito Penal do Inimigo, como é hoje defendido por Jakobs, é resultante da soma dos fatores da expansão do Direito Penal, do surgimento do Direito Penal Simbólico e do ressurgir do punitivismo. (Lemes, 2014) Nesse contexto temos o Direito Penal do Cidadão, cuja tarefa é garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade e o Direito Penal do Inimigo, ao qual cabe a missão de eliminar perigos. Nas palavras de Larizzatti: O direito penal do cidadão tem por finalidade manter a vigilância da norma; o direito penal do inimigo, o combate de perigos. O direito penal do cidadão trabalha com um direito penal do fato; o direito penal do inimigo, com um direito penal do autor. O direito penal do cidadão pune fatos criminosos; o direito penal do inimigo, a periculosidade do agente. O direito penal do cidadão é essencialmente repressivo; o direito penal do inimigo, essencialmente preventivo. O direito penal do cidadão deve se ocupar, como regra, de condutas consumadas ou tentadas (direito penal do dano), ao passo que o direito penal do inimigo deve antecipar a tutela penal, para punir atos preparatórios (direito penal do perigo). Enfim, o direito penal do cidadão é um direito de garantias; o direito penal do inimigo, um direito. Em poucas palavras, a Teoria do Direito Penal do Inimigo diferencia os indivíduos que devem ser tratados como cidadãos daqueles que precisam ser vistos como inimigos do Estado. Este não é pessoa, mas sim inimigo, e nesse contexto a relação que com ele se estabelece não é de direito, mas sim de guerra. (Lemes, 2014) 16 Jakobs (2010, p.28) sustenta que: [...]O Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra. Esta coação pode ser limitada em um duplo sentido. Em primeiro lugar, o Estado, não necessariamente, excluirá o inimigo de todos os direitos. Neste sentido, o sujeito submetido á custódia de segurança fica incólume em seu papel deproprietário de coisas. E, em segundo lugar, o Estado não tem por que fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não fechar um posterior acordo de paz. Mas isso em nada altera o fato de que a medida executada contra o inimigo não significa nada, mas só coage [...] Para Silva Sánchez (2002, p.159 e ss.), a expressão Direito Penal do Inimigo é sinônima de Direito Penal de Terceira Velocidade. Segundo o renomado autor há atualmente três velocidades de Direito Penal: O Direito Penal de Primeira Velocidade é o modelo liberal-clássico que impõe, preferencialmente, penas privativas de liberdade, mantendo-se fiel aos princípios políticos- criminais, as regras de imputação e aos princípios processuais clássicos. Já o Direito Penal de Segunda Velocidade incorpora duas tendências: a flexibilização de algumas garantias penais aliadas à adoção de penas não privativas de liberdade, como as restritivas de direito e as penas pecuniárias. Assim, abrir-se-ia mão de alguns princípios e garantias clássicos em face de menor gravidade das sanções. (Lemes, 2014) A Terceira Velocidade surge da combinação das duas concepções anteriores, ou seja, utiliza-se da pena privativa de liberdade (característica da Primeira Velocidade) juntamente com a flexibilização de garantias penais e processuais (como faz o Direito Penal de Segunda Velocidade). 3.1 Características O Direito Penal do Inimigo possui, de forma geral, três principais características, quais sejam: a antecipação da tutela penal, a desproporcionalidade das penas e a relativização das garantias penais e processuais. (Lemes, 2014) Assim, há uma maior punição aos atos meramente preparatórios além de um aumento na tipificação de delitos de perigo abstrato e de mera conduta sem que haja uma redução da pena, caracterizando a desproporcionalidade das sanções. 17 Jakobs descreve as principais características do Direito Penal do Inimigo como (MORAES, 2008, apud JAKOBS, p.169): a) ampla antecipação da punibilidade, ou seja, mudança de perspectiva do fato típico praticado para o fato que será produzido como no caso de terrorismo e organizações criminosas; b) falta de uma redução da pena proporcional ao referido adiantamento (por exemplo, a pena para o mandante/ mentor de uma organização terrorista seria igual àquela do autor de uma tentativa de homicídio, somente indicando a diminuição referente à tentativa); c) mudança da legislação de Direito Penal para legislação de luta para combate à delinquência e, em concreto, à delinquência econômica. Luiz Flávio Gomes, na obra “Direito Penal do Inimigo (ou Inimigo do Direito Penal)” elenca de forma clara as principais características que entende pertencer ao Direito Penal do Inimigo: (a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), mas sim o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito Penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinquir, continua com o status de pessoa, já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o Direito Penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal) para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim justifica- se a antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma), e em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente no estágio prévio, em razão de sua periculosidade; 18 Continua o autor expondo que suas principais bandeiras são: (a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; (c) aumento desproporcional de penas; (d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; (h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); (i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); (j) infiltração de agentes policiais; (l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); (m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.). Segundo Jakobs, o Direito Penal do Inimigo não visa garantir a vigência de uma norma – esse é o papel do Direito Penal do Cidadão – mas sim a eliminação de um perigo. (Lemes, 2014) Por isso, quando um indivíduo comete certos crimes graves, pratica reiteradamente ilícitos penais ou então participa de uma organização criminosa, deve ser tratado como inimigo, pois “se tem afastado (...), de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa” (JAKOBS; MELIÁ,2010, p.34). Sendo o Direito Penal do Inimigo direcionado a esse tipo de criminoso. 19 Fonte: www.provadaordem.com.br Já o Direito voltado para o cidadão teria por característica básica o fato de que, quando uma norma é violada, é dada ao cidadão infrator a chance de restabelecer a vigência da norma através da aplicação de uma pena, que é o resultado da aplicação de um devido processo legal. 4 TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA A teoria da imputação objetiva surge no mundo jurídico a partir da doutrina de Roxin, pois este, passa a fundamentar os estudos da estrutura criminal analisando os aspectos políticos do crime. Para alguns doutrinadores a teoria da imputação objetiva consiste na fusão entre a teoria causal, finalista e a teoria da adequação social, em contrapartida, há o entendimento de que esta é uma teoria nova e revolucionária que conceitua que no âmbito do fato típico, deve-se atribuir ao agente apenas responsabilidade penal, não levando em consideração o dolo do agente, pois este, é requisito subjetivo e deve ser analisado somente no que tange a imputação subjetiva. 20 Esta teoria determina que não há imputação objetiva quando o risco criado é permitido, devendo o agente responder penalmente apenas se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante. A teoria da imputação objetiva foi paulatinamente desenvolvida pela doutrina alemã ― a partir das construções de Karl Larenz para o Direito Civil e do seu traslado, por Honig, para o Direito Penal ― com vistas à revitalização da ciência jurídico-penal, contaminada por excessivas doses de subjetivismo que já comprometiam a segurança do tipo. Para tanto, lançou mão de conceitos como a criação do risco permitido, o incremento e a diminuição do risco proibido e a esfera de proteção da norma penal, concretizando uma abordagem funcional do Direito Penal. No escólio de Günther Jakobs, determinada conduta carece de imputação ao tipo penal se, apesar da lesão ao bem jurídico-penal, não frustrou as legítimas expectativas sociais que se impunham ao sujeito em face de seu rol pessoal de deveres e obrigações (assim, e.g., quando o boxer golpeia e fere seu oponente). (Feliciano, 2006) A imputação objetiva, tal como o domínio do fato, é umconceito aberto. Não admite definição estritamente técnica, parametrada pelo “genus proximum” e pela “differentia specifica” (como se espera de todo conceito precisamente científico). Admite tão-só uma noção consistente e uma ubiquação (em ambos os casos, no âmbito do fato típico penal). E os autores, com efeito, evitam definir concretamente o que seja a “imputação objetiva” (teoria, método, relação normativa, etc.). Mas a sua noção é haurida, por indução, da casuística; fia-se, pois, em um procedimento descritivo que operacionaliza a teoria a partir de elencos contextuais não exaustivos. Para as hipóteses que não admitem adequação aos casuísmos mais frequentes, a noção subministra ainda princípios reguladores que iluminam os juízos autorizados (diminuição, criação e incremento do risco, âmbito de proteção da norma, princípio da confiança etc.). (Feliciano, 2006) Apesar de certa divergência doutrinária, majoritariamente tem-se entendido como conceito analítico de crime o fato típico, ilícito e culpável. Ou seja, uma ação ou omissão, ajustada a um modelo legal de conduta proibida, contrária ao direito e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor. Assim, a primeira análise para saber se determinado fato da vida real deve ser ou não penalmente valorado, é submetê-lo ao tipo descrito na norma para se encontrar a tipicidade. Após isso, não bastando a mera subsunção ao tipo, é indispensável que 21 a conduta do agente seja ligada ao resultado pelo nexo causal (trinômio: conduta + nexo + resultado). Sob esse prisma jurídico, o conceito de conduta mais adotado é o da teoria finalista: conduta é ação ou omissão, voluntária e consciente, que implique em movimentação do corpo humano, voltado a uma finalidade. É esta conduta que deve dar causa ao resultado, gerando o vínculo necessário para se formar o fato típico. Este trinômio só faz sentido nos crimes materiais, isto é, naqueles que necessariamente relacionam a conduta a um resultado concreto. Os delitos de atividade, que se configuram na mera realização da conduta, pouco importando se há ou não resultado naturalístico, praticamente não se valem da teoria do nexo causal. Neste sentido, para a determinação desta relação de causalidade, o Código Penal Brasileiro adotou o que chamamos de Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais, onde quaisquer das condições que venham a compor a totalidade dos antecedentes, seria causa do resultado, pois a sua inocorrência impediria a produção do evento. Esta teoria sofre críticas por ser geradora de uma regressão ao infinito, colocando no nexo causal condutas que, dentro da lógica, são despropositadas. Pretende-se sanar os problemas existente, qual seja, a determinação de quando a lesão de um interesse jurídico pode ser considerada “obra” de uma pessoa, uma outra teoria chamada de Imputação Objetiva, hoje dominante da Alemanha e bastante difundida na Espanha, tem ganhado fôlego no Brasil. Ela tem por finalidade imputar ao agente a prática de um resultado delituoso apenas quando o seu comportamento tiver criado, realmente, um risco não tolerado, nem permitido, ao bem jurídico. No caso apresentado, a fabricação lícita da arma não poderia ser considerada causa do resultado, pois o fabricante não teria produzido um risco não permitido e intolerável ao bem jurídico. Com efeito, a Imputação Objetiva é uma teoria originária de Karl Larenz e Richard Honig nos anos 30 que permaneceu adormecida na Alemanha até obter o seu grande impulso pelas mãos de Claus Roxin na década de 70 (PRADO, 2006). Ela surge com a finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes causais, ou seja, uma limitação da responsabilidade penal, de modo que a atribuição de um resultado a uma pessoa não é determinado pela relação de causalidade, mas sim pela realização de um risco proibido pela norma. 22 “Deixa-se de lado a observação de uma relação de causalidade puramente material, para se valorar uma outra de natureza jurídica, normativa. (...) Não é propriamente, em que pese o nome, imputar o resultado, mas, em especial, delimitar o alcance do tipo objetivo, de sorte que, em rigor, é mais uma teoria da ‘não imputação’ do que da imputação” (GRECO, 2011). Nesta teoria, a preocupação não é, à primeira vista, saber se o agente atuou efetivamente com dolo ou culpa no caso concreto. A análise é feita antes dessa aferição, vale dizer, se o resultado previsto na parte objetiva do tipo pode ou não ser imputado ao agente. O estudo da imputação objetiva acontece antes mesmo da análise dos seus elementos subjetivos, onde sua ausência (da imputação objetiva), conduz à atipicidade do fato (GRECO, 2011). “A imputação é chamada de objetiva porque essa possibilidade de previsão não é aferida com base na capacidade e conhecimentos do autor concreto, mas de acordo com um critério geral e objetivo, o do “homem inteligente- prudente”. (...) O critério que permite imputar ao sujeito determinado fato e diferenciá-lo dos acontecimentos fortuitos é a finalidade objetiva. (...) Examina-se não o conhecimento e a vontade atuais do autor, mas sim suas capacidades potenciais. Por isso trata de uma imputação objetiva, já que esta não indica qual a relação psíquica existente entre o sujeito e o resultado a ele imputado” (PRADO, 2006, p. 318). Dessa forma, Claus Roxin, fundamentando-se no chamado Princípio do Risco, cria uma teoria geral da imputação para os crimes de resultado, com quatro vertentes que impedirão a sua imputação objetiva (GRECCO, 2011): a) a diminuição do risco: pelo critério da diminuição do risco, a conduta que reduz a probabilidade de uma lesão não se pode conceber como orientada de acordo com a finalidade de lesão da integridade corporal; b) a criação de um risco juridicamente relevante: se a conduta do agente não é capaz de criar um risco juridicamente relevante, ou seja, se o resultado por ele pretendido não depender exclusivamente de sua vontade, caso este aconteça, deverá ser atribuído ao acaso; c) o aumento do risco permitido: se a conduta do agente não houver, de alguma forma, aumentado o risco de ocorrência do resultado, este não lhe poderá ser imputado; d) a esfera de proteção da norma como critério de imputação: somente haverá responsabilidade quando a conduta afrontar a finalidade protetiva da norma. Ex. A mata B e a mãe da vítima ao receber a notícia sofre um ataque nervoso e morre. Neste caso, A não pode ser responsabilizado pela morte da mãe de B. 23 Outro grande defensor da imputação objetiva, embora de linha diversa, é Gunther Jakobs. Sob a sua ótica, são analisadas outras vertentes da teoria, dando ênfase à imputação do comportamento. Neste pensamento, considerando o fato que o homem é um ser social e, portanto, divide seu espaço mantendo contatos sociais, cada um de nós exerce determinado papel na sociedade. Assim, o modo normativo da imputação objetiva deve levar em conta esses padrões de comportamento que orientam os membros da comunidade (homem vinculado a papéis sociais). Com isso, Jakobs traça quatro instituições jurídico-penais que irão orientar a imputação (GRECCO, 2011): a) risco permitido: se cada um se comporta de acordo com um papel que lhe foi atribuído pela sociedade, mesmo que a conduta praticada importe na criação do risco de lesão ou perigo de lesão aos bens de terceira pessoa, se tal comportamento se mantiver dentro dos padrões aceitos e assimilados pela sociedade e se dessa conduta advier algum resultado lesivo, este será imputado ao acaso; b) princípio da confiança: de acordo com este princípio, não se imputarão objetivamente os resultados produzidos por quem obrou confiando que os outros se manterão dentro dos limites do perigo permitido; c) proibição de regresso: se determinada pessoa atuar de acordo com os limites de seu papel, a suaconduta, mesmo contribuindo para o sucesso da infração penal levada a efeito pelo agente, não poderá ser incriminada; d) competência ou capacidade da vítima: se a vítima, por sua própria vontade, tiver se colocado na situação de risco, afasta a responsabilidade do agente produtor do resultado. 24 Fonte: www.tvreplay.com.br Contudo, apesar desta aparente evolução teórica na valoração penal de certo fato da vida real, a teoria da imputação objetiva ainda sofre duras críticas de autores brasileiros, visto que em muitos casos as soluções que ela oferece seriam resolvidas pelas teorias já existentes: “Sintetizando, seus reflexos devem ser muito mais modestos do que o furor de perplexidade que está causando no continente latino-americano. Porque a única certeza, até agora, apresentada pela teoria da imputação objetiva, é a incerteza de seus enunciados, a imprecisão dos seus conceitos e a insegurança de seus resultados a que pode levar! Aliás, o próprio Claus Roxin, maior expoente da teoria em exame, afirma que ‘o conceito de risco permitido é utilizado em múltiplos contextos, mas sobre o seu significado e posição sistemática reina a mais absoluta falta de clareza’. (...) A relação de causalidade não é suficiente nos crimes de ação, nem sempre é necessária nos crimes de omissão e é absolutamente irrelevante nos crimes de mera atividade; portanto, a teoria da imputação objetiva tem um espaço e importância reduzidos.” (BITENCOURT, 2010, p.251-253) Assim, apesar da teoria da Imputação Objetiva ter surgido com a pretensão de substituir a doutrina da causalidade material, esta ainda não é uma teoria definitiva, necessitando ainda de estudos e de um certo amadurecimento. No momento, sem prescindir de maneira absoluta da causalidade, a Teoria de Imputação Objetiva é seu complemento, fornecendo solução adequada às hipóteses em que as doutrinas naturalistas não apresentam respostas satisfatórias. 25 4.1 Iter criminis O caminho do crime, também denominado iter criminis, consubstancia-se num processo que tem seu início ainda no foro íntimo da pessoa, com o surgimento da ideia criminosa na mente do agente, e que culmina na consumação do delito, quando da reunião de todos os elementos do tipo penal. Nesse mesmo sentido, assevera Mirabete: “Na realização do crime há um caminho, um itinerário a percorrer entre o momento da ideia de sua realização até aquele em que ocorre a consumação. A esse caminho se dá o nome de iter criminis”. Também nesse diapasão, pode-se destacar a lição de Garcia: “Para chegar à fase de consumação, o delinquente transita por uma série de etapas, que constituem o iter criminis – o caminho do crime, o desenvolvimento da ação delituosa. Assim procede em busca da meta optata – o seu escopo, o resultado final”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) De outro lado, Zaffaroni e Pierangeli sustentam que esse caminho, ou processo, não se esgota na consumação, mas sim no exaurimento. Cabe frisar, por oportuno, que o exaurimento, como se verá adiante, nem sempre ocorre, de modo que o iter criminis pode perfeitamente findar com a consumação do delito. O iter criminis pode ser conceituado, portanto, com respaldo nos ensinamentos de Becker, Mirabete, Zaffaroni e Pierangeli, como um caminho que tem seu início ainda no foro íntimo do agente, e que culmina na consumação ou no exaurimento do crime. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Nesse mesmo sentido, têm-se as lições de Estefam, segundo o qual “Por iter criminis entende-se o itinerário, o caminho do crime, isto é, as etapas da infração penal, desde o momento em que ela é uma ideia na mente do agente até a sua consumação”. 4.2 Histórico Os glosadores e comentadores italianos do final da Idade Média é que deram início ao estudo do iter criminis, em atenção ao conturbado cenário político-social da época, com a preocupação de estabelecer critérios que permitissem a defesa da segurança social. 26 “Esta preocupação surge num momento de desorganização político-social, com a sobreposição confusa de leis e costumes de origens diversas. A caótica realidade social exigia respostas, tornando inafastável o problema da extensão da punibilidade a um momento anterior à consumação do delito”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Já se mostrava imperioso, na época, estabelecer critérios que propiciassem a defesa da sociedade, tutelando, ao mesmo tempo, os direitos e liberdades individuais. Nota-se, portanto, que a distinção entre os atos puníveis e atos que devem permanecer impunes encontra suas origens em exigências de cunho político-social. 4.3 Fases do iter criminis Neste cenário, quando fracionado o instituto, foram identificadas quatro etapas sequenciais: o desígnio, a externação, o ato remoto e o ato próximo. E nessa esteira prosseguiram os estudos realizados nos séculos posteriores, sempre na busca por critérios para o estabelecimento de limites que justificassem a impunidade ou a punição. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Os estudos mais modernos, ainda amparados nos mesmos objetivos, identificam não apenas quatro, mas seis etapas no iter criminis: a cogitação, a decisão, a preparação, a execução, a consumação e o exaurimento. Nesse diapasão, mostra-se oportuna a lição de Zaffaroni e Pierangeli: “Tenhamos em consideração que o delito se inicia, cronologicamente, com uma ideia na mente do autor, que através de um processo que abrange a concepção (ideia criminosa), a decisão, a preparação, a execução, a consumação e o exaurimento chega a afetar o bem jurídico tutelado na forma descrita pelo tipo”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Em sentido distinto, Mirabete sustenta que o caminho do crime é composto de uma fase interna, que abrange apenas a cogitação, e de uma fase externa, que compreende os atos preparatórios, os atos de execução e a consumação, excluindo a decisão e o exaurimento. É esse também o entendimento de Capez. Optamos pela posição mais abrangente, defendida por Becker, Zaffaroni e Pierangeli, uma vez que, como se demonstrará adiante, não há como não considerar a decisão como uma fase autônoma do iter criminis. O mesmo se aplica ao exaurimento que, malgrado nem sempre ocorra, quando presente, mostra-se como verdadeira fase desse caminho. 27 4.4 Punibilidade Do Iter Criminis Segundo o critério material, o iter criminis torna-se punível quando se verifica que houve perigo ao bem jurídico. De acordo com o critério formal a punição pode se verificar com o a realização do tipo, quando se inicia a realização da conduta nuclear. Em regra, o iter criminis começa a ser punível quando tem início a fase de execução, por serem atípicos os atos preparatórios e as fases que os antecedem. As lições de Mirabete, Capez e Becker também convergem nesse sentido. Nessa esteira, ensina Garcia: (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) “Instaura-se a eventualidade da pena tão-só quando o agente penetra no campo dos atos executivos, passando a concretizar o seu desígnio no fato penalmente proibido. Nem podia deixar de ser assim, porquanto larga margem de atividade lhe sobraria até a consumação, sendo bem possível que desistisse em meio ao iter criminis. Ora, a desistência, como adiante veremos, anula a tentativa. Como, pois, alçar ao grau de tentativa punível a mera preparação? ” Diz-se em regra porque o legislador, às vezes, transforma atos meramente preparatórios em tipos penais autônomos, como ocorre com os crimes de conspiração para a prática de motim e de quadrilha ou bando, destacados por Zaffaroni e Pierangeli, e de falsificação de moeda, lembrado por Mirabete. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Em outros casos o legislador tipifica como crimes independentes atos de externação a terceiros da cogitação ou da decisão, a exemplo do que ocorre nos crimes de ameaça, e de incitação ao crime, oportunamente destacados também por Mirabete, que também fogem à regra. 4.5Relevância Penal Do Iter Criminis Consoante escólio de Bitencourt, “O Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”. O mesmo autor ainda destaca, de maneira oportuna, que: “Esse conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível e convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos correntes, observando rigoroso princípio de justiça. Com esse sentido, recebe 28 também a denominação de Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, libertando-se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador, assumindo seu verdadeiro papel, reconhecidamente valorativo e essencialmente crítico, no contexto da modernidade jurídica”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Fonte: reescrevendodireito.blogspot.com.br Em sentido análogo, ensina Toledo: “Sob esse ângulo, o direito penal é realmente aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispões sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medidas de segurança a serem aplicadas. Usa-se também a expressão como sinônimo de ‘ciência penal’. No último sentido, direito penal é um conjunto de conhecimentos e princípios, ordenados metodicamente, de modo a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos correntes, segundo critérios rigorosos de justiça”. Como todo processo, o iter criminis compreende uma série de etapas que se sucedem de maneira coordenada com vistas a uma finalidade determinada. Boa parte delas, porque extremamente subjetivas, costumam ser ignoradas pela doutrina. Nesse diapasão: “Para o que desejamos, interessa-nos assinalar alguns desses momentos, aqueles que são o que o tico considera, para abraçar, desde logo, o fato dentro do campo do que é proibido ou dele fazer depender uma consequência prática. Todos os demais momentos que se pode assinalar – que têm 29 importância para outras disciplinas, como as Ciências da conduta, por exemplo – não possuem importância prática para nós”. Regra geral, as etapas que se verificam no foro íntimo do agente não podem ser atingidas pela tipicidade, na conformidade do antigo e elementar princípio cogitationis poenam nemo patitur (ninguém pode sofrer pena pelo pensamento), o que leva alguns doutrinadores a considerarem-nas irrelevantes para o Direito Penal. Assim entendem Capez, Zaffaroni e Pierangeli. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Ocorre que cada etapa do iter criminis, inclusive aquelas chamadas penalmente irrelevantes, está diretamente relacionada a outros elementos inerentes ao conceito analítico de crime, que podem nelas ser facilmente localizáveis. Tem-se como exemplos o induzimento na fase de cogitação, a instigação na fase de decisão, a tentativa, a desistência voluntária e o arrependimento eficaz, nas fases de preparação e execução, o termo inicial da prescrição na consumação e o arrependimento posterior na fase de exaurimento do delito. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Nesse diapasão, oportunamente assevera Toledo que “Com esse sentido, atribui-se à ciência penal uma função criadora, não se limitando ela a repetir as palavras da lei ou a traduzir-lhes o sentido estático, ou a vontade histórica do legislador”. Destarte, ainda que algumas fases não sejam atingidas diretamente pela punibilidade, não podem ser ignoradas pela dogmática penal ou relegadas apenas à psicologia, à psiquiatria ou à antropologia. Contrariamente ao que sustentam os renomados doutrinadores citados, não há como negar a sua importância prática e científica, pois o Direito Penal, como se viu, não se resume ao conteúdo expresso na lei. 4.6 Cogitação A cogitação é a fase inicial do iter criminis. Desenvolve-se no foro íntimo do agente e é de grande interesse para o estudo da personalidade, desenvolvido pelas ciências do pensamento, notadamente a psicologia e a psiquiatria. Nessa esteira, ensina Becker: 30 “É caracterizado, muitas vezes, por uma profunda e conflituosa batalha que se desenvolve entre impulsos contraditórios e ambivalentes, provindos do consciente e do inconsciente do agente. É o momento de confronto entre forças opostas, entre a spinta e a contro spinta criminosa, entre Eros e Tanatos, entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, como se refere parte da psiquiatria, ou entre a virtude e o pecado, como aponta a teologia”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Nesta etapa o agente apenas pensa em praticar o delito, num momento de reflexão e imaginação que, geralmente, está envolto em indecisão e indefinição. Segundo Nucci, “é o momento de ideação do delito, ou seja, quando o agente tem a ideia de praticar o crime”. Em alusão à cogitação, Bitencourt ensina que “Como em todo ato humano voluntário, no crime a ideia antecede a ação. É no pensamento do homem que se inicia o movimento delituoso, e a sua primeira fase é a ideação”. Nesse diapasão: “É a elaboração mental da resolução criminosa que começa a ganhar forma, debatendo-se entre os motivos favoráveis e desfavoráveis, e desenvolve-se até a deliberação e o propósito final, isto é, até que se firma a vontade cuja concretização constituirá o crime. São os atos internos que percorrem o labirinto da mente humana, vencendo obstáculos e ultrapassando barreiras que porventura existam no espírito do agente”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) 4.7 Impunidade da cogitação Os princípios cogitationis poenam nemo patitur e de internis non curat praetor são regras gerais, advindas da mais conhecida tradição jurídica romana[59]. A fase de cogitação é absolutamente impune, uma vez que se desenvolve no campo impenetrável do “claustro psíquico”. Nessa esteira, destaca Becker: “Os fundamentos deste princípio provém de várias fontes, tendo sido lembrado inclusive por Beccaria. O grande pensador alertava para as limitações do julgamento humano, com seus imperfeitos recursos, o que impossibilita a correta interpretação dos pensamentos e das intenções dos homens”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) O reconhecimento de tais princípios decorre, igualmente, da dificuldade de controlar os pensamentos. Como bem aponta Jakobs, o os pensamentos pertencem à esfera constitutiva da pessoa e controlá-los destruiria a pessoa livre. Já advertia Carrara que castigar o pensamento é a fórmula comum com que se designa o apogeu da tirania. Sobre o assunto, oportuna a advertência de Bitencourt: 31 “Mas, nesse momento puramente de elaboração mental do fato criminoso, a lei penal não pode alcançá-lo, e, se não houvesse outras razões, até pela dificuldade da produção de provas, já estaria justificada a impunibilidade da nuda cogitatio]”. Nesse diapasão, assevera Capez que o crime, na fase de cogitação, é impunível porque cada um pode pensar o que quiser[66]. No mesmo sentido, asseveram Zaffaroni e Pierangeli que as etapas que se desenvolvem no âmbito subjetivo não podem ser atingidas pela tipicidade. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) 4.8 . Relevância penal da cogitação Não obstante seja a cogitação impunível, não se pode concluir, como pretende Capez, que ela não interessa ao Direito Penal. Sua análise é de fundamental importância científica e prática, sobretudo no que diz respeito às circunstâncias judiciais e à possibilidade de induzimento. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) A personalidade do agente, como ensina Mirabete, é circunstância judicial a ser levada em conta pelo magistrado na primeira das três fases da dosimetria da pena. É relevante, nesta etapa, a fase de cogitação, conforme frisa Becker: “No caso de consumação do delito, a intensidade desta luta interior, eventualmente manifestada na conduta do sujeito nas etapas que antecederam a execução,pode ser considerada na apreciação da personalidade do agente. Não se pode afirmar, portanto, que esta fase seja sempre juridicamente irrelevante”. A esse respeito, assevera Dotti: “...uma vez praticado o crime, a cogitação é examinada pelo juiz para estabelecer a pena adequada ao fato, declarando que a culpabilidade é mais ou menos reprovável em função da atitude psicológica do autor. Na redação original do CP, o art. 42 determinava que o magistrado, ao individualizar a pena, considerasse a intensidade do dolo”. Já o induzimento, consoante escólio de Fragoso, pressupõe a iniciativa na formação da vontade de outrem. Remete-nos ao fato de plantar a ideia onde está ainda não exista, de tal sorte que, se o agente já cogitava agir de tal ou qual forma, não haverá induzimento. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Sobre o tema, cabe trazer à baila a lição de Mirabete, em alusão ao crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, tipificado pelo artigo 122, caput, do Código Penal: 32 “Embora o induzimento e a instigação sejam situações semelhantes, pode-se distinguir o ato de induzir, que traduz a iniciativa do agente, criando na mente da vítima o desejo do suicídio quando esta ainda não pensara nele, do ato de instigar, que se refere à conduta de reforçar, acoroçoar, estimular a ideia preexistente de suicídio (RT 410/88)”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Destarte, não se pode concluir que a cogitação, porque absolutamente impunível, é irrelevante para o Direito Penal. Interessa não só à dogmática, como também aos intérpretes e operadores do Direito na análise de casos concretos que envolvam a induzimento ou a valoração das circunstâncias judiciais. 4.9 Decisão Na esteira dos ensinamentos de Welsel, a decisão ocorre quando o autor determina, com base no seu saber causal, os fatores requeridos para colocar em prática a causalidade, considerando os efeitos concomitantes e avaliando as eventuais variáveis. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Ou seja, quando já superada a cogitação e tendo prevalecido a vontade criminosa, o agente se decide pela prática do delito. Nesse sentido, aponta Becker: “É o desígnio criminoso que vai assumindo contornos mais definidos na forma de um plano ou de um projeto, no qual são esboçados os detalhes, representados os resultados pretendidos, previstas as dificuldades e antecipadas as alternativas de superação das mesmas. É o momento da seleção de meios para a consecução do fim pretendido”. Poder-se-ia concluir que a decisão é, em verdade, mera consequência da cogitação, pois todo aquele que cogita agir de tal ou qual modo termina decidindo algo, ainda que conclua por não agir de forma nenhuma e manter-se inerte. Entretanto, conforme apontam Zaffaroni e Pierangeli, o desenvolvimento do crime é um processo ininterrupto em que se pode distinguir diversos momentos, uma vez que não existem limites preestabelecidos ou demarcados. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Nessa esteira, mostra-se possível considerar a decisão como uma fase autônoma do iter criminis. Isso porque não se trata apenas da opção pelo agir ou não agir, mas também do como agir, no que tange aos detalhes, perspectivas, dificuldades e alternativas. 33 Na esteira do escólio de Becker acima declinado, nota-se que o agente, nesta fase, necessita tomar não uma, mas diversas decisões antes de passar para os atos preparatórios. Essa é a razão pela qual consideramos a decisão como uma fase autônoma do caminho do crime, assim como Becker, Zaffaroni e Pierangeli. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) 4.10 Impunidade da decisão A decisão, também chamada de desígnio, ainda se desenvolve na esfera íntima do agente e, assim como a cogitação, é impunível. Sua exteriorização através de quaisquer manifestações, verbais, gestuais ou escritas, não configura sequer tentativa, se não for além da inócua manifestação do pensamento. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) “As manifestações orais ou escritas de um desígnio criminoso ou de uma opinião só são incriminadas quando, por si mesmas, criam uma situação de lesão ou perigo para um bem jurídico, constituindo condutas típicas, por exemplo, de ameaça, injúria, calúnia, difamação, incitação pública de crimes”. 4.11 Relevância penal da decisão Malgrado seja a decisão impunível, porque subjetiva, interessa, assim como a cogitação, ao Direito Penal e à sua dogmática. Diz respeito, mais especificamente, às hipóteses de instigação trazidas pela legislação penal pátria. Instigar, segundo ensina Capez, é reforçar uma ideia já existente. Somente após a decisão é que pode ocorrer, por parte de terceiros, a instigação, que já pressupõe a existência, na mente do agente, de uma cogitação criminosa. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) De outro lado, se o agente já tiver decidido pela prática do delito, não há que se falar em induzimento, porque induzir, como destaca Capez, é fazer brotar a ideia na mente do agente. 34 Fonte: www.sindojuspi.org.br Com efeito, assim como ocorre com a cogitação, não se pode afirmar que a fase de decisão é penalmente irrelevante. É evidente, do mesmo modo, a sua importância científica e prática. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) 4.12 Preparação A preparação, que precede o início da agressão ao bem jurídico penalmente tutelado, consubstancia-se na prática dos atos indispensáveis à execução do delito[87]. São atos que se dirigem à conduta criminosa. Conforme ensina Maurach: “... é aquela forma de atuar que cria as condições prévias adequadas para a realização de um delito planejado. Por um lado, deve ir mais além do simples projeto interno (mínimo) sem que deva, por outro, iniciar a imediata realização tipicamente relevante da vontade delitiva (máximo)”. Como espécies de atos preparatórios, é possível mencionar, dentre inúmeros outros, a aquisição de uma arma para a prática de um homicídio, o planejamento para a prática de um roubo e a observação da vítima para a prática de um sequestro. Sobre o assunto, ensina Dotti: (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) “Os atos preparatórios constituem atividades materiais ou morais de organização prévia dos meios ou instrumentos para o cometimento do crime. Tanto 35 pode ser a aquisição ou o municiamento da arma para o homicídio, como a atitude de atrair a vítima para determinado lugar para ser atacada”. Nesse sentido, destaca Garcia: “Ninguém dirá que é começo de execução o ato, na verdade preparatório, de escolha da arma para perpetrar o homicídio. O indivíduo compra um revólver e municia-o. Não está tentando matar. Está apenas na fase preparatória. Esse mesmo indivíduo ajusta-se com um co-autor: ainda não se acha no início da execução, mas, somente, preparando o crime”. 4.13 Impunidade da preparação A rigor os atos preparatórios são atípicos e não são alcançados pela punibilidade. Dotti assevera que “Em geral, os atos preparatórios não são puníveis, se o crime não chega a ser tentado”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Becker atribui essa impunidade à ambiguidade que permeia a matéria, já que não se pode auferir com precisão o desígnio de cometer um delito específico. “A aquisição e o municiamento de arma tanto pode ser ato preparatório de homicídio, como o apresto para a prática de um esporte de tiro. A aquisição de veneno pode indicar a preparação de um veneficio, mas pode sugerir, também, uma cogitação ou desígnio suicida, bem como a intenção de eliminar insetos. O ato de sair à rua munido de gazuas pode significar a preparação de um furto, como pode corresponder à necessidade de abrir a porta do próprio escritório, cuja fechadura apresenta problemas”. O ato é sempre equívoco e não representa, de per si, um dano ou perigo de dano a um bem jurídico. Há exceções, todavia, em que o legislador, por razões de política criminal, tipifica atos preparatórios como delitos autônomos, como nos crimes de petrechos para falsificação de moedae petrechos de falsificação. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Tal se dá porque as condutas configuram perigo para os bens jurídicos, sem que se exija a consumação dos delitos dos quais constituem atos preparatórios. Nesse mesmo sentido, verificam-se as lições de Mirabete, Zaffaroni e Pierangeli. 36 4.14 Relevância penal da preparação Os atos preparatórios, em que pese não sejam puníveis, ostentam evidente relevância para o Direito Penal, mormente no que se refere às circunstâncias do crime, a serem sopesadas quando da dosimetria da penal, e à configuração da tentativa. Deve o magistrado, na fixação da pena-base, levar em consideração todas as circunstâncias que envolveram a prática criminosa, inclusive os atos preparatórios, que podem indicar menor ou maior grau de periculosidade do agente. De outro lado, para que se possa falar em tentativa criminosa é necessária a identificação do exato momento em que findam os atos meramente preparatórios e iniciam-se os atos de execução. É fundamental, pois, bem delinear o limite que separa os atos preparatórios dos atos de execução. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Como observam Zaffaroni e Pierangeli, a distinção entre atos preparatórios e atos de tentativa é um dos problemas mais árduos da dogmática e, seguramente, o mais difícil da tentativa[103]. Mirabete também comunga desta opinião. 4.15 Execução Conforme destaca Antolisei, citado por Becker, um dos temas mais debatidos no Direito Penal é a fronteira que separa os atos preparatórios do início de execução. É somente com o início da execução que se pode falar em punibilidade, porque os atos preparatórios permanecem impunes, por mais inequívocos que sejam. Nesse sentido: “A grande dificuldade reside em precisar, através de uma fórmula geral, em que momento do iter criminis o agente, ultrapassando o campo da volição e da preparação, deu início, efetivamente, à execução do delito. Trata-se de uma questão de fundamental importância teórica e prática, porque representa a delimitação da fronteira entre atos puníveis e atos impunes”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Em que pese os avanços havidos na tentativa de melhor traçar este limite, a doutrina admite que é impossível a elaboração de uma fórmula precisa, mas com um grau de generalização que não permita a existência de qualquer dúvida. Isso porque não há como precisar, de forma taxativa, o momento exato em que termina a preparação e se inicia a execução, de modo que se possa aplicar tal fórmula a todos os casos concretos. Reside nisso a dificuldade encontrada pela doutrina. 37 Não obstante, temos que é perfeitamente possível, e até necessário, que se estabeleçam critérios genéricos com o escopo de resolver a problemática, que não pode permanecer sem solução. Nessa esteira, tem-se o escólio de Becker: “A indistinção gera insegurança jurídica, levando a que o limite entre atos puníveis e impunes permaneça numa zona sombria e insondável, comprometendo a necessária certeza do direito. Identificadas as imensas dificuldades para o reconhecimento preciso do início de execução, originárias das ilimitadas possibilidades dos casos particulares, maiores são os subsídios requeridos à doutrina, de forma a garantir ao máximo a segurança jurídica, restringindo o arbítrio na aplicação da lei, praticamente inevitável quando se trata de esquemas especialmente amplos e gerais”. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Conforme destacam Zaffaroni e Pierangeli, a respeito do tema, as teorias subjetivas negam a distinção entre atos preparatórios e executivos, enquanto as teorias objetivas, por outro lado, enfatizam-na, sempre com o escopo de melhor delimitá-la. Dentre as inúmeras teorias desenvolvidas com o objetivo de resolver a questão, destaca-se a teoria objetivo-individual, com uma especial contribuição de Welzel. Segundo essa teoria, o início de execução só pode ser apontado se considerado o grau de desenvolvimento da conduta, dentro do plano traçado pelo autor. Para que se possa falar em início de execução, exige-se o início da ação típica, sem esquecer os atos imediatamente anteriores, tomando-se em conta, para tanto, o plano concreto do autor. Nesse diapasão, têm-se os ensinamentos de Zaffaroni e Pierangeli: “Para determinar a imediatidade da conduta em relação à realização típica de maneira alguma se apresenta como suficiente a mera consideração do tipo in abstracto, porquanto há necessidade de apelar-se para a modalidade particular de considerar a aproximação típica no caso concreto, o que obriga a tomar-se em conta, de maneira iniludível, o plano concreto do autor”. Zaffaroni e Pierangeli consideram que a teoria objetivo-individual é a que mais se aproxima do cerne do problema, mas admitem, entretanto, que não resolve a questão, devendo servir, segundo afirmam, como um princípio geral orientador, para que se possa continuar em busca do aperfeiçoamento da segurança jurídica. Nesse mesmo diapasão, oportuno destacar a lição de Becker: “Embora não exista a possibilidade da elaboração de uma fórmula suficientemente genérica e precisa, capaz de abarcar as infinitas possibilidades no âmbito do tema, a construção teoria tem avançado, de 38 forma indiscutível, na necessária busca da segurança jurídica, mantendo viva e atual a discussão sobre o tema”. De outra banda, Mirabete argumenta que os critérios mais aceitos são os do ataque ao bem jurídico, quando se verifica que houve risco ao bem jurídico, e o do início da realização do tipo, quando tem início a realização do verbo núcleo do tipo. Todavia, destaca que: “O Código Penal adotou a teoria objetiva (formal) e exige que o autor tenha realizado de maneira efetiva uma parte da própria conduta típica, penetrando, assim, no ‘núcleo do tipo”. Cabe frisar que Mirabete, em que pese aponte para critérios distintos, reconhece, assim como Zaffaroni, Pierangeli e Becker, que nenhum dos critérios é definitivo, podendo, somente, auxiliar a distinção nos casos concretos. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Se o início da execução verifica-se com o início da ação típica, levando-se em consideração, também, os atos imediatamente anteriores, de acordo com a intenção do agente, pode-se concluir que a execução consiste na própria ação típica, ou seja, na realização do tipo penal incriminador pelo sujeito ativo da infração penal. 4.16 Punibilidade da execução Na cogitação, na decisão e na preparação ainda não há, inequivocamente, lesão ou ameaça de lesão a qualquer dos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. É com o início da execução que o agente passa a colocar em risco o bem jurídico tutelado pela norma, justificando, pois, a punibilidade nesta fase do iter criminis. 39 Fonte: www.cnj.jus.br “Entre a primeira manifestação do desígnio delituoso e a consumação, não é possível encontrar outro limite, que satisfaça às exigências de segurança jurídica, que não seja o representado pelo princípio de execução”. Quando iniciada a execução é que o fato passa a ser punível, podendo o agente responder pelo crime em sua forma tentada, consumada ou até mesmo exaurida, como se verá adiante. A forma com que os acontecimentos se darão após a o início da execução é que delimitará, nos termos da lei penal, a pena a ser aplicada ao agente. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Se o crime não se consumar por circunstâncias alheias à sua vontade, o agente responderá pela pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços, nos termos do artigo 14, parágrafo único, do Código Penal. Caso o agente, voluntariamente, desista de prosseguir na execução ou impeça a produção do resultado, responderá pelos atos já praticados, nos moldes do artigo 15 do mesmo Diploma Legal. (DE ARAÚJO & GENNARINI, 2014) Cabe frisar que todos os institutos supracitados somente podem se verificar após o início da execução. Regra geral, o agente será, em
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