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ABORTO NO CASO MICROCEFALIA O principal objetivo do presente trabalho é discutir a questão do aborto em casos comprovados de microcefalia. O surto epidêmico que assola o país e as incertezas e dúvidas em torno da síndrome A seguir será analisado o aborto sob um prisma amplo, desde seus aspectos 2- O Aborto no Direito Brasileiro Conforme analisado acima, com o cristianismo o aborto passou a ser considerado crime. Em 1830 não havia punição para o auto aborto. Somente o Código Penal de 1890 passou a incriminá-lo. Poucas legislações admitem livremente a prática do aborto consentido e procurado pela gestante, a maioria descrimina parcialmente no sentido de tornar legal o aborto apenas quando realizado em casos específicos e em determinadas circunstâncias como ocorre no Brasil. Atualmente o Código Penal, de 1940, prevê punições a quem praticar o aborto ou colaborar com sua prática. Fernando Capez assim dispõe: O Código Penal de 1890, por sua vez, passou a prever a figura do aborto provocado pela própria gestante. Finalmente, o Código Penal de 1940 tipificou as figuras do aborto provocado (CP, art. 124 — a gestante assume a responsabilidade pelo abortamento), aborto sofrido (CP, art. 125 — o aborto é realizado por terceiro sem o consentimento da gestante) e aborto consentido (CP, art. 126 — o aborto é realizado por terceiro com o consentimento da gestante)[3]. O Código Civil assegura os direitos do nascituro em seu artigo 2° ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” [4]. Diante disso, percebe-se que a intenção do legislador é proteger também a pré- existência do ser humano, fazendo parte da existência como um todo. Voltando ao Código Penal Brasileiro, nele há previsão de seis tipos de aborto: o aborto autoprovocado (art. 124); o consentido (art. 124); o provocado por terceiros sem o consentimento da gestante (art. 125); o provocado por terceiros com o consentimento da gestante (art. 126); o qualificado (art. 127); e o legal (art. 128). O artigo 124 do CP faz a previsão do aborto provocado pela gestante (autoaborto) e o aborto consentido e vem assim exposto no Código Penal: “Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque” [5]. Nesses casos, por tratar-se de um crime de mão própria, somente a gestante é sujeito ativo do crime. O sujeito passivo do artigo 124 é o feto, “ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto” [6]. Nesses tipos, a pena consiste em detenção de um a três anos. O aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (CP, arts. 125 e 126) trata-se de crime comum e o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial. No aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art.125), os sujeitos passivos são a gestante e o feto, tratando-se de crime de dupla subjetividade passiva. O aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125) tem pena de reclusão de três a dez anos. Já o aborto provocado com o consentimento da gestante (art. 126) possui pena de reclusão de um a quatro anos. De acordo com o artigo 127 do CP, o crime de aborto será majorado se, em consequência do aborto ou das manobras abortivas, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave ou se, por qualquer dessas causas lhe sobrevém a morte. Assim dispõe o Código Penal: Art.127- As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte[7]. Portanto, ocorrendo a lesão grave, a pena é aumentada em um terço e ocorrendo a morte, a pena é duplicada. Segundo preconiza Rogério Greco: “a rubrica constante do artigo 127 do Código Penal anuncia: forma qualificada. Na verdade, percebe-se que no mencionado artigo não existem qualificadoras, mas, sim, causas especiais de aumento de pena, ou majorantes (...)” [8]. 3- Das Hipóteses Legais de Aborto Conforme expõe Anelise Tessaro, advogada e mestra em ciências criminais, “o legislador penal definiu como crime de aborto a interrupção voluntária da gestação que implique na morte do produto da concepção, sendo irrelevante o estágio de desenvolvimento em que se encontre a gravidez” [9]. Contudo, o Código Penal de 1940, que continua em vigor nos dias atuais, elencou duas hipóteses onde o delito de aborto estaria afastado, isto é, trata das causas de exclusão da ilicitude do crime de aborto que vem assim descrito: Art.128- Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto Necessário I- Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II- Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Em decorrência desse dispositivo legal, “não são considerados como crime o aborto necessário ou terapêutico (aquele motivado pelo risco de vida da gestante) e o sentimental ou humanitário (aquele em que a gravidez é resultante de estupro)” [10]. O inciso I do artigo 128 trata do aborto necessário ou terapêutico em que ocorre “a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando a gestante estiver correndo perigo de vida e inexistir outro meio para salvá-la” [11]. De acordo com o Professor Rogério Sanches, em caso de aborto necessário ou terapêutico “não há necessidade do consentimento da gestante para a realização do aborto, basta que o profissional entenda ser indispensável fazê-lo. Desnecessário, ainda, autorização judicial” [12]. Consoante doutrina majoritária trata-se de espécie de estado de necessidade e assim expõe Rogério Greco: Não há como deixar de lado o raciocínio relativo ao estado de necessidade no chamado aborto necessário. Isso porque, segundo se dessume da redação do inciso I do art. 128 do Código Penal, entre a vida da gestante e a vida do feto, a lei optou por aquela. No caso, ambos os bens (vida da gestante e vida do feto) são juridicamente protegidos. Um deve perecer para que o outro subsista. A lei penal, portanto, escolheu a vida da gestante ao invés da vida do feto. Quando estamos diante do confronto de bens protegidos pela lei penal, estamos também, como regra, diante da situação de estado de necessidade, desde que presentes todos os seus requisitos, elencados no art. 24 do Código Penal[13]. Seguindo o mesmo raciocínio entende Cleber Masson: No aborto necessário há conflito entre dois valores fundamentais: a vida da gestante e a vida do feto. E o legislador dá preferência àquela, por se tratar de pessoa madura e completamente formada, sem a qual dificilmente o próprio feto poderia seguir adiante. Em verdade, não se pode rotular como inconstitucional o sistema penal em que a proteção à vida do não nascido cede, diante de situações conflitivas, em mais hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana independente[14]. O inciso II do artigo 128 trata do aborto sentimental, humanitário ou ético em que o aborto é realizado pelos médicos nos casos em que a gravidez decorreu de um crime de estupro. Quanto ao aborto sentimental assim entende Cleber Masson: No aborto em caso de gravidez resultante de estupro o Código Penal encontra seu fundamento de validade na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, inciso III). Entendeu o legislador que seria atentatório à mulher exigir a aceitação em manter uma gravidez e criar um filho decorrente de uma situação trágica e covarde que somente lhe traria traumas e péssimas recordações[15]. Nélson Hungria descreve que costuma-se chamá-lo aborto sentimentalpois “nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida” [16]. Fernando Capez acrescenta: O artigo 128, II, do CP não faz qualquer distinção entre o estupro com violência real ou presumida (CP, art. 224), donde se conclui que este último está abrangido pela excludente da ilicitude em estudo. Na interpretação da regra legal é necessário ter em vista que onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê- lo, até porque qualquer restrição importaria em interpretação in malam partem, já que, se se entendesse estar excluído do dispositivo legal o estupro com violência ficta, a conduta do médico que praticasse o aborto nessas circunstâncias seria considerada criminosa[17]. Nesse tipo de aborto é imprescindível o consentimento válido da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz. Em outras palavras esclarece José Henrique Pierangeli: É momento de lembrar que o médico, para realizar o aborto sentimental, não necessita da comprovação de uma sentença condenatória contra o autor do crime de estupro, nem mesmo se exige autorização judicial. Submete-se o facultativo apenas e tão somente ao Código de Ética de Medicina , mas ele deve, por cautela, se cercar de certidões e cópias de boletins de ocorrência policial, declarações, atestados, etc. Atente-se que, se o médico for induzido a erro pela gestante ou terceiro, e se o aborto estiver justificado pelas circunstâncias que o levaram ao erro, haverá erro de tipo. Tratando-se de estupro de menor de 14 anos, quando a violência se presume, basta, para satisfazer a cautela, a prova da menoridade[18]. Por fim, quanto à natureza jurídica do aborto sentimental afirma Aníbal Bruno: Em verdade, a questão aí está muito aquém do caso em que se trata de preservar a vida da mulher. Dificilmente se poderia reduzir a hipótese a um estado de necessidade. Mas razões de ordem ética ou emocional que o legislador considerou extremamente ponderáveis têm introduzido essa descriminante em algumas legislações, atitude incentivada por episódios graves que realmente reclamavam medidas de exceção[19]. Rogério Greco acredita que o legislador cuidou de uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, “não se podendo exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção da sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será típico e ilícito, mas deixará de ser culpável” [20]. 4- Aborto Eugênico ou Eugenésico Para Anelise Tessaro “entende-se por aborto eugênico a interrupção da gestação quando existe o prognóstico de que o feto venha a nascer com grave anomalia física ou psíquica” [21]. Para Fernando Capez, aborto eugênico ou eugenésico “é aquele realizado para impedir que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável” [22]. Para Magalhães Noronha: Ocorre o aborto eugenésico quando há sério e grave perigo para o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja por doenças da mãe, durante a gravidez, seja ainda por efeito de drogas por ela tomadas, durante esse período, tudo podendo acarretar para aquele, enfermidades psíquicas, corporais, deformidades, etc[23]. A terminologia “aborto eugênico ou eugenésico” foi cunhada durante a Primeira Guerra Mundial, e teve como proposta, “tornar legítimo o aborto para aquelas mulheres que engravidaram em virtude do estupro cometido por soldados de outros países, o que era bastante comum naquela época” [24]. Dessa forma, tinha o escopo de preservar a nação de eventuais doenças transmissíveis. Diante disso, “a palavra eugenia e qualquer expressão a ela relacionada, carregam um forte sentimento de reprovação moral, que nos remete principalmente às práticas nazistas do século XX” [25]. Expõe Antônio Chaves que “o conceito de aborto eugênico foi totalmente desvirtuado e desmoralizado pelos nazistas ao pretenderem usá-lo sob alegação de ‘higiene racial’, a fim de manter imaculada a ‘raça ariana’” [26]. Ricardo Henry Marques Dip, entende que “o pressuposto fundamental do aborto eugênico é o de que só tem direito a nascer e a viver os sadios físicos e mentais, porque os enfermos serão infelizes e farão sofrer terceiros”[27]. Por outro lado, alguns juízes preocupados em desvincular o aborto por anomalia fetal incompatível com a vida do eugênico, incluíram no texto dos alvarás emitidos para autorizar este procedimento, a distinção entre essas duas espécies de interrupção da gestação, conforme a seguir: Não só porque a palavra eugenia carrega uma forte carga de rejeição emocional e social, mas também porque no aborto por anomalia fetal incompatível com a vida não se procura a melhoria física - biológica da raça, nem a criação de “super- homens”. O intuito é abreviar a angústia e o sofrimento da mãe, quando o feto não tem condições de sobrevida extra-uterina, nem possibilidades de estabelecer uma vida relacional[28]. De acordo com Rogério Sanches, o nosso Estatuto Penal, na sua Exposição de Motivos, “foi claro ao incriminar o abortamento Eugenésico (praticado em face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquica ou físicas)” [29]. Da mesma forma, posiciona-se Cleber Masson: O direito brasileiro não contempla regra permissiva do aborto nas hipóteses em que os exames médicos pré-natais indicam que a criança nascerá com graves deformidades físicas ou psíquicas. Não autoriza, pois, o aborto eugênico ou eugenésico. O fundamento dessa opção é a tutela da vida humana no mais amplo sentido. O Direito Penal protege a vida humana desde a sua primeira manifestação. Basta a vida, pouco importando as anomalias que possa apresentar[30]. Fernando Capez igualmente entende que o aborto eugênico não é permitido pela nossa legislação, “uma vez que, mesmo não tendo forma perfeita, existe vida intrauterina, remanescendo o bem jurídico a ser tutelado penalmente” [31]. Acrescenta ainda que “eugenia é expressão que tem forte conteúdo discriminatório, cujo significado é purificação de raças” [32]. No entanto, Capez menciona que “mediante prova irrefutável de que o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida, consubstanciada em laudos subscritos por juntas médicas, deve ser autorizada a prática do aborto” [33]. Fernando Capez continua: Nesse sentido, já decidiu o STJ: “Não há como desconsiderar a preocupação do legislador ordinário com a proteção e a preservação da vida e da saúde psicológica da mulher ao tratar do aborto no Código Penal, mesmo que em detrimento da vida de um feto saudável, potencialmente capaz de transformar-se numa pessoa (CP, art. 128, incs. I e II), o que impõe reflexões com os olhos voltados para a Constituição Federal, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana. Havendo diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia. Contudo, considerando que a gestação da paciente se encontra em estágio avançado, tendo atingido o termo final para a realização do parto, deve ser reconhecida a perda de objeto da presente impetração. Ordem prejudicada” (STJ, 5° Turma, HC 56.572/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 25-4-2006, DJ 15-5-2006, p. 273). Em sentido contrário: STJ, 5° Turma, HC 32.159/RJ, rel. Min. Laurita Vaz, j. 17-2-2004, DJ, de 22-3-2004, p.334[34]. 5- Aborto em caso de anencefalia Assunto que despertava discussão era quanto à possível autorização de aborto de feto portador de anencefalia. Primeiramente cabe elucidar o significado de anencéfalo que nas palavras de Rogério Sanches: (...) é o embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central,ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais)[35]. Nas palavras de Capez “o encéfalo é a parte do sistema nervoso central que abrange o cérebro, de modo que sua ausência implica inexistência de atividade cerebral, sem a qual não se pode falar em vida” [36]. Para Cleber Masson: Anencefalia é a malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. Consequentemente, sua eliminação em intervenção cirúrgica constitui-se em fato atípico, pois o anencéfalo não possui vida humana que legitima a intervenção do Direito Penal[37]. E acrescenta: O raciocínio é o seguinte: o art. 3°, caput, da Lei 9.434/1997 admite a retirada de tecidos, órgãos, ou partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento somente após a morte encefálica. Em outras palavras, o ser humano morre quando cessam suas atividades cerebrais. E, no tocante ao anencéfalo, é razoável concluir que, se nunca teve atividade cerebral, nunca viveu. Não se trata, portanto, de aborto, e sim de antecipação de parto em razão da anencefalia ou de antecipação de parto de feto inviável[38]. Dessa forma, conclui: Essa antecipação do parto encontra seu fundamento de validade no art. 1.°, inciso III, da Constituição Federal: dignidade da pessoa humana. De fato, a mulher não pode ser obrigada à retirada do anencéfalo, mas, se o desejar, não pode ser impedida pelo legislador ordinário. Não seria digno exigir da gestante a postergação de um sofrimento: no lugar das roupas da criança, a aquisição do vestuário para o velório, em vez do berço, a compra de um caixão, imaginando a cerimônia de batismo, substituí-la pela missa de sétimo dia[39]. Cleber Masson relata que em algumas hipóteses, as quais ressalta que são raras, a criança nasce com vida e permanece viva por dias, e as vezes até meses. Fato parecido ocorreu com uma menina chamada Marcela de Jesus Ferreira, nascida com anencefalia em Patrocínio Paulista, Estado de São Paulo, que faleceu depois de 1 (um ano), 8 (oito) meses e 12 (doze) dias[40]. No exemplo acima, é altamente discutível tratarmos a respeito da existência da vida humana no anencéfalo apesar de vários autores alegarem que o Direito Penal não trabalha com exceções e sim com regras já que, nas palavras de Masson, “o ordenamento jurídico deve se amparar na normalidade, e nunca na excepcionalidade. Daí ser composto por ‘normas’, isto é, regras criadas com o propósito de disciplinarem situações normais na vida humana” [41]. Afirma Carolina Alves de Souza Lima que: Apesar da existência de vida intrauterina do anencéfalo, não se legitima a atuação do Direito Penal para incriminar a conduta abortiva, sob pena de total desrespeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher. Referidos direitos devem prevalecer nessa situação específica, porque não se justifica impor à mulher uma gestação na qual o concepto não possui competência biológica para adquirir consciência de si e do mundo e para se relacionar, uma vez que não tem e nunca terá estrutura cerebral que lhe dê capacidade para alcançar essa condição de desenvolvimento humano. O respeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher deve prevalecer, uma vez que o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa humana, como valor essencial do Estado Democrático de Direito brasileiro, representa, nessas circunstâncias, permitir que ela conduza sua vida segundo suas convicções pessoais, independentemente da imposição de qualquer dogma, moral, religião ou verdade absoluta sobre a compreensão do mundo e da vida[42]. Na opinião de Pierangeli: Em se tratando de anencefalia, não pode a interrupção da gravidez ser considerada como aborto ou antecipação do parto, posto que falta o elemento básico, fundamental, que é a existência da vida humana. A malformação congênita do anencéfalo inviabiliza a vida extrauterina. (...) A interrupção da gravidez ou antecipação do parto, em caso de anencefalia, constituem condutas atípicas. Como se trata de conduta atípica, fica sem sentido a exigência de autorização judicial para a realização da medida médico-cirúrgica, podendo o médico atuar livremente, posto que se trata de atuação com finalidade terapêutica, que também torna sua conduta atípica[43]. Durante muitos anos as decisões dos tribunais eram conflitantes e faziam com que se instaurasse a insegurança jurídica diante da possibilidade ou não de interrupção da gravidez na hipótese de feto anencéfalo. Diante disso, em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), propôs a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n° 54), questionando um posicionamento do STF sobre o aborto de feto anencéfalo. Conforme expõe Rogério Greco, após oito anos, vale dizer, em 12 de abril de 2012, o STF decidiu a questão por maioria e nos termos do voto do Relator, a fim de declarar “a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do diploma repressivo” [44]. Dessa forma, logo após a decisão do STF, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou as diretrizes para interrupção da gravidez, em caso de anencefalia, editando a Resolução n° 1989, de 10 de maio de 2012. Segundo Sanches “o texto prevê que os exames de ultrassonografia precisam ser feitos a partir da 12° semana de gravidez, período no qual o feto já se encontra num estágio suficiente para se detectar a anomalia” [45]. Continua Sanches: No caso de diagnóstico da anencefalia, o laudo terá que ser assinado, obrigatoriamente, por dois médicos. A gestante será informada do resultado e poderá optar livremente por antecipar o parto (fazer o aborto) ou manter a gravidez, e ainda, se gostaria de ouvir a opinião de uma junta médica ou de outro profissional. A interrupção da gravidez poderá ser realizada em hospital público ou privado e em clínicas, desde que haja estrutura adequada. A gestante terá toda assistência de saúde e será aconselhada a adotar medidas para evitar novo feto anencéfalo, com a ingestão de ácido fólico[46]. Portanto, “uma vez diagnosticada a anencefalia, poderá a gestante, se for de sua vontade, submeter-se ao aborto, sem que tal comportamento seja entendido cromo criminoso” [47]. Segue abaixo acordão que trata de Apelação crime interposta pela Defensoria Pública em favor de Isolete Cristiana Ferreira, 29 anos, residente e domiciliada em Porto Alegre/RS, grávida de 23 (vinte e três) semanas e 1 (um) dia de gestação, com diagnóstico de artrogrípose fetal durante realização de ultrassonografia obstrética. Segundo o laudo juntado ao acórdão: A artogripose é uma malformação rara com acometimento de 0,2 a 3 em 10.0000 nascimentos. É uma doença que compromete todas as articulações; pés tortos, mãos crispadas, luxações, deformações simétricas e bilaterais, atrofias musculares, espasticidade, levando a ausência de movimentos fetais e, neste caso, sem condições de sobrevida, prognóstico letal[48]. Seguem mais informações disponibilizadas no laudo médico: (...) 1. A doença que acomete o feto da Sra. Isolete Cristina Ferreira trata-se de tipo letal de artogripose pelos achados de acinesia ou hipocinesia fetal, malformação do Sistema Nervoso Central, encurtamento grave de todos os ossos longos, alterações musculares e restrição grave de crescimento intra-uterino.Tal constituintes permitem traçar o prognósticode inviabilidade de vida pós-uterino. 2. Segue anexos de bibliografia solicitada sobre o diagnóstico em pauta. 3. O diagnóstico foi estabelecido através do exame de ultrassonografia que foi repetido no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.4. Esta doença apresenta várias causas prováveis. Não tem alteração dos cromossomos. É um distúrbio que pode alterar a subunidade gênica. Portanto, estudo genético não foi realizado.5. Se acatado o pedido de antecipação terapêutica do parto, ao nascimento do feto morto, será proposto o estudo por necropsia, sob consentimento da paciente[49]. Após essas necessárias elucidações sobre o caso em comento segue ementa do acordão: APELAÇÃO. PEDIDO DE INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO (ABORTO). FETO PORTADOR DE ARTOGRIPOSE. - A espécie não trata do denominado aborto necessário, o qual é praticado para salvar a vida da gestante. Se este fosse o caso, desnecessária seria qualquer autorização judicial. Com efeito, em caso de aborto necessário (art. 128, inc. I – “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”), conforme leciona Edgard de Magalhães Noronha, “É ao médico que cabe a enorme responsabilidade de dizer se deve ou não sacrificar a spes personae. A ele incumbe pronunciar-se acerca da necessidade e do momento da intervenção.” Neste caso (aborto necessário), com bem explanou o Professor Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, “O pedido deduzido em juízo é desnecessário”.- Em relação ao aborto eugênico - interrupção da gestação fundada na circunstância de que o futuro ser vai trazer consigo doenças ou anomalias graves - temos lição dos Professores Antônio José Eça, Delton Croce e Delton Croce Júnior.- Nélson Hungria afirma: “O Código não incluiu entre os casos de aborto legal o chamado aborto eugenésico ...”. Em igual sentido, Edgard de Magalhães Noronha:“Não é o aborto eugenésico admitido por nossa lei.”; e, Cezar Roberto Bitencourt: “... o Código Penal, lamentavelmente, não legitima a realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nascerá com deformidade ou enfermidade incurável.”. Quanto ao ponto temos, ainda, precedente do Superior Tribunal de Justiça: HC 32.159/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ. - Por outro lado, é verdade que o Pretório Excelso, em recente decisão, por maioria, deixou assentado: “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.” (ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013) - Filiamo-nos, contudo, as lições anteriormente colacionadas. É que mesmo com os olhos voltados para a Constituição Federal e tendo em conta os princípios enunciados – “O Brasil é uma república laica”; LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO -, pensamos que a nossa Carta Magna garante, como bem maior, o DIREITO A VIDA. - Com efeito, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, ao enumerar os principais direitos individuais e coletivos, garante, em primeiro lugar, a todos, “...aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida ...” (sublinhamos) . Não poderia ser diferente, pois, há muito, Sahid Maluf – discorrendo sobre os direitos fundamentais do homem, mais precisamente “direitos naturais da pessoa humana” - lembrou: “É de evidência axiomática – frisa Nogueira Itagiba – que excluído o direito à vida, não necessitaria falar em direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade.” - Não podemos olvidar, ainda, que, quando do julgamento da ADPF 54, o Ministro Celso de Mello, embora formando a maioria, consignou: “Não questiono a sacralidade e a inviolabilidade do direito à vida. Reconheço, por isso mesmo, para além da adesão a quaisquer artigos de fé, que o direito à vida reveste-se, em sua significação mais profunda, de um sentido de inegável fundamentalidade, não importando os modelos políticos, sociais ou jurídicos que disciplinem a organização dos Estados, pois – qualquer que seja o contexto histórico em que nos situemos – “o valor incomparável da pessoa humana” representará, sempre, o núcleo fundante e eticamente legitimador dos ordenamentos estatais.” O Ministro Cezar Peluso, que formou a minoria, também proclamou: “(...) a Constituição da República reserva ao chamado direito à vida, que é, antes, o pressuposto ou condição transcendental da existência de todos os direitos subjetivos.”.- Não podemos esquecer, por todos, a lição da pena brilhante do mestre Hungria, que já havia assentado: “Como diz Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida.”- Além disso - mesmo com entendimento diverso do que restou, por maioria, assentado na ADPF 54 - é importante consignar que o lá decidido não tem aplicação ao caso em exame, pois a espécie não trata de anencefalia. Lembramos, neste passo, a advertência contida no voto da Ministra Cármen Lúcia, quando do julgamento da ADPF 54: “A presente arguição não contempla, como erroneamente poderia alguém supor, proposta de descriminalização do aborto. Circunscreve-se à possibilidade legal de optarem as gestantes pela interrupção de gravidez de feto anencéfalo, assim diagnosticado por médico habilitado, sem incorrer em crime ou ter de se submeter a penalidades juridicamente impostas.” (sublinhamos) - Resulta, daí, que por tal fundamento a pretensão não merece acolhida. - Resta, por fim, verificar se o caso trata de pedido de aborto cujo fim é salvar a gestante de enfermidade grave (de perigo próximo a vida da gestante), ou seja, outra das modalidades do denominado aborto terapêutico, como informa o Professor Antônio José Eça: “Existem duas modalidades distintas de aborto terapêutico: - o aborto chamado necessário, que se pratica para salvar a vida da gestante; - o aborto cujo fim é salvá-la de enfermidade grave.” Quanto ao ponto – ou seja existência de perigo próximo à vida da gestante - temos como importante lembrar passagem do voto do Ministro Cezar Peluso (ADPF 54). Em relação ao aborto profilático (preventivo), temos, ainda, a lição do mestre Hungria que o definia como modalidade de aborto necessário. - A questão, quase sempre envolvendo peculiaridades, não se mostra de fácil solução. - Esta Câmara já enfrentou a matéria em diversas ocasiões, sendo que em um dos últimos julgados (Apelação Crime 70048009773, de 12 de abril de 2012), embora a decisão tenha sido unânime, o deferimento do pedido se assentou em fundamentos diversos. Na Apelação Crime Nº 70048297840, mais recente (j. em 10/05/2012), também se tratou de aborto terapêutico, conforme se verifica na seguinte passagem da ementa: “Quanto do julgamento da apelação anteriormente mencionada, após desacolher o pedido fundado no denominado "aborto eugenésico" - isto é, tão somente pela mal-formação do feto - , restou abordo matéria relativa "aborto terapêutico" (fundamentação reproduzida) - No caso sub judice, então, devemos considerar o consignado no documento juntado a fls. 30, que atesta que o procedimento é necessário e deve se realizar"... COM BREVIDADE SOB PENA DE RISCO DE MORTE DA PRÓPRIA MÃE". - No caso sub judice, contudo, não restou demonstrado, com a certeza necessária - como nos precedentes anteriormente citados -– que se faz necessária a interrupção da gravidez para salvar a gestante de uma enfermidade grave, ou seja, a existência de um perigo considerável a saúde, que acarrete perigo próximo à vida da gestante. APELAÇÃO DESPROVIDA[50]. Conforme exposto, a Apelação restouimprovida não tendo a gestante autorização judicial para interrupção da gravidez. Restou provado que no caso em questão não se está tratando de anencefalia ou de qualquer doença que impeça a vida. O laudo transcrito no acordão retrata “hipoplasia do vermis cerebelar, mas acusa, ainda, a existência de diversos órgãos vitais, diga-se, normais (coração, pulmões, rins, bexiga, abdômen, estomago, fígado)” [51]. Por fim, estabeleceu-se que: (...) as malformações físicas do feto podem não regredir e este vir a falecer em seguida ao seu nascimento (quem saberá), mas isso não quer necessariamente dizer que a criança, que está para nascer, não tem direito à vida, ainda que por alguns segundos [52]. A ONU se manifestou acerca do assunto da seguinte forma: A organização internacional denuncia um "retrocesso", que "afasta o Brasil de seus compromissos internacionais" em termos de direitos das mulheres. As Nações Unidas lembram, ainda, que os abortos clandestinos são "uma das principais causas de morte materna no Brasil e no mundo". REFERENCIAS: https://oglobo.globo.com/sociedade/onu-critica-projeto-de-lei-brasileiro-que-quer- restringirdireito-aborto-22089691 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto: sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 17. [2] MORI, 1997, p. 18. [3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Dos Crimes contra a pessoa a dos Crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 91. [4] BRASIL, Código Civil. Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 05/04/2016. [5] BRASIL, Código Penal. Decreto Lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del2848compilado.htm Acesso em: 05/04/2016 [6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Dos Crimes contra a pessoa. 12° ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 394. [7] BRASIL, Código Penal. Decreto Lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del2848compilado.htm Acesso em: 05/04/2016 [8] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial, Vol II. Artigos 121 a 154-B do Código Penal. 12° Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2015, p. 242.
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