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EA DO Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 6 1. OBJETIVOS • Compreender a transição entre Idade Média e Idade Mo- derna. • Conhecer a ciência escolástica e a mística medieval. • Analisar a crise da Cristandade e os movimentos pré-lute- ranos. • Conhecer as heresias medievais (cátaros, valdenses, apo- calípticos). • Identificar os movimentos de renovação eclesial (mendi- cantes). • Interpretar a Inquisição. • Conhecer a transição da Igreja Medieval para a Igreja Moderna. © História da Igreja Antiga e Medieval228 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 2. CONTEÚDOS • Auge e crise da Cristandade (investiduras). • Heresias medievais (cátaros, valdenses, apocalípticos). • Movimentos de renovação eclesial (mendicantes). • Inquisição. • Transição entre Idade Média e Idade Moderna. • Ciência escolástica e a mística medieval. • Crise da Cristandade e os movimentos pré-luteranos. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Um estudo organizado com sentido é facilmente com- preendido e interiorizado. Para que isso ocorra, você precisa se dedicar a descobrir os princípios e as leis que ligam as várias partes do conteúdo a ser estudado nesta unidade. Lembre-se de que esta visão global facilitará o entendimento dos detalhes e da aplicação prática do as- sunto aqui tratado. 2) Sabemos que pesquisar e estudar são hábitos que preci- sam ser criados. Assim como qualquer outra habilidade, no início, ler e estudar precisam ser atividades realizadas com dedicação e esforço, até que se adquira gosto e se torne uma tarefa cotidiana comum. Pesquise! 3) Suas reflexões podem ser úteis na elaboração de sua monografia ou de futuras produções científicas. Assim, anote-as no Bloco de anotações disponibilizado na Sala de Aula Virtual ou mesmo no CD-ROM. Aproveite esta oportunidade para amadurecer sua aprendizagem sobre os conteúdos estudados e confrontá-los com sua expe- riência. 229© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE A unidade anterior abordou o tema da Cristandade medieval, o Cisma do Oriente, o Islamismo e as Cruzadas. Agora, na Unidade 6, última unidade da disciplina História da Igreja Antiga e Medie- val, você terá a oportunidade de estudar conceitos relacionados ao auge e à crise da Cristandade medieval, às heresias medievais e aos movimentos de renovação eclesial, à Inquisição e à transição entre Idade Média e Idade Moderna, destacando a ciência esco- lástica, a mística medieval, a crise da Cristandade e os movimentos pré-luteranos. Vamos lá? 5. O AUGE E A CRISE DA CRISTANDADE (AS INVESTI- DURAS) Apogeu do poder eclesial (as reformas monásticas e eclesiásticas) Já vimos nas unidades anteriores que a partir dos papas da segunda metade do século 11, com destaque para a reforma de Gregório VII (1073-1085), a Igreja foi se fortalecendo e, com refor- mas eclesiais e monásticas, foi superando seus principais proble- mas internos e externos, até chegar no período do auge do papado com Inocêncio III (1198-1216), período da hierocracia, eclesiocra- cia ou eclesiocentrismo. Os aspectos mais marcantes da reforma eclesial foram: • inves tidura leiga: leigos ocupando cargos e funções ecle- siásticos; • simonia: compra e venda de sacramentos e benefícios eclesiásticos; • nico laísmo: a questão do celibato clerical. © História da Igreja Antiga e Medieval230 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Com a superação desses problemas, a Igreja direcionou-se para uma forte estru turação e domínio temporal da sociedade, fundamentando-se no sistema de Cristandade, com a expansão do pensamento da superioridade absoluta de religião cristã sobre to- dos aqueles que não seguiam os seus ensinamentos e eram infiéis. Na Cristandade, a Igreja ocupava o centro de toda a vida social, re- ligiosa, econômica e, principalmente, política da Europa ocidental e, a partir do fim do século 15, com a expansão ibérica, chegou na América, África e em algumas regiões da Ásia! A Cristandade expandiu-se graças, em grande parte, à ex- pansão e ao trabalho das ordens monásticas. Vamos conhecer um pouco mais sobre elas! Reformas monásticas Como já vimos, na segunda fase da Idade Antiga da Igreja (séculos 4º ao 7º), surgiram várias Ordens Religiosas no Cristia- nismo. Elas se desenvolveram a partir do Oriente, e dali, poste- riormente, se expandiram para o Ocidente cristão. Como muitas instituições sociais ou religiosas, já na Idade Média, várias dessas Ordens desapareceram. Em contrapartida, outras, especialmente a Ordem Benedi- tina, desenvolveram-se muito, trazendo uma grande contribuição para a Igreja e ajudando no forta lecimento do sistema de Cris- tandade. A Ordem Beneditina teve um grande destaque em todo este processo. Em 529, São Bento de Núrsia fundou, na Itália, o mosteiro de Monte Cassino. Na Europa, aconteceu uma grande expansão de mosteiros e a regra beneditina, muito precisa e fundamentada no ora et labo- ra (oração e trabalho), foi, aos poucos, impondo-se sobre as outras regras do Ocidente. No início do século 8º, com o apoio dos impe- radores em seus projetos de reforma eclesial, ela foi imposta a todo o Ocidente e os mosteiros foram fundados em todos os países, nos 231© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna locais mais inóspitos e distantes, levando progresso e novidades re- ligiosas, agrícolas e culturais para várias regiões europeias. Entretanto, em muitos mo mentos, os próprios mosteiros precisavam ser reformados, pois, com seu crescimento e expan- são, tornaram-se fontes de riquezas e passaram a ter um poder, tanto eclesial como político, muito grande. Além disso, era grande a intromissão dos nobres e, nesta si- tuação, decaiu muito a vida dos monges, o que provocou a neces- sidade de reformas. Assim, des tacaram-se as reformas: • de Bento de Aniane, no início do século 9º; • Lorenense, no século 10º; • de Cluny, a maior reforma mo nástica, na França. Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A reforma mo nástica de Cluny, na França, foi iniciada por um nobre, Guilherme, o Pio, de Aquitânia e São Berno, um grande reformador, e expandiu-se pela Fran- ça, Itália, Es panha, Inglaterra, Portugal, Alemanha etc. No seu apogeu, foram mais de 1.500 mosteiros dependentes. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Nesse mesmo período, novas ordens surgiram: 1) Em 950, São Nilo fundou o mosteiro na Calábria e, de- pois, assumiu a abadia de Grottaferrata, em Roma. 2) Camaldolenses de São Romualdo, fundados em 982, na Itália. 3) Valombrosa de São João Gual berto. 4) Congregação da Cava etc. Houve, também, as reformas do clero secular, a partir do sé- culo 11, que iniciaram, em muitas regiões, um tipo de "vida comum" ou "vida canônica". Desse modo, com a Reforma Gre goriana (1073 -1085), foi fortalecida a autoridade papal e a tentativa de se acabar com a intromissão leiga dos nobres e príncipes nos assuntos da Igreja. © História da Igreja Antiga e Medieval232 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Contemporaneamente ao apo geu da Igreja, surgiram vários movimentos contra seu poder temporal, os quais exigiam uma Igreja mais evangélica, pobre, austera, atenta aos mais humildes e desligadas de toda espécie de po der e domínio deste mundo. Apogeu do Papado com Inocêncio III Inocêncio III (1198-1216) foi um dos maiores papas de toda a história da Igreja. Como já vimos na Unidade anterior, as reformas eclesiásticas tiveram seu auge nos séculos 12 e 13, quando o Papado tornou-se a maior força política do Ocidente. Assim, após a morte do Papa Gregório VII, em 1085, seguiu-se uma fase de muita instabilidade: • os imperadoresalemães e, depois os franceses, queriam dominar a Igreja, os papas e os territórios pontifícios; • a nobreza romana queria a cidade de Roma livre de toda a interferência dos imperadores alemães e lutou contra a presença deles na cidade e, também, não queriam que o papa fosse o 'senhor da cidade'; • da mesma forma, os papas tentavam conquistar seu es- paço, defendendo os territórios pontifícios e se impondo em Roma. Vamos rever algumas das conquistas de Inocêncio III? 1) restituiu ao papado o poder absoluto sobre o Estado Pontifício; 2) retomou os "direitos feudais" sobre várias regiões; 3) promoveu a reforma da corte pontifícia; 4) lutou contra vários movimentos heréticos que es tavam aflorando na Igreja; 5) apoiou vários movimentos de reforma nas ordens reli- giosas e a fundação dos franciscanos e dominicanos. 233© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna Durante seu pontificado, influ en ciou e controlou a vida polí- tica ocidental na: 1) Alemanha. 2) França. 3) Inglaterra. 4) Espanha. 5) Portugal. 6) Boêmia. 7) Hun gria. 8) Dinamarca. 9) Islân dia. 10) Bulgária. 11) Armênia. 12) Constan tinopla, quan do os cru zados tomaram a cidade, instau rando ali um império latino. O seu pontificado foi uma grande obra de fortalecimento do poder eclesial. Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O ponto culminante dessa obra foi o IV Concílio de Latrão, em 1215, que promul- gou pela primeira vez a doutrina da transubstanciação (no ato da consagração, o pão e o vinho da comunhão se transformam substancialmente no corpo e sangue de Cristo). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Além disso, vale destacar os seguintes acontecimentos: 1) Foram con denados os val denses, os albigenses e as dou- trinas de Joaquim de Fiore. 2) Foi decretada a Inquisição epis copal, que ordenava a cada bispo in vestigar as heresias de sua diocese e extirpá-las. 3) Foi proibido fundar ordens religiosas com novas regras monásticas. 4) Ordenou-se que fossem criadas escolas nas catedrais para a educação dos pobres. 5) Foi proibido que os clérigos participassem de teatro, de jogos, de caça e de outros passatempos semelhantes. © História da Igreja Antiga e Medieval234 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 6) Foi requerida a confissão de pecados por parte de todos os fiéis, pelo menos uma vez por ano. 7) Foi proi bida a introdução de novas relíquias sem apro- vação papal. 8) Ficou estabelecido que os judeus e muçulmanos deveriam usar roupas especiais, para se distin guirem dos cristãos. 9) Os sacerdotes ficaram impedidos de cobrar pela admi- nistração dos sacra mentos. Desse modo, muitas outras medidas seme lhantes foram to- madas. Se levarmos em conta que o Concílio fez tudo isso em três sessões de um dia cada, fica claro que quem tomou essas medidas não foi a Assembleia, mas Ino cêncio III, que uti lizou o Concílio para referendar as medidas que ele decidira fazer. Por tudo isso, não resta dúvida de que, com Inocêncio III, o ideal de uma Cristandade unida sob um só pastor aproximou-se da sua realização. Não nos surpreende, então, o que esse papa chegou a dizer (e muito dos seus contemporâneos creram), que o papa "está entre Deus e o ser humano; abaixo do primeiro e acima do segundo. Menos que Deus, e mais que o homem. Julga a todos, mas ninguém o julga" (GONZALEZ, 1978, p. 184-185). O pontificado de Inocêncio III marcou, na Igreja, o período da supremacia do poder espiritual sobre o temporal. Essa fase é confirmada no seguinte discurso: [...] assim como Deus, o Criador do universo, estabeleceu dois grandes luminares no firmamento, o maior para presidir o dia e o menor para presidir sobre a noite; assim ele também estabeleceu dois lumi nares no firmamento da Igreja universal [...]. O maior para que presida sobre as almas, como dias, e o menor para que presida sobre os corpos, como noites. Estes são a autoridade pontifícia e o poder real. Por outro lado, assim como a lua recebe a luz do sol [...]. Assim o poder real recebe da autoridade pontifícia o brilho da sua dignidade. Os sucessores de Inocêncio III continuaram a sua obra, tanto na relação política com os impera dores como nos assuntos eclesi- 235© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna ásticos. As relações da Igreja com a monarquia alemã foram se en- fraquecendo e, simultanea mente, fortaleceu-se a aliança da Igreja com a monarquia francesa, de modo especial com o rei São Luís IX (1226 -1270). Desse modo, o sinal do estrei tamento da relação e depen- dência da Igreja com a França se deu com a convocação do Con- cílio Ecu mênico de Lyon, em 1274, para fortalecer a reforma ecle- siástica, buscar ajuda para a Terra Santa e para se tentar a união com a Igreja Grega, que estava separada da Igreja ocidental desde o Cisma do Oriente de 1054. Vale ressaltar que com o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) foi iniciada a fase de decadência do poder temporal dos papas em função do enfraque cimento da Igreja. As nações europeias buscavam o forta lecimento da auto- nomia, mais preocupadas com os seus assuntos internos, com o forta lecimento das novas classes burguesas em detrimento da no- breza feudal, com o surgimento do humanismo e da sociedade e das culturas modernas. Isto também fez com que elas se envolves- sem menos com questões externas e eclesiásticas. Assim, Bonifácio VIII não conseguiu dialogar com as novas realidades que surgiam e nem com o poder político estabe lecido e acabou ficando sozinho. A Idade Moderna começava e a Igreja permanecia à parte, ten tando manter as estruturas medievais, antiquadas para a nova realidade emergente. Infe liz mente, a atitude de fechamento da Igreja durou até o século 20. O fruto desse fechamento foi a inse gurança, o refor- ço das de cisões e atitudes intransigentes e, conse quen temente, a perda da capaci dade de diálogo, de com preensão, de discerni- mento e de abertura para o novo. © História da Igreja Antiga e Medieval236 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 6. HERESIAS MEDIEVAIS (CÁTAROS, VALDENSES, APOCALÍPTICOS) Heresias medievais A formação da ortodoxia cristã teve o seu auge entre os sé- culos 4º e 7º, época dos grandes concílios ecumênicos. Com o Con- cílio Ecumênico de Constantinopla (680 -681), terminou a fase das dis cussões antigas sobre a dou trina da Igreja. Na primeira fase da Ida de Média (692-1073), em função das várias mudanças sociais e eclesiais, especialmente a questão das instabilidades ocorridas pelas invasões bárbaras e expansão mu- çulmana, o ambiente não foi muito favorável para a re flexão teo- lógica. Dentre as mudanças sociais na primeira fase da Idade Média, estão: que da do império, invasões dos "bár baros", fortalecimento do sistema feudal, expansão muçulmana etc. Assim, não surgiram heresias, mas sim várias discus sões te- ológicas sobre a dou trina cristã que não saíram do am biente dos mos teiros e es colas teológicas: 1) questão da Iconoclastia sobre a ve neração das ima gens sagradas, iniciada em Cons tantinopla e es clarecida no II Con cílio de Niceia, em 787; 2) questão do Filioque, es sa discussão provocou o aumen- to das diferenças entre as Igrejas la tina e grega e persiste ainda ho je; 3) questão do Adocianismo (Jesus teria sido adotado como Filho de Deus, desde o batismo), sur gida na Espanha com os bispos Elipando de Toledo e Félix de Urge e con- denada no sínodo romano de 798; 4) controvérsia sobre a Pre destinação, levantada pelo monge Godescalco, do mosteiro de Fulda, na Alemanha e condenada em vários sínodos alemães; 237© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 5) controvérsias eucarís ti cas que não se referiam à pre sen - ça real de Cristo na Eucaristia,e sim ao modo dessa pre- sença real, tiveram vários re pre sentantes: • Pascasio Rad berto. • Ratra mno de Cor bie, no século 9º. • Berengário de Tours, no século 11. Filioque: doutrina segunda a qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Eles foram con de nados e o es cla re ci men to final veio no IV Concílio do La trão, com o Papa Inocêncio III, em 1215, quando foi apro vada a dou trina da "tran substanciação". Na segunda metade da Idade Média (1073-1303), a Igreja viveu a fase do "apogeu do Papado". Uma Igreja forte, rica e po derosa, que muitas vezes se con fundia com os poderes deste mundo e estava com- prometida com a cor rupção e o luxo. Nesse contexto, surgiram muitos mo vimentos que pregavam a renovação da Igreja e sua volta aos tem- pos primitivos, ou seja, pregavam um Cristianismo, mas pobre, mais puro e mais fiel aos ideais do Evangelho. Al guns deles perma neceram na comu nhão eclesial e outros romperam com ela. A partir do século 12, surgiram várias heresias, com forte apelo po pular e com um caráter forte mente an ti e clesiástico. Des- se modo, as causas do sur gimento dessas heresias de vem ser bus- cadas na decadência da vi da interior e religiosa, na ri que za, na vida mundana e no luxo dos e clesi ás ticos. Além do aspecto mais ecle- sial, temos de mencionar a di minui ção da autoridade do Papado, com as lutas deste com os impe ra dores. Finalmente, existem as causas políticas, econômicas e cultu- rais, de acordo com o que afirma Ribeiro Júnior: Do século XI ao século XIII, a expansão econômica da Europa, a reu- nião nas cidades de merca dores e das classes pobres, mais orga- nizadas (tecelões, artesãos, mi nei ros etc.), pro porcionaram, por © História da Igreja Antiga e Medieval238 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO toda parte, o aparecimento de mo vimentos populares, os quais de ram origem a várias heresias e levaram a Igreja e o poder civil a montarem um violento aparelho re pressivo, uma vez que, para a so ci edade feudal cristã, a heresia que brava as ordens divina e so- cial, alicerçadas sobre o juramento de fidelidade do vassalo a seu senhor. A heresia nem sempre nasce da dúvida intelectual, co mo ocorreu nos séculos anteriores. Surge, tam bém, das con dições so- ciais, econômicas e políticas; da oposi ção das clas ses a uma outra domi nante. Assim, praticamente todas as heresias medievais esta- vam li ga das a fatores sócio -eco nômicos. Os cultos da pobreza e da vida co mum re pre sen tavam não só uma es piritualização das con- dições ma te riais e xistentes mas também uma reação contra o luxo e a ri que za nascidos do desenvolvimento do capitalismo. A luta de ten dência anti feudal, anticlerical e anti -sa cramental que se desen- volveu nes se período foi uma luta de opri midos con tra o re gime feudal, o e piscopado aristocrático e as ins titui ções religiosas exclu- sivistas e ambiciosas, mas uma lu ta tra du zida no discurso da época, que era um discurso te o lógi co (1989, p. 62-63). Nesse contexto, as heresias sur giram e se expandiram com grande apoio po pular. Destacamos a seguir as principais heresias deste período: 1) Cátaros (puros) ou albigenses (da cidade francesa de Albi): he resia proveniente do dualismo maniqueu (luta entre o bem e mal, Deus e o Diabo, com vitória de Deus no fim dos tempos) oriental e do leste europeu que se fixou em vários países, es pecialmente na França. Eram ad mirados por causa de sua aus teridade e do combate às riquezas dos clérigos. Sua doutrina se ba seava no du- alismo e rejeitava tudo o que era material: a) pro priedades privadas; b) casamentos; c) carne; d) tra ba lho; e) guerra; f) negavam o valor redentor da ressurreição de Jesus e ensinavam que Ele só teve um corpo aparente e foi o mais puro dos espíritos; g) praticavam jejuns, ascetismo rigoroso e o suicídio era um ideal de santidade. 239© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna • Condenados no III Concílio do Latrão, em 1179, foram desaparecendo com as Cruzadas movidas contra eles e pela ação da Inquisição. Motsegur, a grande fortaleza cátara no Languedoc francês, caiu no ano 1244. • Del Roio escreve assim sobre eles: A mais importante heresia que o papado combateu, se considerar- mos o número de adeptos que arregimentou, foi a dos cátaros, cha- mados igualmente de albigenses, devido a um dos seus redutos, a ci- dade francesa de Albi. As posições teológicas do catarismo são pouco conhecidas. Seus documentos originais foram destruídos e chegaram até nossos dias apenas os atos de processos forjados com base nas calúnias dos adversários [...]. Aos fiéis, cabia o dever do ascetismo, o afastamento das riquezas e prazeres mundanos, considerados ar- madilhas do mal para manter os humanos ligados à matéria [...]. O crescimento da heresia deu origem a várias estruturas organizativas, com subdivisões dentro da comunidade com o nome de auditores, crentes e eleitos. Estes, representando o grau maior de pureza, inclu- íam as mulheres e tinha funções similares às de sacerdotes. As mui- tas ruínas de seus templos apresentam indícios de que praticavam ritos esotéricos de difícil compreensão. Devessem ou não os cátaros ser considerados cristãos, o fato é que com eles nascia no Ocidente latino, no final do século XII, uma igreja alternativa à de Roma. Coube ao papa Alexandre III (1159-1181) lançar o anátema sobre os cátaros (1179) e pedir a formação de uma cruzada para combatê-los. Era um salto qualitativo, as cruzadas realizadas até então tinham-se voltado contra os não-cristãos, religiões situadas nas fronteiras externas da cristandade(1997, p. 72-74). 2) Valdenses: fundados por um rico comerciante francês, chamado Pedro Valdo, que se converteu em 1173, e dis- tribuiu seus bens aos pobres, levou vida penitente pre- gando a Palavra de Deus de forma itinerante e, com seus discípulos, formou um grupo chamado de os pobres de Lyon. Para ele, a vida pura do Evangelho estava intima- mente ligada à opção pela pobreza e no serviço aos po- bres. Proibido de pregar pelo bispo de Lyon, con seguiu a permissão de fazê-lo do papa Alexandre III, no ano de 1179. Ao dirigir críticas, porém, contra a corrupção do clero, a situação piorou. Foi excomungado em 1184, através de decreto do papa Lúcio III, que atingiu também outros radicais hereges. Não se sabe como Pedro Valdo © História da Igreja Antiga e Medieval240 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO morreu, mas parte de seus seguidores per maneceram fiéis à Igreja, e parte optou por uma vida fora da Igreja e muitos se uniram aos hereges cátaros. Os pontos princi- pais da doutrina valdense eram esses: a) re jeitavam a Igreja visível; b) re jeitavam os sa cramentos, menos a Euca ristia; c) exigiam a supressão dos dízimos e do serviço militar; d) apreciavam muito a Bíblia. No século 16, uni ram-se aos calvinistas e existem até hoje, como Igreja organizada, na Itália, Suíça, Argentina e Uruguai. 3) Petrobrussianos: discípulos de Pedro de Bruis, que pre- gou sua doutrina na França, no início do século 11. Ba- seando-se num funda mentalismo evangélico, criticavam a hierarquia eclesiástica e alguns aspectos da doutrina cristã. Eram contrários ao batismo de crianças, à cons- trução de Igrejas, à missa, e pregavam a desobediência ao clero e à hierarquia. Para os Petrobrussianos, deve-se rezar em qualquer lugar. • Pedro foi assassinado em 1124, quando fazia um churrasco com o fogo aceso sobre cruzes queimadas e teve sua doutri na condenada, em 1139. Foram seus discípulos: • Henrique de Lau san ne; • Tanquelmo de Brabante Eon de Stella. 4) Irmãos Apóstolos: fundados por Geraldo Segarelli, em 1260, e por Frei Dolcino de Novara. Pregavam uma po- breza rigorosa e romperam com a Igreja e, em 1370, fo- ram exterminados por um exército cruzado. Geraldo Segarelli foi queimado em 1300e Frei Dolcino de Novara, em 1307. 5) Arnaldo de Bréscia: foi um cônego agostiniano, refor- mador eclesial e grande asceta, com propensão ao fa- 241© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna natismo e radicalismo. Criticou as riquezas da Igreja, sua mundanidade e seu poder temporal; foi condenado no Concílio do Latrão, em 1139. Em Roma, liderou um mo- vimento político que queria o afastamento do Papa da cidade e foi enforcado em 1155. • Del Roio assim sintetiza sua vida: Arnaldo nasceu nos primórdios de 1100 na cidade de Bréscia e pouco se sabe da primeira parte de sua vida, apenas que era um monge notabilizado pelos ataques ao seu bispo Manfredo, no qual, critica- va o alto nível de vida que levava. Exilado, rumou para Paris, onde travou elevados debates teológicos com Bernardo de CLairvaux, seu acérrimo inimigo. Convocado a penitenciar-se pelo papa Eugenio III (1145-1153), chegou a Roma em 1145. Encontrou a cidade rebela- da contra o papado, exigindo maiores liberdades. Em pouco tempo transformou-se num dos líderes dos insurretos e porta-voz dos seto- res mais pobres da população. Sua apreciação sobre a Igreja institu- cional fez-se sempre mais radical. Aos cardeais dizia que [...] as suas moradias, por soberba, avareza, hipocrisia e muitas outras qualida- des execráveis, não era a Igreja de Deus, mas um mercado e uma taberna de ladrões [...]. Nem o papa escapava de suas acusações: [...] homem sanguinário, que baseava sua autoridade sobre incêndios e homicídios, torturador de igrejas, perseguidor da inocência [...]. O remédio que propunha era simples: a Igreja devia abandonar suas riquezas e o poder temporal, entregando-se aos pobres, cumprindo a sua missão espiritual. Em junho de 1148 foi excomungado e em 1155, vencida a sublevação, depois da volta do papa a Roma, o pre- gador bresciano foi preso. Entregue ao braço secular, foi queimado e, provavelmente, antes de colocado na fogueira, estrangulado. Em- bora declarado herético, na verdade seu crime consistiu em opor-se ao dualismo que interligava Igreja e Império, poder espiritual e po- der temporal, que a seu ver degradava a missão confiada por Cristo. Como ele, mesmo que exprimindo-se numa linguagem menos incen- diária, pensavam muitos sacerdotes e leigos (1997, p. 70-71). A Igreja medieval pre cisava, urgentemente, de uma re forma. Ela se enfraquecia politicamente e precisava mudar o seu modo de se relacionar com a nova sociedade que surgia. Essas heresias mostraram as insatisfações popu lares e ser- viram para questionar a estrutura eclesial. Infelizmente, a Igreja não se desligou dos com promissos temporais e não resol veu seus problemas internos e externos. A crise aumentou e pro vocou o © História da Igreja Antiga e Medieval242 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO surgimento de si tuações lamentáveis que tiveram seu auge com a Reforma protes tante, liderada por Martinho Lutero. 7. MOVIMENTOS DE RENOVAÇÃO ECLESIAL Os problemas que afetaram a Igreja (crise do papado e luta com os imperadores, contratestemunho da hierarquia, riquezas e luxúria eclesiais, investidura leiga, simonia e nicolaísmo) fizeram com que surgissem movimentos de reforma que conhe ceremos. Elencaremos alguns movimentos que surgiram, a partir do século 11, e que geraram heresias e movimentos unidos à Igreja: • Os Apocalípticos fundados pelo monge cisterciense Joa- quim de Fiore (+1202), monge da Calábria, grande refor- mador da Igreja. Ele escreveu sobre a era espiritual que deveria ser assumida pela Igreja e se concretizaria naque- la época; seus escritos tiveram muitos seguidores, inclu- sive consegui a simpatia do monge e papa Celestino V, eleito em 1294, com ideal de pobreza e pureza, chamado de o "papa evangélico", mas que renunciou com menos de um ano de papado, decepcionado com os rumos da Igreja e com as pressões dos cardeais. • As beguinas que surgiram no fim do século 12 nos Países Baixos e foram fundadas por Santa Bega ou pelo pregador Laberto, e levavam vida apostólica comum num sistema rigoroso e sem votos. • Os Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Fran- cisco de Assis ou beguinos, dis sidentes franciscanos que pre ga vam a renúncia total dos bens ma teriais; muitos fo- ram presos e con denados pela Inquisição; os Fran ciscanos Espirituais ou frati celli, ordem monástica que lutava por uma Igreja pobre e pura. No contexto da Vida Religiosa Consa grada, surgiram várias or- dens que queriam a renovação eclesial: cistercienses de São Roberto 243© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna de Molesme (fundados em 1098, na França e seguidores da regra bene- ditina e dedicavam bom tempo ao trabalho manual e trouxeram muitas inovações tecnológicas para a agricultura e um dos grandes represen- tantes desta ordem foi São Bernardo de Claraval, um dos personagens mais importantes do Cristianismo do século 13); cartuxos de São Bruno de Colônia, os premonstratenses de São Norberto de Xantén etc. Segundo Del Roio, no capítulo em que trata sobre a Deca- dência da teocracia: Mesmo em seus piores momentos, governada por homens incapa- zes, envolvida em guerras e mergulhada na corrupção, a estrutura da igreja resistiu a todas as tempestades. Em grande parte, esse desempenho dever ser creditado às ordens religiosas. Diferencia- das entre sim, elas exerceram uma vasta e multifacetada influência na sociedade européia, abrangendo, entre outros, os campos mili- tar, econômico, artístico e universitário. Seu aparecimento deu-se processualmente, na medida em que novas tarefas e dificuldades apresentavam-se ao cristianismo romano. Algumas não resistiram ao tempo, todas conheceram crises e divisões, embora tenham re- presentado parte importante na história da Igreja (1997, p. 85). Mas o maior movimento de renovação eclesial foi o dos mendicantes, no me dado a várias ordens religiosas que surgiram nos séculos 12 e 13 e pregavam a pobreza total da Igre ja, dos mos- teiros e dos monges (frades-irmãos), que viveriam na pobreza, na aus te ridade e na mendicância. Del Roio situa o contexto de surgimento dos mendicantes desta forma: Se fosse possível a um cristão latino, no início de 1200, proceder uma análise objetiva da realidade de sua Igreja, motivos não falta- riam para que ficasse muito preocupado. Os cruzados em retirada, inexistência quase completa de casos de conversão de islâmicos ao cristianismo, freqüente conversão de cristãos ao islamismo, expan- são das heresias, preferência dos hereges à morte mais dolorosa a ter que abandonar seus próprios princípios, perda da capacidade de sacrifício entre os cristãos romanos, tudo isso evidenciava a ur- gência de se encontrarem novas formas de comportamento e de expressão religiosa na Igreja romana. A chama para essa mudança surgiria com Giovanni di Pietro de Bernardone, também chamado de Francisco (1997, p. 89-90). © História da Igreja Antiga e Medieval244 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Vejamos agora algumas ordens religiosas: 1) Franciscanos: fundados por São Francisco de Assis (1181- 1226), um dos santos mais co nhe cidos da Igreja por sua po breza e austeridade. Nas cido no apogeu do Papado, o pe ríodo no qual a Igreja esteve mais com prometida com os po deres des te mundo e com as ri quezas. A pro vados em 1223, aju daram na re for ma da Igreja, no ser viço aos po bres, nas missões e nas universi dades cristãs recém- fun dadas: Filho de família rica da cidade de Assis, região umbra da Itália, deci- diu entregar-se à vida em total pobreza, tal como Valdésio de Lion. Aos que o chamavam de louco, respondeu: "aquela que era o mais rico de todos me escolheu, junto com sua beatíssima mãe, viver na pobreza". Nele se concentravam todas as contradições da cristan- dade latina. Se os leprosos eram considerados malditos, intocáveis, viveria junto a eles. Se a naturezaera vista como inimiga que assus- tava o homem medieval, Francisco inverte essa posição a ponto de tratar o lobo, animal mais temido da época, como irmão. Se a mu- lher era considerada como inferior e perigosa, ele se apresenta ao lado de Clara de Assis e a trata como uma igual. Viajará até o Egito, onde manterá boas relações com o sultão e pronunciará discurso duro contra os cruzados e seus crimes. Acompanhado por um grupo de seguidores, visitará Roma em 1210 e obterá de Inocêncio III aprovação oral para a primeira versão das regras da ordem que pretendia fundar. Exigia daqueles que preten- diam militar em suas fileiras uma vida em pobreza, simplicidade e disposição para uma existência peregrina, sem habitação definitiva, em favor das crianças e dos mais humildes. Pouco antes de mor- rer, diz a tradição, rebentaram em seus corpos feridas semelhantes às de Cristo. Com seu desaparecimento, a ordem iria se dividir en- tre os espirituais, que exigiam coerência como o pensamento e a ação de Francisco, e os conventualistas, que pediam a atenuação do rigor das regras, sobretudo no que dizia respeito à opção pela pobreza, que desejavam fosse substituída pelo direito à posse de bens em comum. Apesar do papado ter-se decidido a favor destes últimos, a divisão subsistiria por muito tempo, ao longo do qual se- tores consistentes dos espirituais se aproximaram do joaquimismo (DEL ROIO, 1997, p. 91-92). • A Regra escrita por Francisco em 1221 foi aprova- da pelo papa Onório III em 1223. Mesmo com as divisões internas, a Ordem Franciscana teve uma expansão extraordinária e no fim do século 13 já 245© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna tinha mais de 1500 conventos, e nesse período se destacaram Elias de Cortona, sucessor de Francisco e São Boaventura. Em 1517, após três séculos de conflitos internos, foi aprovada a divisão da Ordem em dois ramos: Irmãos Menores e Irmãos Menores Conventuais. 2) Dominicanos: fundados por São Domingos de Gusmão (1170 -1221), contemporâneo de São Fran cisco. Preocu- pavam-se com a falta de formação do clero e com a ex- pansão das heresias. Ajudaram na reforma eclesial, na formação do clero e no combate às heresias: Domingos, pertencente a uma abastada família de Castela e for- mado em filosofia, seria enviado juntamente com os legados pa- pais à zona hegemoneizada pelos cátaros, com a incumbência de convertê-los. Anos de insucessos o convenceram da necessidade de fundar uma ordem, dotada de quadros bem preparados e ins- truídos, com a finalidade de predicar o evangelho e as verdades da Igreja entre as pessoas. Acompanhado por apenas seis companhei- ros, obteve do papa Honório III (1216-1227) o reconhecimento de sua ordem e a autorização para predicar. Era uma grande novidade, já que apenas aos bispos era concedida tal prerrogativa. Em 1220, sob a influência de Francisco de Assis, impôs o voto de pobreza a seus seguidores. Como os franciscanos, criou uma ordem feminina e outra leiga. Grandes nomes viriam pertencer a essa ordem, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Catarina de Siena. Infelizmente, em 1233 o papa Gregório IX iria delegar aos dominicanos a tare- fa de servirem à inquisição. Embora apenas um pequeno número dentre eles tenha cumprido essa determinação, comparados com o conjunto de religiosos que nela se envolveram, esse fato pesa ainda hoje como mácula indelével (DEL ROIO, 1997, p. 92-93). 3) Carmelitas: nasceram em Je ru sa lém, possivelmente a partir do ere mi tério fundado, em 1156, pelo cru zado Berto de Calábria e um gru po de companheiros. Trans- fe riram-se para a Europa e se dedicaram às missões e à formação do povo. 4) Mercedários: fundados por São Pedro Nolasco e São Raimundo Peñafort, em 1222. 5) Servitas: fundados por sete piedosos homens de Floren- ça, Itália, em 1233. © História da Igreja Antiga e Medieval246 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 6) Trinitários: fundados por São João da Mata. Foram aprova dos em 1198. Assim, a Igreja medieval te ve muitas luzes, mas também mui tas sombras. Dessa maneira, ela apren deu que sua missão não pode estar vin cu lada aos sistemas e às estru tu ras des te mundo, e buscar sua for ça e autoridade na obra de Je sus Cristo, nas verda- des do Evan gelho e no exemplo de tantos cristãos que souberam "amar a Deus sobre todas as coisas". 8. INQUISIÇÃO Agora, estudaremos a "inquisição", entidade mais criticada e mais incompreendida de toda a História do Cristianismo. Ela foi um tribunal criado pela própria Igreja para combater os hereges e aqueles que não se adequavam ao sistema da Cristandade me- dieval. Aprofundando, podemos dizer que ela foi uma instituição, com aspectos jurídicos precisos, que teve sua atenção voltada para investigação dos hereges medievais e suas teorias, tendo como ob- jetivo identificá-los e tomar as medidas para controlá-los e excluí- los do contexto da Cristandade latina medieval. O Pe. Giacomo Mar tina, histo riador je suíta, faz um juízo da Inquisição com es tas pala vras, tra du zidas do ori ginal italia no: A Inquisição repre senta um dos pontos nevrálgicos da cristandade me- dieval, e, em ge ral, da História da Igreja. É necessário, porém, compre- ender o espírito que permitiu o seu nasci mento e desen volvi mento: a intole rância era comum em toda a Idade Média e a tolerância se afir- mou fatidica mente só na idade moderna mais re cente. A Igreja, pois, fez uso dos meios que o procedi mento penal da quele tempo lhe colo- cava à dis posição. Com pre ender isto, porém, não significa justificar ou absolver. Não temos neces sidade de justi ficar a Inquisição medieval e não o fa re mos. A acei tação de algumas de núncias, tam bém anôni mas e a con servação do segredo acerca de tex tos pe sa dos, a exclusão qua- se ge ral de um defensor, a ex cessiva ex tensão do con ceito de here- sia, a apli cação da tortura, apesar dos li mites e cau telas previs tos pelo Di reito, a pena de morte, são atos tão dis tantes do ge nuíno espírito evangélico: não resta senão re co nhecer que, ao me nos nisto, a ida de mo derna, mesmo com erros e desvios, com preen deu melhor as exi- gências da men sagem cristã ( 1980, p. 130). 247© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna A Inquisição de ve ser compre en di da no con texto his tórico no qual ela nas ceu e se de sen volveu. Como sabe mos, a Inquisição nasceu e se desenvolveu no contexto do mundo medieval (sécu- los 12-14), na época em que surgiram muitas heresias contrárias à Igreja enquanto instituição e na época em que a Cristandade esta- va no seu apogeu, teve seu período mais forte na Idade Moderna (séculos 14-17) e foi se enfra quecendo até desaparecer nos sécu- los 19 e 20. Na Idade Antiga, até o início do século 4º, os cristãos resol- viam internamente os seus problemas, quando surgiam dúvidas dou trinais, ou sobre a fé ou proce dimento mo ral e comunitário de um membro da comunidade. Quando o Cristia nismo, no Edito de Milão (313), ganhou a liber dade de culto e, a partir do Impe rador Te o dósio (392), tor- nou-se religião oficial do Império Ro mano, as coi sas mu daram. Os impe ra dores e reis acre ditavam que a u ni dade im pe rial só se- ria con se gui da com a unidade reli gio sa; por is so, com bateram e perse guiram todos aque les que po diam ferir a união imperial. Nes- se contexto, mexer ou mudar a or dem religiosa era o mesmo que fazê-lo com a or dem universal que rida e dese jada por Deus. Assim, todos os hereges eram con side rados co mo aqueles que minavam e com pro metiam a or dem religiosa e, conse quente- mente, a ordem social; isto fazia com que eles fossem rejei tados e, no espírito da intolerância me dieval, deviam ser banidos do conví- vio social e religioso, ou seja, condenados e mortos. Na Idade Antiga, muitos papas,bispos e teólogos cristãos con denaram as atitudes violentas do Estado e de setores da Igreja, que já aceitavam a prática da violência para condenar os hereges. Na Idade Média, porém, poucos levantaram a voz contra as atitu- des intolerantes e antievangélicas dos proce dimentos inquisitórios ecle siásticos e reais. Tentando es cla recer mais ain da essa ques tão, em que se funda mentava essa intolerância me dieval, o Pe. Gia como Mar tina © História da Igreja Antiga e Medieval248 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO (1980, p. 128), na obra anteriormente ci tada, men ciona os se guin- tes as pectos: • Pensava-se que o batizado (no Cristianismo) não pudesse perder a fé a não ser por própria culpa". En tão, a here sia a pa recia co mo um er ro con tra a ver dade, mas tam bém como um cri me con tra a so cie dade, uma ten tati va de mu- dar a or dem ci vil, fun da da sobre a religião. • Outra cir cuns tância deci siva foi o renova do influxo do di- reito ro mano que, ao contrário da tradição pa trís tica, se mostrava muito se vero com os donatistas e os mani queus, comparando a sua culpa a uma alta traição digna de mor- te. Ino cên cio III já se inclina para esta tese, o bser vando que quem re nega a Cristo co mete uma cul pa mais gra ve que o delito de lesa-majes tade, punido com a morte. • É preciso não esque cer que dian te dos casos de lin cha- men to dos he reges que se veri fi ca vam na Fran ça e na Ale- manha, era ne ces sário con ter e con tro lar o arbítrio das massas e regular juridi camente o proce dimento contra os here ges. Devemos acrescentar que a prática do lincha- mento arbitrário era muito comum nesse período e que, num sistema de clas ses, os menos favorecidos não tinham direito de apelação e eram facilmente domi nados pelos mais fortes. Além disso, a Inquisição surgiu num período em que a ten- dência dualista era muito forte. O que é esse dualismo? É a crença de que existem no mundo duas grandes forças irreconciliáveis, to- talmente opostas uma à outra. O bem e o mal eram forças expres- sas com vários antônimos (Deus e diabo, dia e noite, luz e trevas, espírito e ma téria, alma e corpo, espiritual e tem poral, santo e pe- cador, homem e mulher etc.). Nesse contexto, o mais importante era salvar a alma para que ela descan sasse junto a Deus. Assim, o corpo era considera- do como uma prisão para a alma, que deveria se libertar de le e 249© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna das coi sas do mundo, quan do estas o afastavam do divino e do eclesial. Ora, se pa ra li bertar a al ma de um he rege ou pe cador era ne ces sário tor turá-lo ou matá-lo, para o bem dessa mes ma alma, is so deveria ser feito. Após es ses escla recimentos, vejamos como foram o nasci- mento e o fortalecimento da Inquisição. Ela surgiu no período em que estavam aflorando, na Europa, as heresias medievais, tema visto no número passado. Ini cialmente, a Igreja quis mantê-la sob seu controle. Entretanto, com o passar do tempo, a Inquisição caiu nas mãos dos reis e imperadores, que a utilizaram para combater seus inimigos políticos e eliminá-los. Muitas vezes, as lideranças polí- ticas agiram contra riamente aos desejos da Igreja, que, cada vez mais fraca, não podia fazer frente a esses abusos. Martina (1980. p. 128), na obra Storia della Chiesa, Cen tro Ut Unum Sint, Roma, menciona quatro fases na evolução da In- quisição: Inquisição episcopal: a repressão da heresia foi confiada aos bis- pos, que direta ou indireta mente, inspecionavam periodica mente as dioceses. Tal procedi mento foi esclarecido pelo papa Lúcio III, no encontro de Verona, com Frederico Barba- Roxa, no ano de 1184. Inquisição legatícia: a defesa da fé era confiada aos legados escolhi- dos pelo Papa. O sistema tornou-se mais freqüente com Inocêncio III, no início do século 13. O Papa enviou como legados à França, muitas vezes, os Cister cienses, mais com o objetivo de pregar e de converter do que com o de condenar. Inquisição monástica: Gre gório IX confiou aos Francisca nos e Domini canos a Inquisição, a partir de 1231. Inocêncio IV (1243-1254) per mitiu o uso da tor tura, mal gra do o pare- cer con trário, emitido, quatro séculos antes, pelo papa Nicolau II. Pierini também trata o tema das distintas "inquisições", afir- mando que: A inquisição medieval, em vigor em quase todos os países cristãos entre o final do século XVI, deve ser distinguida da cruzada contra os albigenses (1209-1229) e das outras formas de investigação e © História da Igreja Antiga e Medieval250 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO luta contra os hereges, como a inquisição dogal veneziana (1249- 1289), a inquisição régia francesa (1251-1314), a inquisição régia espanhola (1478-1834), a inquisição romana (instituída pelo papa Paulo III, em 1542, e que se tornou, depois, um dos organismos da Cúria romana, até se transformar na atual "Congregação para a doutrina da Fé") (1998, p. 116). Qual o modo de proceder da inquisição? Vamos conhecê-la? • a acusação era feita com o nome do acusado não se fa- zendo público; • o interrogatório do acusado era feito em torno de suas ideias heréticas; • a tortura era aplicada, quando a culpa era evidente, para que o réu a confessasse. A sentença poderia ser de três tipos: 1) se ele se arrependesse, era "absolvido" e recebia uma "peni tência eclesiástica"; 2) se a conversão não parecesse sincera, era condenado à "prisão perpétua"; 3) condenação. Desse modo, havia várias penas: 1) cárcere; 2) peregrinação a um lugar santo; 3) construção de uma Igreja; 4) exercício de uma ou várias obras de caridade; 5) obrigação de carregar um sinal discriminatório; 6) pena de morte confiada e aplicada pelo "braço secular", ou seja, pelo Estado. A questão da condenação aplicada pelo "braço secular" sus citava questiona mentos, como a do teólogo católi co Jean Ma- thieu-Rosay, ao afirmar que "a hipocrisia da I gre ja foi assom brosa". Partindo do prin cípio de que Ec cle sia non sitit san guinem (a Igre ja não é se denta de sangue), não exe cutava ela mesma as senten ças capitais que seus juízes haviam proferido. 251© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna Assim, entre gava os condenados ao braço se cular, com os votos piedosos de que este lhes poupasse a vida. "Oração mera- mente fictícia, pois, ao mesmo tempo, ameaçava suas sentenças e que, por este motivo, passassem a ser, eles mesmos, heréticos passíveis de perseguição" ( MATHIEU-ROSAY, 1990, p. 178). Para Pierini: A função dos juízes eclesiásticos era apenas verificar se A função dos juízes eclesiásticos era apenas verificar se havia hereges conscien- tes e convictos ou recidivos. Os juízes e as autoridades civis, bem como as instituições leigas, faziam o resto, segundo as leis locais em vigor. De fato, foram um rei (Pedro II de Aragão) e um imperador (Frederico II), o primeiro em 1197 e o segundo em 1220, que decre- taram a pensa de morte na fogueira para os hereges contumazes. O papa Inocêncio IV foi quem autorizou, em 1252, os inquisidores eclesiásticos a usarem a tortura, já em vigor nos processos leigos, contrapondo-se, assim, à condenação desse método bárbaro for- mulada em 866 pelo seu predecessor, o papa Nicolau I. No curso da inquisição eclesiástica, porém, as torturas eram muito raras, infinitamente menos comuns do que nos processos presidi- dos pelos juízes leigos; e caíram em desuso por volta da metade do século XVI, enquanto nos tribunais liegos se mantiveram até o início do século passado, apesar das denúncias de Casar Beccaria, a partir de 1764. Note-se também, que com freqüência era a in- quisição eclesiástica (que, sozinha, não podia ordenar a morte de ninguém) que salvava certas pessoas das garras de alguns sobera- nos (como o imperador Frederico II ou, maistarde, o rei da França, Filipe, o Belo); às vezes tratava-se de bons cristãos, mas que, apesar disso, eram torturados e levados à morte sob o pretexto de heresia, quando a motivação de fundo era eminentemente política (1998, p. 116-117). A Inquisição expandiu-se por todos os países da Euro pa com muita rapidez. Foram julgados por ela não só atos contra a fé cris- tã, mas também os mais variados delitos: 1) roubo; 2) estelionato; 3) magia; 4) alqui mia; 5) blasfêmia; © História da Igreja Antiga e Medieval252 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 6) adultério; 7) bigamia; 8) prostituição; 9) ler livros proibidos; 10) infanticídio etc. Entre os inquisidores mais co nhecidos, destacam-se: 1) Ber nardo Gui. 2) Tomás de Torquemada. 3) Con rado de Marburgo. 4) Pedro de Vero na. Calcula-se que, dos processos levados a termo, só foram conde nados à pena de morte 5% dos acusados. Tristes foram, tam- bém, as acusações contra centenas de milhares de mulheres, acu- sadas inocentemente de bruxaria, em vários países da Europa. A Inquisição instalou-se tam bém na Espanha, em 1480, e em Portugal, em 1540. Calcula-se que nesses dois países houve mais de 30 mil hereges queimados. Gran de parte dos persegui- dos e con de nados era de judeus (conhe cidos como cristãos-no- vos) e mu çul manos, às vezes convertidos forçadamente ao Cris- tianismo. Todavia, segundo os inquisidores, continuavam praticando suas antigas religiões. A Inquisição foi abolida em Portugal, em 1821, e, na Espanha, em 1834. Por meio de Portugal, a Inquisição chegou também ao Brasil. Aqui, "o Santo Ofício nunca instalou um tribunal permanente; mas sua ação se exerceu através dos visitadores": • Hei tor Furta do de Men don ça, entre 1591 e 1595. • Mar cos Tei xeira, en tre 1618 e 1619. Entretanto, eram dele gados po deres aos bis pos para efe- tuarem pri sões, con fiscar bens e en viar pa ra Lis boa os pri sio nei ros a se rem jul gados. 253© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna A Ba hia foi o palco das inquisi ções mais inten sas. De 1591 a 1624, foram pro ces sa dos ali 245 cris tãos-no vos acu sa dos de judai- zantes. Em 1646, mais de cem conde nações foram feitas; no auto- de-fé [cerimônia na qual se anunciavam as sentenças da Inquisição às vítimas] de 1711, 52 brasi lei ros foram justiçados. O último bra- si leiro condenado à morte pela Inquisição mor reu em Lis boa, no au to-de-fé de 1748 (SCHLENSIGER, 1995). A Inquisição foi extinta pela Igreja em 1908, quando passou a se chamar Con gre gação do San to Ofício. Ho je, é denominada Con gre gação para a Doutrina da Fé, cujo obje tivo é zelar pela in- tegridade da doutrina cristã, sem os apelativos intolerantes da In- quisição. Entre as con de nações da Inquisição mais co nhe cidas, pode- mos men cio nar: 1) Joana D’Arc (1412-1431). 2) Nicolau Co pér nico (1473-1543). 3) Giordano Bru no (1548-1600). 4) Ga lileu Galilei (1564-1642). Fruto da es tru tu ra inquisi torial também foi o Ín dice dos Li- vros Proi bi dos, arti fício uti liza do pela Igre ja, a partir do século 16, para con de nar todas as o bras que não es ta vam de a cor do com a dou trina e práti ca eclesiais. A primeira edição ocorreu no ano de 1559, após o Concílio de Trento. A Congre gação do Índice foi criada por Pio V, em 1571. O último Índice foi editado em 1948 e o Con- cílio Va ti cano II não o editou mais. Entre os autores conde nados pelo Índice, ci ta mos: 1) Francis Ba con. 2) Victor Hu go. 3) Emmanuel Kant. 4) Jo hn Locke. 5) Pas cal. 6) Jean Jacques Rous seau. 7) Vol taire. © História da Igreja Antiga e Medieval254 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 8) Be ne dito Spino za. 9) René Des car tes. 10) Ernest Re nan etc. A Inquisição precisa ser entendida a partir do contexto em que ela surgiu e se expandiu. A Igreja reconheceu os erros e exces- sos da Inquisição e deseja que não haja mais atentados contra a vida humana por causa de assuntos religiosos. O aspecto mais nefasto da prática inquisitorial, justificada no início pela periculosidade não só religiosa, mas também social de certos hereges – como os cátaros ou albigenses-, foi o de ter implantado de maneira cada vez mais decidida e indiscriminada a luta contra a dissidência, que se tornou perseguição contra qualquer ideologia diferente e intolerância em relação ao legítimo pluralismo ideológi- co (PIERINI, 1998, p. 117). Não po demos concor dar com os atos da Inquisição, pois foram um contra-teste munho dian te das verda des evangélicas. To da via, precisa- mos com preen dê-la dentro do seu con texto. A Igre ja aprendeu muito, pois das atitu des ambíguas e erradas, podemos tirar lições para a vida. 9. TRANSIÇÃO ENTRE IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA Mundo moderno e o Humanismo Esta fase foi uma das mais difíceis para a Igreja, pois o mundo medieval, marcado por uma fé teocêntrica, que criou o chamado "Sistema de Cristandade", entrou em crise. Foi o início da chamada Idade Mo derna ou Nova. Cronologi camen te, esta fase se situa no século 14 (crise da Igreja e declínio do poder temporal do Papado) e se estende até o século 18 (Revo lução Francesa e a crise das monarquias). O Mundo da Baixa Idade Média (1250-1500 apr.) O período que vai do fim do século 13 até inícios do século 16 se apresenta com muitas novidades no contexto da sociedade europeia medieval: 255© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna É um mundo em crescimento e expansão o que se apresenta na metade do século XIII, em quase todos os continentes da terra, mas de modo especial na Europa: crescimento econômico e demográ- fico; expansão geográfica. A população mundial – que dos cerca de 190 milhões por volta do ano 500 d.C., havia crescido para 265 milhões no ano 1000, para 320 milhões no ano 1100 e 360 milhões no ano 1200- consegue manter-se estável por mais de um século, descendo um pouco (para 350 milhões) em 1400, para voltar a su- bir em seguida e chegar a 545 milhões em 1500 e a 610 milhões em 1700. A queda demográfica verificada na metade do século XIV é particularmente evidente na Europa, após a epidemia da "peste negra" de 1247-1250: a população européia, que passara dos 36 milhões no ano 1000 para 45 milhões em 1100, para 60 milhões em 1200, chegando aos 80 milhões em 1300, cai de novo para 60 milhões, para depois voltar aos 80 milhões em 1500, a 100 milhões em 1600 e a 120 milhões em 1700. Até a duração média da vida cresceu, na Europa: dos 25 anos, do século IV d.C., passou para os 35 anos entre 1200 e 1300. Embora a "baixa Idade Média" possa ser considerada uma época de crise, em relação aos dois séculos anteriores, e, as conjunturas desfavoráveis se renovem com freqü- ência, por causa das guerras quase contínuas, das epidemias recor- rentes, da ameaça das carestias, no quadro global da evolução his- tórica trata-se mais de uma crise de crescimento e de adaptação: de fato, é nesses séculos que se delineia cada vez mais claramente a fisionomia do mundo moderno, em razão, sobretudo, do segundo elemento decisivo, a expansão geográfica. As grandes descobertas, nesse campo, estimuladas por fatores eco- nômicos e demográficos, acham-se condicionadas pelas últimas grandes movimentações de povos da idade medieval: o islamismo, em retirada da península ibérica, vai, porém, avançando na Ásia Menor e nos Balcãs, pelo interior da África e da Sibéria e na direção da Índia e da Indonésia, fechando assim a passagem dos europeus para o Sul; os mongóis, por outro lado, islamizados ou em via de is- lamização, fecham a passagem para o Leste. Aos europeus só resta o caminho a Oeste, chegando aos mercados da Ásia circunavegan- do a África ou inclusive atravessando todo o Oceano, para lá do estreito de Gibraltar, a fim de chegar ao Japão e à China. No que se refere à África, já em 1269 começam as infiltraçõespor- tuguesas no Marrocos, que levarão muito mais tarde, em 1415, à conquista de Ceuta, primeira possessão européia do continente. Mas em 1291 são dois irmãos genoveses, Hugolino e Vadino Vi- valdi, que ultrapassam por primeiro o estreito de Gibraltar para chegar às Índias circunavegando a África; não retornam, porém [...] em 1497 Bartolomeu Dias alcança a ponta extrema da África, ou seja, o atual Cabo da Boa Esperança. Vasco da Gama, por sua vez, supera-o, adentrando-se pelo oceano Índico e, a 18 de maio de © História da Igreja Antiga e Medieval256 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 1498, aporta em Calicut, na Índia. Enquanto isso, entram na disputa também os espanhóis, promotores da viagem do genovês Cristó- vão Colombo: tendo partido de Palos no dia 3 de agosto de 1492, ele chega a o novo mundo, do outro lado do Atlântico, no dia 12 de outubro. O bloqueio fora rompido, o mundo está aberto (PIERINI, 1998, p. 146-148). E foi neste contexto de tantas mudanças em todos os seg- mentos da sociedade ocidental, principalmente, que o Cristianis- mo viveu um grande processo de mudanças, pois a passagem de uma sociedade medieval agrária e feudal para uma sociedade mo- derna urbana não foi tão simples e afetou toda a sociedade. Como o Cristianismo se solidificou e construiu sua identidade a partir da Cristandade medieval, é claro que teria muitas dificuldades para aceitar e assumir o novo modelo de sociedade. As tentativas de diálogo com este novo modelo foram difíceis e podemos dizer que continuam ainda hoje, com grande destaque para o processo ini- ciado com o Concílio Vaticano II, a partir de 1962. A Igreja no fim da Idade Média Para enten der o que acon teceu com a Igreja, na Idade Mo- derna, é bom recordar al guns aspectos da vida eclesial, na transi- ção en tre o fim da Idade Média e o início da Mo derna. O período do "apogeu do papado" (sécu los 12-13), marcado pela hierocracia e pelo teocen trismo, tão evidentes nas Cruzadas e na Inquisição, foi de clinando no fim do século 13. Hierocracia: o poder eclesial se so bre punha ao civil. Teocen trismo: Deus era o centro de toda a vida social. Bonifácio VIII ainda tentou, sem sucesso, reconquistar poder e influência, cada vez mais amea çados. Nesse período, destacaram- se dois as pec tos da vida eclesial que me recem ser considerados, embora sintetica mente: a espi ritualidade e a Ciên cia Escolás tica. 257© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna Espiritualidade As heresias medievais (cata rismo, valdenses, fraticelli etc.) questionaram as estruturas eclesiais e sociais e os sacra mentos cristãos. Isso fez com que a Igreja refletisse sobre esse assunto e, aos poucos, sistematizasse a "teolo gia dos sacramentos", até defi- ni-los em sete, no Concílio de Trento, no século 16. As de voções for tale ceram-se e se ex pan diram em tor no do "Cristo ho mem, crucifi cado e misericor dioso" e também nas de vo - ções à Virgem Maria e no culto aos san tos (apesar do comércio de relíquias e do cres ci men to das supers tições). Surgiram iniciativas de be neficência e caridade. Ao mesmo tempo em que se desenvolvia a Ciência Esco- lástica, foi-se fortalecendo a Mística, a qual tinha por objetivo le- var o cristão a se aprofundar nas verdades revela das por meio da "contem plação interior". Assim, se a Escolástica estudava a fé por meio da dialética, a Mística estudava a fé por meio da contempla- ção. Nos séculos 12-14 surgiram grandes místicos, como: 1) Bernardo de Claraval. 2) Hugo de São Vítor. 3) Mestre Eckart. 4) João Tauler. 5) Henrique Suso. 6) João Ruisbroeck. 7) Santa Hildegarda de Bingen. 8) Santa Catarina de Sena. 9) Santa Gertrudes a Grande. 10) Santa Ângela de Foligno etc. Ciência Escolástica (séculos 11-14) Com o surgimento da cultura burguesa, aos poucos foram funda- das as universi dades em várias cidades do Ocidente cristão, quase sem- pre, nas mãos do clero e das ordens religiosas. Nelas, havia um grande espaço para os estudos teológicos e filosóficos, o que não tinha ocorri- © História da Igreja Antiga e Medieval258 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO do durante a Idade Média. Assim, a partir do século 11, surgiu a "Ciência Escolástica", grande tendência do pensamento desse período, conside- rada pelos huma nistas como ciência das vacuida des, sofisterias e ques- tões abstra tas, mas que permanece viva até hoje, pois criou um sistema de pensamento não superado. As ca rac terísticas principais são: • relação especial entre a Filosofia e a Teolo gia; • dependência da filosofia aris to télica e métodos lógico- dedutivo e dialético. A Escolástica divide-se em três períodos: 1) Escolástica primitiva: • Santo Anselmo (creio para entender); • Pedro Abelardo etc. 2) Apogeu (época das "sumas" ou grandes sínteses): • Alexandre Hales; • Alberto Mag no; • Boaventura; • Tomás de Aquino (o príncipe dos escolásticos, com as Summa Theologica, Summa contra gentiles etc.). 3) Escolástica tardia (declínio): • Duns Escoto (opôs-se ao tomis mo e acentuou a ativi- dade humana ante a graça divina). • Guilherme de Ockam (separou a fé da razão: pro vo- cou a queda da influência da Teologia, foi um dos pre- cursores da reforma protestante). Além disso, é preciso consi derar as mudanças econômicas, po- líticas, sociais e religiosas que aconteciam diante da crise e de clínio do sistema feudal medieval, marcado pelo fechamento e restri ção da vida social em torno das es truturas agrária e rural; o surgi men to da cultura burguesa, centra da nas cidades que cresciam em torno de um incipiente pro ces so de desenvolvimento das manufaturas e indústria; e a ascen são de uma nova classe, a burgue sia, que já não aceitava o poder centralizador dos reis e nobres. 259© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna Nesse con texto de supera ção das estrutu ras me dievais, de crise do feu da lis mo e surgi mento da cultu ra bur gue sa e urbana, é que se iniciou uma no va fase da his tória chama da de Ida de Moder- na ou Nova. Nesse pe ríodo, a vida da Igreja foi marcada por duas situações distintas e bem definidas: 1) Por um lado, a Igreja hierár quica (papas, bispos e alto clero) viveu uma crise sem precedentes, marcada pela ten tativa de manu tenção das estru turas do poder, con- seguido na Idade Média, e pela corrupção e imoralida- des de muitos de seus membros. 2) Por outro, houve vários se tores da base eclesial que, diante da decadência e da corrupção, propuseram uma reno vação e promoveram várias ten tativas de reformas na estrutura da Igreja. A partir do século 14, com o desenvolvimento do método em pírico e racionalista, protagoni zado pelo Humanismo e pelas novas tendências modernas, a Ciência Es colástica não morreu, mas perma neceu relegada e circunscrita ao espaço eclesiástico. Nesse novo "mundo moderno" que se estruturava, as mu- danças ocor reram com base no Humanismo, provocando gran des transfor mações sociais, cultu rais, políticas, econômicas e religiosas. Movimento humanista A situação da Igreja na Idade Moderna foi muito difícil, pois o mundo medieval, marcado por uma fé teocêntrica (Deus e Igreja no centro de tudo), e que originou o Sistema de Cristandade, en- trou em crise. A Idade Mo derna ou Nova, cronologi camen te, situa- se do começo do século 14, e estendeu-se até o fim do século 18 (Revo lução Francesa e a crise das monarquias). A Europa está passando por grandes mudanças. Um aspecto importante a se ressaltar foi a expansão das universidades: As crises de crescimento típicas do período 1250-1500, embora agravadas pelos mais diversos fatores (climáticos, higiênicos, re- ligiosos, ambientais, econômicos, demográficos, sociais, políticos), © História da Igreja Antiga e Medieval260 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃOchegam em muitos casos a resultados concretos de grande impor- tância, com a constituição de organizações nacionais, estatais, que mais ou menos respondem às exigências regionais. E todo esse conjunto de fenômenos vai se desenvolvendo às vésperas das gran- des descobertas geográficas, dos grandes encontros e desencon- tros intercontinentais, que levarão ao mundo "aldeia global" e aos seus respectivos problemas. Mas o período histórico de 1250-1500 traz consigo, no campo especificamente cultural, algumas conquis- tas igualmente decisivas, importantes e significativas: difunde-se a alfabetização nos continentes que estão na vanguarda, ou seja, na Europa e na Ásia; o crescimento quantitativo, embora nem sempre qualitativo, das instituições educacionais superiores (universitá- rias); o impulso a uma consciência histórica e filosófica, median- te os movimentos humanista e renascentista, partindo da Itália e alcançando a Europa e o mundo inteiro; a descoberta e utilização cada vez mais ampla, a partir da metade do século XV, de um novo instrumento de comunicação social: a imprensa. São aquisições de alcance potencialmente universal, às quais seria preciso acrescen- tar as novas técnicas de navegação e, infelizmente, também as no- vas técnicas bélicas, como a artilharia e a pólvora de disparo [...]. Enquanto o resto do mundo aponta responde às crises apontando para a herança antiga "conservada", o mundo europeu reage ape- lando também para o antigo, mas "revivido", "renovado", com sen- tido cada vez mais histórico-crítico: um historicismo aplicado aos textos que se desenvolverá gradualmente junto com o empirismo aplicado aos fenômenos naturais. Humanismo, naturalismo: são as duas idéias-guia que mil anos de Idade Média transmitirão às ida- des moderna e contemporânea (PIERINI, 1998, p. 153-154). E foi neste contexto que o Humanismo surgiu, questionando as bases da Idade Média, tentando recuperar as forças dos clássi- cos anteriores a ela e lançando as bases para o pensamento racio- nalista moderno, com grandes conflitos com as estruturas eclesi- ásticas, que não estavam preparadas para as novas propostas que emergem nesta época. Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O começo do século 14 é marcado pela crise da Igreja e o declínio do poder temporal do Papado, com o Exílio de Avinhão. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Desse modo, o Humanismo é definido co mo: [...] doutrina ou ati tu de que se ori en ta expressa mente por uma perspectiva antropocêntrica. Afirma ser o homem o criador dos va- 261© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna lores morais, que se definem a partir das exigências concretas da vida. Designa também o mo vi mento filosófico e artístico originado na Itália, no século XIV, que constitui o ponto de partida da cultura moderna. Em ambas as vertentes, reconhece-se o seguinte: a to ta- lidade do homem, a sua historicidade, a sua naturalidade e o valor humano das artes clássicas (SCHLESINGER, H.; PORTO H. Dicionário enciclopédico das religiões. 1995. v. 1, verbete Humanismo). O movimento huma nista provocou a superação da concep- ção teocên trica medieval, a qual tem Deus como o centro do uni- verso pela concepção an tropocên trica que faz do homem o ponto de convergência. No entanto, o humanista não é um ateu ou indiferente em matéria religiosa: "acredita no homem, sem, entretanto, endossar espiritualmente o paganismo, sem deixar de amar a Deus; procura tam bém amar a vida e a beleza, traços típicos da cultura greco- latina." (AMARAL, 1990). O Humanismo nasceu na Itália, com base na obra de Petrar- ca (1304-1374), e teve grandes representantes em vários países, além da Itália: 1) Lourenço, o Magnífico, de Florença. 2) Eras mo de Roterdã, na Holanda. 3) Lefèvre d'Éta ples, Guil laume Budé, Ra bellais e Mon- taigne, na França. 4) Thomas Morus, na Inglaterra. 5) Luís de Camões, em Portugal. 6) Miguel de Cervantes, na Espanha e muitos outros. No fim do século 16, o mo vimento humanista entrou nu ma fase de declínio. A partir do século 18, assumiu uma postura mais científica e humani tarista influenciada pelas tendências iluministas, baseadas no em pirismo inglês e no racio nalismo. Posteriormente, provocou o surgi men to da Re volução Fran cesa e a consequente separação entre a Igreja e o Estado. Co mo resultados do racionalismo empí- rico, surgiram as tendências filosóficas que, mediante críticas ao © História da Igreja Antiga e Medieval262 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO clero e à Igreja, chegaram a afirmar que Deus não existe, ou seja, preconizaram a chamada teologia da "morte de Deus". O movimento huma nista aos poucos provocou grandes mudan- ças. Antes de tudo, temos de afirmar que foi fortalecendo a cultura bur- gue sa e urbana. Suas tendências democráticas fortaleceram-se com base no ques tio na men to das estruturas eclesiais do "Sistema de Cris- tandade", que foi se declinando. Esta mudança fez com que as cidades cres cessem e que seus habitantes fossem mais politi zados e passassem a ques tionar as es- truturas de poder. Assim, surgiram os primeiros ques tionamentos aos imperadores, pois os grandes impérios deviam ceder espaço aos interesses nacionais e regionais. O desenvolvimento de novas técnicas abriu espaço para as navegações. De modo especial, Portugal e Espanha fizeram com que o orbe terrestre fosse compreendido mediante uma nova vi- são geográfica. A "cultura burguesa" foi, paula tinamente, disso ciando-se da Igreja e com isto teve-se o surgimento da "cul tura laicista", ou seja, a formação de um novo modo de organizar a vida social que teria como critério, primeiramente, não mais a religião e a Igreja, mas sim os interesses do homem, temporais e seculares. No campo econômico, com as novas técnicas e, posterior- mente, novas descobertas, houve um grande desenvolvimento das estruturas comerciais e, aos poucos, uma incipiente descen- tralização de seu poder. Podemos afirmar, portanto, que o Humanismo foi um movi- mento importante para a história da humanidade, pois recuperou e reforçou o espaço e a importância do "homem" na vida do mun- do e, ao mesmo tempo, provocou mudanças que influenciaram muito a vida da Igreja. Em termos religiosos, inicialmente, este movimento teve uma visão antieclesial e anticlerical; e posteriormente, no século 263© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 18, assumiu uma postura antirreligiosa, influenciada pelas tendên- cias racio nalistas e iluministas. 10. CRISE DA CRISTANDADE E MOVIMENTOS PRÉ-LUTERANOS Crises da Igreja e da hierarquia na Idade Moderna O mundo medieval, marcado pelo teocentrismo e pelo Sis- tema de Cristandade, entrara em crise, advindo a Idade Moderna como um dos períodos mais difíceis para a história da Igreja. Essa época iniciou-se no século 14, com a crise da Igreja e a diminuição do poder temporal do Papa do (Exílio de Avi nhão, Cis- ma do Ocidente e Papado do Renas cimento) e estendeu-se até o término do século 18 com a Revolução Francesa e a crise das mo- narquias. O movimento humanista provocou grandes mudanças na so- ciedade e na Igreja. As culturas burguesa e urbana fortaleceram-se, com tendências democráticas, mediante grande questionamento das estruturas eclesiais. O sistema de Cristandade declinou com a queda das autoridades eclesial e papal. A crise teve raízes também nas mudanças econômicas, po- líticas e sociais. O sistema feudal, que mantivera a vida social fe- chada e restrita à estrutura agrária, esvaziou-se diante da cultura burguesa, centrada nas cidades. Nestas, a manufatura e a indústria cresceram, provocando na nova classe um surto de independência em relação ao poder centralizador dos reis, nobres e papas. Exílio de Avinhão (1308-1378) O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), numatentativa de forta- lecer o poder eclesial, entrou em atrito com o rei francês, Filipe, o Belo. Na época, a França superara a Alemanha, tornando-se a de- tentora do poder político europeu. Com a morte de Bonifácio, no © História da Igreja Antiga e Medieval264 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO exílio, seguiu-se uma grande crise eclesial, pois a nobreza romana queria se ver livre da interferência papal na Itália. O papa Bento XI (1303-1304) não conseguiu superar essa crise. Seu sucessor, Clemente V (1305-1314), tinha sido arcebispo de Bordeaux e estivera ausente do conclave que o elegera, com medo dos romanos. Por causa disso, fixou residência em Avinhão, em 1309, onde os papas permaneceram até 1377. Seu pontificado foi muito submisso ao rei francês Filipe, o Belo, que usou a Igreja para combater seus inimigos. Assim, difamou a memória do Papa Bonifácio VIII e, num processo vergonhoso, obrigou-o a suprimir a Ordem dos Cavaleiros Templários. Desse modo, as consequências do exílio de Avinhão foram muito negativas: 1) decadência dentro da Igreja e o afrancesamento da Santa Sé; 2) enfraquecimento externo dos papas, pois passaram a ser considerados como chefes políticos da França e não como pastores da Cristandade; 3) abuso das sanções eclesiásticas que geraram aversão e medo da Igreja diante dos sistemas de fiscalização da cú- ria de Avinhão; 4) aumento do nepotismo, ou seja, crescimento da autori- dade que os parentes do papa exerciam na administra- ção eclesiástica. Sobre este tempo do exílio, que ficou também conhecido como o "cativeiro da Babilônia", Del Roio diz: Seria injusto concluir que, durante esses anos, os papas se constitu- íram em simples peças da política francesa, mas é indubitável que o papado perdeu em prestígio e peso político. Seus anátemas e ex- comunhões podiam ser fatais para um estudioso ou para um frade que se entregasse a alguma heresia, mas certamente seriam rece- bidos com desprezo pelos poderosos. Os alicerces de seu poder, os senhores feudais e as ordens militares e monásticas debilitavam-se, ao passo que, por outro lado, eles se recusavam a aceitar os no- vos movimentos, dos quais poderiam retirar novas energias. Não se dispunham a transformações tão profundas. E tais movimentos existiam, concentrados no impulso de esperança despertado entre o povo pelo joaquimismo, nas novas ordens dedicadas à pobreza, 265© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna nos intelectuais saídos das universidades e empenhados na cons- trução de uma Igreja democratizada e apta para enfrentar os tem- pos modernos que se anunciavam. A tudo isso os papas fechavam ouvidos e olhos (1997, p. 103-104). É importante recordar que neste período do Exílio de Avi- nhão ocorreu a grande ´peste bubônica´, a qual ficou conhecida também como a peste negra, que matou milhões de pessoas na Europa, um terço da população, segundo alguns. Isso levou muitas pessoas a se penitenciarem e a buscar a reconciliação com Deus e ocorreu inclusive, um ano jubilar cristão em 1350. Mas os pro- blemas eclesiais não foram solucionadas; pior ainda, cresceram muito. Cisma do Ocidente (1378-1417) O Cisma do Ocidente foi o período em que, por inúmeros problemas, a Igreja teve, simultaneamente, dois ou três papas. Diante dos des mandos e da indignidade de muitos papas, foi cres- cendo nos meios eclesiásticos a teoria con ciliarista. Vale ressaltar que este Cisma não nasceu de uma heresia ou de algum erro teo- lógico, mas sim da dúvida que existiu a respeito de quem seria o verdadeiro papa. Conciliarismo: doutrina moderna surgida no século 14 que afirma- va ser o concílio ecumênico superior ao papa, inclusive, com poder para depor este. Papas simultâneos O papa Gregório XI foi o último papa de Avinhão e morreu logo depois de chegar a Roma. Mas a influência dos reis franceses era mui- to grande em função do grande número de cardeais franceses. Neste contexto, foi eleito o papa Urbano VI (1378-1389). Sua eleição foi du- vidosa, segundo alguns, pois houve muita pressão no conclave para que se elegesse um papa italiano e não um francês. O papa era um homem piedoso e reformador, mas orgulhoso, áspero e imprudente, © História da Igreja Antiga e Medieval266 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO e ameaçou criar mais cardeais italianos para fazer frente aos france- ses. Isso tudo fez com que ele se voltasse contra muitos cardeais que se afastaram dele e elegesse outro papa, mais próximo dos interes- ses franceses: Clemente VII (1378-1394), que se instalou em Avinhão. Cada papa teve apoio de várias nações. O Cisma durou 37 anos. Tentativas de solução Houve várias tentativas de se solucionar o Cisma, todas em vão. O Concílio de Pisa, convocado em 1409 para resolver a questão, não conseguiu depor os dois papas e elegeu um terceiro, Alexandre V (1409-1410), conciliador que poderia ter resolvido a questão, mas morreu logo em seguida. Alexandre V foi sucedido por João XXIII, totalmente indigno e mundano. Um só papa novamente Somente no ano de 1414 foi solucionada a questão, no Concílio de Constança. Com o apoio do rei Sigis mundo da Alemanha, os três papas foram depostos e eleito o papa Martinho V (1417-1431), que reconduziu a Igreja a tão esperada paz e tranquilidade. O Concílio criou vários decre- tos de reforma e condenou as heresias de João Wiclif e João Huss. Heresias de João Wiclif e João Huss As heresias de João Wiclif, sacerdote inglês, e João Huss, sa- cerdote tcheco, caracterizavam-se pelas tendências antieclesiais e modernas e estavam imbuídas de uma grande rejeição ao poder temporal e eclesial dos papas, principalmente por causa de seus desmandos e escândalos. Além disso, são influenciados pelas ten- dências nacionalistas que já não aceitavam o poder romano em vários países da Europa. Ambos tinham as seguintes ideias: • A Sagrada Escritura como única fonte de Revelação. • A rejeição da Tradição enquanto fonte de Revelação. • A não aceitação da hierarquia eclesiástica. • Oposição manifesta à autoridade papal e exagero do as- pecto nacionalista da Igreja. 267© O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna Essas ideias fundamentaram as teses articuladas por Marti- nho Lutero, no início do século 16. As consequências destas duas heresias foram desastrosas, pois foram as bases da grande divisão da Cristandade com a reforma protestante e, também, ajudaram no aumento do desprestígio e declínio da autoridade papal e eclesial. Sintetizando o pensamento de João Huss, Pierini relata: O pensamento de João Huss é extremamente significativo, como reflexo das crises do seu tempo: da crise da sua terá, da sua Igreja da sua vida pessoal. Nele juntam-se, de maneira emblemática para a baixa Idade Média, três contradições fundamentais: a contradição entre a identidade nacional boêmia e a alemã; a contradição entre a igualdade fundamental de todos os crentes e todos os tipos de desníveis, tanto no campo eclesiástico (anti-hierarquismo) quanto no civil e no político (antifeudalismo); mas, sobretudo, a contradi- ção entre a verdade de Deus, que para Huss se manifesta através da predestinação, e a pseudoverdade humana, que, para ele, se ma- nifesta nas aparências jurídicas e canônicas. A conseqüência dessa impostação ideológica é que a autêntica "verdade" (palavra-chave de todo o pensamento de Huss) existe apenas lá onde a aparência humana está de acordo com a predestinação divina. Sendo assim, parece difícil harmonizar certas idéias de Huss com a doutrina ca- tólica tradicional, que já estava clara em seu tempo, a respeito das relações entre graça, predestinação, liberdade humana e a teologia sobre a Igreja. Isso fica evidente nas trinta proposições suas que mereceram condenação e que Ele próprio pode rever e comentar ( 1998, p. 173-174). Papado do Renascimento (1447-1521) Após
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