Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
EA D A Organização da Igreja 3 1. OBJETIVOS • Analisar a organização da Igreja na América espanhola e no Brasil. • Interpretar o desenvolvimento da Igreja nos processos de colonização espanhol e português. • Compreender as diferenças existentes entre os processos de organização da Igreja nos territórios hispânicos e no Brasil. 2. CONTEÚDOS • A organização da Igreja na América espanhola. • A organização da Igreja no Brasil. © História da Igreja na América Latina e no Brasil82 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Enrique Dussel, em sua monumental obra Historia gene- ral de la Iglesia en America Latina, tomo I/l, às páginas 408-409, apresenta um quadro geral da evolução histó- rica dos bispados na América Latina entre 1512 e 1883. Às páginas 413-414, encontramos detalhes sobre a fun- dação das dioceses e a estrutura eclesiástica episcopal. Encontramos a reprodução e a adaptação desse mesmo quadro em Eduardo Hoornaert, em sua História do cris- tianismo na América Latina e no Caribe. Ana Maria Bi- degáin apresenta em seu texto História dos cristãos na América Latina, tomo 1, p. 115, um mapa sobre "Arce- bispados e bispados na América do Sul até o século 18". Vale a pena conferir! 2) Sobre a utopia franciscana, sugerimos, que você leia: BRASIL, Honório Rito de Leão. Os 500 anos de evange- lização da América Latina e seus desafios. Revista Ecle- siástica Brasileira, vol. 52, fasc. 206, junho de 1992, p. 321-323; bem como BOFF, Leonardo. A utopia missioná- ria franciscana na América Latina como impulso para a nova evangelização inculturizada. Grande Sinal, ano 45, set/out 1991. 3) Sobre os concílios e sínodos hispano-americanos, su- gerimos a leitura: DUSSEL, Enrique. História general de la Iglesia en América Latina, tomo I/1, p. 473-560. Nes- sa obra, o autor faz um longo e detalhado estudo so- bre cada um dos concílios e dá ênfase às características particulares de cada um deles. Outros estudos sobre os concílios podem ser encontrados em: LLAGUNO, José. A evangelização nos concílios mexicanos do século XVI. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 47, fasc. 185, mar. 1987, páginas 61-74; DAMMERT, Bellido José. Evangelização nos concílios limenses. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 47, fasc. 185, mar. 1987, p. 75-82. 83© A Organização da Igreja 4) Sobre os primeiros 50 anos da presença da Igreja no Bra- sil, antes da vinda do primeiro bispo, temos o trabalho colossal de KUHNEN, Alceu. As origens da Igreja no Bra- sil: de 1500 a 1552. Bauru: EDUSC, 2005. 5) Na América espanhola, a fundação de seminários teve outro ritmo, e eles surgem seguindo, ainda no século 16, mais ou menos o ritmo da organização da Igreja na Amé- rica Espanhola. A fundação foi impulsionada pelo Con- cílio de Trento e pelos Concílios Limenses e Mexicanos. Têm-se notícias de que o primeiro seminário foi fundado em 1569, em Quito, no Equador. Segundo Javier Vergara Ciorda (2005), entre 1569 e 1793, foram fundados 40 se- minários diocesanos. Para aprofundar seus conhecimen- tos acerca desse tema, sugerimos que você leia: CIOR- DA, Javier Vergara. Datos e fuentes para el estudio de los seminarios conciliares en hispanoamerica: 1563-1800. Anuario de historia de la Iglesia, año/v.XIV, Universidad de Navarra, Pamplona, España, 2005, p. 239-300. 6) Para um conhecimento mais amplo sobre a condição femi- nina na sociedade e nos recolhimentos do Brasil colônia, consulte: ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Ja- neiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993. 7) Revisite a história da Igreja antiga e medieval para rever os temas sobre os monges do deserto, o ascetismo e o eremitismo. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta unidade, vamos estudar o processo de desenvolvimen- to e de organização da Igreja no território de colonização espanhola e de colonização portuguesa. É um processo amplo, que envolve a criação de dioceses, a vinda e o desenvolvimento das ordens religio- sas, bem como a realização de concílios. No que se refere à Igreja, no Brasil da época colonial, você vai perceber a importância que os leigos exerceram para manter a religiosidade católica. © História da Igreja na América Latina e no Brasil84 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Assim como na unidade anterior, é importante que você fi- que atento às diferenças de interesses da parte da Coroa espanho- la e da Coroa lusitana quanto à organização da Igreja. Bom estudo! 5. ORGANIZAÇÃO DA IGREJA NA AMÉRICA ESPA- NHOLA VISUALIZAÇÃO DA DIVISÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DA AMÉRICA ESPANHOLA COLONIAL A América espanhola foi divida em quatro Vice-Reinos. Vice-Reino do México (ou Nova Espanha) (1535) – abrangia o México, regiões da América Central e USA. Vice-Reino do Peru (ou Nova Castela) (1544) – abrangia o Peru, partes da Bolívia e do Equador. Vice-Reino de Nova Granada (1717) – abrangia a Colômbia, o Panamá e parte do Equador. Vice-Reino da Prata (1776) – abrangia a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e parte da Bolívia. Cada Vice-Reino dividia-se em Audiências (departamento jurídico/conselho de governantes). Nova Espanha – São Domingo (1511); México (1527); Guadalajara (1548); Guatemala (1543). Peru – Lima (1542); Cuzco (1573); Santiago (1565). Nova Granada – Bogotá (1540); Quito (1563); Caracas (1777); Panamá (1535). Rio da Prata – Buenos Aires (1661); Charcas (nome colonial da Bolívia) (1551). As dioceses: a organização hierárquica da Igreja. A organização da Igreja na América espanhola foi um processo amplo que se desdobrou na criação de dioceses, na instalação de or- dens religiosas e na realização de concílios e sínodos. As dioceses e ordens religiosas correspondem à organização hierárquica da Igreja. Os concílios e sínodos correspondem à organização pastoral. 85© A Organização da Igreja A conquista do Novo Mundo traduziu-se, também, na cria- ção de dioceses e na organização hierárquica da Igreja, que seguiu o ritmo da organização política. Nos territórios conquistados, os espanhóis estabeleciam, primeiro, o governo político e, logo em seguida, criava-se uma estrutura de governo eclesiástico responsá- vel pela conquista espiritual e pela cristianização dos ameríndios. Era o "transplante" da Igreja católica europeia, com todas suas es- truturas para o Novo Mundo. Era uma Igreja formatada pelo regi- me de padroado sob a ingerência total da Coroa. A criação de um bispado servia para consolidar e reforçar o domínio espanhol so- bre um determinado território, como também estava ligada à sua importância econômica ou militar. A instalação de dioceses seguiu as pegadas da criação de cidades. Ao lado da velocidade extraordinária da conquista, observa- -se, também, uma velocidade extraordinária, se compararmos com a América lusitana, de criação e da expansão de dioceses e bispados por todo o território ocupado pelos espanhóis. Já no iní- cio do século 16, em 1504, foi criada a primeira diocese em Santo Domingo e, ao longo do século, foram criados nada menos que 31 bispados; até o ano de 1888 são, no total, 99 bispados, cujas sedes constituem até hoje cidades e centros importantes para a América Latina. De maneira análoga, por volta de 1550, já havia se completa- do a ocupação básica pelos espanhóis de todo o território centro- -sul americano, seguindo-se a linha costeira do Oceano Pacífico. Evidentemente, a criação esplendorosa de bispados deveu-se, também, à própria organização da estrutura política para o Novo Mundo pela Coroa espanhola. Em 1524, foi criado o Conselho das Índias, um órgão do governo espanhol encarregado de cuidar dos problemas eclesiásticos relacionados à escolha de bispos e à cria- ção de dioceses até o fim da época colonial. No cone sul, nossos vizinhossaíram na frente. Em meados do século 16, foram fundados quatro bispados: © História da Igreja na América Latina e no Brasil86 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO a) Assunção, em 1547. b) Santiago, em 1561. c) Concepción, em 1564. d) Córdoba de Tucumán, em 1570. Buenos Aires tornou-se bispado um pouco mais tarde, já no século 17, em 1620. Assim, após 1600 e até o início dos movimentos de emanci- pação, no final de 1700 e no início de 1800, vão ser relativamente poucas as dioceses que serão fundadas. Possivelmente, os bispos tiveram pouca expressão e as dioceses foram estruturas pou- co operantes. É uma etapa de estancamento, e a causa pode ser atribuída ao pouco interesse por parte da Coroa em função dos grandes gastos que a criação de uma diocese poderia acarretar aos cofres públicos. Entretanto, não é só isto, havia certa estabilidade e consolidação da Igreja como consequência da estabilização do processo de conquista. De certa forma, depois de tanto esforço e luta, a Igreja havia conseguido, pelo menos, boa parte de seus objetivos que eram, por meio dos bispados, marcar presença em todas as regiões do Novo Mundo. Em outros termos, a cristandade hispano-americana já havia se consolidado; a época dos grandes missionários era coisa do passado e a pastoral ganhava caracte- rísticas conservadoras. Tanto a conquista territorial quanto a con- quista espiritual eram consideradas um fato consumado, e, por- tanto, a preocupação maior era manter e conservar tudo aquilo que até o momento havia sido conquistado e construído, levando, em muitos casos, à boas doses de morosidade e acomodação. Dessa maneira, outro elemento que pode ter contribuído para o estancamento da Igreja são as vacâncias. De modo geral, o tempo de ausência episcopal nas dioceses era muito longo. Em virtude do padroado, os bispos faziam parte do funcionalismo pú- blico. Nem todos os bispos que eram nomeados assumiram de imediato suas dioceses. Houve aqueles que nunca pisaram o solo do Novo Mundo e governavam por intermédio de vigários gerais (HOORNAERT, 1994, p. 300; DUSSEL, 1983, p. 408-410). 87© A Organização da Igreja Igualmente, não podemos deixar de considerar outro fator que deve ter contribuído para a estagnação das dioceses: a ques- tão universitária. Parece ter ocorrido um deslocamento de interes- ses e de necessidades, ou seja, estava ocorrendo uma mudança de paradigmas. Os interesses missionários e evangelizadores estavam perdendo terreno para a necessidade educacional e universitária – fato que, a essas alturas, era óbvio que ocorresse. O pensamento universitário do Novo Mundo já nasce no século 16. É claro que ele não pode ser entendido como o entendemos atualmente, mas como uma instituição de ensino, principalmente eclesiástica, man- tida pela Igreja. Inúmeros outros fatores contribuíram para a estagnação das dioceses. Dentre estes, destacam-se: a) combate a idolatria; b) criação de tribunais de Inquisição; c) preocupação com as propriedades patrimoniais; d) disputas internas referentes às questões de jurisdição entre bispos e poder civil e entre bispos e religiosos. As disputas entre bispos e poder civil provocavam um enor- me debilitamento no episcopado, haja vista que o poder civil, em virtude do padroado, não podia suportar, pacificamente, o poder dos bispos em seus domínios (BARNADAS, 1997, p. 538-544). As ordens religiosas masculinas As ordens religiosas fizeram parte do processo de coloniza- ção, evangelização e organização da Igreja desde o início do século 16. Dentre elas, destacam-se: a) franciscanos; b) dominicanos; c) agostinianos; d) mercedários; e) jesuítas. Vejamos cada uma dessas ordens: © História da Igreja na América Latina e no Brasil88 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Franciscanos Os franciscanos chegaram à ilha de Santo Domingo bem cedo, em 1493, na segunda viagem de Colombo. Em 1505, foi fundada a primeira província franciscana nas Antilhas. Nas duas décadas se- guintes, foram vários os grupos que aportaram em várias regiões da América Central, Cuba, Porto Rico e Jamaica como parte do projeto de conquista e de colonização promovido pela Coroa espanhola. Uma nova fase da atuação dos franciscanos se inicia em 1524, quando chega ao México um grupo de 12 frades, Los doce frailes, se juntando aos que lá haviam chegado com Hernán Cor- tés, em 1519. Esse grupo vai se distanciar do projeto de conquista e colonização e implantar um novo modelo de evangelização mais ordenado e metódico, inspirado na utopia messiânica dos apósto- los. O número 12 sugere uma mística apostólica, uma Igreja dos Apóstolos, que se traduz no envio e na pregação da Boa Nova. O grupo Los doce frailes inaugura um novo momento franciscano na América, qualificado como "utopia franciscana" ou como "milena- rismo franciscano" (HOORNAERT, 1994). Esses frades pregam um utopismo messiânico, acreditando que, na América, realizariam o ideal de São Francisco e, com os ín- dios, criariam uma nova cristandade. No cerne dessa utopia, esta- va o sonho de uma Igreja identificada com os mais pobres.A pre- ocupação missionária levou os franciscanos a criarem conventos, seminários e colégios missionários destinados, especificamente, à formação de missionários para serem enviados à outras regiões da América e aos colégios destinados a acolher e a educar jovens da eli- te asteca. Entre estes, destaca-se o colégio Santa Cruz de Tlatelolco, no México, fundado em 1536. Nesse colégio, ensinava-se música, latim, retórica, lógica, filosofia e medicina. Entre os fundadores, está Frei Bernadino de Sahagun, que, sem dúvida, é um dos mais céle- bres franciscanos da América. O México talvez tenha sido o terreno mais fértil para as primeiras experiências evangelizatórias. Em 1536, são 60 franciscanos. Em 1559, 380 franciscanos e, no final do século, por volta de mil franciscanos (HOORNAERT, 1994). 89© A Organização da Igreja Dussel (1983, p. 553) informa que os franciscanos foram a ordem de maior presença no Novo Mundo durante toda a época colonial. No início do século 18, eram em torno de cinco mil frades, chegando a quase seis mil no início do século 19 e somando, mais ou menos, 50% de todos os religiosos dessa época, presentes na América. Contudo, temos que levar em conta que, a essa época, os jesuítas já haviam sido expulsos do continente americano. Seguindo as pegadas dos conquistadores, ainda no século 16, os franciscanos descem à costa do Oceano Pacífico e instalam- -se nas principais cidades. Chegam ao Peru em 1534, no Chile em 1553, em Santa Fé de Bogotá em 1573 e em Assunção em 1574. Em 1580, bem antes dos jesuítas, os franciscanos começaram com as primeiras experiências de reduções guaraníticas na região de Assunção (DUSSEL, 1983). Dominicanos Outra ordem de grande destaque na América espanhola foi a dos Dominicanos. Eles chegaram à Hispaniola (Santo Domingo) em 1510. Entre os primeiros dominicanos, estavam Pedro de Cór- doba e Antônio de Montesinos; este último ficou famoso pelo cé- lebre sermão profético em defesa dos índios proferido no 4º Do- mingo do Advento de 1511. Os dominicanos se destacaram pela formação teológica e universitária, como também pela crítica que fizeram ao sistema colonizador espanhol. Bartolomé de Las Casas é um dos nomes mais célebres dessa ordem. Você está lembrado disso? Durante o século 16, os dominicanos, com exceção do Brasil, estenderam-se por toda a América Latina, desde Santo Domingo, nas Antilhas, até o Chile (1581), quase no extremo sul do conti- nente. Em 1530, foi fundada a primeira província dominicana em Santo Domingo. Em 1532, foi fundada a segunda província, no Mé- xico, onde haviam chegado em 1526. Até o final do século 16, os dominicanos fundaram em torno de seis províncias no território latino-americano (DUSSEL, 1983). © História da Igreja na América Latina e no Brasil90 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃOAgostinianos A terceira ordem religiosa que marcou presença significativa na América espanhola do século 16 foi a dos Agostinianos. Che- garam à Nova Espanha em 1532. Eram agostinianos eremitas de Castilha. Em 1551, chegam 12 monges em Lima. Em 1562, chegam a Chuquisaca e espalham-se por toda a região de Cochabamba. Em 1575, instalam-se em Quito e expandem-se até Santa Fé de Bogotá. Quito será província em 1576 e Bogotá em 1596. Chegam ao Chile, no extremo sul, em 1595, iniciando a missão a partir de Santiago (DUSSEL, 1983). Os agostinianos também não se fizeram presentes no Brasil na época colonial. Mercedários A quarta ordem que veio para o Novo Mundo foi a dos Mer- cedários. Desembarcaram em Santo Domingo em 1514. Em 1530, chegaram 12 mercedários ao México. Em 1538, já estão na Guate- mala e, em 1536, em Lima. Em 1560, foi fundada a província em Cusco. A presença mercedária foi marcante na região do Perú e de Prata. Dussel (1983) observa que a pouca presença de outras ordens religiosas nessas regiões favoreceu a expansão mercedá- ria de maneira que, em 1590, já existiam conventos em Assunção, Salta, Tucumán e outras cidades platenses. No final do século 16, só na província de Cusco, os mercedários tinham 114 sacerdotes e 17 doctrinas (paróquias de índios); na província de San Miguel de Lima, eram 13 conventos, 47 doctrinas e 161 sacerdotes; na província do Chile, existiam 11 conventos. Partindo de Quito, du- rante o período da união entre Espanha e Portugal (1580-1640), os mercedários espalharam-se pela região amazônica e chegaram ao Pará em 1639. Jesuítas A quinta ordem religiosa de grande importância a vir à Améri- ca foi a dos Jesuítas. Por ser uma ordem moderna, os jesuítas tive- ram uma estratégia de implantação diferente das adaptadas pelas 91© A Organização da Igreja demais ordens. A porta de entrada na América foi o Brasil. Vieram, com a armada do primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, em 1549, como encarregados da empresa missionária lusitana, tendo como superior da missão o padre Manuel da Nóbrega. Você se lem- bra de que estudamos esse assunto na unidade anterior? Na América espanhola, o trabalho missionário dos jesuítas começa alguns anos mais tarde. Em 1566, chegam à Lima 20 mis- sionários, e, a partir de então, expandem-se para Cusco (1576) e para as regiões de Juli e do lago Titicaca. Chegam ao México em 1572. Em 1588, foi fundada a Missão do Paraguai, e o ano de 1607 marca a fundação da Província. Chegam a Quito em 1624. Depois dos franciscanos, os jesuítas foram a maior ordem re- ligiosa presente na América espanhola, desde o início de 1700 até o momento da expulsão, em 1767, deflagrada pelo rei Carlos III. Dussel (1983, p. 557) contabiliza essa presença afirmando: Em 1750 havia uns 526 jesuítas no Peru, 572 no México, 303 no Paraguai e no Prata, 209 em Quito, 155 no Chile, 193 em Nova Gra- nada e Antilhas. Tinham 15 colégios no Peru, 23 no México, 11 em Quito. Eram mais ou menos 2.200 jesuítas no momento da expul- são. Outras ordens religiosas, como a dos capuchinhos, chegaram mais tarde na América espanhola, mas precisamente em 1651. Carmelitas e beneditinos reservaram-se ao Brasil. As ordens religiosas femininas A história da presença de ordens religiosas femininas na América é bastante controversa. Geralmente, tende-se a afirmar que as ordens chegaram bem mais tarde na América espanhola, no final do século 16 e no início do século 17. Isto em razão da própria situação e da condição da mulher na sociedade da época – uma sociedade balizada em um perfil machista, racista e discrimi- natório. Além de pouco valorar a mulher, não se admitia o ingresso de crioulas ou índias nos conventos. © História da Igreja na América Latina e no Brasil92 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Algranti (1993) informa que a construção de conventos fe- mininos na América espanhola se seguiu à chegada dos primeiros representantes das ordens masculinas. Em 1540, já existia a pri- meira casa religiosa para mulheres na Nova Espanha, pertencente à ordem das concepcionistas. Entre essa data e 1811, foram fun- dados em torno de 57 conventos nas colônias espanholas. Só na cidade do México, por volta de 1800, havia 22 centros monásticos femininos. Apesar de a mulher se encontrar em uma condição social e eclesiástica desfavorecida em relação aos homens, mesmo assim, houve mulheres, como Santa Rosa de Lima, terciária dominicana, e Mariana de Jesus Paredes, la azucena, de Quito, que foram exem- plos de vida cristã feminina leiga. À mulher branca, tocava-lhe ser ama de casa, alienada ao marido dominador, ou beata junto a al- gum claustro masculino. Concílios e sínodos: a organização pastoral da Igreja Desde 1551, realizaram-se concílios e sínodos provinciais em vários pontos da América espanhola. Tais concílios e sínodos projetaram uma nova cristandade nas Índias. A prática conciliar e sinodal foi um modelo transplantado da tradição do catolicismo da velha Espanha. Os concílios procuraram adaptar o mundo ameri- cano às necessidades pastorais e às reformas tridentinas. Quando Trento terminou, em 1563, Felipe II promulgou leis de caráter ecle- siástico-civil, que obrigavam sua aplicação em todos os domínios da Espanha, como também recomendavam que fossem realizados concílios e sínodos. Foi o Concílio de Trento que impulsionou a reforma e a orga- nização da Igreja na América, como também inspirou a elaboração de uma nova pastoral missionária mesmo não havendo a partici- pação de nenhum dos bispos locais. Todavia, o que moveu e im- pulsionou a necessidade de realizar concílios e sínodos na América do século 16 e 17 foi a existência do índio, que era considerado o novo cristão e que, como pagão, devia converter-se à fé cristã. O 93© A Organização da Igreja homem americano cria uma nova situação para o cristianismo do século 16. Os missionários e a hierarquia eclesiástica tiveram de pensar novas soluções para uma realidade totalmente nova, em nada igual à da Europa. Segundo Dussel (1983), 15 concílios provinciais foram cele- brados no continente entre 1551 e 1774, em Lima e na Cidade do México, em sua maioria, mas também em La Plata, Santo Domingo e Santa Fé. Somente no século 16, entre 1551 e 1591, realizaram- -se quatro concílios em Lima e três na Cidade do México. Isto su- gere que havia uma intensa preocupação com o índio e com os destinos da evangelização, bem como com a própria organização e consolidação da Igreja. Nos séculos 17 e 18, os concílios serão mais ralos, o que prova que a Igreja estava, agora, bem estabelecida e acomodada ao sistema colonial. A escassez de concílios é análoga à escassez de criação de dioceses, cujos fatores são semelhantes aos discutidos anteriormente. Sobre o que tratavam os concílios? Os concílios discutiam um amplo leque de problemas relacionados às atividades missio- nárias e pastorais da nova Igreja, que estava se formando no Novo Mundo. De um modo geral, discutiam o combate à idolatria; sobre como deviam ser ministrados os sacramentos aos índios; como deviam ser as paróquias (doctrinas); se os índios eram iguais aos espanhóis; se tinham capacidades e maturidade suficientes para serem evangelizados; se podiam ser cristãos; se índios e mestiços podiam ou não receber o ministério ordenado; sobre as reformas do clero; a fundação de seminários; as reduções indígenas; o es- tudo das línguas indígenas; a redação de catecismos na língua dos nativos etc. Entretanto, os concílios reuniam os temas mais po- lêmicos possíveis, resultantes do trabalho missionário e da forte experiência no campo da evangelização. Entre todos os concílios realizados ao longo do período co- lonial, destacam-se o terceiro realizado em Lima, em 1582-1583 e o terceiro realizado na Cidade do México, em 1585. O terceiro con- cílio limense procurou adaptar e traduzir Trento para os territórios © História da Igreja na América Latina e noBrasil94 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO do vice-reinado do Peru, desde a Nicarágua até o Chile. É consi- derado o Trento hispano-americano, dada sua importância para a época. Dirigido pelo bispo Toríbio Mogrovejo, que considerava que havia modelado-se uma Nova Cristandade nas Índias. Foi um concílio prático e teve forte preocupação pastoral e missionária, cuja vigência chegou até às vésperas do século 20, em 1899, ano do Concílio Plenário Latino-Americano, convocado pelo papa Leão XIII e realizado em Roma (BELLIDO, 1987, p. 76). Uma importante e interessante postura no terceiro concílio limense foi a do teólogo jesuíta José de Acosta. Preocupado com uma pastoral que respeitasse a identidade dos índios e com uma Igreja latino-americana mais ou menos autônoma para resolver seus problemas, dizia: Não se devem indicar as mesmas normas para todas as nações de índios, se não queremos errar gravemente [...], enfim, a terra que estamos povoando é muito remota e sumamente distante da Espanha e de toda a Europa, e ocorrem negócios vários, e muitas vezes os há urgentíssimos e de enorme importância para as almas e os corpos. Mas se for preciso esperar o remédio e o conselho de Espanha, que chegará tarde e ao chegar talvez seja inútil e não poucas vezes nocivo, que o poderá suportar em paz? (ACOSTA apud BELLIDO, 1987, p. 78-79). De maneira análoga, o terceiro Concílio mexicano reúne-se para adaptar as leis já existentes às decisões de Trento. O Concí- lio realizou um grande trabalho de consulta de teólogos, ordens religiosas e outras pessoas da época a respeito da evangelização, especialmente pessoas que tinham longa experiência no campo da evangelização e principalmente os missionários que há muitos anos trabalhavam com os índios. As consultas chegam ao Concí- lio em forma de memoriais, petições, queixas etc. Os memoriais trazem a deplorável situação dos povos indígenas em relação à doutrinação cristã, aos repartimentos (trabalho forçado) e às re- duções. Eles dão um diagnóstico bastante negativo sobre os ín- dios: são diferentes dos espanhóis; ainda não estão arraigados em nossa santa fé; são de pouca inteligência para estudos. As línguas indígenas são: 95© A Organização da Igreja Vozes não letradas de pássaros ou brutos, que não se podem es- crever e só a custo pronunciar; como cristãos são imaturos e de pouca responsabilidade; são instáveis e tendentes à idolatria que abandonaram; é necessário reuni-los em aldeamentos (LLAGUNO, 1987, p. 65). Além do diagnóstico, os memoriais tratam da relação que deve haver entre os missionários e os índios, como os sacramentos devem ser ministrados, como deve ser o catecismo e como deve ser o interrogatório da confissão. Em suma, o Concílio reuniu temas dos mais polêmicos. Ao mesmo tempo em que se pedia uma atitude por parte da Coroa em relação às injustiças praticadas aos índios, duvidava-se, ainda, de suas capacidades de serem cristãos. Para finalizar, empresta- mos as palavras de D. José Llaguno (1987, p. 61). Para ele, o Con- cílio era: A legislação eclesiástica na Nova Espanha. Essa legislação exprimia o modo de pensar daqueles missionários e eclesiásticos sobre o ín- dio e sobre sua própria tarefa evangelizadora, a partir de sua prá- tica pastoral. Dessa maneira, frutos de seu tempo, os Concílios exerceram um papel fundamental na organização da Igreja e na conquista do território espiritual dos naturais, apesar de, muitas vezes, repre- sentarem retrocessos aos avanços conseguidos, pois a história dos Concílios limenses e mexicanos é a história dos avanços e dos re- trocessos da evangelização e da organização da Igreja. Anteriores em sua origem e intercalados entre um concílio e outro, os sínodos exerceram papel fundamental na organização da cristandade hispano-americana. O número de sínodos diocesanos realizados foi bem maior em relação aos concílios. Há indicações de que, somente no século 16, entre 1539 e 1598, foram convo- cados, nada menos, que 30 deles. Esse número sobe para 65 se levarmos em consideração todo o século 17 (DUSSEL, 1983). Em Assunção, foram realizados dois sínodos: em 1603 e 1631. Na opinião de Barnadas (1997, p. 527), "a importância dos © História da Igreja na América Latina e no Brasil96 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO sínodos era ao mesmo tempo maior e menor que a dos concílios". Era menor porque, normalmente, o sínodo se destinava à aplica- ção da legislação decidida num âmbito maior, ou seja, conciliar. Nesse sentido, o sínodo seria a tradução e a aplicação dos concí- lios. Era maior porque o sínodo tomava decisões que se aplicavam a uma área particular e específica, e que, também, envolvia a par- ticipação do clero e dos missionários, aos quais cabia a aplicação das decisões. Portanto, o sínodo envolvia um contingente maior de agentes missionários e evangelizadores em nível regional. Concílios e sínodos foram fundamentais para a organização da Igreja católica na América espanhola (Quadro 1). Eles represen- taram o espaço de discussão mais importante da época colonial no que se refere à conquista espiritual do Novo Mundo. Eles foram, também, um instrumento poderoso naquilo que significou a mu- dança de cosmovisão dos povos ameríndios. Quadro 1: Concílios Provinciais na América Espanhola CONCÍLIOS PROVINCIAIS NA AMÉRICA ESPANHOLA Ano Sede nº Bispo que convocou 1551-1552 1555 1565 1567-1568 1582-1583 1585 1591 1601 1622 1625 1629 1771 Lima México México Lima Lima México Lima Lima Santo Domingo Santa Fé La Plata México I I II II III III IV V I I I IV Jerônimo de Loaisa Alonso de Montúfar Alonso de Montúfar Jerônimo de Loaisa Toríbio de Mogrovejo Pedro Moyá de Contreras Toríbio de Mogrovejo Toríbio de Mogrovejo Pedro de Oviedo Hernando Arias de Ugarte Hernando Arias de Ugarte Francisco de Lorenzana 97© A Organização da Igreja CONCÍLIOS PROVINCIAIS NA AMÉRICA ESPANHOLA Ano Sede nº Bispo que convocou 1772 1774 1774 Lima La Plata Santa Fé VI II II Diego de Parada Pedro Argandoña Agustín Camacho y Rojas Fonte: Dussel (1983, p. 476). 6. ORGANIZAÇÃO DA IGREJA NO BRASIL A criação de dioceses Diferente da América espanhola, a criação e a expansão de dioceses no Brasil colônia foi lenta. Isto se explica, em parte, pelos interesses de Portugal ancorados no regime de padroado e na ide- ologia mercantilista. O interesse do governo português pela colô- nia estava centralizado mais na economia exploratória e comercial do que no povoamento e na formação de cidades, pois a criação de uma diocese ou bispado pressupõe a existência de uma cidade. De 1500 até 1514, a colônia brasileira estava sob os cuida- dos da Sé de Lisboa. Em 1514, o papa Leão X (1513-1521) criou o bispado de Funchal, na Ilha da Madeira. A ele, foram incorporados todos os territórios descobertos pelos portugueses no além-mar, incluindo o Brasil. Em 1534, o papa Paulo III (1534-1549) elevou- -o à dignidade de Sé Arquiepiscopal, incorporando as dioceses do Extremo Oriente até o Brasil (Figura 1). A primeira diocese no Brasil foi criada em 1551 pelo papa Júlio III, por meio da bula Super Specula Militantis Ecclesiae, com sede em Salvador, na Bahia. O primeiro bispo, D. Pedro Fernandes Sardinha, tomou posse no dia 29 de junho de 1552 e, durante mais de cem anos, o bispado da Bahia foi o único existente para todo o Brasil. Somente 125 anos depois, foram criadas outras três dio- ceses: Pernambuco e Rio de Janeiro, em 1676; e, no ano seguin- te, em 1677, Maranhão. Com a criação desses bispados, Salvador torna-se arcebispado, e seu arcebispo passou a chamar-se Primaz © História da Igreja na América Latina e no Brasil98 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO do Brasil. Passaram a ser sufragâneas do arcebispado de Salvador as dioceses do Rio de Janeiro e Pernambuco, São Tomé e Angola, na África. Fonte: Matos (2001, p. 161). Figura 1 Divisão eclesiástica dos domínios portuguesesultramarinos. No século seguinte, no decorrer de 1700, foram criadas mais três dioceses e duas prelazias: 1) Pará, em 1719. 2) Mariana e São Paulo, em 1745 (Figura 2). 3) Prelazias de Goiás e Mato Grosso, também em 1745. Não foram criadas outras dioceses até a independência do Brasil, em 1822. Durante a época colonial (1500-1822), o Brasil ti- nha uma Arquidiocese, seis dioceses e duas prelazias, um descom- passo enorme em relação à América espanhola. 99© A Organização da Igreja Fonte: Matos (2001, p. 168). Figura 2 A divisão eclesiástica no Brasil em 1745. O episcopado A atuação do episcopado durante a época colonial foi bas- tante limitada e inexpressiva. Se poucas foram as dioceses, poucos foram, também, os bispos e, menos ainda, os que se destacaram. Isto se deve à vinculação ao regime de padroado. Alguns aspectos merecem ser destacados: a) A escassez de bispos: havia poucos bispos, que não da- vam conta em função do tamanho das dioceses e das necessidades da Igreja. b) Longas vacâncias: era comum haver longas vacâncias entre um prelado e outro. As razões principais eram: • políticas, que retardavam a nomeação do sucessor; • bispos que tomavam posse por procuração, vindo mais tarde e outros que nunca vieram © História da Igreja na América Latina e no Brasil100 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO • bispos que enviavam seus procuradores, como, por exemplo, a diocese da Bahia, que ficou vacante por 39 anos e a do Maranhão, por 63 anos. c) Extensão das dioceses: a extensão territorial das dioce- ses era enorme, impossibilitando os bispos de exerce- rem suas funções pastorais. A diocese do Pará compre- endia toda a Amazônia; a diocese de Pernambuco, todo o Nordeste; a diocese de Mariana, o Centro-Oeste; a do Rio de Janeiro, todo o sul. d) Dependência do poder real: a criação de dioceses e a nomeação de bispos dependia da Coroa portuguesa. Isto, por um lado, dava certo status e dignidade para o bispo, que era passado a ser considerado como um no- bre; por outro, tinha sua atuação atrelada e dependente de interesses políticos. Nessas circunstâncias, os bispos estavam sujeitos à autoridade civil – dela dependiam, e eram obrigados a serem defensores do sistema. Eram funcionários do Estado e estavam a serviço do Estado. e) Preocupações administrativas: uma vez sujeitos ao po- der real, muitos bispos tiveram suas ações absorvidas mais por cargos políticos e administrativos do que pro- priamente pastorais, exercendo a função de governado- res ou de membros de juntas do governo. O bispo estava mais à serviço da Coroa do que da Igreja. Há também de se considerar que nem todos os bispos se sujeitaram e se conformaram com as imposições da Coroa. Houve aqueles que protestaram e criaram situações incômodas com as autoridades da colônia, tendo sido chamados a Portugal para da- rem explicações de sua atuação. Também houve prelados que fo- ram afastados de suas dioceses e exilados para dioceses remotas, como o caso do primeiro bispo, D. Pedro Fernando Sardinha, que teve de ir a Portugal para dar explicações por causa de desenten- dimentos com o governador Duarte da Costa. Na viagem de ida, o navio naufragou no litoral de Alagoas. 101© A Organização da Igreja O clero diocesano Na época colonial, o clero era considerado funcionário pú- blico, e o sacerdócio, uma profissão, uma carreira semelhante às demais então existentes. O padre estava para exercer as funções litúrgicas próprias do catolicismo, isto é, a religião oficial, e para isto, era pago. Recebia a chamada "côngrua" (salário-pagamento) do governo. O clero estava à serviço da Coroa e da cristandade lusitano-brasileira. Não se preocupava com a evangelização, a ca- tequese e a conversão do povo, pois todos eram cristãos. Exercia uma pastoral sacramental de manutenção da fé. Onde o clero estudava e se formava? A formação do clero foi um problema agudo, pois os centros formadores eram muito escassos. Os candidatos ao sacerdócio, provenientes de famílias mais abastadas, iam estudar na Europa. Os mais humildes, sem condições financeiras, eram obrigados a estudar por aqui mesmo: nas confrarias dos meninos de Jesus, nos colégios dos jesuítas, nos seminários eclesiásticos e nos seminários episcopais. a) As confrarias dos meninos de Jesus: foram um primeiro ensaio de seminário menor criado pelos jesuítas já no início, entre 1550-1560. Esse tipo de internato ou minis- seminário foi uma criação do padre Nóbrega, que reunia órfãos enviados de Lisboa, filhos de colonos e de nati- vos. Havia internato em Salvador, Porto Seguro, Vitória e São Vicente. Esse modelo vigorou por pouco tempo – somente durante a década de 1550. b) Os colégios dos jesuítas: desde 1560 até a expulsão dos jesuítas em 1759, os colégios foram os centros de forma- ção da maior parte do clero brasileiro. Não eram centros específicos e ideais, mas forneciam alguma formação na parte do conhecimento e das letras. c) Os seminários eclesiásticos: no final de 1600, renasce a preocupação com a formação sacerdotal e surgem os chamados "seminários eclesiásticos" como centros es- pecíficos para a formação do clero. Eram fundados e mantidos por padres que se preocupavam com a forma- ção do clero. © História da Igreja na América Latina e no Brasil102 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO d) Os seminários episcopais: é somente por volta de 1750 que surge a iniciativa da criação de seminários episcopais, dependentes dos bispos, na Bahia e no Rio de Janeiro. O problema da escassez de seminários episcopais está agre- gado à própria dependência dos bispos da Coroa portuguesa e às poucas dioceses existentes na época colonial. Como não era inte- resse para a Coroa a expansão de dioceses por causa dos custos que isto envolvia, da mesma forma também não era interesse a fundação de seminários. Diante desse quadro, como era a forma- ção teológica do clero? Deficitária. A maioria contentava-se com a administração dos sacramentos, dos ritos da fé católica e com o "dizer a missa", e isto tudo ainda muito mal feito. Além do nível teológico, o nível cultural também era baixo. Muitos padres, es- pecialmente aqueles dos arredores do interior, mal sabiam ler e escrever. De um lado, a formação precária, de outro, a distância do bispo; tudo favorecia para que o clero se ocupasse com atividades ilícitas, levando uma vida moralmente depravada por meio da não observância do celibato. A tentativa de reforma: o sínodo da Bahia Conforme o que você estudou anteriormente, desde o início da colonização, por várias razões, o clero deixou muito a desejar. A situação se agravou ainda mais com o fluxo migratório para as Minas Gerais e com o desenvolvimento das cidades, que gerou a burgue- sia com o ouro. Muitos padres entraram na "onda" da corrida do ouro, fizeram alguma fortuna e se aburguesaram, desviando-se de sua missão. No final de 1600 e no início de 1700, a crise agravou-se tanto que começou a preocupar os poucos bispos da época. Em maio de 1702, tomou posse do arcebispado da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide. Sensível aos problemas tanto do cle- ro como dos fiéis, elegeu como prioridade realizar visitas pastorais para examinar a fé e o comportamento do clero e do povo. Visitando as paróquias, logo verificou que havia necessidade de convocar um Concílio. 103© A Organização da Igreja D. Sebastião Monteiro da Vide queria realizar um Concílio com a presença dos bispos do Brasil e de seus sufragâneos. En- tretanto, por várias razões, todos os prelados não compareceram, desfazendo, assim, a ideia de Concílio. Compareceu, somente, o bispo de Angola, de maneira que o Concílio reduziu-se a um Síno- do realizado na presença de dois bispos e do clero, em junho de 1707, na Bahia. Esse Sínodo produziu um documento que ficou co- nhecido como Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. É um código eclesiástico ecivil ao mesmo tempo. As Constituições constam de cinco livros, 279 títulos e 1318 artigos. Foi dedicado um capítulo aos vigários, capelães e clérigos: "da obrigação que tem os clérigos de viver virtuosa e exemplar- mente". Várias páginas especificam proibições, tais como: não an- dar à noite nem comer ou beber nas tavernas; usar vestes eclesiás- ticas; observar a castidade; não se meter em negócios etc. As Constituições foram impressas em 1719 e vigoraram até 1915. Representam um esforço de reforma pastoral e de implanta- ção de Trento no Brasil, que não teve grandes resultados por causa do marasmo do regime de padroado, da corrida do ouro, da expul- são dos jesuítas e da questão pombalina. As ordens religiosas masculinas Franciscanos Os franciscanos foram os primeiros religiosos que pisaram o solo brasileiro, na pessoa de frei Henrique de Coimbra, que ce- lebrou a primeira missa na nova terra. Durante todo o 1500, os franciscanos circularam pela costa brasileira. Capuchinhos Os capuchinhos se instalaram oficialmente no Brasil em 1640. No entanto, ao longo do século 16, tiveram ações esporádi- cas ligadas aos franceses. A partir de 1654, realizam extraordinária obra de catequese junto aos índios e colonos no Recife. Entre os capuchinhos, destacou-se frei Martinho de Nantes. © História da Igreja na América Latina e no Brasil104 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Beneditinos Há notícias de que dois beneditinos chegaram ao Rio de Ja- neiro em 1565. Contudo, é somente em 1581 que foi fundado um mosteiro na Bahia. Em 1589 estabeleceram-se, definitivamente, no Rio. Logo em seguida, em 1592, em Olinda. Carmelitas A ordem do Carmo está presente no Brasil desde o final do século 16. O primeiro convento foi fundado em Pernambuco, em 1584. No ano de 1686, tinham em torno de 13 conventos. Jesuítas Conforme você estudou anteriormente, os jesuítas chega- ram em 1549 como missionários da Coroa e se estabelecem na Bahia. Logo se espalham por toda a costa do litoral brasileiro. A presença dos jesuítas no Brasil está ligada ao plano colonizador e evangelizador de D. João III (1502-1557). Em 1759, ano da expul- são, somavam em torno de 30 casas e 670 membros. Retornaram ao Brasil em 1842, vindos da Argentina, e se estabeleceram em Porto Alegre. Mercedários Os mercedários (Ordem de Nossa Senhora das Mercês) vie- ram ao Brasil, vindos do Equador, e estabeleceram-se no Pará e no Maranhão em 1639. Permaneceram até 1787, quando foram extintos. Retornaram mais tarde. As ordens religiosas femininas Nenhuma ordem religiosa feminina tradicional veio ao Brasil no século 16. Podemos supor, pelo menos, três razões: 1) concepção de vida religiosa feminina ligada à concepção de vida da mulher daquela época; 105© A Organização da Igreja 2) ênfase na evangelização; 3) desinteresse e restrições da Coroa. No antigo regime, o papel da mulher era inferior ao do ho- mem. A mulher levava uma vida dependente e submissa ao ma- rido, dedicada aos filhos e aos afazeres da casa. De maneira se- melhante, não se concebia a mulher religiosa senão fechada no convento, dependente das autoridades superioras. Como o Brasil era um território de missão, e a missão era uma tarefa exclusiva dos homens, descartava-se, de imediato, a presença de conventos femininos. Não teriam utilidade nenhuma nessa empresa, pois as religiosas não evangelizavam. A presença de conventos femininos não era interessante para a Coroa por dois motivos: 1) porque a fundação de conventos implicaria em ônus para os cofres públicos; 2) porque a vida reclusa das mulheres ia contra os planos de povoamento do território e de incentivo ao casamen- to. A colônia precisava de mulheres casadoiras para ge- rar filhos e povoar a terra. Se por um lado existiam razões e entraves por parte das ins- tituições, de outro, a presença de conventos femininos era uma necessidade social da colônia, porque envolvia uma questão de status para as famílias mais ricas e um lugar de encosto para as filhas azaronas no amor. Essa necessidade fez surgir as primeiras organizações da vida religiosa feminina, chamadas de recolhimentos. O recolhimento era uma casa para mulheres com ideal de vida religiosa, organi- zada à maneira de convento, mas sem votos solenes. Com o tem- po, alguns recolhimentos transformaram-se em conventos (AZZI, 1983).Os recolhimentos surgem no início do século 17, recolhen- do, primeiro, mulheres piedosas-devotas, que, mais tarde, acaba- vam se tornando religiosas conventuais professas. Depois, as filhas da nobreza. Em 1677, foi fundado o recolhimento do Desterro, na © História da Igreja na América Latina e no Brasil106 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Bahia, para o qual vieram religiosas de Portugal para organizá-lo. Em 1687, em Ajuda, no Rio de Janeiro. Em 1685, em Santa Tereza, em São Paulo. A fundação de recolhimentos era de competência do bispo, do poder público, da superiora das recolhidas ou mesmo da no- breza, mediante Alvará concedido pela Coroa. Quando senhores ou senhoras nobres fundavam um recolhimento, eles próprios o sustentavam. Os leigos Em virtude do padroado, da precariedade da organização eclesiástica, da pouca expressividade dos bispos e do clero, os leigos tiveram um papel fundamental na vida da Igreja no Brasil colônia. Por meio das organizações religiosas coletivas ou individu- ais, participaram, ativamente, do catolicismo tradicional. Para Azzi (1983), os leigos participaram de duas formas: 1) participação coletiva através das confrarias; 2) participação individual através do ofício de eremitas. As confrarias eram associações religiosas nas quais os leigos se reuniam para viver sua fé e participar do culto no catolicismo tradicional. Era uma iniciativa totalmente leiga. Havia dois mode- los de confrarias: 1) as irmandades; 2) as ordens terceiras. São dois modelos medievais trazidos para o Brasil pelos por- tugueses. A confraria tinha uma dupla finalidade: espiritual e ma- terial. A finalidade espiritual implicava a promoção da devoção a um santo, a manutenção de seu culto e a promoção de sua festa. A material implicava na arrecadação de recursos econômicos para construção de uma ermida, capela ou igreja e sua manutenção. Nesse sentido, as confrarias deixaram enorme patrimônio religio- so-cultural no sudeste e nordeste brasileiro ou nas cidades mais antigas. 107© A Organização da Igreja Cada irmandade tinha administração própria e era regida por um estatuto. Isto lhe dava autonomia perante o poder eclesi- ástico, o que significa que não se subordinavam nem aos párocos nem aos bispos e deles não necessitavam, a não ser para celebrar missa no dia da festa do padroeiro e para prestar outros serviços religiosos. Outra característica da irmandade, salvo raras exceções, é que ela era, predominantemente, masculina e que mantinha certa distinção de cor, ou seja, havia irmandades de homens brancos, de pardos e de negros, cada uma com sua Igreja e com seu santo. Embora o caráter das confrarias fosse religioso e devocional, algumas exerciam, também, atividades sociais, como é o caso da Irmandade da Misericórdia. As irmandades mais conhecidas são: Irmandade do Santíssimo Sacramento, Irmandade do Rosário e Ir- mandade da Misericórdia. As ordens terceiras eram associações vinculadas às ordens religiosas tradicionais medievais. Tiveram importante papel no ca- tolicismo colonial. Ocupavam-se da construção de Igrejas e da pro- moção do culto do santo patrono. No Brasil colonial, destacaram- -se as seguintes ordens terceiras: a) Ordem Terceira Franciscana. b) Ordem do Carmo. c) Ordem Terceira de São Domingo. d) Ordem Terceira dos Mínimos. Com o passar do tempo, algumas irmandades e ordens ter- ceiras tornaram-se ricas e poderosas. Adquiriram cobiçáveis pro- priedades materiais e construíram Igrejas em estilo barroco na Bahia, noRio de Janeiro e nas Minas Gerais. O fato de se tornarem economicamente poderosas e de serem autônomas em relação à instituição eclesiástica era causa de inúmeros conflitos entre o cle- ro e os bispos. Outra forma de participar ativamente do catolicismo tradi- cional era por meio do ofício de eremita. Quem eram os eremi- © História da Igreja na América Latina e no Brasil108 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO tas? Conhecidos também com os nomes de "ermitães", "irmãos" ou "monges", os eremitas eram: "leigos que se dedicavam à vida ascética e à promoção de obras de culto e devoção [...]. São leigos que decidem levar uma vida cristã mais perfeita, dedicando-se à vida de oração e ao serviço do culto" (AZZI, 1983, p. 241). O termo eremita está relacionado à ermo, lugar retirado, so- litário, calmo, silencioso. Eremita é o homem que vivia retirado, afastado do barulho das cidades, desapegado dos bens materiais, mas apegado à oração e às boas obras. Normalmente, vivia ao lado de uma ermida ou capela dedicada a um santo. Muitos reuniram em torno de si grupos de discípulos seguidores, que saiam a esmo- lar a fim de angariar recursos materiais para renovar igrejas e ce- mitérios abandonados. Algumas ermidas ou pequenas igrejinhas, por obra dos eremitas, transformaram-se em grandes santuários, como, por exemplo, o do Senhor Bom Jesus de Matozinhos. Apesar de viver retirado, o eremita era frequentemente pro- curado pelo povo para pedir conselhos e orientações espirituais. Por isso, era considerado como santo. Tinha boa reputação diante da instituição eclesiástica e era reconhecido como um homem a serviço da Igreja, pois era oficialmente revestido na função de ere- mita pela autoridade da Igreja (MATOS, 2001). Era uma forma de vida religiosa aprovada e respeitada pelos bispos. Entre os principais ermitães da época colonial, destacaram- -se: a) Antônio Caminha, Rio de Janeiro. b) Francisco da Soledade, Rio São Francisco. c) Felix da Costa, Macaúbas, Bahia. d) Feliciano Mendes, Congonhas do Campo. e) Antônio da Silva Bracarena, Caetés, Minas Gerais. f) Lourenço de Nossa Senhora, Caraça, Minas Gerais. g) Joaquim do Livramento, Santa Catarina. Este último, diferentemente dos demais, distinguiu-se por diversas obras sociais, como orfanatos, hospitais, asilos e seminá- 109© A Organização da Igreja rios. João Maria de Agostini, diferenciado dos demais por ser pe- regrino, atuou no sul do Paraná e em Santa Catarina, e fez história na região do Contestado. A vida eremítica no Brasil teve seu auge no século 18. A partir de meados do século 19, quando a Igreja vai tomando uma forma acentuadamente clerical, essas formas de vida leiga foram caindo no esquecimento. 7. TEXTO COMPLEMENTAR A seguir veremos a inquisição no Brasil que será de grande importância para completar o estudo desta unidade. A Inquisição no Brasil ––––––––––––––––––––––––––––––––– A Inquisição ou "Santo Ofício" via-se como um instrumento sacral, quase de "ins- piração divina", para salvaguardar a unidade da cristandade, afastando dela tudo que poderia provocar cisão por heterodoxia ou comportamento não condizente com a moral católica da época. Era um órgão rigidamente organizado e extre- mamente eficaz no agir, sempre atento a detectar elementos desagregadores. Desenvolvia uma espécie de pedagogia do medo, arma terrível que fez mais vítimas do que a própria fogueira! A chegada de uma visitação do Santo Ofício causava insegurança e pânico entre a população. Em tese qualquer cidadão poderia ser acusado, independentemen- te de seu cargo, posição ou etnia. Toda a sociedade local era assim fortemente sacudida e atemorizada. O absoluto segredo era o nervo vital desse tribunal, visando obter o máximo de eficiência com um mínimo de publicidade. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição possuía sua dinâmica própria, constan- do globalmente do seguinte processo: a convocação geral – consistia na apre- sentação espontânea daqueles que, em consciência, se sentiam culpados de um dos "crimes" elencados no monitório da Inquisição (monitório – mandado judicial chamando a depor sobre si ou outrem); tempo da graça – feitas as admo- estações, o tribunal anunciava o tempo da graça, período de 30 dias em que os acusados ficariam livres de suas penas corporais e de confisco de bens, desde que confessassem seus erros; interrogatório – após o tempo da graça segue o interrogatório dos réus não perdoados. Os juízes vasculhavam minuciosamente a vida pública e privada dos acusados. Se houvesse resistência, os inquisidores recorriam à tortura; sentença – finalmente se pronunciava a sentença, seguida pela respectiva pena, numa solene cerimônia pública, chamada "auto-da-fé". A Inquisição portuguesa aplicou a pena capital na fogueira em número bastante reduzido de casos. A execução era feita pelo "braço secular", isto é, pelo poder civil, uma vez que a Igreja não podia "manchar suas mãos de sangue". © História da Igreja na América Latina e no Brasil110 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO A INQUISIÇÃO NO BRASIL Nunca houve no Brasil um Tribunal da Inquisição autônomo. A Colônia estava sob a jurisdição direta da Inquisição de Lisboa. Um dos motivos alegados era o alto custo operacional de um tribunal na Colônia. Basta saber que durante a pri- meira visitação do Santo Ofício ao Brasil, em 1591, o licenciado Furtado de Men- donça não concluiu a sua missão por motivos financeiros. No dia 17 de dezembro de 1594, o Conselho da Inquisição de Lisboa pediu-lhe que voltasse a Portugal "sem ir a outra parte por ter gastado muito tempo e feito muita despesa [...] pelo que tornamos a encomendar e encarregar muito que com brevidade acabe a visitação e se venha na embarcação que trouxer a fazenda da nau da Índia". Podemos nos perguntar: Havia motivos específicos para as visitações inquisito- riais na Colônia? "Por certo que sim. Periódico e rotineiro revigoramento da fé para o rebanho distante e disperso, sujeito a toda sorte de estímulos profanos. Repreensão ao relaxamento quase costumeiro do clero. Interesse em perseguir a gente da nação [judeus], quando se amiudavam as denúncias sobre suas he- réticas práticas ou sobre sua crescente prosperidade comercial. Sondagem do subconsciente da sociedade colonial, nem sempre conformada com os ditames da Coroa e da fé. Enfim, se podem arrolar várias causas mais diretas, imediatas e determinantes das Visitações conhecidas até agora: Bahia e Pernambuco". No período colonial houve no Brasil três visitações oficiais do Santo Ofício: a pri- meira, na Bahia, de 1591 a 1595; a segunda, também na Bahia, de 1618 a 1620; a terceira, no Grão-Pará, de 1763 a 1769. Figura central na primeira visitação foi o licenciado padre Heitor Furtado de Men- donça, promotor da Inquisição lisboeta. Recebera atribuições limitadas, "caben- do-lhe julgar os casos de bigamia, blasfêmias e culpas menores e apenas instruir os processos contra os demais acusados, remetendo-os presos para Lisboa. Mas Heitor Furtado, que chegou doente na Colônia [1591] e tardou a iniciar os trabalhos, fez o que lhe pareceu conveniente ou razoável [...]. Foi tão subjetivo em sua atuação, abandonando por completo as instruções do Conselho Geral, que só lhe faltaram mesmo a ereção de cadafalsos e a execução de penas ca- pitais no trópico. Talvez por sua conduta arbitrária aos olhos do Conselho, aca- baria recambiado para Lisboa antes de visitar as Capitanias do Sul e as ilhas do Atlântico". Também no Brasil a lnquisição estava à cata de cristãos-novos ou pessoas ju- daizantes. E esses não faltavam no território. Desde os primórdios da Colônia encontram-se envolvidos em negócios de comércio. Durante o período da pre- sença holandesa em Pernambuco (1630-1654), quando existia relativa tolerância religiosa, chegaram ao Brasil judeus oriundos principalmente de Amsterdam. No Recife, como já vimos, havia uma florescente comunidade judaica, economica- mente bem situada e que possuía duas sinagogas. Muitos desses judeus"tinham chegado a Pernambuco desde os primeiros tem- pos da conquista holandesa, alguns como militares, nas hostes da Companhia das índias Ocidentais. Com a consolidação da conquista, o numero dos que se passaram ao Brasil aumentou. Dada a sua adaptação ao clima tropical e o fato de, originários da Península e residentes na Holanda, falarem o português e o holandês, estavam em condições muito favoráveis para servir de intermediários entre as duas populações. Realmente, a função de corretor foi uma quase espe- cialização dos judeus do Recife, embora a grande maioria vivesse do comércio de açucar e de escravos; outros, de emprestar dinheiro a juros. Pouco antes de 1654 começavam a dominar também os contratos de cobrança de impostos". 111© A Organização da Igreja Além de "hereges", os inquisidores procuravam outros "desvios", aceitando e investigando denúncias referentes a bigamia, feitiçaria ou bruxaria, sodomia e blasfêmia, e ainda outras. Citamos, a título de exemplo, as blasfêmias que com frequência aparecem nos relatórios. Nas 283 confissões durante as visitações da Inquisição à Bahia e Per- nambuco estão 68 expressões insultantes que renegam a Deus, zombam dos santos ou colocam em dúvida a virgindade de Nossa Senhora. Entre as 950 denúncias coletadas nessas visitações, 90 tratam de blasfêmias e 177 referem-se ao desrespeito para com Jesus Cristo, Maria, os santos e os sacramentos, além de 58 expressões que contêm palavras injuriosas. Um total de 325 casos, que representam 34% dos crimes denunciados. Um caso típico de blasfemador, acusado no tribunal, foi o do "governador da Capitania de Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, que em 1546 foi preso por causa de seus insultos a Deus e à Igreja. Entre outros, Tourinho foi acusado pelo ferreiro João Douteiro de pronunciar palavras de irreverência contra os santos. Ele havia dito, publicamente, que ofereceria uma vela de merda para Santo Antô- nio e que os santos eram todos santinhos de merda. O governador, ameaçado de excomunhão, bradou em cólera que limparia o ânus com a excomunhão papal. Aos fiéis que iam à missa, ele dizia que não encontrariam Deus, e sim o Diabo". Por ocasião da segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil, em 1618, encontra- mos o caso de um "padre sedutor": Baltasar Marinho, denunciado por Madalena de Góis, a qual declarou aos inquisidores visitantes que, durante a confissão, o padre havia proposto "dormir carnalmente" com ela, que, indignada e muito escandalizada, não quis mais confessar com ele. "Padre Baltasar foi também acusado de solicitar duas outras mulheres e, além disso, de ter tentado cometer atos sodomíticos com os filhos da própria Madalena de Góis"(MATOS, 2001, p. 267-278). A VISITAÇÃO NA BAHIA Heitor Furtado de Mendonça, nosso primeiro visitador, devia ser homem entre trinta e quarenta anos, segundo Capistrano, quando recebeu a comissão inqui- sitorial. Licenciado, fora desembargador real e capelão del rei, e exercia, então, o cargo de deputado do Santo Ofício. Homem de foro nobre, passara por dezes- seis investigações de limpeza de sangue para habilitar-se ao cargo inquisitorial, procedimento comum no Santo Ofício, zeloso de que seus funcionários não ti- vessem a mais tênue "nódoa de sangue infecto" de judeu, mouro negro, índio etc., como então se dizia. Sua competência nas "letras e sã consciência" para a função de visitador foi atestada pelo próprio cardeal Alberto, inquisidor-geral que o nomeou para visitar o bispado do Brasil, inclusive as "capitanias do Sul", e os bispados de São Tomé e Cabo Verde, nas ilhas da costa africana. Desembarcou na Bahia em 9 de junho de 1591, após breve escala em Per- nambuco, viajando na companhia de d. Francisco de Souza, governador-geral recém-nomeado. Chegou "mui enfermo", nas palavras de frei Vicente do Sal- vador, e se "foi curar no colégio dos padres da Companhia", palco do que seria, afinal, a visitação do Santo Ofício da Inquisição. Na comitiva do visitador vieram também o notário Manoel Francisco – "fenomenal em fonética" – e o meirinho Francisco Gouvea, ajudante-de-ordens do visitador. Delegação pequena, como se vê, mas que contou com o auxilio de autoridades eclesiásticas e missionários locais, mormente o dos jesuítas. Em várias sessões de interrogatório estiveram presentes o bispo Antônio Barreiros, o provincial dos jesuítas, padre Marçal Be- liarte, e o reitor do colégio inaciano da Bahia, padre Fernão Cardim, autor do que © História da Igreja na América Latina e no Brasil112 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO seria o Tratado da terra e da gente do Brasil. As sentenças lavradas na própria Bahia pela visitação - nos vários casos em que Heitor Furtado resolveu processar – foram assinadas por todos esses dignitários. No dia 16 de junho, o visitador se apresentou ao bispo, que lhe beijou os pés e prometeu solenemente ajudar a visitação no que fosse necessário. Na semana seguinte, dia 22 de julho, foi a vez de o Paço do Conselho e Câmara de Salvador prestar-lhe as devidas homenagens, recebido o visitador "pelos mui nobres se- nhores, juizes e vereadores" da Bahia. E no dia 22 de julho iniciou-se a visitação, preludiada por grande pompa e cerimonial, presentes o bispo e seu cabido, os funcionários do governo e da justiça, vigários, clérigos e membros das confrarias, sem falar do povo acotovelado nas ruas de Salvador para acompanhar o cortejo do Santo Ofício. Heitor Furtado veio debaixo de um pálio de tela de ouro e, aden- trando a Sé, ouviu renovados votos de louvor à sua pessoa e ao Santo Ofício. Dirigiu-se então à capela-mor, após a leitura da constituição de Pio V em favor da Inquisição, onde estava posto um altar ricamente adornado com uma cruz de prata arvorada, e quatro castiçais grandes, também de prata, com velas acesas, além de dois missais abertos em cima de almofadas de damasco, nos quais ja- ziam duas cruzes de prata. Em meio a todo esse luxo, o visitador rumou para o topo do altar sentou-se numa cadeira de veludo trazida incontinenti pelo capelão, e recebeu o juramento do governador, juízes, vereadores e mais funcionários, todos ajoelhados perante o Santo Ofício. Publicaram-se, então, o Edital da Fé e o Monitório da Inquisição, documentos que o leitor encontrará mencionados várias vezes nas confissões deste livro. Pelo Edital, os fiéis eram convocados a confessar e delatar as culpas atinentes ao Santo Ofício, sob pena de excomunhão maior. Que ninguém fosse poupado, qualquer que fosse o "grau, estado e preeminência" dos indivíduos, devendo todos confessar ou acusar as heresias e apostasias de que cuidava a Inquisição. Em tese, vê-se que a pretensão do Santo Ofício era mesmo a de colocar-se aci- ma de todos, verticalizando em seu único benefício as relações sociais, diluindo as hierarquias, dissolvendo as solidariedades de todo tipo. Na prática, porém, como se viu no sem-número de rituais e protocolos da instalação da visitação, mancomunava-se o visitador com os "homens bons" do lugar. Saber o que era afinal matéria a ser delatada ou confessada ao Santo Ofício era algo que o monitório informava com razoável detalhe. É improvável aliás que, ao contrário do que diz Capistrano de Abreu, se tenha utilizado o Monitório de 1536, elaborado por d. Diogo da Silva, primeiro inquisidor-geral de Portugal. Foi aquele o primeiro monitório da Inquisição, basicamente preocupado em detalhar os indícios de práticas judaizantes, embora também aludisse a outros erros de fé, como a feitiçaria, o luteranismo e o islamismo. As culpas relatadas na visitação são, com efeito, mais variadas, incluindo, por exemplo, a sodomia, delito que somente a partir de 1553 começou a ser transferido ao foro inquisitorial, após um sem-número de provisões reais, breves e bulas pontifícias, reconhecendo o que já era fato desde 1547. O monitório utilizado foi, provavelmente, o baseado no Regimento de 1552 ou no Edital da Fé de 1571, elaborados no tempo em que o cardeal d. Henrique, irmão de d. João III e tio-avô de d.Sebastião, era o inqui- sidor-mor do Santo Ofício português. Monitório muito calcado, é verdade, no de 1536, porém acrescido das culpas que, nesse intermezzo, passaram à jurisdição inquisitorial. É deles que a população colonial iria falar na mesa do Santo Ofício, alguns sabedores de que haviam realmente transgredido os preceitos da fé, ou- tros que só através do monitório vieram a constatar não serem tão bons cristãos como pensavam. Neófitos, por assim dizer, em matéria de heresias. 113© A Organização da Igreja No monitório da Visitação quinhentista, assim como no conjunto dos monitórios da Inquisição até meados do século XVIII, o grande destaque cabia aos indícios de práticas judaizantes presumidamente usadas pelos cristãos-novos: 1) guardar o sábado, vestindo-se com roupas e jóias de festa, limpando a casa na sexta-fei- ra e acendendo candeeiros limpos com mechas novas, mantendo-os acesos por toda a noite; 2) abster-se de comer toucinho, lebre, coelho, aves afogadas, polvo, enguia, arraia, congro, pescados sem escamas em geral; 3) degolar animais, mormente aves, ao modo judaico, "atravessando-lhes a garganta", testando pri- meiro o cutelo na unha do dedo da mão e cobrindo o sangue derramado com terra; 4) conservar os jejuns judaicos, a exemplo do "jejum maior dos judeus", em setembro, dia em que os judeus jejuavam até saírem as estrelas no céu, quando então comiam e pediam perdão uns aos Outros, além do "jejum da rainha Ester" e o das segundas e quintas-feiras de cada semana; 5) celebrar festas judaicas como a Páscoa do pão ázimo (Pessach), a das Cabanas e outras; 6) rezar ora- ções judaicas, a exemplo dos salmos penitenciais sem dizer "Gloria Patri et Filio et Spíritu Sancto", e outras em que oravam contra a parede, abaixando e levan- tando a cabeça e usando correias atadas nos braços ou postas sobre a cabeça; 7) utilizar ritos funerários judaicos, a exemplo de comer em mesas baixas pesca- do, ovos e azeitonas quando morre gente na casa de judeus, amortalhar os de- funtos "com camisa comprida", enterrá-los em terra virgem, cortar-lhes as unhas para guardá-las, pondo-lhes na boca uma pérola ou mesmo moeda de ouro ou prata e dizendo-lhes "que é para pagar a primeira pousada", mandar lançar fora a água dos potes e vasos da casa quando alguém morre na casa; 8) lançar fer- ros, pão ou vinho nos cântaros da casa, nos dias de são João Batista e do Natal, dizendo que aquela água se torna sangue; 9) abençoar os filhos pondo-lhes a mão na cabeça, abaixando-a pelo rosto sem fazer o sinal-da-cruz; 10) circuncidar os recém-nascidos, dar-lhes secretamente nomes judeus ou, batizando-os na igreja, "rapar o óleo e a crisma" neles postos. Vários desses indícios não passavam de estereótipos que marcavam a figura dos judeus havia tempos. Outros, porém, eram resíduos fragmentários da reli- giosidade dos judeus ibéricos (os sefaradim), eventualmente praticados pelos cristãos-novos, embora seja duvidoso que, ao praticá-los, estivessem a manter o judaísmo secreto de que suspeitava o visitador [...]. Nos demais itens de culpas inquisitoriais o monitório era, em regra, mais super- ficial, aludindo ao luteranismo (nome genérico que se dava ao protestantismo), a alguns indícios de islamismo (então chamado de "seita de Mafamede", isto é, Maomé), a opiniões heréticas em geral, à descrença no Santíssimo Sacramento, à negação dos Artigos da Fé católica e do poder pontifício, ao questionamento da confissão sacramental, à dúvida sobre a pureza da Virgem "antes, durante e depois do parto", à bigamia, à invocação do diabo na prática de feitiçaria, à leitura de livros proibidos pela Igreja, segundo o Index librorum prohibitorum, ao questionamento sobre se a fornicação era pecado, à sodomia, à bestialidade [...] (VAINFAS, 1997, p. 17-33). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: © História da Igreja na América Latina e no Brasil114 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 1) Como a Igreja da América espanhola se organizou hierarquicamente e pas- toralmente? 2) Por que na América espanhola houve tantos concílios e sínodos e no Brasil apenas o sínodo da Bahia, em 1707? 3) Estabeleça algumas diferenças na organização da Igreja no Brasil e na Amé- rica espanhola. 4) Qual era o papel dos leigos no catolicismo colonial no Brasil? 9. CONSIDERAÇÕES Na Unidade 3, você teve a oportunidade de compreender como a Igreja se organizou e se desenvolveu nessas duas partes da América do Sul. O término desta unidade marca, também, o fim da época colonial. Na Unidade 4, estudaremos a Igreja em uma nova situação, bem como o fim da época colonial e a crise da cristandade. O fato de estarmos concluindo a época colonial não signi- fica que abordamos todos os problemas inerentes a ela; muitos ficaram para serem estudados e aprofundados pelos alunos em outros momentos de sua vida acadêmica ou no Fórum de debates. Elencamos alguns como exemplo: a inquisição, a paróquia, a reli- giosidade popular, a administração dos sacramentos, a Igreja e a educação entre outros. Até lá! 10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ALGRANTI, L. M. Honradas e devotas: mulheres da colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993. AZZI, R. A cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987. v. I. BARNADAS, J. M. A Igreja Católica no Brasil colonial. In: BETHELL, L. (org.) História da América Latina: a América Latina Colonial. v. 1. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre Gusmão, 1997, p. 521-551. BIDEGÁIN, A. M. História dos cristãos na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1993. t. 1. 115© A Organização da Igreja DAMMERT BELLIDO, J. Evangelização nos concílios limenses. Revista Eclesiática Brasileira, v. 47, fasc. 185, p. 75-82, mar. 1987. DUSSEL, E. D. Historia general de la Iglesia en America Latina: introduccion general a la historia de la Iglesia en America Latina. t. I/1. Salamanca: Sigueme, 1983. HOORNAERT, E. História do cristianismo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1994. ______. et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. t. II/1, primeira época, Petrópolis: Vozes, 2008. 5. ed. LLAGUNO, J. A evangelização nos concílios mexicanos do século XVI. Revista Eclesiática Brasileira. v. 47, fasc. 185, p. 61-74, mar. 1987. MATOS, H. C. J. Nossa história: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. período colonial. São Paulo: Paulinas, 2001. t. 1. VAINFAS, R. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
Compartilhar