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Montes Claros/MG - Maio/2015 Fábio Figueiredo Camargo Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo REIMPRESSÃO 2015 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei. EDITORA UNIMONTES Campus Universitário Professor Darcy Ribeiro, s/n - Vila Mauricéia - Montes Claros (MG) - Caixa Postal: 126 - CEP: 39.401-089 Correio eletrônico: editora@unimontes.br - Telefone: (38) 3229-8214 Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge - Unimontes Ficha Catalográfica: Copyright ©: Universidade Estadual de Montes Claros UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES REITOR João dos Reis Canela VICE-REITORA Antônio Alvimar Souza DIRETOR DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÕES Jânio Marques Dias EDITORA UNIMONTES Conselho Consultivo Adelica Aparecida Xavier Alfredo Maurício Batista de Paula Antônio Dimas Cardoso Carlos Renato Theóphilo, Casimiro Marques Balsa Elton Dias Xavier José Geraldo de Freitas Drumond Laurindo Mékie Pereira Otávio Soares Dulci Marcos Esdras Leite Marcos Flávio Silveira Vasconcelos Dângelo Regina de Cássia Ferreira Ribeiro CONSELHO EDITORIAL Ângela Cristina Borges Arlete Ribeiro Nepomuceno Betânia Maria Araújo Passos Carmen Alberta Katayama de Gasperazzo César Henrique de Queiroz Porto Cláudia Regina Santos de Almeida Fernando Guilherme Veloso Queiroz Luciana Mendes Oliveira Maria Ângela Lopes Dumont Macedo Maria Aparecida Pereira Queiroz Maria Nadurce da Silva Mariléia de Souza Priscila Caires Santana Afonso Zilmar Santos Cardoso REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA Carla Roselma Athayde Moraes Waneuza Soares Eulálio REVISÃO TÉCNICA Gisléia de Cássia Oliveira Káthia Silva Gomes Viviane Margareth Chaves Pereira Reis DESENVOLVIMENTO DE TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS Andréia Santos Dias Camilla Maria Silva Rodrigues Sanzio Mendonça Henriques Wendell Brito Mineiro CONTROLE DE PRODUÇÃO DE CONTEÚDO Camila Pereira Guimarães Joeli Teixeira Antunes Magda Lima de Oliveira Zilmar Santos Cardoso diretora do Centro de Ciências Biológicas da Saúde - CCBS/ Unimontes Maria das Mercês Borem Correa Machado diretora do Centro de Ciências Humanas - CCH/Unimontes Mariléia de Souza diretor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA/Unimontes Paulo Cesar Mendes Barbosa Chefe do departamento de Comunicação e Letras/Unimontes Maria Generosa Ferreira Souto Chefe do departamento de educação/Unimontes Maria Cristina Freire Barbosa Chefe do departamento de educação Física/Unimontes Rogério Othon Teixeira Alves Chefe do departamento de Filosofi a/Unimontes Alex Fabiano Correia Jardim Chefe do departamento de Geociências/Unimontes Anete Marília Pereira Chefe do departamento de História/Unimontes Claudia de Jesus Maia Chefe do departamento de estágios e Práticas escolares Cléa Márcia Pereira Câmara Chefe do departamento de Métodos e Técnicas educacionais Káthia Silva Gomes Chefe do departamento de Política e Ciências Sociais/Unimontes Carlos Caixeta de Queiroz Ministro da educação Renato Janine Ribeiro Presidente Geral da CAPeS Jorge Almeida Guimarães diretor de educação a distância da CAPeS Jean Marc Georges Mutzig Governador do estado de Minas Gerais Fernando Damata Pimentel Secretário de estado de Ciência, Tecnologia e ensino Superior Vicente Gamarano Reitor da Universidade estadual de Montes Claros - Unimontes João dos Reis Canela Vice-Reitor da Universidade estadual de Montes Claros - Unimontes Antônio Alvimar Souza Pró-Reitor de ensino/Unimontes João Felício Rodrigues Neto diretor do Centro de educação a distância/Unimontes Fernando Guilherme Veloso Queiroz Coordenadora da UAB/Unimontes Maria Ângela Lopes Dumont Macedo Coordenadora Adjunta da UAB/Unimontes Betânia Maria Araújo Passos Autor Fábio Figueiredo Camargo Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG. Atualmente é membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes e professor de Literatura Brasileira do departamento de Comunicação e Letras. Sumário Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 Literatura de Viajantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 1.2 Literatura de Informação: Os Começos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 1.3 Literatura de Invasão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 Barroco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 2.1 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 2.2 O Barroco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 2.3 Literatura Barroca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 Unidade 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 Arcadismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 3.2 Literatura Árcade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53 Resumo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55 Referências Básicas, Complementares e Suplementares. . . . .57 Atividades de Aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59 9 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo Apresentação Caro (a) acadêmico (a), Neste caderno, você encontrará as informações sobre um pouco da literatura brasileira. Se- rão três séculos que passarão depressa demais, pois as informações aqui contidas são apenas para que você empreenda uma pequena viagem ao passado e comece a conhecer a literatura brasileira, desde seus princípios até ao final do século XVIII. Como todo manual, este não esgota- rá o assunto e nem possui essa pretensão. As informações são básicas, simples e apontam uma possibilidade de leitura dos textos e dos autores que contribuíram para o que hoje conhecemos como literatura brasileira. Faltarão muitos autores, pois a disciplina é muito pequena diante da quantidade de autores e obras exis- tentes, algumas delas ainda por serem levantadas e melhor estudadas. Vocêencontrará algumas dicas para que possa procurar por si mesmo novas entradas nessa história e poderá, inclusive, construir seu cânone. Tomei a liberdade de selecionar alguns autores e temas que mais me inte- ressam e sem os quais um professor de Literatura Brasileira não pode ir para a sala de aula. Bom proveito e bem vindo ao mundo da literatura brasileira! O autor. 11 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo UnidAde 1 Literatura de Viajantes 1.1 Introdução Nesta unidade, você irá travar contato com a História do Brasil e do que chamam erronea- mente de descoberta. Na verdade, o Brasil foi invadido por uma série de pessoas representantes de diversos segmentos, como a Igreja Católica e a Coroa portuguesa, que trouxeram seus escri- vães, padres, comerciantes, navegadores e corajosos pesquisadores que escreveram sobre as ter- ras e suas riquezas encontradas aqui. Os textos que você vai ler dão notícia sobre o Brasil e nos permite conhecer como foi a nossa colonização. 1.2 Literatura de Informação: os Começos A “Literatura de informação” é um segmento do chamado “Quinhentismo”, que consiste no conjunto das manifestações literárias ocorridas em território brasileiro durante o século XVI. A in- fluência desses textos são os padrões estéticos medievais e os valores do classicismo, até mesmo porque essas obras eram lidas, principalmente, em Portugal e na Espanha, satisfazendo a curio- sidade dos europeus sobre a Nova Terra “descoberta”. Esses textos, em sua grande maioria, eram escritos por militares, comerciantes e viajantes, sempre europeus, que buscavam, nessas novas terras, enriquecer rápido e facilmente. Prova disso são os testemunhos dos autores, que se mos- tram sempre entusiasmados com a perspectiva de as colônias representarem fonte de lucro in- discutível para os cofres portugueses. Os portugueses chegam ao Brasil em 1500 e trazem sua bagagem cultural, que se chocará definitivamente com a cultura que vão encontrar no lugar recém-descoberto. A literatura brasi- ◄ Figura 1: Rota de navegação de Pedro Álvares Cabral Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br/imgres?imgurl=http:// veja.abril.com.br/historia/ descobrimento>. Acesso em 10 ago. 2010. 12 UAB/Unimontes - 5º Período leira começa, assim, a se conformar a partir de documentos escritos por portugueses que dão notícia sobre as terras que mais tarde serão reconhecidas como Brasil. Em um primeiro momen- to, pode parecer que esta é uma aula de história, mas é que para se falar em literatura brasileira temos que rever sua história e como essa literatura se forma no tempo. Os textos produzidos aqui, entre 1500 até aproximadamente 1601, trazem o inconveniente de não serem escritos por brasileiros, pois aqueles que assim poderiam ser chamados, os indíge- nas, não deixaram nenhum documento escrito em suas línguas, seja por falta de cuidado de con- servação ou por mera censura das instituições que patrocinaram a colonização do Brasil: a Coroa portuguesa e a Igreja Católica. Os documentos que ficaram para contar essa história pertencem aos arquivos dos desco- brimentos e dizem das relações travadas entre os europeus e seu modo de viver e dos autócto- nes que aqui viviam antes da chegada dos portugueses. Esses documentos são, muitas vezes, de ordem descritiva, representando pouco do que possa ser literário, embora tenham um caráter estético que não se separa de nenhuma produção humana. Para José Aderaldo Castelo, esses do- cumentos não podem ser chamados de “literatura brasileira”, pois o Estado ou a Nação brasileira ainda não estavam constituídos e por isso ele denomina essas produções de “Manifestações lite- rárias na era colonial”. Essa produção abarcaria textos produzidos durante um período histórico situado entre o descobrimento e a publicação dos poetas árcades (CASTELLO, 1969). Para Luiz Roncari, a produ- ção dos viajantes deve ser levada em consideração devido à documentação que ela imprime ao reconhecimento do Brasil no mundo europeu do século XVI (RONCARI, 2002). Para Flavio Kothe, ela não passaria de documentação que foi elevada à condição de literatura quando não tinha essa função (KOTHE, 1997). O que interessa é que esses textos fazem parte do cânone literário brasileiro devido ao uso e à eleição que se fez destes para estudar a composição da nossa litera- tura. Embora haja uma série de textos produzidos nesse formato, o da literatura de viagens ou dos viajantes, daremos destaque à Carta, de Pero Vaz de Caminha e ao Tratado da Terra do Bra- sil, de Pêro Magalhães de Gândavo. Assim, procede a seguinte questão: quando começou, então, precisamente, a literatura no Brasil? Essa pergunta nunca teve uma resposta unânime entre os historiadores literários, em ne- nhuma época. O escritor português José Osório de Oliveira, por exemplo, em 1964, afirma que só se pode chamar de “Literatura Brasileira” os textos de nossa época mais recente. No entanto, há posições divergentes, como, por exemplo, as de Sílvio Romero, José Veríssi- mo e Ronald de Carvalho, em suas histórias literárias, cada um considerando momentos ou auto- res diferentes para situar os princípios da nossa literatura. Sílvio Romero acreditava que a literatura no Brasil, a literatura em toda a América, tem sido um processo de adaptação de idéias européias às sociedades do continente. Esta adaptação nos tempos coloniais foi mais ou menos inconsciente; hoje tende a tornar-se com- preensiva e deliberadamente feita. Da imitação tumultuária, do antigo servilis- mo mental, queremos passar à escolha, à seleção literária e científica (ROMERO, 1888, p. 4). Mais tarde, Afrânio Coutinho, Eduardo Portella e Antônio Cândido também entram em al- guns desacordos. Afrânio Coutinho, por exemplo, vê em Anchieta o fundador de nossa literatura. Certamente, a literatura dos viajantes, pelo fato de escreverem sobre o Brasil para o estran- geiro, dando apenas impressões gerais da viagem que fizeram ao Novo Mundo, trata-se não de literatura brasileira, mas de uma literatura europeia, ultramarina, com um estilo além-mar clara- mente identificado. É a visão do estrangeiro sobre o Brasil, ainda mais em uma época em que reinavam, muito mais do que hoje, preconceitos e imagens exóticas e totalmente distorcidas das “novas” terras. A literatura dos catequistas do século XVI, contudo, já reflete um certo Brasil, pois já é visto de dentro, apesar de, ainda, por olhares estrangeiros. A Companhia de Jesus realizou a ponte lite- rária da Europa para o Brasil, nos moldes de estética jesuítica. Foram os catequistas os primeiros a fazer literatura no Brasil e para o Brasil, incorporando-se às origens de nossa civilização. A obra de Anchieta, apesar da diversidade de línguas em que foi escrita, é de fundamental importância para a formação da literatura brasileira. Esse pré-Barroco, representado pela estéti- ca jesuítica, pode ser visto, com pequenas ressalvas, como a literatura de nossas origens, distan- te do espírito renascentista. Afastando-se totalmente do Classicismo, reflete mais a Idade Média em sua transição para o Barroco. E, mesmo que não reconheçamos Anchieta como o fundador de nossa literatura, a sua obra merece o valor literário que lhe é dado, pois, além da imensa 13 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo importância histórica, apresenta valores estéticos e literários ímpares e originais. Mas, por en- quanto, fiquemos por aqui. Mais detalhes da obra de Anchieta serão apresentados na próxima subunidade. No início do século XX, passados mais de 400 anos do “descobrimento”, o poeta Oswald de Andrade escreve um poema intitulado “História Pátria”, em que registra, com muita precisão e muito humor, esse início conturbado da nossa história, literatura e cultura, construídas também a partir de diversas outras histórias, literaturase culturas: BOX 1 “História Pátria” Lá vai uma barquinha carregada de Aventureiros Lá vai uma barquinha carregada de Bacharéis Lá vai uma barquinha carregada de Cruzes de Cristo Lá vai uma barquinha carregada de Donatários Lá vai uma barquinha carregada de Espanhóis Paga prenda Prenda os espanhóis! Lá vai uma barquinha carregada de Flibusteiros Lá vai uma barquinha carregada de Governadores Lá vai uma barquinha carregada de Holandeses Lá vem uma barquinha cheiinha de índios Outra de degradados Outra de pau de tinta Até que o mar inteiro Se coalhou de transatlânticos E as barquinhas ficaram Jogando prenda coa raça misturada No litoral azul de meu Brasil. Fonte: (ANDRADE, 1994). O poema revela com maestria as diversas vozes que construíram o nosso país, aproximando a realidade e a ficção, a história oficial e a sua transgressão. O poema reconta a história do Brasil de forma lúdica, reescrevendo-a em forma de poesia e com ironia - repare como as caravelas por- tuguesas transformam-se em meras barquinhas. 1.3 Literatura de Invasão Ano da Graça de Nosso Senhor de 1500. As caravelas de Pedro Álvares Cabral saíram de Por- tugal em direção às Índias orientais. Das sete caravelas, apenas 5 chegam ao que viria a ser cha- mado de Terra Papagali, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra do pau Brasil, até finalmente ser nomeada de Brasil. A esquadra de Cabral trazia diversos homens que vão travar contato com os autóctones que se encontravam na costa brasileira no que hoje é denominado Santa Cruz de Cabrália, próximo à cidade de Porto Seguro (BA). Nessa esquadra, além dos capitães dos navios, virá também o escrivão Pero Vaz de Caminha que será imortalizado pelo documento escrito ao Rei Dom Manuel dando as novas do achamento das terras. diCA Outros documentos que se destacam no período são: a) Tratado descriti- vo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza (1587); b) Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega. 14 UAB/Unimontes - 5º Período 1.3.1. A carta de Pero Vaz de Caminha Lendo a Carta de Caminha, veremos como ele vai muito além do simples registro frio e burocrático dos fatos. Porém também veremos, pela quantidade de dados numéricos nela contidos, como ele está preocupado em ser preciso, mantendo o cálculo na base de seu pensamento. Assim está constantemente dando número de léguas, de homens, de papagaios, calculando o peso, as distâncias, etc. (RON- CARI, 2002, p. 25). De acordo com Luiz Roncari, pode-se perceber que a Carta de Pero Vaz de Caminha, mesmo sendo um texto escrito como documento pode ser lido como um texto literário e suas possibi- lidades escapam à mera formatação do texto oficial. Por isso, podemos ler a Carta de Caminha como um texto literário que, se não funda a literatura brasileira, dá ao país sua certidão de nas- cimento. Pela primeira vez o que viria a se tornar o Brasil é mencionado em um documento no ocidente. Para Roncari: A Carta de Caminha e as de outros escrivães e cronistas, voltadas para suprir essas novas necessidades européias, pertencem ao gênero de relato que se constituiu com vistas a reconstruir o imaginário europeu a partir de valores e de uma nova visão do mundo. [...] os focos centrais da Carta estiveram voltados para as terras e os homens, tentando captá-los e criar deles uma imagem cujo poder evocativo [...] dá à forma de seu registro também um valor literário (RONCARI, 2002, p. 27). Valor literário deve ser entendido como aquilo que extrapolaria a mera função de documen- tação, constituindo a parte ficcional, em pontos nos quais o escrivão-narrador imagina possibi- lidades para a futura colônia, assim como as orações nas quais descreve os homens e as terras e sua abundância de recursos. Estão mais para a especulação do que propriamente para constata- ção da realidade, o que foge da conformação que um documento com este formato deveria ter. Desse modo, citaremos alguns trechos da Carta e os analisaremos para que você possa perceber, na prática, o que estamos afirmando teoricamente. Exemplo 1, a descrição dos autóctones: Figura 3: Índios no Xingu Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br/imgres?imgurl=http://3. bp.blogspot.com>. Acesso em 13 set. 2010. ► Figura 2: Foto do manuscrito da Carta de Pero Vaz de Caminha Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br//carreiradaindia.net/ wp-content/carta-pero- vaz-de-caminha.jpg>. Acesso em 12 set. 2010. ► 15 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela par- te de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber (CAMINHA, 1963, p. 2). Na descrição dos índios, Caminha cumpre, em parte, com o princípio básico da descrição, ser neutro, apenas enumerar os objetos existentes, dando deles as informações que estão à vista. Mas em um determinado momento, o escrivão ultrapassa a fina linha que separa a neutralidade científica ou de sua profissão para fazer um juízo de valor. Utiliza a palavra “vergonhas”, para se referir aos órgãos sexuais dos autóctones e logo depois afirma que eles são “de grande inocên- cia”. O código utilizado por Caminha, embora seja um uso costumeiro dos portugueses de seu tempo com relação à genitália, traz em si um julgamento de valor, pois se essa parte do corpo humano é chamada de vergonha, pode-se notar que há um tom pejorativo no uso da palavra. Da mesma forma, ao indicar que os habitantes do lugar encontrados são inocentes, ultrapassa o que é do seu dever de escrivão e utiliza a imaginação para descrevê-los. Como é possível Caminha afirmar que os índios são inocentes? Em base em que contato ele consegue fazer essa afirmação? Não estaria ele imaginando coisas a partir da cultura que ele já possui? Essa imagem dos autóctones está no mesmo grau de descrição da natureza, como se pode comprovar a seguir. Exemplo 2, a natureza: Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de me- tal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA, 1963, p. 8-9). Note que a informação dada por Caminha é de que não viram se há ouro em terra, o que demonstra claramente o que os portugueses vieram buscar aqui. De acordo com Luiz Roncari: Os portugueses procuravam ouro, prata, terras férteis, que estavam se tornando escassas na Europa, drogas, especiarias, madeiras, produtos tropicais e tudo o mais que trouxesse lucro para o seu comércio. É a partir desse prisma que en- xergam também os homens da terra, como seres passíveis de serem usados na extração desses produtos (RONCARI, 2002, p. 47). O próximo passo de Caminha é alardear a qualidade das terras, dos ares e das águas. O ex- cesso de entusiasmo se justifica devido ao fato de que quanto melhores as qualidades da terra achada mais fácil para a manutenção da empresa das grandes navegações, empresa arriscada da qual se precisava obter muito lucro. O exagero fica claro quando o escrivão afirma que nessas terras a abundância de águas indicaria um bom lugar paraplantação. Note que o Brasil continua com a fama de paraíso terrestre conforme era o desejo no imaginário coletivo europeu do século XVI. Dessa forma, Caminha projeta e colabora para a criação da imagem do Brasil no exterior. O Brasil continua a atrair o olhar estrangeiro da mesma forma como fascinou o olhar de Caminha. Das relações entre os indígenas e os portugueses, o escrivão nos dá uma mostra do choque cul- tural e da dificuldade de comunicação entre eles. Exemplo 3, nova descrição dos autóctones: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar apren- derem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe qui- serem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim! (CAMINHA, 1963, p. 7). 16 UAB/Unimontes - 5º Período É preciso notar como a dificuldade de comunicação entre aqueles que aqui chegam e aque- les que aqui estavam produz uma leitura por parte daquele que domina a escrita formal e o leva a querer aproximar os autóctones do modo de vida português. Como parâmetro, os portugueses têm seu modo de vida e não acatam o modo de viver dos indígenas. Desse modo, a tentativa de Caminha está em fazer com que o rei salve os índios e Deus, o deus cristão, seria o responsável pelo encontro com esses homens. Para Roncari, a inocência dos índios, apontada por Caminha equivale à comparação destes com crianças: Pela concepção da época sobre a educação, a inocência os equipara às crianças, como páginas em branco [...] junto com a cristianização, os portugueses não perdem tempo em aproveitar-se do indígena como mão-de-obra fácil de ser utilizada no escambo ou como serviçais [...] Um propósito como esse significava que, na relação entre as duas formas de organização social, uma deveria pere- cer, à medida que acabasse subordinando-se à outra [...] os indígenas seriam in- tegrados à ordem portuguesa como humildes serviçais, escravos [...] (RONCARI, 2002, p. 47). Desse modo foi narrado e descrito o primeiro encontro. Depois da invasão, ainda tímida por parte da esquadra de Cabral, o Brasil só viria a ser tratado como colônia em 1530. Aí sim começa a verdadeira exploração do solo e do povo narrado e descrito por outros cronistas. Pêro Maga- lhães de Gândavo é um deles e você verá a seguir um trecho do seu Tratado da terra do Brasil. 1.3.2. Tratado da Terra do Brasil, de Pero Magalhães de Gândavo Pero Magalhães de Gândavo viveu no Brasil entre 1565 e 1570. Seu livro faz parte da estra- tégia do Rei Português de atrair os colonos para as terras brasileiras. Ele descreve as belezas na- turais da região que conhece e dos costumes dos índios que avista aqui. É preciso salientar que Gândavo não vive entre os índios, mas tem deles uma impressão passada por outros viajantes que aqui estiveram e experimentaram alguns dos costumes dos autóctones. De acordo com Luiz Roncari; [...] além de registrar fatos de interesse tanto para a história política e social quan- to para a história natural, falando “Da condição e costumes dos índios da terra”, Gândavo fixou com muita precisão e detalhe como os portugueses viram e jul- garam a vida estranha desses homens estranhos que encontraram nas terras do Brasil. Não devemos perder de vista que a vida dos indígenas contrariava em tudo os valores que ordenavam a vida dos cristãos europeus, que observavam tudo aqui com estranheza (RONCARI, 2002, p. 51). Os trechos que serão apresentados aqui dizem respeito aos rituais antropofágicos realizados pelos índios descritos por Gândavo. Neles é possível notar como o europeu via as relações dos indígenas entre si. Percebiam nessas relações a violência dos indígenas. Exemplo 1, o modo de vida dos autóctones: Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que se- meou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo ser- tão adentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não pode- riam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente (GAN- DAVO, 1980, p. 14). Depois de afirmar da dificuldade que esses povos têm em se relacionar com os estrangeiros e entre si, Gândavo entra em questões como a organização dos indígenas que, como Caminha havia apontado, seria um sistema (des)organizado. Assim, segundo Gândavo, os índios não pare- cem ter chefes, mas “um principal” como também não possuem em sua língua algumas palavras: “não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e dessa maneira vivem sem justiça e desordenadamente (GANDAVO, 1980, p. 14). Se- gue-se a descrição do ritual antropofágico. Exemplo 2, o ritual antropofágico: 17 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo BOX 2 Ritual antropofágico Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não ma- tam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou sejam os portugueses ou quaisquer outros índios seus inimigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda mui grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais formosa e honrada que há na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado de o guardar, e não vai para parte que não o acompanhe. Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, determinam de o matar; e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e fazem-nos da raiz duma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida mastigam-na umas moças virgens espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes cantares e folias tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no pela cinta com quatro cordas cada uma para sua parte e três, quatro índios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio dum terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bolir para uma parte nem para outra, as mãos deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada dum pau mui duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao pade- cente dizendo-lhe muitas cousas e ameaçando-lhe sua geração que o mesmo há de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com hum cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito de pressa com ele a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele cousa que não comam. Isto é mais por vingança e por ódio que por se fartarem. Depois que comem a carne destes contrários ficamos ódios confirmados e sen- tem muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra os outros. E se a moça que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança, que pare depois de criada, matam-na e comem-na e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro por isso es- timam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz com que morra. E acontece algumas vezes afeiçoar-se tanto a este cativo e tomar-lhe tanto amor que foge com ele para sua terra para o livrar da morte. E assim alguns portugueses há que desta maneira escaparam e estão hoje em dia vivos; e muitos índios que do mesmo modo se salva- ram, ainda que são alguns tão brutos que não querem fugir depois de os terem presos; por- que houve algum que estava já no terreno atado para padecer e davam-lhe a vida e não quis senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não teriam por valente, e que todos cor- reriam com ele; e daqui vem não estimarem a morte; e quando chega aquela hora não a te- rem em conta nem mostrarem nenhuma tristeza naquele passo. Fonte: (GANDAVO, 1980, p. 15-16). ◄ Figura 4: O ritual antropofágico pintado por Theodore de Bry e publicado em 1592 Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br/imgres?imgurl=http://2. bp.blogspot.com>. Acesso em 12 set. 2010. 18 UAB/Unimontes - 5º Período É realmente de se espantar o raciocínio dos portugueses ao se depararem com tamanho su- cesso! Acredito que até você esteja perplexo! Vivendo em uma cultura cristã que afirma que a vida humana seja a mais importante, acostumados a comer apenas carnes de animais ditos irra- cionais, esses homens jamais poderiam entender a ordem que os índios possuíam. Desde o fato do aprisionamento do guerreiro, passando pela relação deste com a índia que lhe serve de guar- da e amante até o modo como é morto, tudo é novidade para os portugueses. Por isso tamanho espanto. Quando se fala ainda o modo como se come a carne do sujeito, então tudo fica muito mais complicado. Os europeus já haviam abolido o canibalismo há muito tempo e se deparam com esse tipo de prática em solo brasileiro. Isso torna os autóctones ainda mais estranhos aos olhos do português. Ele não sabe o que fazer com tanta violência. Mais uma vez fica claro o choque cultural existente entre os dois povos que se (des)encon- tram nas terras brasileiras. Não se percebe como os indígenas davam importância a esses rituais e o quanto isso os estimulava, pois comer a carne de outro guerreiro os fazia, em suas crenças, mais fortes. Pesquisas posteriores iriam demonstrar a força do canibalismo para os rituais simbóli- cos dos indígenas. Ao não compreender os povos conquistados, os europeus não deram conta de conviver e isso trouxe o que toda conquista traz: os mais fracos ou se submetem, ou desaparecem. Notem como esses textos representam esse imaginário que aqui se constrói sobre a terra e sua natureza selvagem e exuberante e sobre a constituição do povo da terra. Assim, espero que vocês tenham achado válido ler esses textos e procurem ler os mesmos na íntegra para aprender mais sobre o Brasil. A literatura que apresenta fatos estéticos também está trazendo em si o seu contexto de produção e refletindo sobre ele. Outro tipo de literatura também foi produzido por aqui, a literatura dos padres jesuítas que tinham como função educar os povos aqui encontrados, é o que vocês verão no próximo tópico. 1.3.3 Literatura Jesuítica Dá-se o nome de Literatura Jesuítica aos textos produzidos no Brasil pelos padres da Com- panhia de Jesus que para cá vieram a fim de catequizar os índios, conforme Caminha, para “amansá-los e apaziguá-los”. A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola em 1534. Os jesuítas chegaram ao Brasil, em 1549, na cidade da Bahia. Os principais escritores jesuítas no Brasil são José de Anchieta, que chega em 1553, e Antônio Vieira, que você verá na próxima uni- dade, pois se trata de um escritor exemplar do Barroco, que chega em 1614 e ingressa na Com- panhia de Jesus em 1623. Há vários outros padres escritores, mas nosso tempo é curto para ver e analisar suas obras, como os padres Manuel da Nóbrega, André João Antonil, entre outros. An- chieta e Vieira são padres que não se atêm ao papel de missionários, mas deixam inúmeros docu- mentos, dentre cartas, sermões, poesias, tratados e autos. 1.3.3.1 José de Anchieta diCA Assista ao filme “Hans Staden”, de Luís Alberto Pereira, produzido em 1999, baseado nas me- mórias de Hans Staden - Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil- Nesse filme, você verá a encenação do ritual antropofágico. Aprofunde os estu- dos lendo também o texto completo de Pero Magalhães de Gândavo que pode ser acessado no seguinte endereço eletrônico: <http:// www.cce.ufsc.br/~nu- pill/literatura/ganda1. html>. diCA Assista ao filme “A missão”, dirigido por Roland Joffe, em 1986. Embora o filme trate das missões no Paraguai, ele ajuda a entender o processo utilizado pelos jesuítas para a conver- são dos autóctones. Figura 5: Anchieta prega aos índios brasileiros Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br/imgres?imgurl=http://3. bp.blogspot.com>. Acesso em 13 set. 2010. ► 19 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo A poesia de José de Anchieta é carregada de sua missão nas terras brasileiras. Escrita prati- camente para ser recitada nas comemorações religiosas na colônia trata das relações do crente com os dogmas religiosos, ensinando aos índios como lidar com a hóstia, com os milagres dos santos e mártires da igreja católica. De acordo com Eduardo Portella, Anchieta é o primeiro poeta do nosso quinhentismo, sendo o iniciador de nossa poesia (PORTELLA, 1982, p. 5). Dono de uma poesia simples, no sentido mesmo de que seus poemas são fáceis de serem entendidos, pois seus textos são meramente catequizadores. Para Nelson Werneck Sodré, não é simples aceitar o papel de Anchieta como o precursor da poesia brasileira. Segundo ele: Aceitar, sem mais discussão, como literatura, e como literatura brasileira, aque- las produções de autoria incerta, a maior parte das quais constituíam simples paráfrases que se destinavam a complementar e facilitar a conversão do gentio e que, por isso, se adaptavam a muito do que eles conheciam e entendiam, pa- rece subordinação a um critério elástico demais e vazio de exigências (SODRE, 1964, p. 82). Colocando de lado essa questão, o importante, como já dissemos, é considerar a importân- cia da literatura de Anchieta na formação inicial da literatura e cultura brasileiras. Na lírica de Anchieta, as principais características são a simplicidade e o primitivismo. Ao uti- lizar formas tradicionais de versificação. Anchieta evidencia a influência que sofreu da tradição medieval para compor seus escritos, em forma de hinos, cantigas e vilancetes, ao invés de odes, elegias, epigramas ou sonetos, gêneros próprios do Renascimento. E tudo deve ser mesmo tradi- cional, pois sua lírica tem por objetivo a popularização das artes (intuito mesmo da Idade Média, principalmente o teatro), para levar o Catolicismo ao povo. No Brasil, em pleno século XVI, era necessário ser simples, primitivo e popular se se quisesse alcançar os objetivos da catequese. A poesia lírica de Anchieta conduz a missão de catequizar utilizando-se de diversos recursos de linguagem, para não se ater apenas ao caráter abstrato das ideias religiosas, mas também ao aspecto ritual, de espetáculo, de performance, componentes necessários para garantir um efeito que impressionasse as mentes “simples” dos povos indígenas. Dois dos grandes temas da lírica de Anchieta são o tempo e a morte, tratados pelo poeta de forma a dar forma e corpoà ideia, mostrando suas várias formas de manifestação, seus sig- nificados e, no caso da morte exclusivamente, suas causas e os modos de se evitá-la, uma vez que, apesar de estar presente no dia a dia de todos os seres humanos, a ideia de que o tempo consome tudo era abstrata demais para gente simples como os indígenas, acreditavam. Assim, situava-se o tema da morte no campo semântico da guerra, experiência bastante conhecida pe- los silvícolas. As ameaças e os obstáculos do mundo também são uma constante na poesia lírica de An- chieta. Mas, apesar de transmitir a visão de um mundo repleto de perigos e de tentações na vida do cristão - embora não seja ainda o pessimismo radical do Barroco -, o poeta acredita que há uma salvação: a obediência às leis de Deus. Na poesia lírica de Anchieta, o sentimento religioso principal é a obediência, pois o cristão deve aceitar e cumprir os preceitos divinos disseminados pela Igreja. Um bom exemplo de todas essas questões reunidas num único texto é o poema intitulado “Compaixão da Virgem na morte do filho”, em que a fé e a resignação da Virgem Maria, mesmo diante da dor e do suplício pela morte de Jesus, são utilizadas como forma de manter acesa e crescente a fé do cristão, apesar de todas as intempéries da existência humana, pois o Senhor sempre estará pronto para nos amparar. Vejamos a íntegra do poema: BOX 3 Compaixão da virgem na morte do filho Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas, e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas? Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto, que a morte tão cruel do filho chora tanto? O seio que de dor amargado esmorece, ao ver, ali presente, as chagas que padece? Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus, ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux. 20 UAB/Unimontes - 5º Período Olha como, prostrado ante a face do Pai, todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai. Olha como a ladrão essas bárbaras hordas pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas. Olha, perante Anás, como duro soldado o esbofeteia mau, com punho bem cerrado. Vê como, ante Caifás, em humildes meneios, aguenta opróbrios mil, punhos, escarros feios. Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira do que duro lhe arranca a barba e cabeleira. Olha com que azorrague o carrasco sombrio retalha do Senhor a meiga carne a frio. Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho, e o sangue puro risca a face toda arminho. Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso, mal susterá ao ombro o desumano peso? Vê como a dextra má finca em lenho de escravo as inocentes mãos com aguçado cravo. Olha como na cruz finca a mão do algoz cego os inocentes pés com aguçado prego. Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo, e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo! Vê como larga chaga abre o peito, e deságua misturado com sangue um rio todo d’água. Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama para si quanto vês sofrer ao filho que ama. Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito, tanto suporta a mãe no compassivo peito. Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina cheio de compaixão, procura a mãe divina. Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada a passagem: assim, tornou-se clara a estrada. Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas, ela o solo regou com lágrimas tremendas. Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega, se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega. Mas se essa imensa dor tal consolo invalida, porque a morte matou a vida à sua vida, ao menos chorarás todo o teu latrocínio, que foi toda a razão do horrível assassínio. Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte? que terra te acolheu a prantear tal morte? Ouvirá teu gemido e lamento a colina, em que de ossos mortais a terra podre mina? Sofres acaso tu junto à planta do odor, em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor? Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira, pagando o mau prazer de nossa mãe primeira! Sob a planta vedada, ela fez-se corruta: colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta. Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida, à própria boa mãe dá para sempre a vida, e a seus filhos de amor que morreram na rega do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega. Mas findou tua vida, essa doce vivência do amante coração: caiu-te a resistência! O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas, ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas. 21 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis: era uma só e a mesma a vida de vós dois! Pois se teu coração o conserva, e jamais deixou de se hospedar dentro de teus umbrais, para ferido assim crua morte o tragar, com lança foi mister teu coração rasgar. Rompeu-te o coração seu terrível flagelo, e o espinho ensanguentou teu coração tão belo. Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos, quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos. Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida? e não foste arrastada em morte parecida? E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos, se sempre uma alma só reteve os dois unidos? Não puderas, confesso, aguentar mal tamanho, se não te sustentasse amor assim estranho; se não te erguesse o filho em seu válido busto, deixando-te mais dor ao coração robusto. Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira: já te envolve no mar uma onda derradeira. Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço: eis que a lança a vibrar voa no leve espaço. Rasga o sagrado peito a teu filho já morto, fincando-se a tremer no coração absorto. Faltava a tanta dor esta síntese finda, faltava ao teu penar tal complemento ainda! Faltava ao teu suplício esta última chaga! tão grave dor e pena achou ainda vaga! Com o filho na cruz tu querias bem mais: que pregassem teus pés, teus punhos virginais. Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro e deu-te a rija lança ao coração inteiro. Podes mãe, descansar; já tens quanto querias: Varam-te o coração todas as agonias. Este golpe encontrou o seu corpo desfeito: só tu colhes o golpe em compassivo peito. Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança, o amor de nosso amor, que amou sem temperança! Ó rio, que confluis das nascentes do Edém, todo se embebe o chão das águas que retém! Ó caminho real, áurea porta da altura! Torre de fortaleza, abrigo da alma pura! Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga! Jóia com que no céu o pobre um trono paga! Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos e casta rola nutre os tenros filhotinhos! Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor, cravas os peitos bons de divinal amor! Ó ferida a ferir corações de imprevisto, abres estrada larga ao coração de Cristo! Prova do estranho amor, que nos força à unidade! Porto a que se recolhe a barca em tempestade! Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta: mas tu a todo o mal és medicina pronta! Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga: por ti, depõe do peito a dura sobrecarga! Por ti, o pecador, firme em sua esperança, sem temor, chega ao lar da bem-aventurança! Ó morada de paz! sempre viva cisterna 22 UAB/Unimontes - 5º Período da torrente que jorra até a vida eterna! Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito: quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito. Que nesse peito aberto eu me possa meter, possa no coração de meu Senhor viver! Por aí entrarei ao amor descoberto, terei aí descanso, aí meu pouso certo! No sangue que jorrou lavarei meus delitos, e manchas delirei em seus caudais benditos! Se neste teto e lar decorrer minha sorte, me será doce a vida, e será doce a morte!: Fonte: Disponível em <http://www.soliteratura.com.br/biblioteca_virtual/biblioteca03.php>. Acesso em 13 set. 2010. Da mesma maneira, o teatro de Anchieta, na forma dos “autos”, é composto por peças de ocasião, escritas para festas e celebrações religiosas, atendendo, assim, aos anseios da catequese. O público dos autos era constituído de soldados, indígenas, colonos,comerciantes e marinheiros, que eram os habitantes, fixos ou temporários, das aldeias criadas, a grande maioria, por Mem de Sá. Por isso, por se dirigirem a um público heterogêneo, na maioria das vezes, essas peças eram encenadas em mais de uma língua. Alguns autos eram representados apenas em tupi, dedicados especialmente aos indígenas, que eram o alvo principal dos catequistas. Como veremos a seguir, os autos eram repletos de dança, canto e instrumentos musicais, transformando as apresenta- ções de Anchieta num catecismo em forma de imagem. Assim, a moral católica e os dogmas da Igreja iam sendo transmitidos aos povos nativos. É importante lembrar que esses autos também eram influenciados pela cultura da Idade Média, através de nomes como Gil Vicente. Faremos a análise de um dos autos de Anchieta, devido ao fato de estes apresentarem mais qualidades estéticas nos seus escritos. Escolhemos aqui o Auto de São Lourenço. Os autos de An- chieta são produzidos com o intuito de catequizar os índios, demonstrando a estes qual o cami- nho a ser seguido para que se tenha uma vida exemplar como Cristo ensinou. Esses autos eram escritos em três línguas ao mesmo tempo: Castelhano, Português e a língua mais falada na costa do Brasil, como Anchieta irá tratar a língua dos indígenas, ao juntar todos os dialetos e línguas faladas aqui na denominação de Tupi-Guarani. Para Leodegário Azevedo Filho, Anchieta se apro- veita do gosto dos autóctones pela festa, pela dança e as utiliza em seus autos. Segundo o autor: Sabido é, com efeito, que o índio brasileiro manifestava, como qualquer povo primitivo, acentuado gosto pelas representações, pela dança e pelo canto acom- panhados de instrumentos rudimentares. Habilmente, pois, Anchieta explorou essas tendências naturais do habitante da terra, incutindo nele, através de pe- quenos jogos dramáticos, não apenas a moral católica, mas o respeito aos princi- pais dogmas da Igreja (AZEVEDO FILHO, 1967, p. 19). A leitura do crítico procede, mas não esclarece o quanto essas danças e músicas são toma- das de forma simplificada para valorização da cultura portuguesa e cristã. Isso traz uma desca- racterização da cultura autóctone que muito contribuiu para sua desaparição. O Auto de São Lourenço foi representado em 1583, no terreiro da Capela de São Lourenço, em Niterói, e tem o seguinte tema: BOX 4 Tema Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaixará chama Aimbirê e Saravaia para aju- darem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, São Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimbirê se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus, e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em São Lourenço. Faz-se o enter- ro do santo. Meninos índios dançam Fonte: (ANCHIETA, 1967, p. 57). 23 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo Nesse auto, Anchieta trata de São Lourenço, que sofreu o martírio durante a perseguição de Valeriano, no ano de 258, foi amarrado sobre uma grelha, assado vivo e lentamente. Os demô- nios possuem os nomes de Aimbirê e Guaixará, nomes de chefes indígenas que tentaram invadir o povoado de Niterói. Desse modo, os demônios são a encarnação de tudo aquilo que não é per- mitido se fazer como beber o cauim, festejar e dançar em dias santos, andar nus, manter relações sexuais fora do casamento, comer carne humana. Assim, Anchieta colabora para a educação dos indígenas dentro das projeções já colocadas por Caminha e Gândavo. Leia o trecho abaixo do Auto de São Lourenço: BOX 5 SÃO LOURenÇO Mas existe a confissão, bom remédio para a cura. Na comunhão se depura da mais funda perdição a alma que o bem procura. Se depois de arrependidos os índios vão confessar dizendo: “Quero trilhar o caminho dos remidos”. - o padre os vai abençoar. Fonte: Disponível em <http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00069.pdf>. Acesso em 13 set. 2010. Das primeiras questões apontadas por Anchieta em seu Auto é a relação dos índios com os dogmas religiosos. Assim, os indígenas são apresentados aos rituais da Igreja Católica. Em um primeiro momento, a necessidade da confissão para a remissão dos pecados. Após essa, a comunhão que substitui o ritual do canibalismo de maneira simbólica, pois se recebe a hóstia, representante do corpo de Cristo. Esta purifica a todos e traz a ligação do homem com o divi- no. Depois de proceder a esse ato, os índios estariam salvos e trilhariam o bom caminho. Ou- tros pontos da cultura autóctone serão abordados e desqualificados no mesmo auto, veja-se o caso da antropofagia: BOX 6 AiMBiRÊ Vou morder seu coração. SARAVAiA E os que não nos acompanham sua parte comerão. (Chama quatro companheiros para que os ajudem.) Tataurana, traze a tua muçurana. Urubu, jaguaruçu, traz a ingapema. Sús Caborê, vê se te inflama pra comer estes perus. (Acodem todos os quatro com suas armas) TATAURAnA Aqui estou com a muçurana e os braços lhe comerei; A Jaguaraçu darei o lombo, a Urubu o crânio, e as pernas a Caborê GLOSSáRiO Cauim: bebida alcoólica tradicional dos povos indígenas do Brasil desde tempos pré-co- lombianos. [...] A prepa- ração de Cauym (como outras tarefas de arte culinária) é um trabalho estritamente feminino, sem envolvimento dos homens. Pedaços finos de mandioca são fer- vidos até ficarem bem cozidos e se deixa es- friar. Então, as mulheres e meninas se reúnem ao redor da panela; levam uma porção até a boca, mastigam bem, ensali- vam e botam a porção em um segundo pote. Enzimas na saliva con- vertem essa pasta em açúcares fermentáveis. A pasta de raiz mastiga- da é reposta no fogo e é mexida completamente com uma colher de pau até cozinhar. Por fim, a pasta é colocada em grandes potes de barro, para fermentar. [...] A bebida resultante é opaca e densa como sedimentos de vinho e tem gosto de leite aze- do. Há variedades claras e escuras de Cauim, e a bebida pode ser mistu- rada com várias frutas. Fonte: Disponível em <http://pt.wikipedia. org/wiki/Cauim>. Aces- so em 13 set. 2010. 24 UAB/Unimontes - 5º Período URUBU Aqui cheguei! As tripas recolherei, e com os bofes terei a panela a derramar. E esta panela verei minha sogra cozinhar. JAGUARUÇU Com esta ingapema dura as cabeças quebrarei, e os miolos comerei. Sou guará, onça, criatura, e antropófago serei. Fonte: (ANCHIETA, 1967, p. 98-99) Nessas falas dos diabos, todos batizados com nomes indígenas, todo o ritual apresentado por Gândavo, aparece para desqualificar os rituais dos autóctones. Os diabos são mostrados em toda sua maldade impingindo a todos seus gostos. A violência é encenada através da partição do corpo a ser devorado e à comparação dos índios/diabos com os animais mais temidos, como a onça e o lobo. Por fim, os índios/diabos utilizam a palavra antropófago para se vangloriarem de seus “malfeitos” na visão do branco europeu. Essa relação de desqualificação é muito comum nas representações produzidas por Anchieta em seus textos, pois, pedagogicamente, utilizar-se da cultura do subalterno para imprimir nela a cultura dominante, elencando só os seus defeitos, funciona perfeitamente. No quinto ato, Anchieta apresenta a vitória de Deus sobre os diabos, tendo São Lourenço vencido a todos trazendo a tranquilidade ao povoado, conforme se pode ver a seguir: BOX 7 Quinto ato Dança de doze meninos, que se fez na procissão de São Lourenço. 1º) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando. Por teus rogos desejando Deus nos faça venturosos nosso coração guardando. 2º) Nós confiamos em ti Lourenço santificado, que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos vícios jádesligados nos pajés não crendo mais, em suas danças rituais, nem seus mágicos cuidados. 3º) Como tu, que a confiança em Deus tão bem resguardaste, que o dom de Jesus nos baste, pai da suprema esperança. Fonte: (ANCHIETA, 1967, p. 127) Ao final, com a presença das crianças indígenas, o autor apresenta a esperança de uma nova forma, modo de olhar e viver a religiosidade cristã no Brasil, pois os indiozinhos cantam alegre- mente a felicidade de serem catequizados e salvos pelos ensinamentos dos jesuítas. Essa entro- nização dos índios na cultura cristã e católica se encaminha, embora sua estrutura aparente não deixe transparecer, para a falta de respeito e para a destruição da cultura indígena. 25 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo Nesse “Auto de São Lourenço”, os imperadores romanos Décio e Valeriano acabam por arder nas chamas eternas do inferno. Da mesma forma, os deuses mitológicos, elogiados pela cultu- ra clássica, são achincalhados e comparados a demônios. Vejamos os versos que se encontram sob o subtítulo “TEMOR DE DEUS”, que também apresentam, assim como a lírica de Anchieta, as questões do caminho da salvação e da obediência: BOX 8 Temor de deus Pecador, sorves com grande sabor o pecado, e não ficas afogado com teus males! E tuas chagas mortais não sentes, desventurado! O inferno como seu fogo sempiterno, Já te espera, se não segues a bandeira da cruz, sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra. Deus te envia esta mensagem com amor, a mim que sou seu Temor me convém declarar o que contém para que temas ao Senhor. (...) Espantado estou de ver, pecador, teu vão sossego. Com tais males a fazer, como vives sem temer, aquele espantoso fogo? Fogo que nunca descansa, mas sempre provoca a dor, e com seu bravo furor dissipa toda a esperança ao maldito pecador. Pecador, como te entregas tão sem freio ao vício extremo? Dos vícios de que estás cheios engolindo tão às cegas a culpa, com seu veneno. Veneno de maldição tragas sem nenhum temor, e sem sentir sua dor, deleites da carnação sorves com grande sabor. Será o sabor do pecado muito mais doce que o mel, mas o inferno cruel depois te dará um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberás sem medida, pecador desatinado, tua alma em chamas ardida. Esta será a saída 26 UAB/Unimontes - 5º Período do deleite do pecado. Do pecado que tu amas Lourenço tanto escapou que mil penas suportou, e queimado pelas chamas, por não pecar, expirou. Ele a morte não temeu. Tu não temes o pecado no qual et tem enforcado Lucifer, que te afogou, e não ficas afogado. Afogado pela mão do Diabo pereceu Décio com Valeriano, infiel, cruel tirano, no fogo que mereceu. Tua fé merece a vida, mas com pecados mortais quase a tiveste perdida, e teu Deus, bem sem medida, ofendeste, com teus males. Com teus males e pecados, tua alma de Deus alheia, da danação na cadeia há de pagar com os danados a culpa que a incendeia. Pena sem fim te darão dentre os fogos infernais teus deleites sensuais. Teus tormentos dobrarão, e tuas chagas mortais . Que mortais são tuas feridas pecador. Porque não choras? Não vês que nestas demoras, estão todas corrompidas, a cada dia pioras? Pioras e te confinas, mas teu perigoso estado, na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas, não sentes, desventurado? Oh, descuido intolerável de tua vida! Tua alma está confundida no lodo, e tu vais rindo de tudo, não sentes tua caída! Oh, traidor! Que negas teu Criador, Deus eterno, que se fez menino terno por salvar-te. E tu queres condenar-te e não temes ao inferno! Ah, insensível! Não calculas o terrível espanto, que causará o juiz, quando virá com carranca muito horrível, e à morte te entregará 27 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo E tua alma será sepultada em pleno inferno, onde morte não terá mas viva se queimará com seu fogo sempiterno! Oh, perdido! Ali serás consumido sem nunca te consumir. Terás vida sem viver, com choro e grande gemido, terás morte sem morrer. Pranto será teu sorrir, sede sem fim te abeberra, fome que em comer se gera, teu sono, nunca dormir, tudo isto já te espera. Oh, morfio! Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer, sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser. Acaba já de temer a Deus, que sempre te espera, correndo por sua esteira, pois não lhes vai pertencer se não lhe segues a bandeira. Homem louco! Se teu coração já toco, mudar-se-ão alegrias em tristezas e agonias. Olha que te falta pouco para fenecer teus dias. Não peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martírio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz. Oh, malvado! Ele foi crucificado, sendo Deus, por te salvar. Pois, que podes esperar, se foste tu o culpado e não cessas de pecar? Tu o ofendes, ele te ama. Cegou-se por dar-te a luz. Tu és mau, pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus. Homem cego, porque não começas logo a chorar por teu pecado? E tomar por advogado a Lourenço que, no fogo, por Jesus morreu queimado? Teme a Deus, juiz tremendo, que em má hora te socorra, em Jesus tão só vivendo, pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra. Fonte: Disponível em <http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00069.pdf>. Acesso em 13 set. 2010. 28 UAB/Unimontes - 5º Período Assim, como afirma Leodegário de Azevedo Filho: “É pré-Barroco o teatro anchietano, não só em seus temas, mas também em sua ideologia, estrutura e intenção. Arte visual, falando aos sentidos, como se pode ver nas vestimentas aparatosas dos personagens [do auto representado na Fes- ta de São Lourenço], nada tendo com o espírito do Renascimento. Na verdade, portanto, a literatura anchietana representa uma espécie de prolongamento da poesia peninsular no mundo americano, mas já com nítida feição brasileira”. (AZEVEDO FILHO, s/d). Referências ANCHIETA, José. Auto de São Lourenço. Rio de Janeiro: Ediouro, 1967. AZEVEDO FILHO, Leodegário. Prefácio. In: ANCHIETA, José. Auto de São Lourenço. Rio de Janei- ro: Ediouro, 1967. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el Rei d. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963. CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações literárias da era colonial. São Paulo: Cultrix, 1969. GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. KOTHE, Flávio R. O cânone colonial. Brasília: UNB, 1997. PORTELLA, Eduardo. José de Anchieta: Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1982. ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Disponível em <http://www.fafich.ufmg.br/ fibra/bib/romero_historia.pdf>. Acesso em 27 jan. 2011. RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira. Dos primeiros cronistas aos últimos românticos. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. SODRE, Nelson Weneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. diCA Assista ao filme “An- chieta José do Brasil”, de Paulo Cezar Saraceni. A obra é a cinebiogra- fia do jesuíta José de Anchieta (1534-1597) interpretado pelo ator Ney Latorraca. Uma produção de época que acompanha desde o nascimento de José de Anchieta, na ilha de Tenerife, passando pela fundação do Colégio de São Paulo, sua convi- vência com o padre Manoel da Nóbrega até sua morte, no Espírito Santo. É destacada tam- bém a sua luta em favor dos índios brasileiros. ATiVidAde Leia a Carta de Ca- minha completa no endereço eletrônico: <http://www.cce.uffc. br/~nupill/literatura/ carta.html> Depois, escreva um parágrafo analisando como se dá a visão de Caminha com relação à natureza en- contrada no Brasil pelos portugueses. Poste as observações no fórum de discussão. Leia também o “Auto de São Lourenço”, de José de Anchieta. Fonte: Disponívelem <http://virtualbooks. terra.com.br/freebook/ port/download/Auto_ de_Sao_Lourenco.pdf> ou em <http://www. dominiopublico.gov. br/download/texto/ bv000145.pdf>. Figura 6: Cartaz do filme Anchieta José do Brasil (1977), de Paulo Cezar Saraceni Fonte: Disponível em <http://www.interfilmes. com/filme_18436_anchie- ta.jose.do.brasil.html>. Acesso em 12 set. 2010. ► 29 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo UnidAde 2 Barroco 2.1 Introdução Nesta unidade você irá estudar o Barroco, movimento que grassou no Brasil a partir do sé- culo XVII e vigorou até o século XVIII. Manterá, também, contato com dois dos autores mais importantes desse movimento: Antônio Vieira e Gregório de Matos. Conhecerá a riqueza de suas escritas recheadas de metáforas, paradoxos, antíteses, entre outras figuras de linguagem. 2.2 O Barroco O Barroco foi uma corrente artística que se desenvolveu primeiramente nas artes plásticas (escultura, pintura) e depois se manifestou na literatura, no teatro e na música. O berço do Barro- co é a Itália do século XVII, porém se espalhou por outros países europeus, como, por exemplo, a Holanda, a Bélgica, a França e a Espanha. Na América Latina, o Barroco entrou no século XVII, trazido por artistas que viajavam para a Europa, e permaneceu até o final do século XVIII. O contexto histórico do Barroco se dá após o processo das Reformas Religiosas, ocorrida no século XVI. Apesar de a Igreja Católica ter perdido espaço e poder, os católicos continuavam in- fluenciando de maneira fundamental o cenário político, econômico e religioso na Europa. A arte barroca surge nesse contexto e expressa todo o contraste desse período: a espiritualidade e teo- centrismo da Idade Média contra o racionalismo e antropocentrismo do Renascimento. Enquanto no Renascimento as qualidades mais almejadas eram a economia formal, a mode- ração, a austeridade, o equilíbrio e a harmonia, o tratamento Barroco de temas idênticos mostra- va maior flexibilidade, com contrastes mais fortes, maior dramaticidade, exuberância e realismo e uma tendência ao decorativo. ◄ Figura 7: Teto da Igreja de São Francisco de Assis em Outro Preto. Fonte: Disponível em <www.google.com.br/ imgres?imgurl-http://lh3. ggpht.com>. Acesso em 13 set. 2010. 30 UAB/Unimontes - 5º Período O período final do Barroco (século XVIII) é chamado de “rococó” e possui algumas peculia- ridades, embora as principais características do Barroco estão aí presentes. No rococó, existe a presença de curvas e muitos detalhes decorativos (conchas, flores, folhas, ramos). Os temas rela- cionados à mitologia grega e romana também aparecem com bastante frequência. As obras dos artistas Barrocos europeus valorizam as cores, as sombras e a luz, representan- do os contrates. As imagens não são tão centralizadas quanto as renascentistas, mostrando-se mais dinâmicas, indicando movimento. Os temas principais são mitologia, passagens da Bíblia e a história da humanidade. As cenas retratadas costumam ser sobre a vida da nobreza, o cotidia- no da burguesia e naturezas-mortas. A técnica da perspectiva, por sugerir movimento, foi muito utilizada pelos artistas barrocos europeus. As esculturas barrocas têm rostos marcados pelas emoções, principalmente pelo sofrimen- to. Assim, é fácil nos depararmos com traços que se contorcem, num movimento exagerado, fa- zendo predominarem as curvas, os relevos e a cor dourada. O pintor renascentista italiano Tintoretto é considerado um dos precursores do Barroco na Europa. Podemos citar também como principais artistas importantes do Barroco europeu: o ita- liano Caravaggio, o espanhol Velásquez, os holandeses Rembrandt e Vermeer, os belgas Van Dyck e Frans Hals e o flamengo Rubens. O Barroco brasileiro foi diretamente influenciado pelo Barroco português, porém, foi assu- mindo características próprias. A grande produção artística barroca no Brasil ocorreu nas cidades auríferas de Minas Gerais no chamado “século do ouro” (século XVIII). Essas cidades eram ricas e possuíam uma intensa vida cultura e artística em pleno desenvolvimento. O principal representante do Barroco mineiro foi o escultor e arquiteto Antônio Francisco de Lisboa, também conhecido como Aleijadinho. Suas obras, de forte caráter religioso, eram feitas em madeira e pedra-sabão, os principais materiais usados pelos artistas barrocos do Brasil. Algu- mas das principais obras de Aleijadinho são “Os Doze Profetas” e “Os Passos da Paixão”, na Igreja de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas (MG). Outros artistas importantes do Barroco brasileiro foram o pintor mineiro Manuel da Costa Ataí- de e o escultor carioca Mestre Valentim. No estado da Bahia, o Barroco destacou-se na decoração das igrejas em Salvador, como, por exemplo, de São Francisco de Assis e a da Ordem Terceira de São Francisco. Vemos o mesmo movimento na decoração das igrejas de Ouro Preto, em Minas Gerais. Dessa forma, o Barroco brasileiro é reflexo do seu tempo: o conflito entre o passado euro- peu e o futuro de uma colônia recém-encontrada. Para cá vêm os homens que tentam trazer sua cultura e com ela a religião dos jesuítas que impregnam a vida das pessoas e ditam as normas de conduta. Essa produção vai da arquitetura dos templos aos textos, fazendo um paralelo entre to- dos os tipos de arte. As voltas, o excesso, o jogo de luz e sombra, as ambiguidades são igualmen- te utilizadas pelos poetas, músicos, arquitetos, escultores e pintores. 2.3 Literatura Barroca A literatura barroca se caracteriza pelo uso da linguagem dramática expressa no exagero de figuras de linguagem, de hipérboles, metáforicos, ana- colutos, antíteses, paradoxos e sinestesia. Nas obras de Gregório de Matos e Antônio Vieira essa estética se faz mais que presente, pois eles, melhor que ninguém, souberam representar os excessos barro- cos. Em seus textos desfilam as mais diversas caracterís- ticas dignas do que se possa chamar de Barroco. 2.3.1 Antônio Vieira O Padre Antonio Vieira, embora tenha nascido em Portugal, veio para a Bahia aos 6 anos de idade. Princi- piou sua carreira de pregador em 1633 e foi para Por- tugal em 1640. Lutou em defesa dos índios no Mara- nhão e pregou contra a invasão holandesa. GLOSSáRiO Voluta: forma em espiral muito comum no reino animal, que lembra um caramujo. Há séculos vem sendo utilizada em exemplos aplicados na geometria, além de servir como objeto de adorno, no arremate de capitéis de colunas, modilhões, mísulas e outros. É tam- bém um dos símbolos da arquitetura dos períodos Maneirista e Barroco Jogo de Luz e sombra: O chiaroscuro (palavra italiana para “luz e som- bra” ou, mais literal- mente, "claro-escuro") é uma das estratégias inovadoras da pintura de Leonardo da Vinci, pintor renascentista do século XV, junto ao sfumato. O chiaroscuro se define pelo contraste entre luz e sombra na representação de um objeto. Fonte: Disponível em <http://pt.wikipedia. org/wiki>. Acesso em 13 set. 2010. diCA O Barroco brasileiro tem como marco inicial o poema épico Prosopo- péia, de Bento Teixeira, publicado em 1601. Figura 8: Retrato estilizado do padre Antônio Vieira Fonte: Disponível em <http://www.google.com. br/imgres?imgurl=http://2. bp.blogspot.com>. Acesso em 13 set. 2010. ► 31 Letras Português - Literatura Brasileira: das Origens ao Arcadismo De acordo com Eugênio Gomes: O sermonário político de Vieira é, por consequência, o que primeiro se impõe a um estudo mais profundo de sua obra, não tanto pelo lado pragmático de suas idéias, como por causa da conversão dessas idéias em argumento teológico, mediante engenhoso processo de acomodação analógica entre um ou mais episódios do Velho ou do Novo Testamento e determinado acontecimentohistórico, que o pre- gador tomava a si explicar ou interpretar por esse meio (GOMES, 1968, p. 7). Desse modo, pode-se notar que o Padre Vieira foi um grande sermonista que utilizava da sua função para educar os povos aos quais pregava. Nesses sermões, Vieira fazia uso de todos os artifícios barrocos possíveis, como a metáfora, a alegoria, a hipérbole, os hipérbatos, em longos períodos argumentativos que, à primeira vista, parecem incompreensíveis, mas basta um pouco mais de cuidado na leitura para entender a clareza da proposta do autor, embasada em antíteses e paradoxos os mais diversos. Ainda de acordo com Gomes, os melhores sermões de Vieira são os que ele se colocava em combate, defendendo a liberdade do homem (GOMES, 1968, p. 9). Vieira foi um grande defensor da missão cristianizadora e não negou esforços em defender os índios e a fé cristã. Nesta unidade iremos analisar uma parte do “Sermão da sexagésima”, pois, segundo Gomes, esse sermão é um ótimo exemplo para se entender a parenética de Vieira. Há uma diversidade de aspectos “tornan- do-se particularmente indicado para o exame do emprego da metáfora, do respectivo desenvol- vimento em alegorias, além de vários outros recursos oratórios” (GOMES, 1968, p. 10). A seguir, um trecho do “Sermão da sexagésima”: BOX 9 “Sermão da sexagésima” Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou do meio de um sermão, há-de haver três concursos: parte do pregador, ou da parte do ou- vinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um ho- mem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora supos- to que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Fonte: (VIEIRA, 2010). De acordo com José Aderaldo Castello, nos sermões de Vieira, o tema é sempre tomado a partir do presente experimentado pelo padre e seus fiéis. “[...] E o orador o expõe com rigor e energia, interrogando e respondendo, apostrofando e deprecando, censurando e propondo, ao mesmo tempo, que extrai do tema a matéria do sermão” (CASTELLO, 1969, p. 94). Essa forma de organizar o sermão tem a ver com a opção de Vieira pela pedagogia que o próprio gênero utiliza como ponto de partida. O sermão já se organiza como monólogo, embora dirigido a um público maior que um só interlocutor. No entanto, o Padre se coloca como aquele que, tendo o dom da oratória e conhecedor da palavra de Deus, pode esclarecer, iluminar os es- píritos néscios carentes da palavra divina. Daí a força de convencimento que deve ter o pregador, conforme vai dizer o próprio Vieira: Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que GLOSSáRiO Metáfora: substituição de uma expressão por outra que representa a palavra substituída, pro- duzindo, quase sempre, uma comparação. Antítese: aproximação de termos ou frases que se opõem pelo sentido. Hipérbato: alteração ou inversão da ordem direta dos termos na oração, ou das orações no período. Hipérbole: exagero de uma ideia com finalida- de expressiva. Alegoria: expressão que transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal. Embora se apreça com a metáfora, vai além da simples comparação. 32 UAB/Unimontes - 5º Período é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? (VIEIRA, 2010). Note como Vieira se vale de um sistema de enumeração, indicando a existência de três coisas para que o homem se veja a si mesmo. Depois de enumerá-las, ele as descreve, demons- trando suas funções, para dar continuidade a seu raciocínio, comparando-as com a palavra do pregador e dando aos sujeitos envolvidos nas ações de conversão da alma, o pregador, Deus e o homem, suas funções pertinentes. Assim a metáfora dos olhos e do espelho é utilizada como modo de esclarecimento aos ouvintes sobre como age a palavra de Deus e como devem fazer os pregadores. Isso é utilizado por Vieira para explicitar qual é sua ideia do que deva ser um bom sermão, conforme se pode ver a seguir: Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tira- nia? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as pala- vras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit (VIEIRA, 2010). Essa modalidade de texto vai constituir um forte movimento no Brasil do século XVII e XVIII, tempo em que os sujeitos utilizam de seus conhecimentos para poderem exercitar sua oratória, além de ser utilizado como pedagogia sobre os espíritos que necessitam de ser educados para o bom caminho da religião. Vieira compara o pregador ao semeador da parábola contada por Jesus Cristo no Novo Testamento. Como o semeador, o pregador faz sua pregação, espalhando a palavra de Deus e esta cai, como as sementes na terra, nos ouvidos dos homens. Note-se a metá- fora vieiriana produtora de diversas alegorias, pois sua conclusão é de que se a palavra de Deus for bem pregada/semeada pelo pregador ela poderá gerar frutos na terra/ouvido dos homens. O que parece obscuro em Vieira nada mais é do que fruto do estilo próprio do Barroco que se multiplica em hipérboles e hipérbatos para repetir exaustivamente em seu excesso uma ver- dade já preestabelecida pelo pregador, que a palavra de Deus deve ser levada a sério pelos ho- mens e que estes devem temer ao Senhor. Desse modo, a religião católica se espalha através do uso da palavra