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19 Feo-hifomicoses FUNGOS DEMÁCIOS Fungos demácios ou pretos (black moulds) são grupos heterogêneos de fungos que per- tencem à classe Phaeohyphomycetes. Têm coloração naturalmente acastanhada em de- corrência da presença de pigmento melânico em sua parede celular. O pigmento escuro é a di-hidroxinaftalenomelanina, que, além de constituir um elemento fotoprotetor, é con- siderada um fator de virulência do fungo.! Esses fungos podem apresentar o pigmen- to escuro em apenas parte do seu ciclo de vida. São amplamente distribuídos na nature- za e ocasionalmente infectam o homem. São considerados de baixa virulência, e o espectro de micoses que eles causam é influenciado por fatores do hospedeiro. As principais micoses causadas por fun- gos demácios são: eumicetomas por grãos pretos.ê cromoblastomicoses'' e feo-hifomi- coses. Clarisse Zaitz FEO-HIFOMICOSES Introdução O termo feo-hifomicose (do grego phaeo = escuro) abrange amplo espectro de infecções oportunistas, causadas por fungos demácios. Diferentemente dos eumicetomas e das cro- moblastomicoses, não são limitadas à pele e ao tecido subcutâneo. Podem provocar diferentes respostas inflamatórias e envolver qualquer órgão ou sistema. As formas invasivas mais comuns são as pulmonares e cerebrais. Além disso, as reações alérgicas a esses fungos são frequentes, manifestando-se como sinusites e doença pulmonar alérgica.v'' Recentemente, fungemias foram adicionadas ao espectro de doenças causadas por fungos demácios." Ajello e cols., em 1974,7 foram os primei- ros a utilizar a denominação feo-hifomicoses para separar as diversas infecções por fungos demácios da consagrada cromoblastomicose. Justificam essa terminologia pelo crescente 188 aparecimento de novos patógenos demácios que levariam à criação de inúmeras novas micoses. Não se encontram corpúsculos es- cleróticos ou fumagoides em lesões de feo- hifomicoses. Assim, todas as vezes que um fungo demácio se apresentar nos tecidos como células leveduriformes, pseudo-hifas, hifas verdadeiras ou qualquer combinação dessas formas, o diagnóstico correto dessa entidade é feo-hifomicose. Nos eumicetomas causados por fungos de- mácios, encontram-se grãos nos tecidos, não preenchendo, também, os critérios para se- rem incluídos entre as feo-hifomicoses. Vale a pena ressaltar que o mesmo fungo pode ser agente etiológico de micetomas, cro- moblastomicoses ou feo-hifomicoses, depen- dendo de fatores do hospedeiro. McGinnis, em 1983,8 enfatizou que o ter- mo feo-hifomicose não deve ser utilizado para substituir o nome de micoses consagradas, como tinha negra ou piedra preta. Essas de- vem ser consideradas apenas variantes clíni- cas das feo-hifomicoses. Epidemiologia e patogênese A frequência de feo-hifomicoses tem aumen- tado nas últimas décadas. No período entre 1971 e 1980, foram encontradas 15 publica- ções sobre o tema; entre 1981 e 1990, 59 pu- blicações, e entre 1991 e 2000, 150 publica- ções, registrando um aumento de 10 vezes em 30 anos.? Fungos demácios estão amplamente dis- tribuídos e são encontrados no solo e em ma- deiras. Além disso, alguns organismos podem produzir sinanamorfos leveduriformes que se adaptam a ambientes aquosos. Tipicamente, a infecção é adquirida pela inoculação traumática do fungo. Outras por- tas de entrada seriam: inalação de esporos, ingestão de alimentos e/ou água contamina- da, contaminação da pele na inserção de cate- teres vasculares e a contaminação do próprio cateter. O principal fator predisponente para as feo-hifomicoses superficiais, cutâneas e sub- Feo-hifomicoses cutâneas é a exposição do paciente a material contaminado presente no ambiente. Doença invasiva ocorre principalmente em pacientes com algum grau de imunodeficiên- cia envolvendo particularmente a imunidade mediada por células como: cânceres principal- mente hematológicos, transplantes de medu- la e de órgãos sólidos, AIDS, agranulocitose, diabetes, doenças granulomatosas crônicas, pacientes em diálise ou recebendo corticote- rapia. Em alguns casos de infecção disseminada, não se consegue estabelecer a porta de en- trada.'? Etiologia Existem publicações com diversos gêneros incluindo Alternaria, Curvularia, Bipolaris, Exophiala e Wangiella.9 A maioria dos agen- tes é isolada esporadicamente. As espécies mais comuns causadoras de feo-hifomicoses, de acordo com os casos publicados nos últimos anos, são a Bipolaris spicifera e a Exophiala jeanselmei.t Muitas espécies de fungos demá- cios são neurotrópicas e responsáveis por in- fecções primárias do sistema nervoso central. Cladophialophora bantiana é o agente mais comum de feo-hifomicose cerebral-é (48% dos casos). Classificação clínica • Feo-hifomicoses superficiais - derma- tomicoses (tinha negra, piedra preta, oni- comicoses e outras) • Feo-hifomicoses subcutâneas • Feo-hifomicoses alérgicas • Feo-hifomicoses invasivas - doença pul- monar, infecção do sistema nervoso central, infecção ocular, etc. • Feo-hifomicoses sistêmicas - fungemia Abordaremos neste capítulo as feo-hifo- micoses subcutâneas, alérgicas, invasivas e sistêmicas. A variante de feo-hifomicose su- perficial será estudada no capítulo Derma- tomicoses por fungos filamentosos septados demácios. Feo-hifomicoses Feo-hifomicoses subcutâneas Feo-hifomicoses subcutâneas ocorrem princi- palmente em indivíduos que são expostos a material contaminado por fungos demácios, presentes no ambiente. Podem ser imunologi- camente competentes ou não. Manifestações clínicas Na grande maioria das vezes, trata-se de le- são cística, em geral única, assintomática, bem encapsulada e subcutânea. A lesão pode ocorrer em qualquer localização e é devida à implantação traumática do fungo. Menos fre- quentemente, pode aparecer comopápulas ou nódulos (Figs. 19.1 a 19.3). O diagnóstico muitas vezes é feito apenas pelo exame anatomopatológico, pois clinica- Fig. 19.1 Feo-hifomicose subcutânea. Lesão cística. Fig. 19.2 Feo-hifomicose subcutânea. Lesão cística em transplantado renal. 189 mente é confundido com outras lesões císticas ou granulomas de corpo estranho, que são re- tirados sem se proceder ao exame micológico. Diagnóstico laboratorial Exame micológico direto O exame direto pode ser realizado a partir de material coletado por punção do cisto ou esfregaço de material obtido de biópsia. Após clarificação pelo KOH, visualizam-se hifas septadas demácias (Figs. 19.4 a 19.6). Anatomopatológico O encontro de células leveduriformes, pseu- do-hifas ou hifas verdadeiras demácias em le- Fig. 19.3 Feo-hifomicose subcutânea. Lesão cística em pa- ciente corticodependente. Fig. 19.4 Feo-hifomicose subcutânea. Material purulento puncionado do cisto. 190 Fig. 19.5 Feo-hifomicose subcutânea. Exame direto a par- tir de punção de cisto. Hifas septadas hialinas. Fig. 19.6 Feo-hifomicose subcutânea. Exame direto a par- tir de punção de cisto. Hifas septadas hialinas. sões clinicamente suspeitas faz o diagnóstico (Figs. 19.7 e 19.8). Cultura e microcu/tivo A cultura e o microcultivo ou cultivo em lâ- mina permitem a identificação do fungo. O material deve ser semeado em meio de ágar Sabouraud-dextrose acrescido de cloranfeni- col e incubado em temperatura ambiente por 4 semanas. Feo-hifomicoses Fig. 19.7 Feo-hifomicose subcutânea. Lesão cística. Ma- croscopia do cisto após exérese cirúrgica. Fig. 19.8 Feo-hifomicose subcutânea. Exame anatomopa- tológico - presença de hifas septadas demácias em meio ao exsudato. No nosso meio, foi possível o isolamento de Alternaria spp., Curvularia spp. e Phoma ca- va12 (Figs. 19.9 a 19.13). Tratamento O tratamento consiste na exérese cirúrgica da lesão, quando possível. A cirurgia resulta em cura na maioria dos casos." A utilização de antifúngicos de amplo espectro pode ser necessária em lesões não acessíveis cirurgica- Feo-hifomicoses Fig. 19.9 Alternaria spp. - cultura filamentosa demácia. Fig. 19.10 Alternaria spp. - Microcultivo - hifas demácias septadas. Macroconídios escuros, isolados, com septos transversais e longitudinais alternados.Fig. 19.11 Curvularia spp. - cultura filamentosa demácia. 191 Fig. 19.12 Curvularia spp. - Microcultivo - hifas demácias septadas. Conídios escuros, isolados, encurvados, com três a cinco septos. Fig. 19.13 Phoma cava - Microcultivo. Picnídio globo- so acastanhado, liberando picnoconídios curvos ou em gota. mente. A droga de escolha é o itraconazol, nas doses de 200 a 600 mg/dia.? Feo-hifomicoses alérgicas Os fungos demácios podem atuar como preci- pitantes alérgicos e estão associados às sinu- sites alérgicas e à asma.4,5 Bipolaris é o gê- nero mais envolvido com sinusite alérgica, 12 enquanto a inalação de esporos de Alternaria tem sido identificada como fator precipitante de asma.' 192 Feo-hifomicoses invasivas e sistêmicas As feo-hifomicoses invasivas têm aumentado nas últimas décadas. As formas mais comuns são a pulmonar e a cerebral. A infecção pulmonar é, na maioria das ve- zes, subaguda.l- O paciente acometido tem, em geral, alguma forma de imunodepressão. A forma cerebral é grave e tem prognóstico pobre." Infecções do sistema nervoso central causadas por fungos demácios, assim como a doença disseminada, estão associadas a taxas de mortalidade superiores a 70%.14 Apesar de grave, a fungemia e a doença sis- têmica disseminada por fungos demácios são raras." Febre sem fonte detectável de infecção é a apresentação mais frequente. Na série de 23 casos em hospital, febre era o sintoma mais frequente, e apenas 1 paciente desenvolveu sinais clínicos de pneumonia necrotizante." Sempre que possível, a ressecção cirúrgica da lesão é recomendável, em associação com a administração de antifúngico." Além disso, a redução de drogas imunossupressoras, a re- tirada de cateteres e a eliminação de outros possíveis fatores que causam imunossupres- são podem ser úteis. Entre os antifúngicos, o itraconazol é o mais utilizado. A anfotericina B é inferior aos azólicos para os fungos demá- cios.l" No caso das infecções do sistema nervo- so central, a droga de escolha é a anfotericina lipossomal.l'' REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Dixon DM, Polak-Wyss A. The medically im- portant dematiaceous fungi and their identifi- cation. Mycoses 1991; 34:1-18. 2. McGinnis MR. Mycetoma. Dermatol Clin 1996; 14:97-104. 3. EIgart Gw. Chromoblastomycosis. Dermatol Clin 1996; 14:77-83. 4. Fung F, Tappen D, Wood G. Alternaria-asso- ciated asthma. 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