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1 ETNO-GRAVANDO HÁBITOS ALIMENTARES: REFLEXÕES SOBRE ETNOGRAFIA E FILME ETNOGRÁFICO EM PESQUISA COM FAMÍLIAS BENEFICIÁRIAS DO BOLSA FAMÍLIA NA FERCAL-DF 1 . Autor: Tiago de Aragão 2 Co-autora: Denise Oliveira e Silva 3 INTRODUÇÃO Em investigação realizada pelo Programa de Alimentação Nutrição e Cultura (PALIN- FIOCRUZ/BRASÍLIA), que conta com uma equipe formada por antropólogos e nutricionistas, optou-se por juntamente com a realização de um trabalho etnográfico produzir um documentário. A pesquisa tem como objetivo analisar a dinâmica do processo de escolha alimentar de mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família e suas famílias, os seus hábitos alimentares e as relações familiares em torno do alimento e da comensalidade. Ao compreender o trato do alimento enquanto técnica (tendo em vista a percepção de técnicas do corpo de Marcel Mauss, como uma forma pela qual os homens e as mulheres sabem servir-se de seus corpos e aos seus corpos), trago aqui reflexões acerca da utilização do recurso do vídeo associado à pesquisa etnográfica. Tendo em vista que a utilização do audiovisual como processo investigativo constrói uma relação peculiar com os sujeitos da pesquisa e com as próprias maneiras que se investigam as questões, nesse caso, das áreas da antropologia e da nutrição, me interesso aqui pelas peculiaridades e potencialidades que a utilização do registro videográfico pode trazer às questões do campo dos estudos da antropologia da alimentação. 1 Esse trabalho está inserido no Núcleo de Segurança Alimentar e Nutricional do Centro-Oeste (NUSAN – CO) e financiado pela FINEP via convênio Nº04.10.0517.00. 2 é mestre em Antropologia e pesquisador do PALIN-FIOCRUZ. 3 É nutricionista, sanitarista, doutora em Ciências da Saúde, coordenadora do PALIN-FIOCRUZ, coordenadora do Núcleo de Segurança Alimentar e Nutricional do Centro-Oeste e coordenadora e membro da Rede Interinstitucional de Alimentação e Cultura. 2 ENCONTRO DE TÉCNICAS Tendo em vista que a técnica é mais um ato, uma ação, do que relação material, compreender a interação e o domínio dos artefatos é também compreender a interação dialógica que existe entre os objetos/o mundo e os homens e as mulheres. A técnica em si é uma relação. Tanto a produção cinematográfica como o ato de cozinhar são bons campos técnicos para se pensar a técnica como relação, pois o domínio técnico pressupõe uma relação com objetos, pessoas e o ambiente. Nos dois casos, uma série de técnicas são forjadas para se alcançar os objetivos desejados É importante nesse momento evitar o risco de se dar mais ênfase analítica aos objetos, instrumentos e alimentos, atendo-se que sempre em alguma instância o domínio do objetos refere-se a um domínio de corpos e do ambiente. Mauss (2003:417) apontava para essa importância dos corpos, mesmo quando pensada a questão do domínio instrumental, mantendo nestes casos a expressão técnicas dos corpos, possibilitando-lhe um uso ampliado, incluindo aí o lidar com as coisas, os alimentos e instrumentos: “as técnicas do corpo que funcionam como profissões ou parte de profissões ou de técnicas mais complexas”(:417) também se referem à mecânica de sua utilização, tratando-se “da formação de pares mecânicos com os corpos” (:418), seja ela a câmera ou a faca. A complexidade de uma técnica está para alem da complexidade do objeto, das panelas, facas, alimentos... ela é mais complexa de acordo com o sistema de relações envolvido. O domínio técnico interfere diretamente no potencial de interação, percepção e ação no mundo. Carlos Sautchuk, em sua pesquisa com pescadores e proeiros (2007), aponta para esse cuidado nas investigações relacionadas à cultura material: “dois problemas muito presentes na análise da cultura material, que são as dicotomias entre simbólico e material, sujeito e objeto, determinantes técnicos e sociais. O engajamento do pescador no barco é, inseparavelmente, condição material e fundamento dos sentidos atribuídos à pesca costeira; e o pescador é ao mesmo tempo atuante e parte de um sistema onde ele se coloca como elemento – é nessa “duplicidade” de condição que se configura sua subjetividade, centrada na disposição para ser ativo. Já o proeiro só se institui na socialidade dos 3 lagos pela capacidade concreta para predar, que inclui as capacidades perceptivas e agressivas; a elaboração em torno do encontro com o pirarucu está ligada à relação comunicativa de pessoa a pessoa, conforme o seu desenrolar do ponto de vista prático. (:.295)” (grifo meu) Esse tratamento pretendido à técnica exige que a atenção seja dada não somente às interações possibilitadas pela técnica, é necessário um cuidado analítico com a busca pelo domínio. Aí estaria uma perspectiva analítica que daria a devida atenção ao indivíduo, não decaptando-o de sua interação em rede social, mas que daria atenção à sua habilidade (skills). Sautchuck retoma a noção de skill em Tim Ingold para destacar a importância desse estar preparado para lidar com ambiente e seus objetos. Humans children, like the young of many species, grow up in environments furnished by the work of previous generations, and as they do so they come literally to carry the forms of their dwelling in their bodies – in specific skills, sensibilities and dispositions. But they do not carry them in their genes, nor is it necessary to invoke some other kind of vehicle for the inter-generational transmission of information – cultural rather than genetic – to account for the diversity of human living arrangements (Ingold 2000 Apud: Sautchuck 2007:270). A importância do domínio técnico para a constituição das pessoas nessa pesquisa se dá pela importância adquirida do domínio do preparo do alimento, e por serem esses elementos centrais na ampliação das possibilidades de estratégias de sobrevivência da beneficiária e de sua família. 4 O CAMPO Cabe aqui ressaltar alguns aspectos da Fercal, cidade recém promovida à região administrativa, que antes do decreto era considerada uma área rural e por conta do processo passou a ser considerada uma área mista. A Fercal está há 30km distante do centro de Brasília, possui um comércio pouco desenvolvido quando comparado à outras cidades do Distrito Federal, na região ainda existem alguns grandes terrenos residenciais onde é possível plantar algumas leguminosas, no entanto essa característica não é generalizada, mas ainda existe um perfil, destacando aqui influências rurais e baixo numero de comércios, que não pode ser comparado a outros centros urbanos do Distrito Federal. Como o campo inicialmente ocorrera nos dias da semana, a pesquisa na Fercal se deparou com um perfil de beneficiária que estava em casa responsável pela alimentação e demais afazeres do lar. A maioria das mulheres presentes durante a semana possuíam idade avançada, eram avós, tomavam conta de seus netos de forma que permitisse que suas filhas e filhos pudessem se ausentar do lar para trabalhar. Esse aspecto da presença das avós como configuração chave de algumas famílias para garantir os cuidados com as crianças, incluindo aí as exigências do programa Bolsa Família, como a permanência delas na escola, também possibilita os adultos em idade economicamente ativa se ausentarem do lar para trabalhar, está sendo alvo do estudo de Denise Oliveira e Silva, coordenadora do PALIN-FIOCRUZ, por isso me permito rapidamente passar por esse ponto para centrar-me à questão chave, a reflexão sobre o encontro do ato de filmar e do ato de cozinhar. O DISPOSITIVO O cineasta Eduardo Coutinho durante os últimos quinze anos de sua carreira estabeleceu seu método de trabalho a partir de dispositivos, o que ele chamaria de “prisões”, que segundo o documentarista seria a regra que delimitaria o ponto maisessencial na 5 realização de qualquer filme, seja ele ficcional ou documental, a relação entre quem filma e quem é filmado (ver Ohata, 2013). No caso desse estudo a “prisão” estabelecida seria o preparo da refeição, onde começaria a tomada no início do preparo dos alimentos, como por exemplo o desossamento do frango ou lavagem do arroz, até o momento em que os alimentos se tornariam enfim comida e estariam prontos para o consumo. Acreditei que essa estratégia possibilitaria capturas dos sons e das imagens do preparo desses alimentos e que esses atos enriqueceriam as possibilidades de diálogo entre eu, o antropólogo- documentarista, e a pessoa que ali cozinhava. Quadros extraído do material bruto da pesquisa: Dona Maria Silva. Dona Maria Silva, uma das personagens dessa pesquisa, durante o preparo do frango me relatava o uso do sal em sua comida, que por conta de suas diabete descoberta há 30 anos passaria a cozinhar uma, segundo os seus filhos, “comida de doente”, contando em seu preparo com menos sal e “gordura”. A frente da câmera surge Natália, sua neta, que ao se posicionar imóvel, possibilitou um outro diálogo. Perguntei à neta de Dona Maria o que ela gostava de comer, ela me responde que “frutas, arroz e feijão e iogurte”. Este foi um dos poucos momentos que o dispositivo foi invadido. A forma como desenhei a dinâmica centralizava a mise en scène apenas na beneficiária, a ideia era que a partir dela e de suas construções simbólicas eu poderia atingir o restante da família. Uma questão ética também estava em jogo aí, tendo em vista que a negociação para a realização do vídeo se dava somente com as mulheres beneficiárias. O aparecimento de outras pessoas costumava ocorrer, mas por conta do foco do filme e evitando maiores problemas, a observação se restringiria à protagonista. Daí um outro ponto fundamental para pensar no cinema como recurso observacional. O que se enquadra e o extra-campo. 6 A etnografia por si só é uma maneira de se pesquisar o mundo que trabalha com uma grande multiplicidade de variáveis, incluindo aí a possibilidade até mesmo de recordações que podem após a experiência etnográfica vir a fazer parte do texto antropológico. O trabalho com o vídeo já nos exige um certo recorte durante o campo, um enquadramento, que se realize a imagem-câmera, a tomada. Quadros extraído do material bruto da pesquisa: Curió Uma das possibilidades que a realização do vídeo nos teria a oferecer numa pesquisa envolvendo o ato de cozinhar é a captura/registro dessa atividade em imagem e movimento, o que possibilitaria a construção de um produto fílmico que nos apresente essas ações para além das palavras. No entanto ao realizar o enquadramento, o que ocorre à frente da câmera constantemente invoca o extra-campo, como por exemplo a filha de Dona Maria. A partir do momento que protagonizando a ação na cozinha está a avó, a partir da ausência da mãe de Natália e a partir do que é relatado, toda uma rede que explicita as estratégias de cuidado com a família é apresentada, nesse caso sendo simbolizada pelo ato de cozinhar. Essa estratégia fílmica nos possibilita juntar dois aspectos importantes para a pesquisa e para compreender o mundo e os cuidados envolvido nesses lares: o ato de cozinhar e o relato, este último que nos possibilita concatenar a alimentação com outros aspectos da vida familiar, como o ato de cuidar, a organização familiar e as estratégias de sobrevivência. As falas dessas mulheres nos apresenta a importância simbólica do ato de cozinhar, que nesses casos se remete ao cuidar, diante das câmeras os atos e as falas se retroalimentam, podendo inclusive serem vistas como uma única mise en scène. 7 ENTRE O REGISTRO E O ENSAIO O recurso audiovisual salta às aspirações antropológicas como uma forma de ampliar as possibilidades de registro e expressão das sensibilidades do etnógrafo, que para além de apresentar, transcrever e pensar os mundos a partir de palavras, pode se aventurar em um registro dessas experiências com luz, cor, texturas e som. O material bruto das filmagens abre uma possibilidade de uso coletivo, tendo assim uma possibilidade de servir a mais pesquisadores como objeto de análise, como forma de compartilhar “relatos” e experiências de campo. No entanto o que mais me interessa nessa empreitada é a possibilidade de criação a partir desses registros. A própria escolha dos dispositivos para se ir à campo já indica um intuito de uma fabulação sobre o que se investiga. Tendo as devidas distinções entre os produtos texto e filme no fazer antropológico, muito me agrada a ideia de ensaio desenvolvida por Arlindo Machado(2009), que “nos fala a respeito de ideias, emoções e afetos através de um discurso de imagens e sons tão denso quanto o discurso das palavras”(:20). Pensar o documentário como uma possibilidade ensaística projeta-o ao lado de outras formas de produção de conhecimento. Pensar essa demarcação/distinção é importante para pensar a realização cinematográfica dentro da atividade antropológica. Machado situa o ensaio entre a literatura e a ciência, fora da primeira, onde a descrença estaria suspensa, e fora do campo científico, pela desqualificação que o seu atributo literário lhe daria. Essa posição lhe dá um misto de beleza estética (enquanto construção e liberdade de criação) e de legitimidade como um projeto de conhecimento. “O Ensaio é a própria negação dessa dicotomia”(:21). Tendo em vista que estaria fadada ao fracasso a tentativa de transposição da forma “texto etnográfico”/artigo acadêmico para o documentário, nos obriga a pensar o que essa forma de produção de conteúdo pode contribuir para o campo antropológico, nessa reflexão mais especificamente para o campo da antropologia da alimentação. A produção audiovisual parece muito propícia para esta pesquisas pela possibilidade de trabalhar conjuntamente a força dos depoimentos e a força do ato de cozinhar. As 8 dinâmicas geradas a partir do ato de filmar e ser filmado propiciam um evento onde o discurso e a prática se retroalimentam e se atualizam, para ali criar a mise en scène a ser filmada. As antropologias, como experiências marcadas pela experiência com o outro, contam com o audiovisual como mais uma possibilidade criativa para narrar e pensar esses encontros. BIBLIOGRAFIA MACHADO, :Arlindo. Filme ensaio. Em: Chris Marker – Bricoleur Multimídia, Brasília: Centro Cultural Branco do Brasil, 2009 MAUSS, Marcel. (2003), Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac e Naify. OHATA, Milton (2013), Eduardo Coutinho. Cosac e Naify SAUTCHUCK, Carlos Emanuel. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá). 2007. 402 f. Tese (Doutorado em Antropologia)- Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
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