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O FENÔMENO BULLYING E OS DIREITOS HUMANOS

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O FENÔMENO BULLYING E OS DIREITOS HUMANOS
Revista de Direito Educacional | vol. 3 | p. 51 | Jan / 2011 | DTR\2011\2506
Erick Santos
Mestrando em Direitos Humanos pela USP.
Área do Direito: Educação
Resumo: Este estudo enfoca o fenômeno bullying e as responsabilidades decorrentes, à vista das
doutrinas implicadas, propondo novos estudos em continuação.
Palavras-chave: Bullying - Direitos humanos - Responsabilidades
Abstract: This study focuses the bullying phenomenon and decurrent reponsabilities, in the sight of
the involved doctrines, proposing news studies in continuation.
Keywords: Bullying - Human rights - Responsabilities
Sumário: 1.Introdução - 2.Panorama da evolução do tratamento jurídico da criança e do adolescente
- 3.O fenômeno bullying - 4.Bullying e os direitos da criança e do adolescente - 5.Tratamento jurídico
aplicável ao tema - 6.Conclusão e propostas para estudos posteriores - 7.Referências bibliográficas
1. Introdução
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.” Com esta redação, o art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) firma o entendimento de que a
criança e o adolescente devem ser objeto de proteção integral e prioritária, adotando a chamada
“doutrina da proteção integral”, firmada na Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada
em 20.11.1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) ( Lei 8.069/1990), inspirado pelas mesmas
fontes que conduziram o legislador constituinte à adoção da doutrina da proteção integral, já em seu
art. 1.º afirma: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
Inegável, portanto, não só pelo disposto na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) e no Estatuto da
Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) , mas em todo o quadro normativo que abrange o
tratamento da criança e do adolescente no Brasil, que o Estado brasileiro assumiu o compromisso de
promover a proteção integral do menor, empenhando seus esforços, em conjunto com a família e a
sociedade, para efetivação completa de seus direitos.
Esse cenário implica a necessidade de estudos acerca das mais diversas formas de violência
praticadas contra a criança e o adolescente, com o objetivo de identificar os problemas que impedem
a concretização de seus direitos e garantias fundamentais. Neste contexto, o presente estudo
dedicar-se-á ao fenômeno bullying e seus impactos sobre a criança e o adolescente.
O bullying, definido por C. Fante como “um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e
repetitivas, adotado por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento”, 1 é
resultado, principalmente, de uma deficiência na formação da consciência ética e jurídica (no sentido
amplo) dos menores. Essa deficiência, cujo alcance ainda não conhecemos a fundo, é trazida à
escola e perpetuada nas relações sociais em toda a vida do indivíduo, resultando na banalização de
“pequenas” práticas atentatórias aos Direitos Humanos que, em seu conjunto, representam grande
óbice à implantação de um sistema efetivo de proteção desses direitos. Outros autores como M. J.
Constantino Petri 2 reconhecem o bullying como forma de violência psicológica perigosamente
atentatória aos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Ainda, conforme D. Olweus, “ bullying problems have even broader implications than those
suggested in the previous paragraph. They really concern some of our fundamental democratic
principles: every individual should have the right to be spared oppression and repeated, intentional
humiliation, in school as in society at large. No student should have to be afraid of going to school for
fear of being harassed or degraded, and no parent should need to worry about such things happening
to his or her child” (os problemas relacionados ao bullying têm implicações ainda mais amplas do que
O fenômeno bullying e os direitos humanos
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aquelas sugeridas no parágrafo anterior. Elas realmente envolvem alguns de nossos princípios
democráticos fundamentais: todo indivíduo deve ter o direito de ser poupado de opressão e de
humilhação repetida e intencional, tanto na escola quanto na sociedade em geral. Nenhum estudante
deve ter medo de ir à escola por medo de ser assediado ou degradado, e nenhum pai ou mãe deve
precisar se preocupar com tais coisas acontecendo com sua criança). 3
Busca-se com o presente trabalho identificar o quadro atual de proteção legislativa conferida ao
menor diante dos casos de bullying escolar, partindo do ponto de vista dos Direitos Humanos
constantes do ordenamento jurídico nacional, incluindo as Convenções Internacionais sobre o tema,
com vistas a demonstrar a atrocidade desta prática e aclarar de que maneira constitui uma ofensa
aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Com esta finalidade, faz-se necessário antes
de tudo traçar um breve panorama da evolução histórica da proteção conferida às crianças e
adolescentes no ordenamento jurídico interno e internacional, o que será feito no item 2.
Após, objetivando um melhor entendimento do fenômeno, proceder-se-á à definição, classificação e
análise das espécies de bullying, dando ênfase ao bullying escolar e ao cyberbullying. Tal será o
enfoque do item 3.
Em seguida, identificados os principais direitos da criança e do adolescente no ordenamento jurídico
nacional, levando em conta sua condição especial de sujeito em desenvolvimento, partir-se-á a uma
análise do impacto do fenômeno bullying na fruição desses direitos, o que será feito no item 4.
Por fim, o item 5 irá tratar dos aspectos jurídicos concernentes ao tema, analisando a questão da
legitimação para defesa dos interesses da criança e do adolescente lesados pela prática do bullying
e as soluções apresentadas pela doutrina e pelo Poder Judiciário para responsabilização pelos
danos causados.
2. Panorama da evolução do tratamento jurídico da criança e do adolescente
Passaremos, neste capítulo, a uma breve análise da evolução do tratamento jurídico da criança e do
adolescente no ordenamento jurídico interno e internacional, tendo como ponto de partida as
diferentes doutrinas que inspiraram a legislação brasileira, desde o Império, e Internacional.
Por se tratar de um estudo que tem como foco identificar o quadro atual de proteção legislativa
conferida ao menor diante dos casos de bullying, este capítulo dará maior atenção ao tratamento
conferido ao menor no ordenamento jurídico interno. Entretanto, tal consideração não afasta o
entendimento de que as normas de direito internacional não constituem sistema distinto do direito
interno, mas nele se permeiam, compondo um só quadro normativo. Em razão disso, a evolução da
proteção da criança e do adolescente no âmbito internacional será também analisada, brevemente,
com o intuito de identificar os impactos oriundos das Convenções e Tratados Internacionais sobre o
tema na elaboração das normas internas que regem o assunto, bem como da própria Constituição
Federal de 1988.
2.1 Doutrina do direito penal do menor
No início do Império brasileiro, o tratamento destinado à criança e ao adolescente era centrado no
âmbito penal. Os Códigos Criminais de 1830 e 1890 refletem essa doutrina, ao adotarem a chamada
“teoria do discernimento”. Preocupados com a delinquência juvenil, ambos os diplomas legais
estabeleciam a maioridade penal, excepcionando os casos em que o menor, tendo o “discernimento”
necessário para compreender suas ações, estaria sujeito a medidas de correção. Assim, M. A.
Cabral dos Santos descreve: “O Código do Império rezava, em seu art. 10, que ‘(…) não se julgarão
criminosos (…) menores de 14 anos’. Porém, estabelecia que aqueles garotos que, mesmonão
atingindo a idade mínima de 14 anos, tivessem agido de forma consciente, ou seja, tivessem agido
com ‘discernimento’, deveriam ser encerrados em uma casa de correção”. 4
Neste sentido, também F. Lamenza: “Os jovens em situação de delinquência eram, para o conjunto
comunitário, a antítese das crianças abandonadas. Enquanto estas deveriam ser abrigadas para fim
de proteção (…), aqueles eram vistos pela sociedade como verdadeira chaga a ser isolada em
reformatórios e contida sob a rubrica de preservação da ordem pública”. 5
A propósito, a Constituição brasileira de 1824 não trazia qualquer disposição acerca das crianças e
dos adolescentes, apenas determinando que os menores de 25 anos estavam proibidos de votar nas
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eleições paroquiais. A primeira Constituição Republicana ( LGL 1988\3 ) , de 1891, também não
continha nenhum dispositivo relativo aos direitos da criança e do adolescente.
2.2 Doutrina da situação irregular
Em 1927 foi promulgado o primeiro Código de Menores Brasileiro, também chamado “Código Mello
Mattos” ( Dec. 17.943-A/1927), em homenagem a José Cândido de Albuquerque Mello Mattos,
primeiro juiz de menores da América Latina. O Código de Menores de 1927 foi bastante criticado por
não adotar as recomendações das Declarações de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924,
aprovada pela Liga das Nações. Contudo, é inegável que o Código trouxe avanços no tratamento
jurídico da criança e do adolescente.
O Código de Menores de 1927 reflete a doutrina da situação irregular, centrada na dualidade
internação-proteção e internação-repressão. Mantém-se a preocupação com a delinquência, mas
surge o conceito de “menor em situação irregular”, compreendendo os “infantes expostos” e os
“menores abandonados”. O Código reflete uma “política assistencialista fundada na proteção do
menor abandonado ou infrator”. 6 A doutrina é retomada no Código de Menores de 1979 ( Lei
6.698/1979).
Paralelamente, no âmbito constitucional, crescia o número de dispositivos referentes à infância e
juventude. Já a Constituição de 1934 trouxe avanços, estabelecendo direitos que ultrapassavam a
esfera penal, como a proibição do trabalho do trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a
menores de 16, e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos (art. 121, § 1.º, d), e a
competência concorrente de União, Estados e Municípios para “proteger a juventude contra toda
exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual” (art. 138, e). Prevê até mesmo
destinação de renda específica para o fim de amparo à infância, em seu art. 141: “É obrigatório, em
todo o território nacional, o amparo à maternidade e à infância, para o que a União, os Estados e os
Municípios destinarão um por cento das respectivas rendas tributárias”.
A Constituição de 1937 incorporou parcialmente a evolução que se verificava na esfera internacional,
trazendo um rol mais extenso de dispositivos tratando sobre a criança e o adolescente. Foi mantida a
proibição relativa ao trabalho dos menores, mencionada na Constituição de 1934. Ainda,
estabeleceu-se como competência da União fixar as bases e determinar os quadros da educação
nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da
infância e da juventude (art. 15, IX), e legislar sobre normas fundamentais da defesa e proteção da
saúde, especialmente da saúde da criança (art. 16, XXVII).
Maiores avanços constam da seção de Declaração de Direitos e Garantias Individuais, em que a
Constituição de 1937 prevê que a lei pode prescrever “medidas para impedir as manifestações
contrárias à moralidade pública e aos bons costumes, assim como as especialmente destinadas à
proteção da infância e da juventude” (art. 122, item 15, b). Prevê ainda o seguinte: “A infância e a
juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas
as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso
desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da
juventude importa falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever
de provê-las do conforto e dos cuidados indispensáveis à preservação física e moral” (art. 127); “a
infância e a juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições
particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de
instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação
adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais” (art. 129).
Considera-se, portanto, que a Constituição Federal de 1937 foi a primeira a tratar da proteção da
infância e da juventude de maneira expressa. 7- 8
A promulgação da Constituição de 1946 significou um grande recuo na tutela das crianças e
adolescentes, uma vez que tratou do assunto de maneira lacônica, mantendo apenas as proibições
relativas ao trabalho do menor, e tratando da necessidade de assistência à infância e juventude de
maneira genérica em seu art. 164.
A Constituição de 1967, instituída após o Golpe Militar de 1964, delegou a proteção da criança e do
adolescente à lei (art. 167, § 4.º, da Constituição de 1967). Em atenção a este dispositivo, foi
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promulgado o Código de Menores em 1979, que teve como inspiração, como já mencionado, a
doutrina da situação irregular. Assinala F. Lamenza 9 que referida Constituição relegou a 2.º plano a
proteção da infância e da juventude, ao relegá-la à lei ordinária, deixando de prever expressamente a
garantia integral os direitos fundamentais de crianças e adolescentes no texto constitucional.
Observa-se, portanto, neste período, uma sequência de avanços e recuos no tratamento
constitucional destinado à criança e ao adolescente, nunca escapando de uma política
assistencialista preocupada, especialmente, com os menores em situação irregular.
2.3 Doutrina da proteção integral
A Constituição Federal de 1988 foi o primeiro diploma legal brasileiro a adotar expressamente a
doutrina da proteção integral. Inúmeros são os dispositivos visando a assegurar os direitos
fundamentais da criança e do adolescente, mas o art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) é o que melhor
sintetiza a posição do constituinte em relação ao tema: “É dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá--los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 10 A doutrina tem origem na
Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1959, mas só foi incorporada plenamente ao
ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição de 1988.
O reconhecimento da criança como “pessoa em desenvolvimento” implica a necessidade de garantir
direitos especiais e específicos, além dos normalmente assegurados a todos os indivíduos, visando à
satisfação de todas suas necessidades. Assim, referido dispositivo constitucional elenca uma série
de direitos a serem garantidos – mas o rol não é taxativo, e sim exemplificativo. A. Chaves, bem
define o conteúdo da “proteção integral”: “Quer dizer amparo completo, não só da criança e do
adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também a sua salvaguarda, desde o
momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da família,
natural ou substituta da qual irá fazer parte”. 11
A respeito, S. A. G. Pereira de Souza afirma que a doutrina da proteção integral se desdobra em
duas vertentes, uma positiva e a outra, negativa. Assim explica o autor: “Em sua vertente positiva a
proteção integral da criança é um sistema de concessões à criança, vista não como objeto, mas
como sujeito de direitosoriginários e fundamentais, importando em abrir-se (pelo Estado, a
sociedade, em síntese, o conjunto de adultos) as concessões necessárias à fruição de tais direitos
(informação, saúde, desenvolvimento etc.). Já em sua vertente negativa a proteção integral da
criança é um sistema de restrições a ações e condutas dos adultos que, de qualquer forma, direta ou
indiretamente, representem uma violação contra os direitos desse mesmo sujeito de direito acima
mencionado (…)”. 12
Nesse sentido, o autor expressa a distinção entre o tratamento concedido à criança no sistema
anterior, vigente a doutrina da situação irregular (em que a criança e o adolescente eram tratados
como objetos de proteção), e o reconhecimento, pela doutrina da proteção integral, da criança e do
adolescente como sujeitos de direito. Assim, M. T. Silva Marques: “O confronto entre a antiga
doutrina e os novos postulados representados pelo Dec. 99.170/1990, que ratificou o art. 3.º da
Convenção sobre os Direitos da Criança, expunha o contraste entre o paternalismo e o garantismo
das instâncias com ações voltadas às crianças e adolescentes, traduzindo uma perspectiva evolutiva
desde a criança e o adolescente conhecidos como objeto de proteção, em uma abordagem tutelar,
pelo que sua dimensão ôntica, como pessoas em desenvolvimento, era substituída por uma
condição de receptores de prática assistencialista como benesse – e, portanto, sem considerar seus
direitos à convivência familiar e comunitária, à opinião, ao respeito e à dignidade”. 13 O termo “menor
em condição irregular”, que pressupunha a existência de outros menores, em oposição àqueles, em
situação “regular”, foi substituído por “menor em situação de risco” (art. 98 do ECA ( LGL 1990\37 ) ).
Também R. J. Elias, ao analisar essa evolução, afirma: “Diferentemente do Código de Menores ( Lei
6.697/1979), revogado expressamente pelo art. 267 do ECA ( LGL 1990\37 ) , este diploma legal não
se restringe ao menor em situação irregular, mas tem por objetivo a proteção integral da criança e do
adolescente. Agora, além de se responsabilizar os pais ou responsáveis pela situação irregular do
menor, outorga-se a este uma série infindável de direitos necessários ao seu pleno
desenvolvimento”. 14
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O Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) ( Lei 8.069/1990) aborda o tema de maneira
mais direta, ao dispor em seu art. 1.º: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao
adolescente”. Assim, sustenta M. J. Constantino Petri 15 que o Estatuto da Criança e do Adolescente
( LGL 1990\37 ) , harmonizando-se com a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , difere dos códigos
anteriores em três aspectos: em primeiro lugar, por se tratar de instrumento de desenvolvimento
social, direcionado especificamente a indivíduos considerados, do ponto de vista pessoal e social,
mais sensíveis; em segundo lugar, por ter como base a doutrina da proteção integral; em terceiro
lugar, por adotar a visão da criança e do adolescente como sujeitos de direitos na condição peculiar
de pessoa em desenvolvimento.
É necessário destacar que a proteção integral da criança e do adolescente é designada a três atores,
conforme o próprio art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) : o Estado, a família e a sociedade. A
respeito, F. Lamenza: 16 “Se do ponto de vista filosófico é imaginada a construção de uma
mentalidade solidária em prol da infância e da juventude, protegendo-se crianças e adolescentes
pelas suas próprias peculiaridades de vida incipiente, sob a ótica do Direito vemos plena
responsabilidade dos três atores no plano de atendimento das necessidades infanto-juvenis”.
Além de orientar as ações da família, da sociedade e do Estado na proteção da criança e do
adolescente, a doutrina da proteção integral também impõe regra de interpretação normativa, de
modo que, desde a promulgação da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) (que, como vimos, já
adotava referida doutrina), “todas as normas em vigor, e mesmo as futuras, devem ser interpretadas
à luz dos princípios fundamentais aí presentes, quer pelos poderes do Estado, pelos órgãos públicos
da comunidade, e particularmente pelo Poder Judiciário, considerando-se implicitamente revogadas
as normas pré-existentes que entrem em contradição com esses princípios.” 17
Assim, o ordenamento jurídico brasileiro harmoniza-se com a evolução internacional do tema,
adotando em todas as esferas a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente. 18 A
Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) foi bastante pródiga, como em relação a todos os direitos
fundamentais, incorporando tal doutrina de maneira explícita. A respeito, N. L. Felca: “Na nossa
Constituição analítica, a infância e juventude se figura como um texto inovador, tanto que em outras
Constituições Federais como a alemã (art. 6), a portuguesa (art. 36), a espanhola (art. 39), entre
outras, há somente o tangenciamento do assunto, pois abordam aspectos referentes à família.
Nenhum deles, portanto, é tão inusitado, ousado, incisivo e garantidos quanto o brasileiro”. 19
2.4 Breve análise sobre a evolução internacional do tema
No âmbito internacional, as primeiras discussões relativas aos direitos da criança e do adolescente
se deram no bojo da extinta Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho. Assim, no
início da década de 20, a Liga das Nações estabeleceu um comitê especial com a finalidade de tratar
das questões relativas à proteção da criança e da proibição do tráfico de crianças e mulheres. Por
sua vez, a OIT teve como objetivo, nessa época, abolir ou regular o trabalho infantil.
Ainda na década de 1920, a Liga das Nações adotou a Declaração de Genebra dos Direitos da
Criança, em 1924. Entretanto, tal declaração não teve o impacto necessário, tanto pelo fato de não
obrigar diretamente os Estados-membros, quanto pelo previsível insucesso da Liga das nações em
decorrência de seu próprio panorama histórico. 20
Em seguida, com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1945, foi
reconhecido expressamente que “a maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência
especiais” (art. XXV, item 2.).
A proteção à criança e ao adolescente foi reforçada pela Declaração Universal dos Direitos da
Criança, de 1959, na qual foi reconhecida a necessidade de conferir a criança e o adolescente uma
proteção especial, em razão de sua condição de sujeito em desenvolvimento. No preâmbulo,
considera-se “que a criança, em razão de sua falta de maturidade física e intelectual, tem
necessidade de proteção jurídica apropriada antes e depois do nascimento”. Aí está o fundamento
da Doutrina da Proteção Integral, que a partir daí passaria a nortear o desenvolvimento jurídico da
proteção dos direitos da criança e do adolescente.
A esse respeito, S. A. Guedes Pereira de Souza: “A origem de tal doutrina, sem dúvida, é a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, já mencionada anteriormente.
O fenômeno bullying e os direitos humanos
Página 5
(…)
No decorrer de seus dez princípios a Declaração deixa claro que a criança, em face da sua condição
especial de pessoa em desenvolvimento deve ser detentora de prerrogativas e privilégios
concernentes à seguridade social, educação, trabalho, convívio, que em última análise tem o objetivo
de assegurar-lhe que tal desenvolvimento se dê de forma completa e saudável, possibilitando que a
criança seja detentora útil de seus potenciais máximos.
(…)
Esse é o cerne da ‘doutrina da proteção integral da criança’, estabelecido já na Declaração e
desenvolvido nos instrumentos internacionais que lhe vieram posteriormente, culminando com a
Convenção dos Direitos da Criança”. 21
A partir de então, a proteção à criança e ao adolescente deu-se no âmbito internacional por meio dos
pactos internacionais de direitos humanos, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos de 1966 (arts. 24 e 25) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais de 1966 (art. 10).
Em 1989, a Assembleia Geraldas Nações Unidas adotou por unanimidade a Convenção sobre os
Direitos da Criança. A Convenção teve amplo aceite internacional. Em 1998, menos de dez anos
após sua aprovação, apenas dois países do mundo não a haviam ratificado: Os Estados Unidos da
América e a Somália. Eis que, em razão de seu caráter obrigacional, a Convenção passou a figurar
como complemento da Declaração de 1959, transformando em ius cogens os direitos lá
estabelecidos. Seu art. 2.º obriga os Estados-partes a respeitarem os direitos nela enunciados, bem
como a assegurarem sua efetiva aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição.
De seus dispositivos, extrai-se que a comunidade internacional reconhece o contexto da
universalização dos direitos humanos de forma plena, estendendo-os à criança e ao adolescente, de
maneira integrada, salvaguardando seus direitos de 1.ª, 2.ª e 3.ª gerações. É um compromisso
firmado para com o futuro, pondo fim a um século que se iniciou praticamente sem qualquer direito
garantido aos infantes de maneira diametralmente oposta.
Paralelamente, em 16.11.1945, foi fundada a Unesco – Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura, que promove a cooperação internacional entre os membros da
ONU nas áreas de sua atuação, sendo de relevo para este trabalho principalmente os projetos
voltados à promoção da educação. Após, no dia 11.12.1946, foi criado o Fundo das Nações Unidas
para a Infância – Unicef, por decisão unânime, durante a primeira sessão da Assembleia Geral das
Nações Unidas ( Res. ONU 57 (I)). O Fundo foi criado especificamente com o objetivo de promover e
garantir o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente no âmbito internacional, e desde
então tem atuado por meio de seus escritórios regionais e desenvolvendo políticas de proteção e
assistência à infância e juventude em diversos países do mundo. 22
Ambas as entidades têm atuado fortemente na defesa dos direitos e interesses de crianças e
adolescentes ao redor do globo, inclusive desenvolvendo programas anti- bullying e estimulando
pesquisas sobre o assunto. A Unesco mantém, vinculado ao Trinity College, na Irlanda, o
Anti-bullying research and resource center, voltado a pesquisas sobre o fenômeno. A Unicef também
promove palestras, vídeos educacionais e publicações sobre o tema, visando a diminuir seu impacto
sob os direitos da criança e do adolescente. 23
No âmbito regional, a Organização dos Estados Americanos – OEA aprovou, em 1969, a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica,
ratificada pelo Brasil apenas em 1992. O Pacto prevê, em seu art. 19, que “toda criança terá direito
às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e
do Estado”.
Na Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul de Córdoba, em julho de 2006, foi instituída a REJ –
Reunião Especializada de Juventude do Mercosul. Tecnicamente, trata-se de um órgão de
assessoramento do GMC – Grupo do Mercado Comum para os temas relativos à juventude.
“A especialidade da REJ é ser o espaço de articulação entre os órgãos governamentais nacionais de
juventude e de diálogo entre esses órgãos e a sociedade civil. O Brasil propôs, e foram acatadas,
O fenômeno bullying e os direitos humanos
Página 6
duas estratégias para fortalecimento dessa ação multilateral: 1) a elaboração de uma carta dos
direitos dos jovens no âmbito do Mercosul e 2) a elaboração, a partir de um diagnóstico
supranacional sobre a situação juvenil na Região, do Plano Regional de Juventude, integrando ações
e unificando algumas das agendas governamentais para o segmento. A coordenação da REJ,
atualmente, é do Uruguai.” 24
Verifica-se, portanto, que tanto no âmbito internacional quanto no âmbito regional, são múltiplas as
normas e órgãos internacionais voltados à proteção da criança e do adolescente, seja por meio do
estabelecimento de normas visando à proteção de seus direitos, seja por incentivo a pesquisas sobre
o tema, seja por meio de atuação específica voltada a garantir a melhoria de suas condições.
3. O fenômeno bullying
3.1 Bullying: definição e espécies
O termo bullying, sem correspondente na língua portuguesa, é utilizado para caracterizar a prática
constante de violência, física e/ou psicológica, repetida intencionalmente, praticada por um indivíduo
ou por um grupo, com o objetivo de intimidar, humilhar, constranger ou depreciar alguém. A
psicóloga C. Fante, ao tratar especificamente do bullying escolar, elabora definição que pode ser
aplicada a todas as espécies de bullying: “Um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e
repetitivas, adotado por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento”, 25
“o desejo consciente e deliberado de maltratar outra pessoa e colocá-la sob tensão”. 26
Verifica-se, a partir dessa definição, três elementos essenciais para configuração de tal prática: (a) a
agressividade do comportamento, (b) a repetição intencional, e (c) o desequilíbrio de poder entre as
partes: 27
(a) agressividade do comportamento: a violência inerente à prática do bullying pode ser física,
concretizada por meio de agressões corporais, ou psicológica, consubstanciada na prática de
intimidação, constrangimento, ameaça etc.
(b) repetição intencional: os atos que, em conjunto, configuram a prática de bullying são realizados
repetidamente pelo agressor, de maneira que uma única agressão não é suficiente para colocar o
indivíduo no estado de permanente tensão característico da vítima de bullying. Segundo M. I. Silva
Leme, “o elemento da repetição é considerado essencial para caracterizar o fenômeno”. 28
(c) desequilíbrio de poder entre as partes: a diferença de poder entre os indivíduos ou grupos
envolvidos em situação de bullying não é necessariamente objetiva. Pode advir de um
reconhecimento subjetivo, por parte do agredido, da superioridade do agressor, embora este não
esteja necessariamente em uma situação de poder superior. Em sentido contrário, C. Fante aponta o
desequilíbrio de poder objetivo como elemento caracterizador do fenômeno.
Ainda, D. Olweus 29 subdivide o bullying em dois subtipos: (a) direto, envolvendo agressão física, e
(b) indireto, configurado por ações como exclusão social e rejeição:
a) O bullying direto, segundo D. Olweus, geralmente tem como pressuposto um contato físico entre
agressor e vítima, em que esta é abertamente atacada. Outros autores, como A. A. Lopes Netto,
utilizam o termo para abranger não só as práticas físicas, mas também “ameaças, roubos, ofensas
verbais ou expressões e gestos que geram mal estar aos alvos”. 30 Esta segunda definição afigura-se
mais acertada, por considerar a relação direta estabelecida no momento da agressão, não
necessariamente física, em oposição ao distanciamento do agressor e de sua conduta no bullying
indireto, em que os atos perpetrados não são dirigidos à vítima, mas praticados na intenção de
causar-lhe mal-estar.
b) O bullying indireto aparece na forma de isolamento social e exclusão intencional da vítima de
certas atividades em grupo. Alguns autores, como M. K. Underwood, B. R. Galen, e J. A. Paquette, 31
preferem a expressão “agressão social” à forma “bullying indireto”, por considerarem que o uso do
termo “indireto” pode dar a falsa ideia de que não há interação direta entre vítima e agressor. Ainda,
estes autores argumentam que o uso da expressão “agressão social” é mais apto a identificar o
caráter nocivo da prática. Entretanto, adotar-se-á a classificação de D. Olweus, em razão de melhor
traduzir o caráter dicotômico da prática estudada. Além disso, entende-se que a expressão “ bullying
indireto” não diz respeito à relação entre vítima e agressor, mas refere-se ao modo em que a vítima é
O fenômeno bullying e os direitos humanos
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afetada pela conduta perpetrada, o que afasta as críticas dos autores supracitados.
Por fim, é possível classificar o bullying de acordo com o ambiente em que é praticado e com os
atores envolvidos na agressão. Assim, há o bullyingescolar, o cyberbullying, o bullying no ambiente
de trabalho (ou assédio moral), o bullying entre países, o bullying entre vizinhos, entre outros.
Contudo, este trabalho irá se ater apenas ao bullying escolar e ao cyberbullying, em razão dos
principais atores de tais espécies de bullying serem crianças e adolescentes.
3.1.1 Bullying escolar
O bullying escolar é aquele praticado no ambiente educacional, seja dentro das salas de aula ou em
outros ambientes do estabelecimento escolar. Os atores envolvidos são, na maior parte das vezes,
os próprios estudantes – embora professores e funcionários também possam estar envolvidos nas
práticas de agressão.
A maior incidência do bullying no ambiente escolar está ligada a diversos fatores, entre eles: a
ausência dos pais e responsáveis pela criança ou adolescente, a pouca fiscalização, a falta de
percepção do problema por professores e funcionários, a diferença inerente entre os alunos,
provenientes das mais diversas famílias e classes sociais. Isso contribui para a abrangência do
fenômeno, o que torna a questão ainda mais preocupante. 32
Quando tratamos de bullying no ambiente escolar, contudo, verificamos que não é tão comum a
ocorrência de práticas facilmente identificáveis, como agressões físicas e lesões mais graves, mas
sim de atos de natureza predominantemente moral, em que a força física não é o veículo, mas a
sanção por meio da qual o agressor estabelece sua relação de poder. Entretanto, como já
mencionado, a força física não é o único atributo fundador das relações de poder entre os alunos,
que podem ser estabelecidas em função de atributos sociais, como maior facilidade do agressor em
se socializar com os colegas, reconhecimento subjetivo da superioridade do agressor, entre outros.
Assim, verificamos no ambiente escolar a prática tanto de bullying direto (ofensas, ameaças,
apelidos etc.) quanto indireto (distanciamento, exclusão de atividades em grupo, etc.). As práticas de
bullying indireto são difíceis de serem percebidas, pois atribui-se normalmente a causa do isolamento
a um problema de socialização da própria vítima, ignorando a agressão perpetrada pelos colegas.
O problema se agrava diante da aparente ignorância dos professores, pais e sociedade em geral em
relação ao bullying. A. A. Lopes Neto identifica essa circunstância como fator de risco para o
fenômeno: “Considerando-se que a maioria dos atos de bullying ocorre fora da visão dos adultos,
que grande parte das vítimas não reage ou fala da agressão sofrida, pode-se entender que
professores ou pais tem pouca percepção do bullying, subestimam sua prevalência e atuam de forma
insuficiente para a redução e a interrupção dessas situações”. 33 Em pesquisa, a Associação
Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência – Abrapia constatou que 51,8%
dos alunos admitiram sequer terem sido advertidos pelos pais ou autoridades escolares quando da
prática do bullying.
Não obstante a pouca percepção do problema por parte dos pais e educadores, diversas pesquisas
relatam a ocorrência do bullying no ambiente escolar, no Brasil. Em relatório sobre a violência contra
a criança no âmbito mundial, P. S. Pinheiro 34 destaca que a violência nas escolas é realidade de
milhões de crianças de todo o mundo e que deve ser prioritariamente evitada. Em pesquisa
buscando avaliar a qualidade da convivência no ambiente escolar em escolas públicas e privadas de
São Paulo/SP, M. I. Silva Leme 35 constatou uma realidade em que grande parte dos alunos sofre ou
já sofreu algum tipo de violência por parte de outros alunos. Pesquisa realizada pela Abrapia, com
apoio da Petrobrás e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 11 escolas do Rio
de Janeiro/RJ, demonstra que 40,5% dos 5.482 alunos entrevistados admitem ter tido algum tipo de
envolvimento direto na prática de bullying em 2002.
Dessa maneira, o bullying escolar afigura-se como importante questão a ser encarada pelo Direito.
3.1.2 Cyberbullying
O cyberbullying consiste na prática do bullying por meio de novas tecnologias comunicacionais,
como a internet e o celular. Não se trata apenas da prática de bullying em novo ambiente, mas da
extensão do bullying além da esfera escolar, passando a afetar a vítima de maneira mais intensa e
O fenômeno bullying e os direitos humanos
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abrangente. A respeito, D. Muir: “Bullying and harassment by virtual means fast became a
widespread phenomenon among diverse groups of children and young people. Cyber bullying may be
conducted by sending phone text messages, images and e-mails, as well as through online
discussion groups and personal web pages. Initial observations conclude that bullying by virtual
means intensifies the experience of harm to a targeted child” [ Bullying e assédio por meios virtuais
rapidamente se tornaram um fenômeno generalizado entre diversos grupos de crianças e jovens. O
cyberbullying pode ser conduzido pelo envio de mensagens de texto por telefone, imagens e e-mails,
bem como por meio de grupos de discussão online e páginas pessoais. Observações iniciais
concluem que o bullying por meios virtuais intensifica a experiência para de agressão à vítima]. 36
São cada vez mais comuns os casos de cyberbullying em redes sociais da chamada Web 2.0, 37 tais
como Orkut, Facebook, MySpace, Twitter e assemelhados. Importante destacar a importância da
rede social Orkut na ocorrência deste fenômeno, mantida pela empresa Google Inc., tendo em vista
sua enorme popularidade no Brasil.
Referidas redes sociais têm como objetivo promover a integração entre usuários da internet de todo
o mundo, criando ambientes com as temáticas e ferramentas mais variadas. Contudo, por serem
espaços virtuais voltados à comunicação entre usuários, não se pode esperar que estejam livres de
práticas cotidianamente verificadas entre as pessoas no mundo não virtual, dentre elas o bullying.
Por ser perpetrada por meios virtuais, a prática do cyberbullying cria a sensação de perseguição
permanente e inescapável, pois o uso das ferramentas comunicacionais virtuais faz parte do
cotidiano de crianças e adolescentes. O entorno virtual facilita a intimidação e intensifica a
experiência de abuso da perspectiva da vítima. Nesse contexto, a vítima sente que não tem onde se
refugiar: uma mensagem de texto, por exemplo, pode chegar-lhe estando em qualquer lugar, bem
como sua humilhação pode ser presenciada por um grande público no ciberespaço sem que ela
esteja presente. Além disso, a sensação de anonimato proporciona ao agressor maior liberdade para
se expressar, levando-o a dizer e praticar atos que não faria pessoalmente. Tais fatores são o que
tornam o cyberbullying ainda mais preocupante em relação ao bullying escolar.
4. Bullying e os direitos da criança e do adolescente
No presente capítulo, identificaremos, em primeiro lugar, os principais direitos atribuídos à criança e
ao adolescente no ordenamento jurídico atual. Em seguida, buscaremos identificar a relação entre a
prática do bullying e suas consequências para a fruição e o exercício desses direitos.
A gama de direitos atribuídos à criança e ao adolescente inclui, além dos direitos inerentes à pessoa
humana, uma série de direitos especiais, relacionados à sua condição especial de sujeito em
desenvolvimento, conforme reconhecido pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL
1990\37 ) em seu art. 6.º. 38 Isso porque, conforme A. Chaves: “(…) bem se percebe que muito
maiores cuidados deverá merecer a lei específica do infante e do adolescente, personalidades em
plena formação, tão facilmente levadas por pressões da mais diversa natureza, para o bem, com que
elas se enriquecerão, bem como a Nação, ou para o mal, não só delas, como da inteira coletividade”.
39
Dessa maneira, o art. 3.º do ECA ( LGL 1990\37 ) resume os direitos que devem ser garantidos à
criança e ao adolescente: “Todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo
da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outrosmeios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual
e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
Em complemento a este artigo, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) estabelece a
seguir um rol de direitos a serem assegurados com “absoluta prioridade”, pela família, pela
comunidade e pelo Poder Público, repetindo o art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . São os “direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (art. 4.º, caput,
do ECA ( LGL 1990\37 ) ). O parágrafo único do mesmo artigo exemplifica o conteúdo do termo
“absoluta prioridade”, informando compreender (a) primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias, (b) precedência de atendimento nos serviços públicos e ou de relevância
pública, (c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, e (d) destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção á infância e à juventude. Tal
garantia compõe a doutrina da proteção integral, como já desenvolvido anteriormente.
O fenômeno bullying e os direitos humanos
Página 9
Os direitos fundamentais da criança e do adolescente não se esgotam, contudo, nos artigos
mencionados. Em linhas gerais, o Estatuto estabelece ainda a proteção contra “qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, punindo “na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (art. 5.º do ECA ( LGL
1990\37 ) ).
Da mesma forma, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) estabelece como fundamento a dignidade
da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ), e como objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3.º, IV, da CF/1988 ( LGL 1988\3 )
), além de assegurar a todos “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade” (art. 5.º, caput, do ECA ( LGL 1990\37 ) ). É em razão disso, J. A. da
Silva afirma que: “Esses direitos especificados no art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) não significam
que as demais previsões constitucionais de direitos fundamentais não se lhes apliquem. Ao contrário,
os direitos da pessoa humana referidos na Constituição lhes são inerentes”. 40
A elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) , como já visto, deu-se em
consonância com os diplomas internacionais sobre o tema, entre eles a Declaração dos Direitos da
Criança de 1959 e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989. Referidos diplomas também
fortalecem o disposto na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) e no Estatuto da Criança e do
Adolescente ( LGL 1990\37 ) no que se refere aos direitos especiais da criança e do adolescente
como sujeitos em desenvolvimento, buscando garantir aos infantes as condições necessárias para
que esse desenvolvimento se dê de maneira saudável e satisfatória. A Declaração dos Direitos da
Criança enuncia como princípios: a necessidade de proteção especial, para que a criança possa
desenvolver-se de maneira saudável e normal, nos planos físico e intelectual, assim como em
condições de liberdade e dignidade (2.º princípio); o crescimento e desenvolvimento saudáveis (3.º
princípio); o direito a uma educação que contribua para sua cultura geral e lhe permita, em condições
de igualdade e oportunidade, o desenvolvimento de suas faculdades, seu julgamento pessoal e seu
senso de responsabilidade moral e social (7.º princípio); a proteção contra quaisquer formas de
negligência, crueldade ou exploração (9.º princípio); a proteção contra práticas que possam levar à
discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra forma, de maneira a educá-la num espírito de
compreensão e tolerância (10.º princípio). No mesmo sentido, a Convenção sobre os Direitos da
Criança de 1989 desenvolve ao longo de seu texto os direitos garantidos à criança e ao adolescente,
estabelecendo obrigações internacionais a seus signatários. A menção expressa de dispositivo
constitucional sobre os direitos da criança e do adolescente (art. 227), inclusive, se deu em razão de
dispositivos dessa mesma Convenção que determinam a adoção de todas as medidas legislativas
necessárias para implementação dos direitos nela contidos.
Partimos agora a uma análise mais detida sobre os direitos fundamentais da criança afetados pelo
fenômeno bullying, analisando seu conteúdo e de que forma são violados em face de referida
prática.
4.1 O direito à vida e à saúde
O art. 5.º da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) estabelece a vida como direito inviolável. A saúde, por sua vez,
é enunciada no art. 6.º da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) , fora do rol de garantias e direitos individuais,
como direito social. Tal distinção nos remete à evolução histórica da afirmação dos direitos
fundamentais da pessoa humana, permitindo identificar a vida como “direito de primeira geração” e a
saúde como “direito de segunda geração”, na medida em que esta última demandaria uma forte
atuação do Estado para sua promoção, enquanto o direito à vida deveria ser garantido pela omissão
do Estado em atentar contra a mesma. Entretanto, indissociáveis o direito à vida e à saúde, uma vez
que sem saúde não há vida. Por esta razão, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 )
tratou de ambos em um só artigo.
Enuncia o art. 7.º do ECA ( LGL 1990\37 ) : “A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e
à saúde, mediante a efetivação e políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o
desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Verificamos da redação
de tal artigo que não se trata apenas da garantia do direito à vida e à saúde isoladamente, mas de
modo a proporcionar um desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições de dignidade. Não
atendem a este direito, portanto, situações em que são garantidas às crianças e adolescentes
apenas as condições mínimas para vida e saúde, sem que estas possam lhe proporcionar condições
O fenômeno bullying e os direitos humanos
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dignas de existência e um desenvolvimento sadio e harmonioso. Trata-se, portanto, de garantia
abrangente que envolve não só a saúde física, mas também psicológica. Corroborando esse
entendimento, o art. 227, § 1.º, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) obriga o Estado à promoção de
programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de
entidades não governamentais.
No mesmo sentido, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 (5.º princípio) 41 e a Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989 (arts. 6.º, 24.1 e 27.1). 42
Estudos indicam como possíveis consequências de longa exposição ao bullying o desenvolvimento
de sintomas psicossomáticos, como enurese, taquicardia, sudorese, insônia, cefaleia, dor
epigástrica, bloqueio dos pensamentos e raciocínio, ansiedade, estresse e depressão. 43 Dessa
maneira, ainda que consideremos tratarem-se de casos extremos e menos frequentes, é indiscutível
que o bullying constitui uma potencial ameaça à saúde não apenas mental, mas também física da
criança e do adolescente, podendo, em última instância, especialmente quando cumulado com
outros fatores de instabilidade psicológica, culminar em morte. 44
C. Fante aponta que “o fenômeno bullying passou a ser considerado como um problema de saúde
pública, devendo ser reconhecido pelos profissionais de saúde em razão dos danos
físico-emocionais sofridos por aqueles que estão envolvidos nele”. 45
4.2 O direito à liberdade, ao respeito e à dignidade
A dignidade da pessoa humana é, antes de tudo, fundamento da República Federativa do Brasil (art.
1.º, IV, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ). Também a liberdade é enunciada como direito humano
fundamental, aceita aqui em sua concepção mais ampla (entretanto, sempre coadunadacom o
melhor interesse do menor). 46 Os termos aparecem novamente no art. 227 da CF/1988 ( LGL 1988\3
) , que trata dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, ao lado do direito ao respeito.
Repetindo a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , o Estatuto de Criança e do Adolescente enunciou
o direito da criança e do adolescente à liberdade, à dignidade, e ao respeito, fundamentando-o tanto
em sua condição de sujeito em desenvolvimento quanto no fato de serem, também, sujeitos de
direitos civis, humanos e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. J. A. da Silva aponta que
essa tríade liberdade-dignidade-respeito é o cerne da proteção integral conferida à criança e ao
adolescente pela Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (
LGL 1990\37 ) , conferindo à dignidade a primazia entre os três, mesmo em razão de sua prevalência
constitucional. 47
O direito à liberdade é desdobrado no art. 16 do ECA ( LGL 1990\37 ) , englobando uma série de
liberdades garantidas a todos os cidadãos pela Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , em seu art. 5.º,
por inúmeras Convenções e Tratados sobre direitos humanos e, especificamente, pela Declaração
dos Direitos da Criança de 1959 e pela Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (liberdade
de ir e vir, de opinião e expressão, e crença e culto religioso, de participar da vida política). Em
atenção à sua condição de sujeitos em desenvolvimento, o Estatuto da Criança e do Adolescente (
LGL 1990\37 ) ainda assegura à criança e ao adolescente algumas liberdades específicas: de
brincar, praticar esportes e divertir-se; de participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
de buscar refúgio, auxílio e orientação. Contudo, para M. Cury, P. A. Garrido de Paula e J. N.
Marçura, este rol é apenas exemplificativo, podendo serem extraídas deste artigo outras expressões
do direito da liberdade. 48
Em seguida, o art. 17 do ECA ( LGL 1990\37 ) explica no que consiste o direito ao respeito: “O direito
ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Reconhecendo sua condição de sujeitos em
desenvolvimento, o legislador não considerou suficiente tão somente enunciar os direitos
fundamentais da criança e do adolescente, mas ainda reafirmou a necessidade de se respeitar esses
direitos. Tal preocupação não tem caráter meramente simbólico – se manifesta em oposição às
doutrinas anteriormente adotadas pelo legislador brasileiro, que não enxergavam a criança e o
adolescente como sujeitos de direitos a serem respeitados por todos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) ainda menciona o direito ao respeito em
O fenômeno bullying e os direitos humanos
Página 11
outros dispositivos, garantindo que a criança e o adolescente sejam respeitados por seus
educadores (art. 53, II, do ECA ( LGL 1990\37 ) ), pelas entidades que desenvolvem programas de
internação (art. 94, IV, do ECA ( LGL 1990\37 ) ), e quando privados de liberdade (art. 124, V, do
ECA ( LGL 1990\37 ) ). Os mesmos artigos também remetem ao direito à dignidade.
O art. 18 do ECA ( LGL 1990\37 ) trata do direito à dignidade: “É dever de todos velar pela dignidade
da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Referido dispositivo fortalece o já disposto no art. 5.º do
mesmo diploma, que trata da proteção contra “qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”. O direito à dignidade, como já mencionado, também
está presente em outros dispositivos do Estatuto, ao lado do direito ao respeito.
Segundo M. Cury, P. A. Garrido de Paula e J. N. Marçura: “As práticas mencionadas no final deste
artigo atentam contra a honra e respeitabilidade da criança ou adolescente, podendo comprometer o
desejado desenvolvimento sadio e harmonioso (art. 7.º do ECA ( LGL 1990\37 ) ), nos seus aspectos
físico, mental, moral, espiritual e social (art. 3.º do ECA ( LGL 1990\37 ) )”. 49
Não é demais, como já mencionado acima, afirmar que a dignidade é, dentre os direitos analisados
neste tópico, o que norteia todos os outros direitos da criança e do adolescente. A dignidade
mencionada no Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) é derivada diretamente
daquela do art. 1.º, III, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) , lá constante como fundamento da República
Federativa do Brasil – dessa maneira, a garantia da dignidade da criança e do adolescente adquire
especial relevância, figurando como escopo primeiro da proteção integral.
Em atenção a estes direitos, mostra-se de maneira ainda mais clara a interferência negativa do
bullying para seu pleno exercício. O exercício da liberdade de opinião, de expressão e de crença
torna-se prejudicado em um ambiente em que a manifestação do pensamento é tolhida por
intimidação moral e ameaças físicas. Assim, manifestações de bullying direto (apelidos em razão de
opiniões e ideias expressadas, da religião escolhida, manifestações de antissemitismo e
anti-islamismo) e indireto (exclusão social ocasionada por diferenças culturais ou religiosas) levam a
criança e o adolescente a resguardarem-se, deixando de se expressar com liberdade. Ressalte-se
que, como afirma R. J. Elias, 50 o exercício da liberdade psíquica está intimamente ligado à
dignidade.
Prejudicada ainda a liberdade de brincar, praticar esportes e divertir-se. Aqui se manifestam com
mais clareza os efeitos do bullying indireto, uma vez que a maior parte das brincadeiras e dos
desportos são realizados em grupo. A criança e o adolescente vítimas de bullying indireto sentem-se
desestimuladas a participar das atividades coletivas, ou preventivamente – com medo de se
tornarem alvos em razão de seu mau desempenho –, ou como consequência do bullying – devido a
isolamento social já consolidado.
Ainda, impossível pensar na fruição da liberdade de participação da vida comunitária sem
discriminações em um ambiente permeado pela prática do bullying, uma vez que o fundamento de tal
prática é justamente a discriminação entre os infantes pelas mais diversas razões.
Em atenção ao direito ao respeito, notável o óbice que a prática do bullying impõe para seu
exercício. As constantes agressões atingem não só a integridade mental das vítimas, mas muitas
vezes sua integridade física, 51 podendo inclusive recair sobre seus objetos pessoais. 52 Não se
verifica o respeito fundamental à construção de um ambiente escolar saudável e harmonioso, o que
pode prejudicar o desenvolvimento da criança e do adolescente.
A preservação da honra, da imagem e da intimidade da criança e do adolescente se veem
ameaçadas especialmente pela prática do cyberbullying, que além de ter seu alcance expandido ao
nível mundial, potencializando a ofensa à honra e à imagem, tem também natureza invasiva e
persegue a criança em todos os ambientes, violando sua intimidade.
Por fim, anote-se que as práticas objeto da preocupação do art. 18 do ECA ( LGL 1990\37 ) , em
relação à dignidade da criança e do adolescente, são coincidentes com as práticas de bullying:
tratamentos desumanos, violentos, aterrorizantes, vexatórios ou constrangedores. 53 A situação se
agrava diante da emergência do cyberbullying, que passa a perseguir a criança e o adolescente fora
do ambiente escolar, colocando a vítima ao alcance do agressor em qualquer lugar, por meio da
O fenômeno bullying e os direitos humanos
Página 12
facilidade proporcionada pelos instrumentos tecnológicos atuais aos quais toda criança ou
adolescente tem acesso (celular, Internet etc.).
4.3 O direito à educação
Adiante, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) trata do direito da criança e do
adolescente à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, em seu Capítulo IV (arts. 53 a 59).
Especificamente em relação ao direito à educação, o art. 53: “A criançae o adolescente têm direito à
educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania
e qualificação para o trabalho”.
Os arts. 28 e 29 da Convenção sobre os Direitos da Criança tratam expressamente do assunto,
estabelecendo a necessidade de se adotarem todas as medidas para assegurar que a disciplina
escolar seja ministrada de maneira compatível com a dignidade humana da criança, e que o
processo pedagógico se dê de maneira a “a) desenvolver a personalidade, as aptidões e a
capacidade mental e física da criança em todo o seu potencial; b) imbuir na criança o respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais, bem com aos princípios consagrados na Carta das
Nações unidas; c) imbuir na criança o respeito aos seus pais, à sua própria identidade cultural, ao
seu idioma e seus valores, aos valores nacionais do país em que reside, aos do eventual país de
origem, e aos das civilizações diferentes da sua; d) preparar a criança para assumir uma vida
responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de
sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e pessoas de origem
indígena; e) imbuir na criança o respeito ao meio ambiente”.
Trata-se, como se depreende das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL
1990\37 ) , de direito cuja garantia compete ao Estado, família e sociedade, como ademais todos os
direitos enunciados naquele diploma e nas Convenções internacionais, nos termos do art. 227 da
CF/1988 ( LGL 1988\3 ) e do art. 4.º do ECA ( LGL 1990\37 ) . Assim, o Estatuto impõe uma série de
obrigações aos três agentes visando proporcionar à criança e ao adolescente uma educação que
conduza ao “pleno desenvolvimento de sua pessoa”.
O direito à educação também está vinculado à dignidade, como aponta W. D. Liberati: “A
Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , em seus arts. 205 e 214, vem assegurar e disciplinar a
distribuição e implementação do direito à educação, extensivo a todos os brasileiros, em especial à
criança e ao adolescente. (…) Na verdade, quando o Estatuto assegura à criança e adolescente
igualdade de condições para acesso e permanência na escola, o direito de serem respeitados por
seus educadores, o direito de contestar critérios de avaliação, direito de organização e participação
em entidades estudantis, e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência, nada
mais está fazendo que regulamentar a necessidade de se alfabetizar de forma digna, o que os levará
a ter uma convivência sadia e equilibrada na comunidade” (grifo nosso).
Entretanto, também a fruição desse direito se vê prejudicada pela incidência do bullying nas escolas.
Por óbvio que, para que o processo pedagógico se dê de maneira saudável e harmoniosa, é
necessário um ambiente livre de discriminação e práticas atentatórias aos direitos da criança e do
adolescente. Especialistas alertam para os efeitos nocivos do bullying nesse aspecto: as vítimas de
comportamento agressivo podem vir a ter medo de frequentar a escola, substituindo a atenção às
aulas pelo constante temor das brincadeiras e rejeição por parte dos outros alunos. 54 C. Fante
aponta que a incidência do bullying pode provocar dificuldade de aprendizagem, ocasionando queda
do rendimento escolar. 55
5. Tratamento jurídico aplicável ao tema
Elencados os principais direitos da criança e do adolescente constantes da Constituição Federal (
LGL 1988\3 ) , do Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) e das Convenções
Internacionais, passamos agora a uma tentativa de identificar o tratamento jurídico aplicável ao tema.
Tais considerações são de extrema relevância, em face da obscuridade que paira sobre o assunto, e
da pouca jurisprudência que encontramos sobre o tema.
5.1 Defesa dos interesses da criança e do adolescente em juízo: legitimação
É possível enxergar o fenômeno bullying sob dois pontos de vista. O primeiro deles, do ponto de
vista individual da vítima. O segundo, em um aspecto social, do ponto de vista de ofensa aos direitos
O fenômeno bullying e os direitos humanos
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difusos e coletivos da criança e do adolescente. O tratamento jurídico conferido ao tema difere em
razão do ponto de vista posto em foco.
Do ponto de vista individual, cabe à vítima a propositura de ação de reparação por danos materiais
e/ou morais, como será exposto adiante. Neste caso, conforme o art. 142 do ECA ( LGL 1990\37 ) , a
criança ou adolescente menor de 16 anos deverá ser representada por seus pais, tutores ou
curadores, e os maiores de 16 anos e menores de 18, por eles assistidos. Importante ressaltar que,
embora referido artigo mencione que os menores de 21 anos devam ser assistidos, tal disposição foi
modificada pelo Código Civil ( LGL 2002\400 ) de 2002, que estabelece a idade de 18 anos para
aquisição da plena capacidade civil.
É garantido aos que dela necessitarem a assistência judiciária por meio de defensor público ou
advogado nomeado, nos termos do art. 141 do ECA ( LGL 1990\37 ) .
Do ponto de vista coletivo, compete ao Ministério Público a defesa dos direitos e interesses da
criança e do adolescente, conforme dispõe o art. 129, I, CF/1988 ( LGL 1988\3 ) , na medida em que
estabelece competir ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas
necessárias a sua garantia” e “promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
Especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) estabelece, em seu art.
201, V, que: “Compete ao Ministério Público: promover o inquérito civil e a ação civil pública para a
proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência,
inclusive os definidos no art. 220, § 3.º, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ”. Assim, o legislador reconhece a
importância do Ministério Público como defensor dos direitos da criança e do adolescente. Neste
sentido, ressaltando a importância do parquet na defesa dos interesses difusos e coletivos
garantidos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) , A. Chaves,
citando Antônio Fernando do Amaral e Silva: “O Ministério Público não é simples órgão de acusação
ou defesa. Suas funções são mais importantes, transcendem ao mero interesse de aplicação de uma
medida a determinado jovem, para se elevar como órgão responsável pela defesa da ordem jurídica,
dos direitos sociais e individuais indisponíveis”. 56
Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a legitimidade do Ministério Público
para atuar na defesa dos direitos individuais homogêneos referentes à infância e juventude (TJSP,
AgIn 32.986.0/8, j. 12.09.1996, rel. Des. Cunha Bueno).
A legitimidade do Ministério Público para defesa dos interesses difusos e coletivos relativos à
infância e a juventude, entretanto, não é exclusiva, mas concorrente. Assim determina o art. 210 do
ECA ( LGL 1990\37 ) , ao considerar como legitimados concorrentemente a União, os Estados, os
Municípios, o Distrito Federal e os Territórios (inc. II); e as associações legalmente constituídas há
pelo menos um ano 57 e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos por esta Lei, dispensada a autorização da assembleia, se houver prévia autorização
estatutária (inc. III). O § 1.º do art. 210 do ECA ( LGL 1990\37 ) admite o litisconsórcio facultativo
entre os Ministérios Públicos da União e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que
cuida o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) . Ainda, o § 2.º do art. 210 do ECA (
LGL 1990\37 ) determina que, no caso de desistência ou abandono da ação por associação
legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado poderá assumir a titularidade ativa.
A atuação do Ministério Público não se resume, contudo, àpropositura de ações e medidas judiciais
visando a garantir os interesses difusos e coletivos da criança e do adolescente. Nos processos em
que não for parte, o Ministério Público atuará como custos legis (art. 202 do ECA ( LGL 1990\37 ) ),
sendo intimado dos atos pessoalmente (art. 203 do ECA ( LGL 1990\37 ) ) e podendo juntar
documentos e requerer diligências, usando os recursos cabíveis.
A. C. Costa Machado resume a atuação do Ministério Público como custos legis: “Sinteticamente
podemos, então, traduzir a função do Ministério Público neste caso como sendo a de velar pela
regularidade formal do processo e suprir toda inatividade probatória das partes e do juiz, com vista
ao descobrimento da verdade e a perfeita definição jurisdicional dos direitos indisponíveis”. 58
A ausência de intervenção do Ministério Público como custos legis nos processos em que não for
parte acarreta a nulidade do feito, e será declarada de ofício pelo juiz ou a requerimento de qualquer
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interessado (art. 204 do ECA ( LGL 1990\37 ) ). Em razão da possibilidade de declaração ex officio,
entende-se tratar de nulidade absoluta. Assim entende V. K. Ishida: 59 “Na hipótese de procedimento
sem a abertura de possibilidade de manifestação do Ministério Público, ter-se-á nulidade absoluta,
devendo ser declarada de ofício pelo juiz”.
Ainda, importante ressaltar que, dependendo da gravidade do ato, a prática do bullying pode
configurar ato infracional, concebido nos termos do art. 103 do ECA ( LGL 1990\37 ) : “Considera-se
ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Assim, as práticas agressoras
podem se assemelhar ao crime de dano, lesão corporal, entre outros. Não abordaremos no presente
trabalho o bullying entendido como ato infracional. Contudo, neste item, cabe mencionar que
compete ao Ministério Público a apuração dos atos infracionais cometidos por crianças e
adolescentes, nos termos do art. 201, II, do ECA ( LGL 1990\37 ) .
5.2 Responsabilidade e prevenção em face da ocorrência do bullying
Dispõe o art. 927 do CC/2002 ( LGL 2002\400 ) , que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187 do
CC/2002 ( LGL 2002\400 ) ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Ato ilícito, por sua vez,
é aqui entendido como “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência” que “violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”, conforme art. 186 do CC/2002 ( LGL
2002\400 ) .
Já foi demonstrado no decorrer do trabalho em que medida e dimensão a prática do bullying
configura um ato ilícito, em razão dos limites que impõe aos direitos garantidos no âmbito nacional e
internacional às crianças e adolescentes. Diante disso, imperioso concluir que a prática do bullying
pode dar ensejo a responsabilidade civil, quando causar dano, ainda que exclusivamente moral, às
suas vítimas.
Necessário, entretanto, como em toda averiguação de responsabilidade, provar a presença dos
elementos que lhe são essenciais: o nexo causal entre a conduta perpetrada e o dano, e a efetiva
ocorrência deste. Comprovados estes dois elementos, surge a obrigação de indenizar.
Assim, ainda quando o ato ilícito não é o único causador do dano, mas concorre de maneira efetiva e
conclusiva para a ocorrência daquele, presente o nexo causal necessário para a configuração da
responsabilidade civil.
A doutrina e a jurisprudência (ambas incipientes) oscilam na identificação do titular da obrigação de
indenizar a vítima do comportamento agressivo, ora atribuindo-a à instituição de ensino, ora aos pais,
ora ao Estado. Não é difícil entender o porquê desta oscilação, uma vez que o ordenamento jurídico
atribui ao Estado, à família e à sociedade a proteção e o respeito aos direitos da criança e do
adolescente. Paira, portanto, a dúvida sobre quem deve ser responsabilizado nos casos de bullying.
Passamos a analisar as soluções formuladas pelos intérpretes e aplicadores do direito, dando
destaque aos casos de cyberbullying, em que a jurisprudência se afigura um pouco mais volumosa.
5.2.1 Responsabilidade da escola
A escola tem importante e imprescindível papel na formação a criança e do adolescente pra a vida
adulta. Não é por outra razão que o Estatuto da Criança e do Adolescente ( LGL 1990\37 ) impõe à
escola o dever de promover a educação visando ao “pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo
para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (art. 53 do ECA ( LGL 1990\37 ) ).
Ensina E. C. B. Bittar 60 que “a dignidade da criança, do adolescente, da família, do Estado e da
própria nação está na dependência dos cuidados que uma sociedade possui para com o ensino”. Se
o ensino deve proporcionar educação, depende do bom êxito da prática educacional o
desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. “Dessa forma é que se deve cercar de todas as
medidas possíveis para seu desenvolvimento e sua natural infiltração na consciência das pessoas e
no inconsciente coletivo”, criando e disseminando, dessa maneira, uma cultura dos direitos humanos.
Seja privada ou particular, a escola é instituição de ensino com atribuições delegadas pelo Poder
Público, que admite a prestação de serviços de educação por entidades particulares, desde que
respeitadas as normas gerais da educação nacional e concedida autorização (art. 209 da CF/1988 (
LGL 1988\3 ) ). Como tal, está sujeita às normas do Código de Defesa do Consumidor ( LGL 1990\40
) , que define fornecedor como “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
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estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvam atividades de produção,
montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou
comercialização de produtos ou prestação de serviços”, e “serviço” como “qualquer atividade
fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração (…) salvo as decorrentes das relações de
caráter trabalhista”. Cabe destacar que o fato de a escola ser pública, e consequentemente prestar
serviço sem remuneração direta, não a exclui do conceito de fornecedor, pois é prestadora de
serviço público remunerado indiretamente. 61
Nesses termos, importante considerar que a entidade de ensino é investida no dever de guarda e
preservação da integridade física e psicológica do aluno, com a obrigação de empregar a mais
diligente vigilância, objetivando prevenir e evitar qualquer ofensa ou dano decorrente do convívio
escolar. Ainda, como entidade-membro da sociedade, a instituição de ensino é também responsável
pela promoção e garantia dos direitos das crianças e adolescentes, devendo zelar pelo bem-estar
entre os alunos em seu ambiente e pela promoção da inclusão social, nos termos do art. 227 da
CF/1988 ( LGL 1988\3 ) e art. 3.º do ECA ( LGL 1990\37 ) .
Nos termos do art. 14 do CDC ( LGL 1990\40 ) , a responsabilidade do fornecedor de serviços é
objetiva. 62 O Código de Defesa do Consumidor ( LGL 1990\40 ) determina que o serviço é defeituoso
quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em conta
especialmente o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam (art. 14, § 1.º, do CDC (
LGL 1990\40 ) ).
Nesse sentido, C. L. Marques: “A responsabilidade imposta pelo art. 14 do CDC ( LGL 1990\40 ) é
objetiva, independe de culpa e com base no defeito, dano e nexo causal entre o dano ao
consumidor-vítima (art. 17) e o defeito do serviço prestado no mercado brasileiro. Com o Código de
Defesa do Consumidor ( LGL 1990\40 ) , a obrigação conjunta de qualidade-segurança, na
terminologia de Antônio Herman Benjamin, isto é, de que não haja um defeito na prestação do
serviço e consequente acidente de consumo danoso à segurança do consumidor-destinatário final do
serviço, é verdadeiro dever imperativo de qualidade (arts. 24 e 25 do CDC ( LGL 1990\40 ) ), que
expande para alcançar todos os que estão na cadeia de fornecimento, ex vi art. 14 do CDC ( LGL
1990\40 ) , impondo a solidariedade de todos os fornecedoresda cadeia, inclusive aqueles que a
organizam, os servidores diretos e os indiretos (art. 7.º, parágrafo único, do CDC ( LGL 1990\40 ) )”.
63
Quando se matricula uma criança ou um adolescente em uma escola, o resultado esperado é que se
promova sua educação de acordo com os princípios estabelecidos nas normas gerais da educação
nacional, bem como na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) e no Estatuto da Criança e do
Adolescente ( LGL 1990\37 ) , quais sejam, o zelo pelo desenvolvimento saudável e harmonioso de
todos os alunos, proporcionando uma convivência comunitária livre de violência e discriminação. Por
sua vez, a escola deve ter ciência dos riscos existentes em relação aos serviços prestados, sendo
um deles a própria ocorrência do bullying.
Ao não tomar conhecimento deste risco, ou negligenciá-lo, deixando de tomar todas as medidas
necessárias e possíveis para sua prevenção e para garantia de um bom processo educacional, a
escola incide em ato ilícito, ensejador de sua responsabilidade objetiva.
Nesse sentido, decisão do TJSP, cuja ementa transcrevemos abaixo:
“Responsabilidade do Estado. O Município é responsável por danos sofridos por aluno, decorrentes
de mau comportamento de outro aluno, durante o período de aulas de escola municipal. O descaso
com que atendido o autor quando procurou receber tratamento para sua filha se constitui em dano
moral que deve ser indenizado” (TJSP, Ap 7109185000, j. 11.08.2008, rel. Des. Barreto Fonseca).
Caso mais emblemático e que merece análise mais detida foi o ocorrido no Município de
Ceilândia/DF. O julgado foi a primeira decisão a abordar especificamente o problema do bullying
escolar.
Trata-se de ação de responsabilidade civil proposta pelo menor vítima de bullying em face da escola
em que ocorreram os fatos. Da narrativa do autor, evidente a configuração do fenômeno, constituído
no caso de um conjunto de agressões físicas e psicológicas, que ensejaram a necessidade de
tratamento psicológico e hospitalar em face dos traumas vivenciados.
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A ação foi julgada improcedente pelo Juízo de 1.ª instância. Embora tenha reconhecido a
responsabilidade objetiva do estabelecimento de ensino pelos eventuais danos que os alunos
venham a sofrer no interior das dependências da instituição, entendeu por não verificado o nexo
causal apto a justificar a responsabilização da escola. Seguem os trechos relevantes da decisão:
“Inicialmente deve ser analisado o tipo de responsabilidade do réu. Tendo em vista o tipo de
atividade desenvolvida pelo réu, instituição de ensino com atribuições delegadas pelo Poder Público,
e por se tratar de prestação de serviço sujeita às regras do Código de Defesa do Consumidor ( LGL
1990\40 ) , efetivamente é objetiva a responsabilidade pelos eventuais danos que seus alunos
venham a sofrer no interior das dependências da instituição, especialmente quando provocados por
outros alunos, também menores de idade, pois todos se encontram sob a guarda do colégio. À vítima
cabe o dever de demonstrar o dano e o nexo causal, não havendo de se falar em culpa.
Da análise dos autos está claro que o autor sofreu agressões físicas e verbais por parte de alguns
colegas de turma, e isso se deu no interior do colégio, muito embora o fato seja negado de forma
veemente pelo réu. A confirmar tais agressões as anotações apresentadas pelo colégio relativas às
medidas adotadas para coibir a continuidade de agressões entre as crianças, o depoimento das
testemunhas F. P. P. e R. R. S., f., além da anotação na agenda escolar de Y., feita pelo coordenar
pedagógica J., na qual informa à mãe da criança sobre uma agressão praticada contra Y. por um
colega de turma, f.. Ainda a confirmar as lesões, o auto de lesões corporais de f., onde foi constatada
a presença de lesões leves de natureza contusas.
Ocorre que essas agressões, por si só, não configuram responsabilidade do réu, tendo em vista ser
fato corriqueiro que crianças na faixa etária em que se encontrava o autor e os demais colegas na
época, entre os sete e oito anos de idade, geralmente trocam agressões e se portam de forma
desafiante umas com as outras. Nas escolas geralmente eclodem diversos conflitos entre colegas de
turma, as crianças, especialmente os meninos, buscam se afirmar e infelizmente buscam justamente
os alunos novatos, os tímidos, os com algum desajuste ou insegurança para fazerem brincadeiras
desagradáveis, que quase sempre terminam em troca de agressões verbais ou físicas.
Qualquer pessoa que tenha filhos ou contato mais estreito com crianças nessa faixa etária tem
conhecimento desses fatos que não passam despercebidos aos educadores, a quem compete zelar
pela incolumidade dos alunos, para evitar que disputas normais entre crianças acabem redundando
em troca de agressões e danos físicos e morais em qualquer dos envolvidos. Isso é um desafio em
qualquer escola, seja pública ou privada.
(…)
Vejamos, na inicial narra o autor haver sofrido dano moral decorrente da dificuldade de aprendizado
e de entrosamento com terceiros em razão de reiteradas agressões que sofria dos colegas de classe
no interior do colégio. Contudo, ao chegar ao colégio no ano de 2005 já estava com déficit de
aprendizagem, não se adaptou facilmente, e nos relatos da coordenação consta que já trouxe para o
colégio a dificuldade de interagir com os colegas. Portanto, se Y. apresenta tais distúrbios, eles não
são recentes ou necessariamente decorrem dos eventos de sua vida estudantil no ano de 2005.
Por outro lado, não pode ser olvidado que as agressões físicas, por si só, configurariam dano moral
cuja responsabilidade de indenização seria do colégio, em razão da sua responsabilidade objetiva,
que não se afasta por terem sido praticadas por outros alunos, menores, já que nas dependências do
colégio e enquanto deveria ser mantida vigilância sobre as crianças.
Ocorre que a troca de agressões leves entre crianças é algo tão comum que mesmo no seio da
família estão sempre acontecendo, mesmo entre irmãos. Os responsáveis, por maior que seja a
vigilância, não conseguem evitar que vez ou outras as crianças entrem em atrito e troquem
agressões. Exigir isso em um colégio não seria razoável, dificilmente as crianças ficam sem trocar
uma ou outra agressão que, desde que leves e sem maiores consequências, fazem parte do
crescimento e desenvolvimento de toda criança, mas de toda forma precisam ser observadas e
coibidas pelos educadores para evitar o aumento do conflito e danos físicos ou psicológicos aos
envolvidos, e se assim não agem respondem de forma objetiva pelos danos sofridos pelo seu aluno.
Nesse contexto, para se analisar a conduta do réu, e determinar se a sua postura esteve adstrita à
legalidade ou se atuou de forma negligente e omissa, como afirmado na inicial, faz-se necessário um
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exame acurado da prova documental carreada aos autos, em especial dos registros escolares
mantidos pelo colégio e das anotações da agenda escolar de Y., afastando-se de qualquer forma o
exagerado relato da testemunha R. R. S., pois se os fatos houvessem ocorrido da forma como
informou, a mãe da criança teria adotado uma providência enérgica naquela data, mês de abril ou
maio de 2005, o que não se observa nos registros, pois apenas em outubro de 2005 agiu com maior
rigor, quando conduziu o filho até o IML.
(…)
Deve ser ressaltado que, pelo teor dos documentos e depoimentos prestados em audiência, Y.,
como qualquer criança nessa idade, não era apenas vítima, mas também trocava agressões e por
vezes provocava os colegas, fatos que estavam sendo acompanhados de perto pela orientação
pedagógica do colégio, tanto que no primeiro mês do aluno no colégio já haviam detectado algumas
dificuldades que acabaram sendo trabalhadas durante o ano letivo e por fim foram bem sucedidos,
pois Y., apesar de todas as dificuldades de aprendizado e dos constantes desentendimentos com
alguns colegas, apresentou melhora significativa no final do ano letivo e conseguiu

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