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Quincas Borba (1886-1891) 1. RESUMO Após a morte de sua irmã, Maria de Piedade, Pedro Rubião se aproxima do filósofo Quincas Borba, com quem a defunta casaria. O filósofo era muito rico, mas tinha problemas de saúde, assim após a morte de Quincas Borba, Rubião se torna herdeiro universal, contanto que cuidasse do cachorro, o qual possuía o mesmo nome do dono devido sua filosofia do “Humanitismo”. FRAGMENTOS: “-Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber nome de gente, seja cristão ou muçulmano...”. “[...] rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é uma condição de sobrevivência de outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. [...]”. Subitamente enriquecido, Rubião se muda para o Rio de Janeiro e já na viagem conhece o casal Sofia e Cristiano Palha, que se comprometem a apresentar-lhe a corte e cuidar para que ele não seja alvo de aproveitadores. De fato, Sofia e Cristiano logo incluem Rubião em seu círculo de amizades. FRAGMENTO: “Se algumas pessoas deixaram de comparecer, para não assistir a glória de Rubião, muitas outras foram – e não da ralé -, as quais viram a compunção verdadeira do antigo mestre de meninos”. Com a convivência, nasce o interesse de Rubião pela bela Sofia. Ela logo percebe a paixão que provoca, utilizando-se disso para envolver ainda mais o milionário. Acreditando-se correspondido, Rubião se declara à amada durante um baile. Sofia comenta com o marido a ousadia do convidado, mas Cristiano tenta diminuir a ira da esposa, comentando que já devia muito dinheiro a Rubião. O marido ainda sugere que ela alimente aquele sentimento, para que eles possam continuar a explorar o pobre milionário. FRAGMENTOS: “[...] os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos compará-los à lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes. A lanterna fazia parar toda gente, tal era a lindeza da cor, e a originalidade dos emblemas, parava, olhava e andava. Para que escancarar as janelas? Escancarou-as, finalmente, mas a porta, se assim podemos chamar o coração, estava trancada e retrancada [...]”. “– Com uma diferença – continuou Rubião – As estrelas são ainda menos lindas que os seus olhos, e afinal nem sei mesmo o que elas sejam; Deus, que as pôs tão alto, é porque não poderão ser vistas de perto sem perder muito da formosura... Mas os seus olhos, não; estão aqui, ao pé de mim, grande luminosos, mais luminosos que o céu...” Frustradas suas tentativas amorosas, Rubião decide deixar o Rio de Janeiro. Cristiano fica preocupado com a notícia, que o afasta de sua principal fonte de renda. Por isso, insiste com o amigo para que fique, acenando com futuros reencontros com Sofia. Acompanha-o nessa tentativa certo Camacho, político que também tira vantagem da bondade e da ingenuidade de Rubião. Convencido, este decide permanecer no Rio de Janeiro. Rubião e Cristiano se tornam sócios em uma importadora, Palha & Cia. Com o tempo, o capitalista passa a administrar os bens e a fortuna do mineiro. A condição de vida do casal Palha melhora a olhos vistos. Rubião continua a frequentar-lhes a casa. Passa a sentir ciúmes crescentes do jovem Carlos Maria, que dirige gracejos a Sofia. Atingindo o estado de desespero, Rubião chega certa vez a gritar com Sofia, insinuando o adultério. A mulher contorna a situação e prova sua inocência, posteriormente confirmada com o casamento de Carlos Maria com Maria Benedita, prima de Sofia. FRAGMENTO: “Não menos o é que Sofia valsava e polcava com ardor, e ninguém se pendurava melhor do ombro parceiro; Carlos Maria, que era raro dançar, só valsava com Sofia – dois ou três giros, dizia ele – Maria Benedita contou uma noite quinze minutos”. Cristiano rompe a sociedade com Rubião, alegando a necessidade de desligar-se da empresa a fim de capacitar-se a assumir cargos no sistema financeiro. Na verdade, já estabelecido, Cristiano quer continuar a conduzir sozinho os seus negócios. Sofia também se afasta de Rubião, recusando seus insistentes convites para passeios. Enlouquecido de desejo, Rubião visita Sofia, mas a encontra de saída. Quando ela sobe na carruagem que a espera, ele também entra, intempestivamente, baixando em seguida as cortinas. Mais uma vez, declara- se a ela, desta vez acrescentando ser Napoleão III e ela, sua amante. Sofia percebe a demência de Rubião. Logo, a notícia se espalha por toda a cidade. Seus delírios se acentuam à mesma proporção em que seu patrimônio diminui. Por insistência de amigos, os Palha assumem a responsabilidade de cuidar do doente. Como primeira providência, transferem-no para uma casa mais humilde. Os acessos de loucura continuam e Rubião acaba internado em um hospício. Rubião foge e, acompanhado do cão, retorna a Barbacena. Ninguém os recebe e os dois acabam dormindo na rua. No dia seguinte, Rubião morre, ainda acreditando ser um imperador francês. 2. CONTEXTO Machado de Assis: Machado de Assis está definitivamente associado ao realismo brasileiro. E com razão: a busca da verdade era um dos traços mais marcantes tanto da escola quanto de sua obra. Para os realistas, essa verdade poderia ser alcançada por intermédio dos recursos da ciência, do Positivismo, do Determinismo, do Evolucionismo. No entanto, Machado foi além, questionando até mesmo os fundamentos realistas Importância do livro: Quincas Borba não é o romance mais conhecido de Machado de Assis – posto disputado por Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro –, mas tem a mesma relevância. Diferentemente do que acontece nessas obras, o narrador, aqui, se apresenta sob o foco da terceira pessoa, mas nem por isso deixa de haver o mesmo questionamento da verdade que caracterizava o autor. Período histórico: A segunda metade do século XIX é um momento de transformações profundas na sociedade brasileira: sua diversificação abre novas oportunidades, ampliando horizontes. Da mesma forma – segundo a sugestão do romance – também surgem novas falcatruas e novos enganadores. São os ladrões de sempre, mas agindo com sutileza maior. 3. ANÁLISE O HUMANITISMO Quincas apareceu pela primeira vez na narrativa de Brás, como um amigo dos tempos da escola primária que se fazia de “imperador nas festas do Espírito Santo” (ASSIS, 1997, p. 43-44, grifo nosso); era um menino gracioso, inteligente e abastado, contudo uma vida de misérias o transformou em “maltrapilho avelhantado” (ASSIS, 1997, p. 99), um verdadeiro mendigo. Ainda que o amigo de Brás tivesse passado por situações difíceis, ele não manifestava uma “resignação cristã”, tampouco “conformidade filosófica”. A miséria teria atingido Quincas de tal modo que “lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça indolente”. Brás Cubas mostrou disposição em ajudá-lo, arranjando-lhe “alguma coisa”. Porém, Quincas Borba não queria trabalhar, desejara apenas dinheiro, e Brás lhe ofereceu “uma nota de cinco mil réis” dizendo ao amigo “Pois está em suas mãos ver outras muitas [...] Trabalhando”. A resposta de Quincas não foi nada receptiva: “fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes” e depois disse que “não queria trabalhar” (ASSIS, 1997, p. 100). É possível captar uma concepção depreciativa do trabalho que permearia toda a narrativa de Brás Cubas, com seu ápice no capítulo final do romance: “coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto” (ASSIS, 1997, p. 193). Quincas expunha sua “filosofia da miséria”; depois, por meio de um abraço em Brás, furtou-lhe o relógio do bolso. Brás, então, refletiu sobre a necessidade de regenerar Quincas Borba, de o “trazer ao trabalho e ao respeitode sua pessoa” (ASSIS, 1997, p. 102). No capítulo CIX, porém, descobriremos que Quincas “herdara alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena” (ASSIS, 1997, p. 151). Sem qualquer esforço, o filósofo obtivera dinheiro e pôde, enfim, formular o Humanitismo, filosofia destinada a arruinar todos os outros sistemas filosóficos. Esse sistema exposto em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba é “o princípio das coisas”, “substância original” que se multiplica e se manifesta em todos os homens e em todas as coisas: “repartido e resumido em cada homem” (ASSIS, 1997, p. 158-159). Essa filosofia foi aplicada por Quincas a suas observações sobre a organização social do Brasil. Para nós, leitores atuais, ela converte-se em uma justificativa patriarcal para as mazelas sociais do Brasil Império, estruturado pela instituição da escravidão. A exposição mais prática dessa filosofia foi proferida por seu próprio autor em Quincas Borba, capítulo VI, numa conversa entre o filósofo e Rubião. Quincas falava da morte da avó, vítima de um desastre no largo do Paço, e concluía que a tragédia poderia ter se abatido sobre qualquer outra pessoa ou qualquer outra coisa: daria na mesma, pois, segundo Quincas, “o primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome” (ASSIS, 1891, p. 11). Isso dera ensejo para o filósofo falar sobre o que é a morte e a vida, a saber: manifestações de Humanitas, ou o princípio indestrutível, que “resume o universo e o universo é o homem” (ASSIS, 1891, p. 13). Rubião não entendera muito bem a explanação filosófica sobre a manifestação de Humanitas e a morte da avó de Quincas, por isso este tentava explicitar a ideia. Rubião ouvia a inflamada palestra filosófica e ainda encontrara fôlego para questioná-la: “Mas, e a opinião do exterminado?”. A réplica do filósofo se segue como consequência de sua premissa: “Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar- te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias”. Ainda assim, Rubião tenta questionar: “Bem; a opinião da bolha...”; mas o filósofo continua, abruptamente: “Bolha não tem opinião” (ASSIS, 1891, p. 15). Nesse ponto inicial da narrativa, Rubião se identificara com o vencido. Era um pobre trabalhador que já havia lecionado e tentado a sorte em outros ofícios. Para ele, era difícil penetrar a lógica do discurso de Quincas; assim como o africano transportado de Angola, Rubião integrava uma cadeia de “esforços e lutas” compostos com a única finalidade de servir a pessoas como Quincas. O Humanitismo, nesse contexto, é um recurso complexo. Ele atribui caráter de necessidade aos atos cometidos pela pura manifestação da vontade patriarcal, como se pode observar na falta de qualquer justificativa plausível nos argumentos apresentados por Quincas Borba. Para Magalhães Azeredo, autor de uma longa crítica publicada em O Estado de S. Paulo – contemporânea à publicação de Quincas –, o Humanitismo ditou que “todas as complicações se resolvem pela regra de Hobbes: o mais forte devora o mais fraco; logo, a maior felicidade é ser forte, descender do peito ou dos rins de Humanitas; a única desgraça é não ter nascido” (GUIMARÃES, 2012, p. 356). A identificação realizada por um leitor contemporâneo entre o Humanitismo e a filosofia de Thomas Hobbes exposta em Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1935, tradução própria) é sugestiva. A despeito da simplificação da tese hobbesiana realizada por Azeredo, de fato existem alguns pontos em comum entre a tese do filósofo fictício de Machado de Assis e a filosofia política de um dos principais teóricos do Absolutismo, sobretudo no que concerne à composição da sociedade. Araripe Junior, outro contemporâneo, identificou na filosofia de Quincas, no que concerne à luta pela sobrevivência, “os paradoxos de Xenófanes, de Parmênides, de Górgias, de Leontium e tantos outros célebres sofistas da antiguidade grega”. Todavia, as referências mais interessantes que Araripe encontrou são as duas filosofias do século XIX “que mais se tem hostilizado” (GUIMARÃES, 2012, p. 366), o positivismo do filósofo francês August Comte e a teoria do naturalista britânico Charles Darwin, esta inspiradora do darwinismo social e do evolucionismo. Segundo o crítico, Quincas pretendera que aqueles dois sistemas se conectassem. No caso do discurso filosófico construído por Machado de Assis, por meio do Humanitismo de Quincas, visava-se a refletir sobre como teorias científicas e filosóficas populares no Brasil a partir do final da década de 1870 tinham a capacidade de construir um discurso superficial e, ao mesmo tempo, perigoso, para sustentar hierarquias e desigualdades sociais. Deve-se notar que a preocupação de Machado em abordar esse tipo de discurso filosófico reflete, também, um compromisso literário. Além disso, também se pode notar uma crítica machadiana mais pontual e refinada, por meio do Humanitismo, que faria referência alegórica ao suposto Absolutismo exercido por D. Pedro II, sobretudo em relação à sua escolha voluntariosa de gabinetes e ao processo eleitoral como um todo, questões que foram debatidas com especial atenção pelos liberais após a queda do Gabinete composto pelo liberal Zacarias, em 1868. RELAÇÕES SOCIAS O ingênuo professor Rubião descobre a maldade humana ao se muar para a corte. As manifestações de amizade que recebe por parte do casal Palha só são verdadeiras para sua credulidade provinciana. Mas Rubião não é uma caricatura do caipira enganado na cidade grande. Convém recordar, nesse sentido, que sua própria relação com o filósofo Quincas Borba tinha algo de interesse e que ele só resgatou o animal de estimação do amigo morto depois de conhecer a determinação do inventário. Tais circunstâncias mostram que Rubião não era assim tão inocente. A falta de escrúpulos do casal Palha é apenas a evidência mais clara de comportamentos que, na verdade, atingem outras personagens do livro. Cristiano e Sofia representam verdadeiras paródias da crença romântica na sinceridade humana: o primeiro é um falso amigo, enquanto a segunda usa as armas da sedução para manter o pobre Rubião sob controle e para permitir ao marido uma exploração constante. ADULTÉRIO A temática da traição, sempre presente nas obras do autor, é insinuada no interesse que Sofia manifesta pelos homens que a cortejam – como Rubião e Carlos Maria. Não chega a perpetrar-se, contudo, talvez porque a moça encontre no marido o seu melhor parceiro no ludibrio e no engodo – esta sim, a temática central da obra. A perspectiva de adultério se dá em meio a uma narrativa cheia de dubiedades que vão desde a caracterização do auto-engano contínuo de personagens cruciais como Rubião e Sofia até a suspeita do adultério entre Sofia e o enfatuado Carlos Maria, à qual nós, leitores desavisados, somos levados para sermos quase ridicularizados pelo perverso narrador. SOCIEDADE PARASITÁRIA O que a generalização do engodo sugere é a existência de uma sociedade improdutiva e parasitária, dissimulada sob máscaras de duvidosas transações financeiras e falsos elogios nos jornais. Uma sociedade na qual o jogo de aparências exerce uma ação poderosa e irresistível. Um diretor de banco é humilhado em uma visita ao Ministro e desconta em Cristiano Palha, tratando-o da mesma forma; o próprio Rubião, senhor de sua fortuna, sente-se pequeno ao se deparar com a suntuosidade de uma baronesa do Império. Assim, a demonstração de poder é mais importante que o poder em si, que permanece mascarado.
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