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TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Eduardo Pacheco Freitas História, linguagem e narrativa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir a especificidade da narrativa histórica nas ciências sociais e na história. Identificar as construções constituintes do discurso histórico na escrita da história. Analisar as relações entre a história, o simbólico e o imaginário. Introdução A partir da segunda metade do século XX, o campo da história foi re- novado, com a definição de novos objetos de estudo. A história passou por um verdadeiro desafio, proposto pelas ciências humana e da co- municação. Linguística, psicologia, antropologia, sociologia e etnologia tornaram-se referências para o ofício do historiador, ampliando-se assim seus horizontes temáticos e de pesquisa na interface com essas ciências. Dentre as novas perspectivas historiográficas, ganharam relevância as conexões entre história e narrativa, o estudo da linguagem e a intersecção entre mentalidade, imaginário e simbólico com a história. Assim, novos estudos surgiram, contribuindo decisivamente para a criação de novas subespecialidades no campo da historiografia. Neste capítulo, você vai compreender a especificidade da narrativa histórica e compreender como esta e o discurso histórico são constituídos. Você também vai entender as relações entre a história, o simbólico e o imaginário. A narrativa histórica e suas especificidades O conceito de narrativa histórica Provavelmente, quando você lê ou ouve a palavra narrativa, a primeira coisa que lhe vem à mente é uma história contada, seja oralmente, seja de maneira escrita. Isto é, algo que foi ou é narrado por alguém. De certa forma, é isso que ocorre quando um historiador, com base em suas fontes, produz seus artigos ou livros. Ele está contando uma história, reconstruída no presente, através de uma narrativa de eventos ocorridos no passado, que são explicados à luz de seu arcabouço teórico. No entanto, no âmbito das ciências sociais e da história, o termo adquire conotações bastante específi cas (não raro polissêmicas), o que exige um estudo mais aprofundado a respeito. Desde os tempos mais remotos, o ser humano conta histórias, frequente- mente representações da forma como sua respectiva sociedade vê a si mesma e o mundo ao seu redor. Com a narrativa histórica acontece o mesmo, pois ela é sempre produto da sua época. Um historiador do século XXI não pesquisa a história, não a compreende e não escreve seus trabalhos da mesma forma que um historiador do século XIX. Isso se dá devido a uma série de fatores, sejam eles materiais, sociais, culturais e/ou ideológicos. Todos esses elementos exercem influência preponderante na historiografia. Aliás, o estudo da história da historiografia acaba nos mostrando que um trabalho histórico diz tanto sobre sua própria época quanto sobre o passado que busca narrar. Nesse aspecto, convém lembrarmos da importância que a cultura histórica adquire nas instituições sociais. De acordo com Rüsen (2014, p. 102): “[...] nenhum sistema de dominação pode renunciar à cultura histórica enquanto instância de legitimação, e a crítica da legitimação sempre recorre também à argumentação história”. Ou seja, a história possui seus usos sociais, calcados sobre os diferentes modos em que a consciência histórica atua (funcional, reflexivo e pragmático), sobretudo no modo “funcional”. Neste modo, a cons- ciência histórica é um fator da realidade, situando-se onde os seres humanos são “construídos”, ou seja, nas instituições em que recebem sua formação cultural, tais como a escola e a família (RÜSEN, 2014). Mas para que você possa entender melhor a relação entre narrativa e pes- quisa histórica, devemos, inicialmente, conceituá-la. De acordo com White (1995, p. 11): “[...] o trabalho histórico [...] é uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa”. A narrativa histórica é composta em primeiro lugar por fatos, e estes fatos são explicados por conceitos teóricos, História, linguagem e narrativa2 caracterizando a estrutura verbal e discursiva recém-referida. Em um segundo momento, esta estrutura, apresentada em forma de texto, nada mais é do que a representação, de maneira encadeada, do conjunto desses acontecimentos que tiverem lugar no passado. O giro linguístico (linguistic turn) Em meados do século XX, a historiografi a sofreu uma grande reviravolta a partir do que se convencionou chamar de “linguistic turn” (giro linguístico), iniciado pelo historiador americano Hayden White (1928–2018), um dos grandes teóricos da história do século passado. De acordo com Silva (2015), o giro linguístico foi um verdadeiro “desafi o” à historiografi a, como veremos adiante. Antes é preciso estabelecermos defi nições precisas para conceitos importantes dentro da historiografi a. O primeiro deles é o conceito de “acontecimento”. O objeto principal da história são os acontecimentos, ou seja, aqueles fatos ocorridos e que não se repetirão. Mas a questão se torna um pouco mais complexa quando percebemos que não é qualquer acontecimento que se torna objeto da história, devendo existir, então, algo que particularize este evento a fim de torná-lo “histórico”. Dessa forma, é preciso descartar a materialidade de um acontecimento como fator que o faça ser objeto da história. Um exemplo esclarecedor: a população de Paris passava diariamente em frente à Bastilha, mas somente no dia 14 de julho de 1789 é que ela foi tomada por essa mesma população, dando início à Revolução Francesa. Portanto, “[...] o que definitivamente individualiza um acontecimento é o fato de que ele acontece em um determinado momento” (CARDOSO JÚNIOR, 2005, documento on-line). Paul Veyne (1930–), historiador francês, pode ser reconhecido como o criador do conceito de “acontecimento” no âmbito da história. Veyne tornou-se uma referência nos estudos sobre a epistemologia das ciências humanas, procurando estabelecer conexões entre o trabalho narrativo do historiador e seus esforços teórico-conceituais. Aproximando-se teoricamente da filosofia de história de Michel Foucault (1926–1984), a obra de Veyne esforça-se, através da articulação entre filosofia e história, em determinar as condições históricas que possibilitam os “acontecimentos”. 3História, linguagem e narrativa O segundo conceito é o “discurso”. Desde os trabalhos pioneiros da escola dos Annales, houve uma multiplicação dos discursos historiográficos. Desde a história cultural, passando pela história das ideias e chegando à micro-história, o trabalho do historiador foi retalhado em diversas subespecialidades, cada qual com seus respectivos discursos. Mas afinal, o que se deve entender por “discurso” na produção do historiador? É especificamente o seu trabalho, o relato que ele produz sobre os acontecimentos, ao buscar reconstituir, através de um processo narrativo lógico, os fatos do passado. Nesse processo, utiliza- -se de aparatos conceituais específicos, de maneira que cada tipo de produção historiográfica irá lançar mão de seus próprios conceitos, que determinam, assim, o formato discursivo. A partir do uso da expressão “giro linguístico”, decorre um debate envolvendo aquilo que se diz sobre o real e a forma como é dito (isso é importante, pois tange diretamente o trabalho do historiador, que é por definição narrativo). A discussão gira em torno da seguinte pergunta: o objeto da interlocução (aquilo sobre o que o historiador está falando) é uma questão de linguagem ou uma questão de fato? É dessa forma que se estabelece o interesse da filosofia da linguagem pela história. Para o filósofo Jacques Derrida (1930–2004), o discurso é autorreferente, ou seja, nada há fora dele, havendo assim a autonomia da lin- guagem, que é contida em si própria. Roland Barthes (1915–1980) é ainda mais radical que Derrida, e propõe que o fato possui somente existência linguística. De acordo com Silva(2015, documento on-line): [...] o giro linguístico veio a tornar-se um rótulo conveniente para evocar a afirmação de que a linguagem é autorreferente. Ou seja, no lugar da ideia de que a linguagem se constitui basicamente como um meio para referir-se a objetos do mundo real (portanto como um elemento neutro para referir-se, nomear ou qualificar o real), ela possui sua especificidade e está longe de ser neutra. Assim, é ponto pacífico que o historiador não possui neutralidade ao pro- duzir sua narrativa, já que é impossível que qualquer tipo de discurso se refira à realidade sem qualificá-la. No entanto, ao se falar em giro linguístico no âmbito da história, estabelece- -se associação imediata com Hayden White (1928–2018). White inspirou-se nos trabalhos de Derrida e Barthes para criar sua própria teoria a respeito da linguagem na história, explicitada no livro Meta-história, publicado em 1992. Para White, a narrativa histórica, na sua impossibilidade de apreender objeti- vamente os acontecimentos históricos, já que o historiador não possui acesso direto a eles, trata-se exclusivamente de uma produção literária. Este foi o grande História, linguagem e narrativa4 desafio do giro linguístico à historiografia, causando forte polêmica entre os historiadores. White enfocou a situação da seguinte forma: quem desejar ser um historiador deve escrever menos, caso contrário deverá se dedicar à literatura. A resposta veio de diversas formas, com alguns historiadores garantindo que White não teve influência alguma sobre a historiografia desde então e com outros afirmando que a partir do giro linguístico houve uma transformação na historiografia. Alguns trabalhos de história foram produzidos seguindo as concepções de White, nos quais a narrativa é deixada de lado e são feitas compilações, quase que de maneira enciclopédica, de fatos, características, grandes nomes e reproduções de textos de uma determinada época. Contudo, mesmo em um livro elaborado de tal forma, sempre haverá a subjetividade do historiador, que atuou na escolha dos temas, na ordem em que foram elencados, no título da obra etc. Formação do discurso histórico e da escrita da história Tempo histórico e escrita da história De acordo com o pensamento do historiador alemão Reinhart Koselleck (1923–2006), a história não é composta por fatos, mas sim por aquilo que se escreve sobre eles. Koselleck tem sido um dos autores mais lidos em termos de teoria da história e da sua ligação com o campo da comunicação e da linguagem. Isso se dá por duas questões básicas: a primeira delas diz respeito às constantes preocupações dos historiadores em relação ao método histórico; em segundo lugar, a importância que adquire, a partir da intersecção entre história e linguística, o cuidado que o historiador deve reservar ao uso das palavras e dos conceitos na escrita da história. Uma das hipóteses centrais da obra de Koselleck reside nas relações entre a experiência do passado e a expectativa sobre o futuro. Para o autor, os modos como uma determinada sociedade lida com o seu passado (ex- periência) ao mesmo tempo em que projeta o seu futuro (expectativa) é o que constitui o tempo histórico. Em miúdos: o tempo histórico é o tempo que surge da consciência humana. É o tempo que não é o natural, pois o presente se alonga, mantendo as mesmas relações entre passado e o futuro, durante muito tempo. Koselleck nos fornece alguns exemplos de relacionamentos entre presentes com seus passados e futuros, sob a perspectiva europeia (REIS, 1996), mas 5História, linguagem e narrativa bastante significativas na demonstração de que o próprio histórico é histórico. A antiguidade é a época da historia magistra vitae (história mestra da vida), em que a experiência se sobrepunha à expectativa, pois era justamente a primeira que se impunha à segunda. No medievo, o tempo se acelera, pois a escatologia cristã (doutrina do fim dos tempos) aguarda para breve o juízo final. Nos tempos modernos, a partir do século XVI, a separação entre passado e futuro torna-se larga novamente. Contudo, o passado já não serve de lição, o que importa é a ação no presente para a chegada do futuro. Por fim, na contemporaneidade a aceleração do tempo é diminuída, devido ao controle técnico da natureza, que leva ao planejamento e a um ritmo próprio para tomada de decisões. Todas essas formas de percepção do tempo histórico tornam-se constituintes do discurso e da escrita da história correspondentes a cada período. Para aumentar seus conhecimentos sobre as novas formas de narrativa histórica, leia o livro A escrita da história: novas perspectivas. A obra, organizada pelo célebre historiador Peter Burke, apresenta uma coletânea de artigos em que são discutidos os novos formatos de escrita da história. De autoria de historiadores das mais diversas correntes historiográficas, os textos formam um relevante apanhado acerca das tendências da história surgidas nas últimas décadas. Atualmente, na escrita acadêmica, é exigido do historiador um estilo conciso e objetivo, que vá direto ao ponto, sem espaço para o desenvolvimento de uma narrativa mais imaginativa que se valha de técnicas literárias. Da mesma forma, há uma padronização da forma de estruturar o texto, o que pode ser facilmente verificado em repositórios de dissertações e teses de ciências humanas. Frequentemente, em cada nova época, declara-se morto aquilo que o precedeu. Dessa forma, constitui-se um desejo de diferenciação do tempo passado, que é expresso, geralmente, nas grandes rupturas históricas, como as revoluções, por exemplo. Essa situação acaba por influenciar o trabalho dos historiadores, pois novas construções da história surgem relacionadas às novas percepções do tempo. Na lista a seguir, você poderá verificar importantes correntes historiográ- ficas contemporâneas, que apresentam seus próprios discursos e maneiras peculiares de escrita da história: História, linguagem e narrativa6 Micro-história: tipo de historiografia com origem na Itália a partir dos anos 1970. Faz um recorte extremamente específico, como, por exem- plo, no livro O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, que reconstrói em detalhes a vida de um homem do final da Idade Média. Principais historiadores: Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. História das mulheres: surge a partir da década de 1970 nos Esta- dos Unidos, com objetivo de preencher uma lacuna na academia, que até então não havia realizado reflexões consistentes sobre o papel da mulher na história. Está ligada à luta das mulheres por direitos iguais (feminismo) e tem como sua principal historiadora Joan Scott. História oral: os historiadores que se utilizam de fontes orais possuem uma metodologia própria de entrevistas, que difere das realizadas por jornalistas, em que a subjetividade da fala, das pausas e das rememora- ções são fundamentais. É importante para o estudo de sociedades que não registraram sua história por escrito e para a formação de memória a partir do relato de testemunhas de eventos históricos. Verena Alberti é uma das grandes referências neste campo. História da leitura: estuda quem lê, o que lê e como lê ao longo do tempo. Parte do princípio de que a leitura também é histórica, possuindo diferentes significados no tempo e no espaço. A leitura é um fenômeno social, que pode revelar, através das reações dos leitores, importantes informações sobre as sociedades do passado. O historiador mais im- portante dessa corrente historiográfica é Robert Darnton. História das imagens: a partir dos anos 1970, surge entre os historia- dores o interesse pela chamada cultura pop, que tem nas imagens uma de suas grandes expressões. É a partir daí, numa sociedade cada vez mais mediatizada pelas imagens (publicidade, fotojornalismo, cinema, televisão) que se tornam relevantes os estudos sobre seu desenvolvimento histórico. Ivan Gaskell é um dos autores de referência na história das imagens. História do corpo:Até mesmo o corpo humano pode ser problematizado como uma construção histórica. Nas muitas sociedades que existiram ao longo dos séculos, a visão a respeito do corpo modificou-se radical- mente. Da celebração do nu dos antigos gregos à total repressão do corpo na Idade Média, suas representações foram vivenciadas e expressas de maneira complexa. Portanto, o corpo se torna objeto da investigação histórica a partir de suas percepções. O historiador Roy Porter foi um dos grandes nomes desta modalidade de investigação histórica. 7História, linguagem e narrativa A Nova História Cultural A partir das últimas décadas do século XX e início do século XX, diversas correntes historiográfi cas surgiram e podem ser agrupadas no que se con- vencionou chamar de Nova História Cultural. Enquanto nas décadas de 1950 a 1970 houve o predomínio da história econômica, de lá para cá houve um ressurgimento da história política (que pode ser chamada de Nova História Política), ao mesmo tempo em que novos campos de estudos foram abertos no âmbito da cultura. Portanto, nos últimos anos grande parte da produção historiográfi ca tem se situado em uma ou outra corrente. Para compreendermos adequadamente o instrumental teórico e conceitual da Nova História Cultural, é preciso que tenhamos em mente os seguintes conceitos: práticas, representações, ideologia, imaginário e cultura política. Práticas e representações são duas noções complementares. José D’Assunção Barros (2011) nos apresenta um exemplo bastante didático sobre como esses dois conceitos podem ser utilizados pelo historiados a fim de compreender as transformações históricas. Imagine um mendigo que vivesse na Idade Média. Na época, ele era tido como importante instrumento que servia para a salvação dos ricos, que obtinham o perdão dos seus pecados por meio do ato de dar a esmola. Avançando no tempo e chegando ao perí- odo da acumulação primitiva do capital — quando, sob o ponto de vista da burguesia que começava a se consolidar como classe dominante, nenhum braço poderia ficar livre do trabalho, pois assim não produziria riqueza — a representação da prática social da mendicância é transformada. Nessa nova época, os mendigos passam a ser perseguidos e surge legislação com vistas a combater a “vadiagem”. Para aprofundar seus conhecimentos sobre o conceito de "cultura política", você deve ler o livro Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, organizado pelas professoras Rachel Soihet, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. Você deve atentar especialmente para o artigo “História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões”, da historiadora Ângela Maria de Castro Gomes. No texto, a autora elabora um instigante estudo acerca das relações entre o conceito de cultura política e historiografia. História, linguagem e narrativa8 Por sua vez, a ideologia (já antecipada como objeto por Marx e Engels) também é fundamental nos novos estudos culturais. A história cultural entende ideologia como uma forma de construção ou organização das representações, de maneira a atender interesses gerais das classes dominantes. Até que ponto a ideologia é “planejada” ou espontânea ainda é causa de debates dentro das ciências humanas. Já o imaginário é uma categoria conceitual que surge a princípio na seara da psicologia, tornando-se a seguir polissêmica dentro dos estudos histórico- -culturais. No entanto, o imaginário costuma ser concebido como a fonte de tudo que a humanidade produz, sendo, ao mesmo tempo, sua capacidade de criação e o “[...] campo de suas produções imaginárias” (CRUZ, 2015, documento on-line). Por último, temos o conceito de cultura política, que surge aproximada- mente na década de 1960. Nas investigações da história cultural, a cultura política serve como parâmetro para a correta compreensão das expressões e significados de um determinado sistema político, assim como este é sentido e avaliado pela sociedade da qual faz parte. Como visto, com o advento da Nova História Cultural, uma série de novos conceitos passaram a ser utilizados pelos historiadores. Esse novo arcabouço conceitual teve grande impacto na maneira como a história passou a ser escrita entre o final do século XX e início do XXI. Novas abordagens, novos questio- namentos e, sobretudo, novos modelos explanatórios da história e da sociedade agem como determinantes na construção dos discursos históricos atuais. Roger Chartier é um dos nomes mais importantes da Nova História Cultural francesa. Confira no vídeo disponível no link a seguir uma fala do historiador, em que ele tece importantes considerações sobre como cada período histórico produz seus próprios tipos de documentos. https://qrgo.page.link/WmQ7E 9História, linguagem e narrativa Relações entre a história, o simbólico e o imaginário O símbolo na narrativa histórica A própria narrativa histórica possui sua historicidade. Os modos de se escrever a história mudam com o passar do tempo, apresentando em cada etapa histórica características relacionadas aos modos de pensar e agir da sociedade que os produz. Conceber o desenvolvimento histórico humano é uma atividade intelectual e, como toda atividade desse tipo, sofre infl uências dos meios materiais onde se insere e, sobretudo, das ideias dominantes, dos imaginá- rios e das formas de simbolismo presentes. Assim, a relação entre estes e a história é um dado que não pode ser descartado; ao contrário, é uma ligação que nos permite compreender as origens de determinados discursos históricos (CARDOSO, 2000). De acordo com Levi (2014), o trabalho do historiador consiste, grosso modo, em pesquisar, resumir (escrever) e comunicar. Portanto, o centro da sua atividade enquanto pesquisador da história é o texto. Mas como podemos definir precisamente, para nosso propósito aqui, o que é um texto? Um texto é uma coleção de símbolos, que tem por objetivo recriar de- terminadas situações reais ou então conceitos de maneira concreta. Dessa maneira, o trabalho do historiador torna-se completamente ligado ao fato de que a recriação do passado a que ele se propõe é uma atividade eminentemente simbólica (TRAVERSO-YÉPEZ, 1999). O historiador não consegue reproduzir fidedignamente um acontecimento do passado. Em primeiro lugar, ele recria esse acontecimento em sua mente, em forma de pensamento, para em seguida expressá-lo através do texto (a linguagem pela qual expressa seu pensamento), em forma de símbolos coerentes e significativos. Desse modo, é criada uma “ponte” entre o passado, ele e o leitor. O simbólico e a história No âmbito das ciências humanas, os estudos envolvendo o simbólico têm crescido signifi cativamente nas últimas décadas. Até então, a história estava basicamente focada em estudos econômicos e sociais, sendo surpreendida pelo pioneirismo de áreas como linguística, psicologia, antropologia, etnologia e sociologia nos usos dos conceitos de símbolo e de representações em seus História, linguagem e narrativa10 estudos. Os historiadores reagiram a esse desafi o ampliando enormemente seus horizontes de pesquisa, incluindo diversos temas que até então não eram prioritários dentro da história. Esses novos objetos de pesquisa situam-se dentro do campo do imaginário e do simbólico. Como exemplo, podemos citar, como recorda Chartier (1991, documento on-line), “[...] as atitudes perante a vida e a morte, os rituais e as crenças, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os modos de funcionamento escolares etc.”. Portanto, surge a chamada “história das mentalidades” (conhecida também por “psicologia histórica”), que se estrutura basicamente sobre os territórios desbravados por antropólogos, sociólogos etnólogos etc. Um exemplo elucidativo a respeito do uso do simbólico e das representações na historiografia contemporânea está no trabalho de historiadores da Idade Média. Quando um príncipe morria, eram colocados sobre seuesquife manequins de madeira ou de cera; dessa forma, quem presenciasse o cortejo fúnebre não enxergaria diretamente o corpo do morto, mas a sua representação. Outra relação simbólica importante é aquela entre os símbolos heráldicos e características morais: o leão simbolizava o valor; o pelicano, o amor materno, etc. Assim, essas representações simbólicas adquirem grande relevância para o trabalho do historiador (BARROS, 2007). Imaginário e história Frequentemente, a história do imaginário é confundida com a história das mentalidades, equívoco que se explica devido à similaridade dos problemas que cada uma delas se ocupa. Ambas se situam dentro do campo das re- presentações; no entanto, é necessário que seja estabelecida uma distinção entre elas. A história das mentalidades trabalha com a ideia de que em toda e qualquer sociedade existe uma "mentalidade coletiva", um tipo de estrutura ou hábito mental comum a todos os seus membros. Essa estrutura se transforma len- tamente, às vezes levando séculos ou até mesmo milênios para desaparecer. Lucien Febvre exemplifica o que seria uma mentalidade coletiva de maneira muito clara: aquilo que une César ao seu último legionário; ou o camponês 11História, linguagem e narrativa que ara as terras de São Luís; ou ainda Colombo ao marujo mais humilde de sua caravela. Portanto, as mentalidades coletivas são as sensibilidades, os pensamentos e as emoções comuns, independentemente de classe social, idade ou gênero, a todos os integrantes de uma determinada formação social. Já a história do imaginário, de acordo com Barros (2007, documento on-line): [...] estuda essencialmente as imagens produzidas por uma sociedade, mas não apenas as imagens visuais, como também as imagens verbais e, em úl- tima instância, as imagens mentais. O imaginário será aqui visto como uma realidade tão presente quanto aquilo que poderíamos chamar “vida concreta”. O imaginário mostra-se, dessa forma, uma dimensão tão significativa das sociedades humanas quanto aquilo que corriqueiramente é encarado como a realidade efetiva. Um exemplo que confirma essa perspectiva histórica é das pessoas que participaram das Cruzadas. Elas não foram motivadas por razões econômicas ou políticas, mas, sobretudo, pelo imaginário cristão e do cavaleirismo. Dessa forma, enquanto a história das mentalidades aproxima-se da psico- -história — analisando, por exemplo, o papel da família na sustentação da ordem política e econômica vigente, a partir de seu papel na formação do caráter dos indivíduos, como sustenta Wilhelm Reich — a história do imaginário tem outras preocupações. Ela se ocupa mais detidamente das conexões entre imagens visuais, verbais e mentais e a vida cotidiana de uma sociedade. Assim, observa objetos mais bem definidos, como repertórios de símbolos e imagens, padrões de representação, papéis sociais e/ou políticos de determinados rituais e cerimônias, os temas mais comuns na literatura, modos de vestir etc. Alguns dos autores com trabalhos mais relevantes dentro da história do imaginário foram Georges Duby (1919–1996), Cornelius Castoriadis (1922– 1997) e Jacques Le Goff (1924–2014). Marc Bloch (1886–1944), embora não seja considerado exatamente um historiador do imaginário, produziu uma grande obra dentro deste campo, intitulada Os reis taumaturgos. Dentro dos domínios da história nos tempos atuais, todos esses autores são considerados indispensáveis para que pesquisas expressivas e de qualidade sejam produzidas na tendência historiográfica da história cultural. Enfim, podemos afirmar que existem grandes interações entre o imagi- nário, o simbólico e a história em diversos campos da história da atualidade. Dessa maneira, os pesquisadores têm ampliado de forma substancial o seu História, linguagem e narrativa12 escopo de investigações. Sem dúvida alguma, todos esses avanços dentro da historiografia têm proporcionado novas e instigantes visões a respeito dos “ho- mens no tempo”, desde que novos objetos, antes desconsiderados, assumiram importância central na historiografia. Assim, o passado pode ser mais bem compreendido, assim como as relações que os seres humanos estabelecem uns com os outros, com o meio em que vivem e com os elementos que servem de mediação para estes encontros. Marc Bloch publicou em 1924 o livro Os reis taumaturgos: estudo sobre o caráter sobrenatural atribuído ao poder régio particularmente na França e na Inglaterra, um monumental estudo que pode ser considerado precursor no campo da história do imaginário. A obra trata do ritual de cura das escrófulas (feridas resultantes da infecção nos gânglios linfáticos), que os reis da França e da Inglaterra promoveram entre os séculos XI e XVII (Figura 1). Bloch analisa como essa prática tinha grande influência sobre os aspectos políticos e mentais daquelas sociedades. Figura 1. Luís XIV tocando as escrófulas (Jean Jouvenet, 1690). O ritual de cura das escrófulas praticado pelos reis da França e da Inglaterra exercia grande influência sobre o imaginário dos seus súditos. Fonte: Célébrer... (2018, documento on-line). 13História, linguagem e narrativa BARROS, J. D. A nova história cultural: considerações sobre seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História, v. 12, n. 16, p. 38–63, 2011. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/ view/P.2237-8871.2011v12n16p38. Acesso em: 5 ago. 2019. BARROS, J. D. História, imaginário e mentalidades: delineamentos possíveis. Conexão — Comunicação e Cultura (UCS), v. 6, n. 11, p. 11–39, 2007. Disponível em: www.ucs.br/ etc/revistas/index.php/conexao/article/view/191. Acesso em: 5 ago. 2019. CARDOSO JÚNIOR, H. R. Acontecimento e história: pensamento de Deleuze e problemas epistemológicos das ciências humanas. Trans/Form/Ação, v. 28, n. 2, p. 105–116, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v28n2/29417.pdf. Acesso em: 5 ago. 2019. CARDOSO, I. Narrativa e história. Tempo Social, v. 12, n. 2, p. 3–13, 2000. 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